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sábado, 12 de novembro de 2016

Paulinho da Viola - “Memórias Cantando” (1976)



“Este trabalho reúne sambas meus e de outros
com um significado todo especial para mim [...]
Foram momentos que ficaram
em minha memória de forma viva,
 acontecimentos que têm grande importância
 naquilo que hoje faço.”
Paulinho da Viola



Paulinho da Viola não é dono de uma obra extensa. Principalmente se comparado a contemporâneos seus da música brasileira, como Gilberto GilCaetano VelosoGal Costa e Milton Nascimento, sua discografia é consideravelmente menor e na qual se nota um espaçamento maior entre um trabalho e outro, chegando a somar 20 anos sem nenhum projeto de canções inéditas como atualmente. Entretanto, e talvez por isso, a noção de tempo dele, esse misto elegante de malandro de morro com sambista clássico, chorista e bossa-novista, seja, de fato, diferente da noção da maioria. Sua apreensão dessa percepção temporal é fundamentalmente interna, subjetiva. E um dos mais fiéis recursos para a materialização desse tempo, constantemente presente e vivido, seja-lhe a memória. É no registro afetivo do passado que Paulinho da Viola cria, recria e reinventa (a si e ao que já foi).

Não é difícil deduzir porque o duo “Memórias Chorando” e “Memórias Cantando”, ambos de 1976 (ou seja, completando 40 anos) sejam talvez os grandes discos dele, um dos maiores artistas da música brasileira. Forjados para serem lançados num álbum duplo, por questões comerciais foram parar nas prateleiras das lojas separadamente. Mas lhes é visível a coesão, a começar pela arte magistral de Elifas Andreado tanto da capa, com a imagem dos “erês” brincando em um fundo branco, quanto nos encartes, quando seu desenho entrelaça vários momentos cronológicos e afetivos dele e de Paulinho. Porém, fundamentalmente, os dois discos são, parafraseando Jorge Luís Borges quando se referia aos livros, “uma extensão da memória e da imaginação”. Profundos, ambos trabalhos vão buscar, de formas diferentes, sentimentos que traduzem a personalidade de seu autor.

O volume 1, “Cantando”, é certamente um dos felizes trabalhos do samba em todos os tempos, desde sua caprichada produção, a cargo de Mariozinho Rocha e Milton Miranda, até o repertório, pinçado a dedo por Paulinho e que casa temas antigos com novas criações à época. A força das lembranças emocionais abre o disco no elegante samba-canção “Nova Ilusão”, do repertório da velha guarda da Portela em que o cavaquinho de Paulinho desenha o rico “riff” inventado por “mano” Caetano e Claudionor. Na letra, os temas que formaram a poesia de Paulinho desde sempre: as referências à passagem do tempo, os símbolos da natureza, a inter-relação do emocional com o real, a amalgamação do subjetivo com o concreto. “És um poema na terra/ Uma estrela no céu/ Um tesouro no mar/ És tanta felicidade/ Que nem a metade consigo exaltar”.

Na sequência, a faixa-título, das escritas especialmente para o disco. Relembrando uma época de inocência, Paulinho percebe o transcorrer da história pessoal do homem e coloca os sentimentos bonitos e sinceros em confronto com os amargos da vida adulta. “Lembra daquele tempo/ Quando não existia maldade entre nós/ Risos, assuntos de vento/ Pequenos poemas que foram perdidos momentos depois/ Hoje sabemos do sofrimento/ Tendo no rosto, no peito e nas mãos umas dor conhecida/ Vivemos, estamos vivendo/ Lutando pra justificar nossas vidas”. Mas, valendo-se do canto, da sua música, ele desfecha otimista e humanisticamente: ”Cantando/ Um novo sentido, uma nova alegria/ Se foi desespero hoje é sabedoria/ Se foi fingimento hoje é sinceridade/ Lutando/ Que não há sentido de outra maneira/ Uma vida não é brincadeira/ E só desse jeito é a felicidade”.

“Abre os teus olhos”, ao estilo dos sambas da Portela, narra um amor se desfazendo, ou seja, o passado que já não se faz mais presente (“Felicidade já conheceu seu momento/ Abre os teus olhos e veja o que aconteceu/ Esqueça tudo/ Porque nosso amor já morreu”). Esta antecede uma das mais belas do disco e de todo o repertório do músico: "Dívidas". Samba cadenciado e melancólico, é uma espécie de “crônica de memória”, na qual Paulinho conta um episódio cotidiano que presenciou quando criança e que lhe marcou: um vizinho seu, homem da comunidade, apertado de grana no final do mês como tantos ali, incomodou-se ele e sua esposa, a Inocência, com outro vizinho, Oliveira, que havia lhe emprestado dinheiro mas não tinha sido pago ainda. A menção aos nomes desses personagens anônimos, o relato cronológico da pequena história, dando detalhes e pontuando aspectos simbólicos importantes, como a situação econômica e a estratificação social, dão a esta canção um aspecto literário. Isso ainda ajudado pela métrica não-linear da melodia – ao estilo de outro mestre portelense, Candeia – ,que acompanha o desenrolar ondulante que da narrativa – bem diferente de outras do disco, que chegam à perfeição simétrica como “Nova...” e “Mente ao meu coração”.

