Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Bob, o cão herói. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Bob, o cão herói. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

cotidianas #412 - Bob, o cão-herói




imagem do filme "Vira-Lata"
A infância de minha mãe foi muito pobre, muito carente, muito necessitada. Meus avós tiveram muitos filhos e nem sempre puderam dar o que de melhor desejavam, nem materialmente e, muitas vezes por questões de obrigações, trabalho e preocupações, nem emocionalmente, o que fazia com que as crianças buscassem esse refúgio entre elas mesmas e muitas vezes em mascotes, cachorros de rua que eram adotados quase naturalmente, ao entrarem no pátio e ficarem, e que acabavam com o passar do tempo ganhado o carinho da família e deixando sua marca entre os integrantes dela. Aproveito que falei dos olhos do Mac para lembrar de outra história de cachorros da infância da minha mãe, muito bonita e que carrega um pouco de cada elemento dos que coloquei anteriormente.
O Bob era um desses vira-latas que entrara no pátio, fora ficando e de repente era um membro da família. A época era difícil como fora muitas vezes e meu avó, Seu Betinho, desempregado, ia cedo para a rua para procurar trabalho. Em casa, a Dona Isaura ia tentando se virar como dava. Improvisava na comida, usava a criatividade, conseguia um emprestado aqui, um fiado ali e ia conseguindo tocar a casa de modo que as crianças, no mínimo, tivesses uma comida decente. Enquanto isso, meio que alheias a os problemas, mergulhadas em seus brinquedos de infância, bolitas, jogo de taco, carrinhos de lomba, as crianças faziam sua tradicional algazarra na frente da casa. Tudo isso vigiados pelos atentos olhos do Bob que ficava ali como se fizesse parte da brincadeira. Não era raro que, de vez em quando, enquanto a meninada se divertia, se ouvisse o açougueiro, furioso, enxotando o Bob de dentro do seu estabelecimento, aos berros e palavrões, o que fazia a molecada cair ainda mais na gargalhada.
E era neste mesmo açougue que minha avó pedia para minha mãe, que era a mais velha das meninas, ir buscar alguma carne para dar uma incrementada na modesta comida que preparava todos os dias. Certo dia a pequena Iara foi mais uma vez à casa de carnes e mais uma vez, como nas últimas semanas, sem dinheiro. O açougueiro que havia sido paciente, generoso até mesmo, dizia agora que havia chegado a seu limite e que não poderia mais vender fiado. Não, não adiantava insistir. A mirrada menina de olhos verdes, sem alternativa, voltou para casa e relatou à mãe que não conseguira levar a carne, que o açougueiro não concordara em vender-lhe fiado mais uma vez. Aquilo era terrível, pois não só o homem da carne, mas os outros comerciantes começavam a não querer mais dar-lhes crédito. O que fariam? Talvez, naquele dia, pela primeira vez, não tivesse comida para dar aos filhos.
Dona Isaura, então, talvez para ganhar tempo e pensar no que faria, disse à filha que fosse brincar com os outros enquanto preparava alguma coisa. Quando saía pelo pátio de chão batido, cabisbaixa, entendendo que as coisas estavam muito mais difíceis do que poderia imaginar, foi que a garota Iara viu Bob entrando no pátio, faceiro, com o rabo balançando, e  com um enorme pedaço de fígado bovino na boca arrastando na terra. Que traquinas! Por certo aproveitara uma distração do açougueiro entrara e pegara o pedaço de carne. Teria sido aquele bichinho iluminado por Deus naquele momento? Salvara a família.
"Manhêêê, o Bob trouxe um pedaço de carne!'.
Tiraram o naco de fígado da boca do cãozinho, sem maior resistência, esperaram a reação do açougueiro se desse falta de alguma coisa e como não aconteceu, limparam a carne e prepararam um saboroso almoço. O pedaço era grande, teriam refeição certa para alguns dias, sendo assim, não faria falta tirar um pedaço para o Bob, afinal ele mais do que ninguém merecia. Como era justo Bob ganhou um generoso pedaço, o que ele mesmo havia mordido, é claro. Recompensa justa para um herói.


Cly Reis

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

cotidianas #651 - ESPECIAL DIA DAS CRIANÇAS - Nossa senhora



Era meu pai quem exigia de mim e de meus irmãos que, desde pequenos, chamássemos os mais velhos de “senhor” e“senhora”, o que era, naturalmente, praticado dentro de casa. Pelo menos a mim nunca foi um problema, pois a relação entre obediência e liberdade em minha infância e adolescência não passavam somente pela forma de se dirigir a palavra aos outros. Até estranhava ver os coleguinhas chamarem seus pais pelo primeiro nome. Mas para a minha mãe, Iara, talvez mais do que ao meu próprio falecido pai, por algum motivo que apenas intuía este pronome de tratamento combinava-lhe muito.  