Esta última, por sinal, um samba-canção de Francisco Malfitano gravado originalmente em 1938 por Silvio Caldas, é mais uma das regravações cuja melodia Paulinho puxa do fundo do seu baú de emoções. E que bela poesia: “Mente ao meu coração/ Que cansado de sofrer/ Só deseja adormecer/ Na palma da tua mão...”. Das regravações há também uma do clássico de Noel Rosa e Vadico “Pra que mentir”, em que Paulinho interpreta (não sem a influência do canto de João Gilberto) apenas sobre o classudo violão de César Farias neste samba triste e de avançada estrutura, o qual lembra, com quase duas décadas de antecedência, as harmonias dissonantes da Bossa Nova.

Mas não apenas de tristeza, desentendimento e sofrimento se compõe a memória de Paulinho da Viola. “Perdoa”, um brilhante partido-alto no qual divide o microfone com Elton, levanta o clima. Além do tom alto, que lhe empresta vivacidade, é típico da estrutura deste tipo de samba o refrão permanente (aqui: “Meu bem, perdoa/ Perdoa meu coração pecador /Você sabe que jamais eu viverei/ Sem o seu amor”), o qual, como num repente nordestino, serve de marcação de tempo para que, nas rodas de pagode, os versos das estrofes possam ser inventados na hora pelos partideiros. Outra animada, esta em clima de crônica chistosa, “O velório do Heitor“ relembra um episódio em que o “catimbeiro” Heitor era enterrado com tristeza pela família, principalmente da esposa, Nair. Acontece que a “outra” do finado aparece também para dar seu adeus, e aí teve de se chamar até a polícia, pois, como dizem os versos: ”simplesmente o velório/ Virou a maior confusão”.

Os personagens, como bem se nota, são fundamentais para a formação desse mundo afetivo de Paulinho. É o que traz também “Vela no breu”, que descreve um velho mendigo de quem se tem muito mais a aprender do que lastimar: “Joga capoeira/ Nunca brigou com ninguém/ Xepa lá na feira/ Divide com quem não tem/ Faz tudo o que sente/ Nada do que tem é seu/ Vive do presente/ Acende a vela no breu”.

Em clima de choro sincopado, “Meu novo sapato” desfecha o disco, já anunciando o segundo bolachão, “Chorando”. Entretanto, “Cantando” tem ainda antes a talvez mais bela e intensa composição de Paulinho: “Coisas do mundo, minha nêga”. Nela, a questão do tempo é mirada em seu mais irremediável e infalível instante: a morte. Paulinho conta de forma poética a missão de um santo-sambista, imperfeito como um homem e poderoso como um deus, que, com seu violão debaixo do braço, sai pelos morros salvando almas com versos e melodias, sem, contudo, deixar de sofrer com isso e de precisar do amor redentor de sua amada. Difícil não se comover em passagens como esta: “Depois encontrei Seu Bento, nêga/ Que bebeu a noite inteira/ Estirou-se na calçada/ Sem ter vontade qualquer/ Esqueceu do compromisso/ Que assumiu com a mulher/ Não chegar de madrugada/ E não beber mais cachaça/ Ela fez até promessa/ Pagou e se arrependeu/ Cantei um samba pra ele/ Que sorriu e adormeceu”. “Coisas...” é tão importante para o repertório, que, não inédita, foi resgatada do álbum de 1968, o primeiro solo do artista, para esta versão definitiva da música preferida do seu próprio autor.

Interessante notar que, embora seja a mais anedótica entre todos os temas, “Coisas...” é a que tem o ar mais autobiográfico, como se somente fosse possível alcançar o misterioso interior de Paulinho da Viola através da fantasia. O próprio diz no texto que integra o encarte: “Amo o oceano que retém no fundo os mistérios de sua natureza”. Não à toa símbolos como o mar, os ventos, as flores, enfim, o tempo, estão constantemente presente nas suas letras e universo. A sentença “Meu mundo é hoje” (título de um clássico de Wilson Batista gravada por Paulinho na mesma década de 70), exprime o artista que é Paulinho da Viola e resume os versos que encerram “Memórias Cantando”: “É um verdadeiro artista/ Não tem orgulho/ Nem tão pouco amargura/ Está voltado/ Para o futuro.”

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FAIXAS:
1. Nova ilusão (Claudionor Cruz, Pedro Caetano) - 2:57
2. Cantando - 3:30
3. Abre os teus olhos - 2:47
4. Dívidas (Élton Medeiros, Paulinho da Viola) - 3:32
5. Perdoa - 4:05
6. Mente ao meu coração (Francisco Malfitano) - 3:12
7. Pra que mentir (Vadico, Noel Rosa) - 3:33
8. O velório do Heitor - 3:25
9. O carnaval acabou - 2:25
10. Coisas do mundo, minha nêga - 3:12
11. Vela no breu (Sergio Natureza, Paulinho da Viola) - 3:17
12. Meu novo sapato - 2:45

todas composições de Paulinho da Viola, exceto indicadas.
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por Daniel Rodrigues

terça-feira, 17 de maio de 2016

João Bosco - "Acústico" (1992)


“Na direção de programação da MTV,
participei da implantação de novos programas,
entre [estes] o Acústico.
Fiz a direção geral com Rogério Gallo
e a direção do programa ficou a cargo do Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em 1990.


Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu, trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e do Jornalismo ou mesmo pela programação.

Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”, se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”.  Virtuose do violão e dono de estilos de tocar e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele que é talvez o melhor unplugged realizado nesses pagos tropicais.

O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos, por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz, engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/ Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.

Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E selvas, portos, places/ Línguas, sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade daquele público então presente.

Este papel de resgate cabe ao medley com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha” (1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa, repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças não-terrenas (“Òrun”). Os versos dizem: “Exus na capa da noite soltara a gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por exemplo), alteram seu estado (“A doideira da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que admirável.

Outro medley traz as “líticas” “Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência” são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos lindos e profundos esses: “Eu já esqueci você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.

“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que são várias a disputar!). “Meu coração tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência melódico-harmônica sui generis, algo que somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.

Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60) em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações, representadas ali pela jovem plateia: “A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras com a voz a la Clementina de Jesus típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock, pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.

O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para (mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música brasileira.
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FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
2. Holofotes (João Bosco, Waly Salomão, Antônio Cícero)
3. Papel machê (Capinan, João Bosco)
4.  Granito (João Bosco, Antônio Cícero)/ Jade (João Bosco)
5. Quilombo/ Tiro de misericórdia/ Escadas da Penha (João Bosco, Aldir Blanc)
6. Memória da pele (João Bosco, Waly Salomão)
7. E então que quereis...? (Maiakovsky – Versão: Emílio Guerra)/ Corsário (João Bosco, Aldir Blanc)
8. Eleanor Rigby (John Lennon, Paul McCartney)/ Fita amarela (Noel Rosa)/ Trem bala (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)

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OUÇA O DISCO






sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Fotos da Minha "Casa"





"Espaçonave Barroca"






por Daniel Rodrigues



Vasculhando meus alfarrábios, deparei-me com fotos produzidas por mim, provavelmente em 2001, na Casa de Cultura Mário Quintana, um dos principais centros culturais de Porto Alegre, que, mesmo com o advento de novos espaços de cultura nos últimos tempos na cidade, não perdeu em charme nem importância. Foi anunciado recentemente, inclusive, que o espaço será totalmente revitalizado, com previsão de conclusão em março de 2014.
CCMQ fundamental na minha formação intelectual e com a qual mantenho uma relação especial desde a infância. Guardo-lhe ótimas lembranças. Das talvez centenas de filmes assistidos, entre eles “Apocalipse Now Redux” do Coppola, “Acossado” do Godard e “Verdes Anos” do Gerbase e do Giba. Lá conheci o cinema de alguns diretores que hoje admiro como Eric Rhomer, Yasujiro Ozu e Max Ophuls. Casa de exposições maravilhosas, como a das fotos panorâmicas do cineasta Win Wenders, em 1999, feitas no deserto de Paris (Texas!), e a recente do fotógrafo-artista Gui Bourdin , que tive o prazer de presenciar este ano. Os bate-papos com personalidades, como o em comemoração aos 40 anos do Tropicalismo, em 1998, com  Tom Zé, Capinam e Luiz Tatit. E shows! Aquele inesquecível de Jards Macalé cantando só Noel Rosa, em 2001, por exemplo, foi lá! Os vários encontros com amigos... ih, CCMQ de muitas histórias.
Não recordava deste meu trabalho fotográfico, feito para uma das cadeiras da faculdade de Jornalismo, e surpreendi-me positivamente com o resultado quando revi, pois me considero limitado tecnicamente para fotografia. Mas sempre acreditei no meu olho, e acho que foi isso que (reforçado pela necessidade de tirar uma boa nota) me impulsionou a produzir boas imagens deste cartão-postal da capital dos gaúchos. Devem alguma coisa em técnica às de um profissional, sei; mas que lhes há poesia, há. Confiram:

"Stalker"

"A Alma" ou "Um passa, outro para"

"Tango do Passaredo"

"Jazida"

"Olhos e Boca" ou "A CCMQ me olhando"


quinta-feira, 28 de julho de 2011

cotidianas #95 - Conversa de Botequim



Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.



Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro.



Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório.
Seu garçom me empresta algum dinheiro,
Que eu deixei o meu com o bicheiro.
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente.



Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
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Conversa de Botequim
Noel Rosa/Vadico

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #179


Se é pra ter aglomeração, então que seja de música boa! E isso é o que não vai faltar no MDC! Olha só quanto som legal no mesmo espaço: The Velvet Underground, Noel Rosa, Pink Floyd, Cartola, New Model Army, Gal Costa e mais. Fora isso, ainda os quadros fixos e móvel. Tudo junto e misturado hoje, às 21h, na aglomerante Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Porque música legal não precisa de distanciamento.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Música da Cabeça - Programa #107


Notícia de última hora do STF: o Música da Cabeça foi censurado! Calma, pessoal, isso é só mais uma fake news feita só pra chamar sua atenção. Nosso programa não tem nada de falso, basta ver pelas atrações como as de hoje: The Cure, Can, Noel Rosa, Terry Riley, Seu Jorge, Simon & Garfunkel e mais. Aqui é tudo assim: às claras e sem censura. Afinal, o MDC, às 21h, roda na Rádio Elétrica e a produção e apresentação são de Daniel Rodrigues. Só não acredita quem é falso.