Já disse mais de uma vez que minha mãe é uma das grandes responsáveis por ter me tornado um homem das letras, né? Não por ser advogada, mas por um jeito de ser mais sensível. Ela, assim como foram minha madrinha, sua irmã Lurdes, e minha avó paterna, dona Edith, é uma excelente contadora de histórias, o que certamente me inspirou para a vida. Mais do que a boa memória para relembrar fatos remotos, a fineza da construção narrativa e o tino de observar que determinado recorte temporal rende um destaque, um tratamento diferenciado para além do restante da vida cotidiana, por mais banal que este possa parecer, é coisa de gente abençoada com um dom. 

Caso não meu, mas dela, minha mãe. Desde a infância tomada de dificuldades de toda ordem, do financeiro ao machismo, da saúde ao preconceito, da exclusão social à violência doméstica, soube, com uma capacidade divina, transformar fatos melancólicos e tristes em episódios engraçados, graciosos e até fantásticos. Dignos da mais alta literatura de um Tchékov, um Erico, um Joyce. Ou não seria exatamente isso as histórias do cachorro Mac, da visão que teve do Coelho da Páscoa ou do Bob, o cão herói, devidamente recuperadas aqui no blog por meu irmão?

E essa graça especial não aparece só quando ela conta histórias, mas também quando as reconta. Sempre adorei essas repetições, pois não raro surgem elementos novos àquele enredo que realçam ainda mais a oralidade. Pois ocorreu justo isso recentemente, numa dessas recontações dela. O ano era 1966 e a cidade, Porto Alegre. Mas a Porto Alegre dos moradores da periferia – no caso, a vila Cefer, na zona leste da cidade, uma das resistentes áfricas negras da capital gaúcha. Minha mãe, aos 17 anos, frágil de saúde e de condições de vida na casa em que (sobre)vivia com os pais e os vários irmãos, adoeceu. Acometeu-lhe a tuberculose, doença infecciosa estigma de pobreza no Brasil.

A jovem Iara, precisando de tratamento, foi buscar atendimento onde lhe era possível no serviço público: na Unidade Sanitária São José do Murialdo, o Sanatório Partenon. Este Centro Social foi o precursor no Rio Grande do Sul da medicina comunitária para atendimento a pessoas com tuberculose. Ainda hoje em funcionamento na Av. Bento Gonçalves, no bairro Partenon, distancia-se aproximadamente 4 quilômetros da Cefer, Nada tão longe assim, não fosse essa distância ter de ser empreendida a pé pela debilitada jovem. Em plena noite. 

Horas depois, chegou. Já na recepção, a primeira assessoria de Deus. Enquanto aguardava atendimento, os próprios atendentes do Sanatório, sem constrangimento e nem escrúpulos diante de uma mulher jovem, negra e pobre, descaradamente apontavam o dedo em sua direção e cochichavam entre si, soltando olhares de pretensa consternação. Minha mãe estava desenganada pelos médicos e ainda não havia sido informada disso. Porém, a jovem Iara, misto de pureza e da tal assistência divina, não se incomodou com aquela atitude desrespeitosa. Mas não por segurança em si, a qual ainda precisaria muito para erigir, mas porque achou que não era com ela. Naquela sala de espera quase vazia, o destino pôs-lhe às costas, a alguns bancos atrás, um rapaz embriagado, caindo pelas tabelas, todo roto e sujo. Um pobre diabo. Assim, ela safou-se da humilhação, pois, não sabendo de tamanha gravidade de seu próprio caso, entendeu que eram ao infeliz bêbado que se dirigiam os comentários insensíveis dos atendentes. Vejam só.

Mas o pior (ou o melhor) estava por vir. O que era para ser uma consulta virou, dada a gravidade do seu problema pulmonar, em uma internação imediata. Ela precisaria baixar por tempo indeterminado. Acontece que aquela seria a primeira vez que passaria uma noite longe de casa e, ainda, sem poder avisar ninguém, afinal, se ricos já não tinham telefone àquela época, imagina a família da minha mãe. Ficaria ali, por imposição, sozinha e longe da mãe, a minha avó Isaura, seu porto-seguro, pessoa que viveu mais de 70 anos sem acreditar em religião, mas que nem por isso deixou de transmitir aos filhos – e a ela, em especial – um imenso sentido de fé. Mas nem a maior crença do mundo faria com que vó Isaura não ficasse preocupada, se não, desesperada, com a ida sem retorno da filha. Não havia o que fazer, apenas rezar.

Se aquila situação inesperada já seria motivo de aflição para uma menina hoje, imagine para uma adolescente daquela época, doente e despreparada, como a inocente Iara. Sentia-se como uma criança solta no mundo. Medo: foi o que sentiu quando foi posta sozinha num dos espaçosos quartos do andar térreo, cujas amplas janelas envidraçadas expunham apenas um assombroso matagal fechado vizinho ao sanatório. Dava a impressão de ser uma grande tela onde, na cabeça assustada de Iara, podiam surgir de dentro da noite figuras aterrorizantes a qualquer momento. Um filme de terror onde ela era a protagonista.