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Jards Macalé - Show "Jards Macalé 72" - Espaço Cultural BNDES - Rio de Janeiro/RJ (25/04/24)

 

Quase encerrando uma temporada de alguns dias no Rio de Janeiro, Leocádia e eu, que já havíamos tido a mágica experiência de uma roda de samba na Portela, em Madureira (que, aliás, é mais do que uma experiência apenas musical, pois antropológica), pudemos fechá-la com chave de ouro assistindo a um show (gratuito!) do mestre Jards Macalé. Comemorando os mais de 50 (52 precisamente) anos de lançamento do seu primeiro LP, Macau e sua excelente banda entregaram um show como só um dos maiores da música brasileira (e latina, e mundial) pode entregar.

A juventude de Gulherme Heldt (guitarra) e Pedro Dantas (baixo) se unem à experiência do próprio Jards e de ninguém menos que Tutty, Moreno, lendário baterista da MPB integrante da banda original que gravou com Jards seu marcante álbum de estreia. A química é visível, com Jards comandando as ações com seu violão desconcertante e sua voz/canto rasgado e eles se integrando à atmosfera do genial maldito numa sonoridade híbrido de jazz fusion, samba e rock. Aliás, Jards é muito rock 'n roll! Absolutamente claro isso nas execuções de "Farinha do Desprezo", "Revendo Amigos", "Mal Secreto", "Pacto de Morte" e "78 Rotações", todas clássicas. Muito interessante de se notar o quanto se acertou na sonoridade jazzistica prevalecente naquele período na música brasileira do início dos anos 70 (a qual, inclusive, Jards é o principal artífice ao captar essa atmosfera cosmopolita no exílio em Londres) na arquitetura dessa nova banda, que soube renovar esse estilo e, principalmente, não fazê-lo datar.

Em homenagem à amiga Gal Costa, de quem tanto gostava, dedicou "Hotel das Estrelas", mas indiretamente também celebrou a memória de "Gracinha", como carinhosamente a chama, com "Vapor Barato" acompanhado só da guitarra, para trazer sua mais conhecida parceria com o poeta e agitador Wally Salomão. Ainda, tocou ao violão uma sentida "Movimento dos Barcos", num dos melhores momentos do show, e, recuperou as ainda mais antigas "Soluções" e "Só Morto", que compõem seu EP de 1970.

Além das faixas do repertório do disco, houve espaço também para as recentes "Trevas" e "Meu Amor é Meu Cansaço", parceria com a rapaziada Kiko Dinucci, Rômulo Fróes e Thomas Harres, do seu excelente "Besta Fera", de 2019. Teve também a linda e inédita bossa-nova "Um Abraço do João", motivada por uma inspiração "espiritual" no amigo e ídolo João Gilberto. A música, embora tenha ganhado letra da magnífica Joyce, foi tocada de forma instrumental, uma vez que, gracejador e simpático, Jards admitiu para o público e para a própria artista, que também prestigiava o show, não ter adicionado a letra à melodia ainda. Se no violão já ficou perfeita, imagine-se com letra de Joyce!

"Let's Play That", com Torquato Neto, foi mais uma de arrepiar com sua anarquia sonora implacável. Pra fechar, outra deferência a outro saudoso craque da MPB assim como João, Wally, Torquato e Gal: Luiz Melodia, na blueseira "Farrapo Humano". Para quem nunca o havia visto ao vivo como Leocádia e a mim, que o vira nos idos dos anos 90 num show especial em Porto Alegre dedicado a Noel Rosa, a oportunidade de assisti-lo no excelente palco do Teatro BNDES foi um presente. Presenciamos uma das obras mais grandiosas e sui generis da música brasileira, capaz de fazer pontes sem distinção entre o samba do morro, a vanguarda, o tropicalismo, a bossa-nova, o jazz e o rock. E ainda tivemos tudo isso sem precisar de muito dinheiro. Graças a Deus.

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Ao centro, Jards comanda sua banda tocando o repertorio de 1972


Trecho de "Farinha do Desprezo", número que abriu o show 


Sob o olhar do craque Tutty Moreno, remanescente do disco
de estreia de Jards, há 52 anos


Com a banda ao final e sob aplausos


fotos e vídeo: Leocádia Costa, Camila Santos e Gustavo Moita
texto: Daniel Rodrigues



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Música da Cabeça - Programa #241


Como diz aquela canção: "Negro é a soma de todas as cores". Na Semana da Consciência Negra, a gente se veste de orgulho e africanidade ao som de Moacir Santos, John Coltrane, Steely Dan, Pixies, Noel Rosa e mais. Ainda tem no "Cabeça dos Outros" o punk empoderado das Clandestinas, a homenagem aos 80 anos de João Nogueira no "Palavra, Lê" e um salve à imortalidade de um dos maiores homens negros desse planeta: Gilberto Gil. Afro mas universal, o MDC desta semana começa às 21h na afirmativa Rádio Elétrica. Produção, apresentação e punho em riste: Daniel Rodrigues. #consciencianegra #semanaconsciencianegra #20denovembro #diadaconsciencianegra


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Música da Cabeça - Programa #144


O Música da Cabeça não é livro didático, mas tem muita letra pra dar, como deve ser, aliás. Não só letra, mas também música, como as de Arnaldo Antunes, The Stranglers, Noel Rosa, O Rappa, Suzanne Vega e Arca de Noé. Fora isso, ainda tem "Música de Fato" sobre as tensões EUA-Irã, "Sete-List" com o jazz de Amaro Freitas e "Palavra, Lê" bossa-novístico. Tudo hoje, às 21h, nas páginas escritas da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e alfabeto completo: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Música da Cabeça - Programa #46


“Pra tudo se acabar na quarta-feira”, disse o poeta lamentando o fim do Carnaval. Mas no Música da Cabeça a gente não acaba: começa! Aqui a gente cura a ressaca da Quarta-feira de Cinzas com música aos montes. Sente só o que vai ter: Pequeno Cidadão, The Smiths, Elvis Presley, Noel Rosa, The Strokes e Madonna. E tem mais ainda no programa de hoje! Mas aí, só escutando pra saber. Por isso, sintoniza na Rádio Elétrica às 21h, que o programa vai fazer tua volta de feriadão ficar bem colorida. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Mart’nália – Show “Em samba!” – Espaço Cultural BNDES – Rio de Janeiro/RJ



Já é tradicional sempre que viemos ao Rio de Janeiro Leocádia e eu – desta vez acompanhados por nossa hermana Carolina – assistirmos nos dois primeiros dias de estada algum show musical com minha mãe, Iara. Ela, antenada nas atividades culturais da cidade, invariavelmente nos leva a algum espetáculo especial. Já foi assim com Jorge Ben Jor, em 2015, com Monarco e Nei Lopes, em março deste ano, por exemplo. Desta feita, no dia em que pisamos os três na Cidade Maravilhosa, minha mãe nos participa que Mart’nália se apresentaria de graça naquela tarde no Auditório do BNDES, no Centro. Mesmo com chuva, fomos lá os quatro em busca de ingresso. Oportunidade dessas em Porto Alegre é algo inimaginável, tanto pela qualidade artística quanto pela gratuidade, uma vez que seria de 100 Reais para mais para vermos a mesma coisa em nossa cidade.

Ingressos retirados, ajudamos a ocupar um lotado auditório, o qual presenciou um show da mais alta qualidade técnica e artística. Som e iluminação perfeitas e, o mais importante, uma apresentação digna dos maiores artistas brasileiros da atualidade. Mart’nália é um espetáculo por si própria. Dona do palco e totalmente entrosada com sua banda (Humberto Mirabelli, violão e guitarra; Rodrigo Villa, baixo; Menino Brito, percussão e cavaquinho; Raoni Ventepane, percussão; Macaco Branco, percussão; e Analimar Ventepane, percussão e vocal), faz lembrar o pai Martinho da Vila, com quem se parece bastante fisicamente e no gestual. Mas Mart’nália, musicista consagrada e original, não é apenas uma cópia dele. Vê-se nela a música pop, a modernidade do rap, o swing da soul, a urbanidade do funk carioca, a tradição dos sambistas anteriores a Martinho, as mulheres bambas, como D. Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra. Uma artista completa que respira música e que, com alegria e malandragem, transmite isso no palco.

A carismática e talentosa Mart'nália interagindo com o público
O repertório, dedicado aos 100 anos do samba, começa com a prece sambística “Peço a Deus”. Entretanto, o show não trouxe apenas o ritmo mais brasileiro de todos. Tinha, em perfeita mistura, os ritmos da música pop, como o funk, o reggae e outros ritmos que Mart’nália introduz com uma naturalidade tocante. Assim foi com “Tava por aí” e “Pretinhosidade”, duas dela e de Mombaça, “Cabide”, seu grande sucesso, de autoria de Ana Carolina, “Namora comigo”, de Paulinho Moska, e a linda “Ela é minha cara”, feita especialmente por Ronaldo Bastos e Celso Fonseca a ela. Nessa mesma linha, a belíssima “Pé do meu samba”, escrita por Caetano Veloso, de quem Mart’nália tocou também a graciosa “Gatas extraordinárias”, conhecida na voz de Cássia Eller e que Mart’nália não se atreve a meramente copiar, haja visto que sua versão lembra a original mas traz-lhe toques de samba-reggae.

A segunda metade do show foi dedicada às raízes de Mart’nália, ou seja, os sambas que cresceu ouvindo nas quadras da Vila Isabel e nos pagodes da vida. A começar pela diva do samba, D. Ivone, de quem emendou três clássicos, começando pela linda “Mas quem disse que eu te esqueço”, que muito me emocionou, “Acreditar” e o sucesso “Sorriso Negro”. Veio uma de Benito di Paula, “Que beleza”, e outra altamente emocionante do show: “Pra que chorar”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell, numa versão delicada e cheia de musicalidade. A sensibilidade musical de Mart’nália, que canta e toca vários instrumentos de percussão com impressionante naturalidade, prossegue com um arranjo precioso de dois clássicos do mais célebre compositor de Vila Isabel, Noel Rosa: “Feitiço da Vila” e “Com que roupa”.