A sensação era de total desamparo. Total solidão. “O que fazer!”, pensava? Somente com os olhos para fora do lençol, minha mãe pôs-se a fazer outra coisa que sempre soube muito bem além de contar histórias: rezar. Precisava que algo a ajudasse a sair daquela aflita e crítica situação. Foi então que, do tal janelão à sua frente, formou-se uma enorme imagem de Nossa Senhora. Nítida, cândida e iluminada por uma luz até aquele exato momento inexistente. A santa, com olhar firme e tranquilizador, tomava a janela inteira e olhava para ela, Iara, em resposta àquele genuíno pedido de socorro. Minha mãe, como que por um milagre, adormeceu sem perceber. No dia seguinte, um médico sanitarista chamado Moacyr Scliar a atendeu e, contrariando o diagnóstico fatal dado por colegas anteriormente, afirmou-lhe que a ajudaria a recuperar-se. E foi o que fez na prática médica e não só com palavras, embora fosse muito afeito a elas como a própria paciente.

Até aqui, é onde minha mãe sempre nos contou. Qualquer um diria que, dada a maravilha dos fatos, já seria suficiente para encerrar a história. Mas tem mais. Sabe aquela pitada de novo elemento narrativo adicionado por minha mãe às próprias contações a que me referi anteriormente? Pois, então: entra agora. Porém – como também lhe é de costume –, este novo item dialoga, quase sempre, com outra história. 

Desta vez, o ano é 2017, Rio de Janeiro, bairro da Tijuca, mês de fevereiro. Meu irmão havia se acidentado andando de bicicleta na rua, o que o levou a passar por duas sérias cirurgias no cotovelo direito. A horas de receber alta, meu irmão inventou de nos dar um susto tremendo tendo uma embolia. Todos nós recorremos àquilo que aprendemos com dona Iara: a reza. A contrição dela, no entanto, envolveu novamente uma figura abençoada. Da janela do quarto do hospital em que meu irmão estava, minha mãe enxergava a estátua de uma santa (real esta, aliás), a qual ela nem sabia qual era. Prática, pensou: “é tu mesma!”  Vai que tivesse amizade com Nossa Senhora, fosse vizinha de porta ou frequentassem o mesmo clube! E deu certo: foi a esta que minha mãe rogou pela recuperação de meu irmão, mostrando que a sua linha de comunicação com a galera lá do alto continuava em dia mesmo tantos anos depois.

Pois que, a pouco tempo, em suas orações, um raciocínio aparentemente óbvio veio-lhe explicar a graça obtida no passado e na ocasião mais recente. Relembrando-se da inesquecível imagem de Nossa Senhora que lhe salvou quando mais se sentiu desprotegida, minha mãe observou, atrás da santa, uma outra imagem: a de minha avó Isaura em posição de reza. Com as pequenas mãos unidas em gesto de súplica pela filha que, naquele episódio do Sanatório de Porto Alegre, não sabia onde estava. Só pedia, com fé, que Nossa Senhora zelasse.

Foi aí que minha mãe ligou os pontos: a mesma energia que ela enviou a meu irmão para que se recuperasse, foi a que minha avó, sem nenhuma outra alternativa a fazer, emanou a quilômetros de distância para que ela, minha mãe, ficasse bem naquele remota noite de 1966. E em ambos os casos mediado pela mãe de todos, Nossa Senhora, cujo coração abarca e simboliza o maior amor do mundo: o amor de mãe. Nossa Senhora, que é homenageada neste dia 12 de outubro, também celebrado como Dia das Crianças.

No entanto, não é coincidência tanta proximidade no calendário: pouquinho antes da data da santa, comemoramos outra data – pelo menos, na minha família. O dia 11, na véspera, é quando Iara Terezinha Reis Rodrigues completa anos de vida. Hoje, em 2019, especialmente, 70 deles. Setentinha. Após gerar três filhos e cuidar de outros tantos, superar um problema de saúde grave, nutrir um casamento de décadas, ser a primeira a fazer faculdade na família, ganhar uma merecida aposentadoria por anos de serviços prestados ao sistema público e contar e recontar diversas histórias deliciosas de se ouvir, minha mãe chega a este marco da jornada de uma pessoa neste plano. Viva, cheia de gás, sorrisos e coisas a ensinar. A mim, ela deu de presente não só a vida como parte do seu dom da narrativa. Aos meus irmãos, de quem tenho certeza da permissão de falar por eles, sei que também devem tudo a ela. A nossa senhora, assim, no diminutivo, pra não assustar suas colegas lá de cima.


por Daniel Rodrigues
foto: Leocádia Costa
(Parque Lage, set/2019)
(a Iara, Antonio, Clayton e Karine)