Se o assunto era samba e Vila Isabel, então, era hora de puxar aquilo que trouxe “de casa”, como ela mesma referiu. Ela emenda pout-pourri com seis clássicos de seu pai, começando por “Casa de bamba” (“Lá na minha casa todo mundo é bamba/ Todo mundo bebe, todo mundo samba”), passando por “Mulheres”, “Canta Canta, Minha Gente” e uma engraçada performance de “Nhem nhem nhem”, na qual Mart’nália gesticula como se estivesse sendo perseguida pela esposa dentro de casa (“Toda vez que eu chego/ Em casa você vem/ Com nhem, nhem, nhem/ Se eu vou pro quarto/ Você vai/ Volto pra sala/ Você vem/ Nos meus ouvidos, perturbando/ Nhem, nhem, nhem/ Nhem, nhem, nhem”). Fechando a roda de samba, outro hit de Martinho: “Madalena”. O desfecho foi com “Chega”, mais uma dela com Mombaça, canção muito querida do público.


Não tinha exatamente ideia do que ia encontrar num show de Mart’nália. Embora as notícias davam conta de que sua presença de palco e seu carisma cativavam o público, tive uma surpresa muito positiva. É muito bonito ver um artista genuíno no palco, com entrega e amor pelo que faz. No caso dela, como já mencionei, isso se junta à total musicalidade e bom gosto. Valeu, enfim, mais uma empreitada idealizada por minha mãe. Que venham os próximos shows de recepção no Rio, pois este foi mais um dos especiais.

Visão geral do bonito palco do BNDES

Texto Daniel Rodrigues
Fotos Leocádia Costa

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

“Imprensa Cantada Segunda Edição: Tribunal do Feicebuqui” – Tom Zé (2013) e “Abraçaço” – Caetano Veloso (2012)



Se para todos os tropicalistas a bossa nova foi o motivo propulsor para que seguissem pelo viés da música, o tropicalismo exerceu este poder de forma ainda mais penetrante no universo pop. Jorge Mautner, o pré-tropicalista igualmente influenciado pelos acordes dissonantes de João Gilberto  pelas harmonias engenhosas de Tom Jobim e pela poesia lírica de Vinícius de Morais, um dia afirmou: “não há possibilidade de escapar do tropicalismo”. Esta frase exaltadora, ainda mais vinda de alguém tão ligado ao movimento, poderia soar exagerada. Mas não é. A Tropicália sempre se mostrou uma corrente musical que, inteligentemente, soube se construir aberta, conectada com a pós-modernidade e sem preconceitos, abarcando todas possíveis e imagináveis referências da arte (música, cinema, artes plásticas, literatura, poesia, teatro) e do contexto sociopolítico, fazendo com isso a mais bem elaborada “geleia geral”, o mais bem acabado “lixo lógico” jamais assemelhado no mundo. Um produto tão abrangente e conceitualmente elaborado que, desde o histórico “Tropicália”, de 1968, que une ópera e Luiz Gonzaga, samba-de-roda e poesia concreta, Beatles  banda marcial, tudo-junto-e-misturado, nunca mais a música brasileira deixou de andar conforme seus passos. No exterior, a ação vanguardista do tropicalismo para com o que é produzido por estrangeiros deu-se de forma diferente mas não menos elogiosa: quando não bebem diretamente na música brasileira (Brian EnoTalking HeadsBeck, Suzane Vega, Björk, Jamiroquai, Beastie Boys, a repetem e/ou a referenciam mesmo sem saber que o estão fazendo.


Ao longo dos anos seus três principais compositores, os baianos Gilberto GilCaetano Veloso e Tom Zé,vêm provando isso através de suas obras, sempre um passo à frente do resto de todas as tendências, sejam cults ou populares. Os dois últimos mostram isso novamente em seus mais recentes trabalhos: o CD “Abraçaço” (2012) e o EP “Tribunal do Feicebuqui” (2013), respectivamente. A começar pela semelhança conceitual das capas (adoração ou achincalhamento?), cada um a seu jeito e com pontos em comum, ambos os trabalhos trazem a inovação estilística e a liberdade criativa que não se nota em nenhum outro lugar do planeta com a mesma integridade de proposição. 

Começando pelo de Tom Zé: surgido por um incidente em que o artista, ao autorizar que uma música sua fosse usada para um comercial da Coca-Cola, sofreu, por conta disso, críticas severas pelo Facebook de ditos “fãs“ acusando-o de “vendido ao sistema”, “Tribunal do Feicebuqui”, além do evidente sarcasmo do título, já nasce impregnado com essa tensão. Tensão, porém, que parece ter feito bem a Tom Zé como autor, pois o motivou a se reencontrar com a agudez de sua obra popular, e não uma obra popular marcada pela agudez. Estudado em música erudita pela linha da vanguarda, Tom Zé é, antes de tudo, um filho dos sons populares, das cantigas de cortejo, do samba urbano de Adoniran Barbosa, do canto das lavadeiras, dos trovadores nordestinos e, principalmente, da bossa nova. Porém, como todo músico ligado a avant-garde, vinha, nos últimos tempos, progressivamente, evoluindo para uma música excessivamente hermética em que o percentual de erudito se sobrepunha ao de popular – basta ouvir os dificílimos e chatos “Estudando o Pagode” (2005) e “Danc-Êh-Sá” (2006), excessivamente rebuscados e distantes do ouvinte. Processo igual ao que invariavelmente acontece com músicos desta linhagem, basta ver a obra de Pierre Boulez (do dodecafonismo ao serialismo ao estrtuturalismo figurativo) ou Stockhausen (do atonalismo à eletroacústica à música de influência “esotérica”).

O trabalho atual de Tom Zé, entretanto, parece, por causa da provocação gerada, tê-lo movido a buscar uma resposta inteligível (ou seja, popular) para que sua mensagem fosse compreendida e, bingo: de volta o Tom Zé inovador e ferino da MPB. E, claro, valendo-se da carga erudita e de seu vasto intelecto, que sempre foram muito bem vindos quando não usados para que só meia dúzia de intelectuais entendessem. É o caso de “Zé a Zero”, parceria com Tim Bernardes (“Mas será revolução?/ Pocalipse se pá?/ Quando ligo na TV/ Caio duro no sofá/ Ô rapá, qualé que é?/ A copa aqui co qui calé?/ É coco colá/ Aqui copa coca acolá/ Fazendo propaganda do Tom Zé”), e a brilhante faixa-título, em que se vale das contribuições do rapper Emicida mais Marcelo Segreto, Gustavo Galo e Tatá Aeroplano para compor um arranjo bastante moderno que alia hip-hop, rock, samba, atonalismo e xote com recortes e ferramentas eletrônicas. Nela, a resposta aos críticos vem em forma de puro sarcasmo: “Não ouço mais, eu não gostei do papo/ Pra mim é o príncipe que virou sapo/ Onde já se viu? Refrigerante!/ E agora é a Madalena arrependida com conservantes”. E, então, completa: “Bruxo, descobrimos seu truque/ Defenda-se já/ No tribunal do Feicebuqui/ A súplica:/ Que é que custava morrer de fome só pra fazer música?”

A briga com os internautas parece ter trazido de volta a Tom Zé, inclusive, a coerência com sua própria obra e não apenas uma reapropriação da mesma como um mero arremedo disfarçado de metalinguagem, caso dos últimos CD’s. Isso porque “Tribunal...” é a continuação de outro EP lançado pelo artista em 1999, o “Imprensa Cantada”. Na ocasião, Tom Zé sentiu-se na obrigação cívica de fazer um registro musical para outro incidente: o da inconcebível vaia proferida ao mestre João Gilberto durante um show em São Paulo em que este, indignado, discutiu com a plateia e encerrou a apresentação. A canção era "Vaia de Bêbado Não Vale", e nela está um dos pontos de ligação de todos os tropicalistas e que, inclusive, tem eco no novo CD de Caetano: a devoção à bossa nova: “no dia que a bossa nova inventou o Brasil/ No dia que a bossa nova pariu o Brasil/ Teve que fazer direito/ Teve que fazer Brasil...”. “Tribunal...” é coerente com este primeiro volume por colocar novamente em questão um assunto do momento em forma de crônica, ligeira e fugaz como a elaboração dada pela própria imprensa. Porém, desta vez, numa plataforma mais moderna da mídia, a internet, mais precisamente, o Facebook, este tribunal e palanque aberto e incontrolável, lembrando, até mesmo, uma outra antiga obra sua: a psicopatológica “Todos os Olhos”, de 1973.

Mas a melhor faixa do novo trabalho de Tom Zé é, justamente, a que melhor responde às descabidas críticas dos detratores, pois a pergunta a que a canção rebate indiretamente é: como Tom Zé teria se tornado “vendido” a uma multinacional se ele mesmo já a tinha, como bom tropicalista (ou seja, coerente com sua ideologia), se apropriado dela? Para além dos engajamentos xiitas, em 1979 (para esclarecimento daqueles que não têm memória ou não se preocupam em tê-la), quando trabalhava para a agência DPZ, de Washington Olivetto, como publicitário, Tom Zé criara para a marca de guaraná Taí, da “bendita” Coca-Cola, um jingle em que, muito “tropicalistamente”, reelabora o clássico cantado por Carmen Miranda (ela, a própria pré-história da Tropicália) para vender o produto. Se falta memória e conhecimento aos críticos, pelo menos pesquisem um pouco antes de achincalhar! Será que esses que criticam sempre acharam que a estocada de “Parque Industrial” era apenas para a direita? A ver por este caso, ingenuamente, talvez sim. A atual versão de "Taí" , além de resgatada com muita pertinência – dando uma resposta melhor do que a própria carta de justificativa publicada por Tom Zé no Facebook explicando que o cachê seria doado à banda de sua cidade-natal, Irará, num ato um tanto descabido de autoculpabilidade, uma vez que não há culpa a se admitir –, traz cores novas ao arranjo que ele mesmo, metalinguisticamente, elaborou em 1992 em “The Hips of Tradition”, mantendo a base da melodia original e os ares de cantiga-de-roda que lhe atribiuíra naquela ocasião, porém, agora, aglutinando outros elementos pop, como rap e rock. Um destes elementos é outro ponto de convergência com “Abraçaço”, de Caetano: a apropriação do funk carioca. Sob uma base vocal que repete o tradicional: “tchum tshack tchum tchum tchum tchum tshack” do ritmo popularesco, Tom Zé reinventa a própria música de forma crítica e tropicalista na melhor acepção do gênero. 

O mesmo funk carioca serve de tema para "Funk Melódico"  de Caetano em seu “Abraçaço”. A música, de abertura quase idêntica a “Taí”, se desenvolve não para uma reelaboração modernista de uma marchinha, como na de Tom Zé, mas, sim, para uma textura eletrificada e até pesada. O expediente, que já havia sido utilizado por Caetano em outra obra recente, a faixa “Miami Maculelê”, a qual escrevera para Gal Costa em seu CD "Recanto" (2011), novamente estreita fronteiras com os ritmos africanos, mas agora de uma forma mais áspera. Se antes eram as danças afro-brasileiras que se aproximavam do repique e da cadência do funk carioca, agora é outro estilo provindo dos negros que ele estabelece paralelo: o rock ‘n’ roll. Sob um riff de guitarra arábico, efeitos de sintetizador e bateria pulsante, “Funk Melódico” é das melhores do disco, terceiro do músico com o grupo Cê, formado por Marcelo Callado, na bateria, Pedro Sá, guitarra, e Ricardo Dias Gomes, baixo. Se não o melhor da trilogia (gosto muito do homônimo à banda, de 2006, e menos do apenas regular “Zii et Ziê”, 2009), é, certamente, o mais coeso para a roupagem roqueira que esta formação imprimiu a suas composições. A guitarra de Sá dá um show, pesada e, num solo técnico e bem sacado, faz as vezes de cuíca. Esta referência não é à toa, pois Caetano constitui na letra uma interessante analogia com o samba de Noel Rosa, “Mulher Indigesta” (“Mulher indigesta você só merece mesmo o céu/ Como está no samba de Noel”), aproximando de uma forma bem original os dois ritmos pop vindos do morro do Rio: o de outrora, o batuque, e o de hoje, o funk.

O CD traz ainda outras joias, como “Um Abraçaço”, reggae-rock de linda letra, ao modo lírico-modernista de Caetano, e onde Sá, exuberante mais uma vez, nos presenteia com um solo rasgado e ruidoso ao estilo de Neil Young ou Kurt Cobain. Outra de destaque é “O Império da Lei”, samba com toque nordestino, que lembra em sua letra a atmosfera dos contos sertanejos de Guimarães Rosa e as canções-estórias de João do Valle, e que também impressiona pela sonoridade forte dos instrumentos de rock executando uma música que, normalmente, seria arranjada para um grupo de pagode, principalmente na combinação do metal da guitarra com o som cheio do tambor da bateria. Ainda, o alegre samba-reggae “Parabéns”, de refrão delicioso e pegajoso (“Tudo mega bom, giga bom, tera bom...”) e a biográfica “Um Comunista”, que relata de forma sensível e épica, num andamento lento e marcial, a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella. Nela, novamente Caetano e Tom Zé se reaproximam. Caetano, ao dizer, com o verbo no passado, que os “os comunistas guardavam um sonho”, conversa com “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”, canção em que este último usa sarcasticamente a figura icônica do Papa, novo dentro do circo capitalista da sociedade moderna, para clamar por aquele que pode ser a única salvação em um mundo em que “a diferença entre esquerda e direita/ Já foi muito clara, hoje não é mais”. Numa marchinha que se transforma em rock ao final, Tom Zé ainda punge inteligentemente: “Papa Francisco vem perdoar/ O tipo de pecado que acabaram de inventar/ O povo, querida, com pedras na mão/ voltadas contra o imperialismo pagão”. Ou seja, tanto Caetano quanto Tom Zé expressam em figuras de estilo diferentes (um, pela metáfora; o outro, pela ironia) a mesma percepção desacreditada da atuação ideológica das esquerdas. (Não é difícil remontar a figura de Caetano contra a plateia no festival de 1968 ao lado dos Mutantes bradando: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”...)

Mas é quando o assunto volta a ser bossa nova que as parecenças conceituais entre os dois se tornam ainda mais visíveis. “A Bossa Nova é Foda”, disparado melhor música do álbum e talvez a melhor do ano no Brasil, é não um samba cadenciado, como fielmente Tom Zé o fez em “Vaia...”, mas, sim, um rock com riff minimalista e criativo em que o efeito do pedal wah-wah ressoa dois acordes em alturas diferentes, dando a sensação de movimento. Só mesmo um rock ‘n’ roll para dizer um elogio desta forma! A letra, além do costumeiro desbunde poético e filosófico típicos do Caetano inspirado de uma "O Estrangeiro", “Vaca Profana” ou “Uns”, traz a mesma ideia de Tom Zé de valorização da bossa nova e da pungência de sua assimilação no Brasil e no mundo, em que, como afirma, “lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação”, referindo-se à capacidade de unir diferentes referências musicais e socioantropológicas em um estilo tão sucinto e denso como o fez com maestria de alquimista “o bruxo de Juazeiro”, ou seja, João Gilberto. A semelhança com os versos da primeira “Imprensa Cantada” é direta: “E a Europa, assombrada:/ ‘Que povinho audacioso’/ ‘Que povo civilizado’”

Em “A Bossa Nova é Foda” Caetano ainda expõe outra ideia interessante em que é possível notar-se concordância com Tom Zé, que é o exemplo popular que a bossa nova legou. Quando diz que a velha bossa nova foi capaz de transformar o “mito das raças tristes” em “produtos” pop como os lutadores de MMA, os deuses olimpianos da era contemporânea, está apontando o mesmo que Tom Zé diz em “Vaia...”, de que, então apenas exportador de matéria-prima, “o grau mais baixo da capacidade humana”, “criando a bossa nova em 58/ O Brasil foi protagonista/ De coisa que jamais aconteceu/ Pra toda a humanidade/ Seja na moderna história/ Seja na história da antiguidade.” Tom Zé ratificava a importância social, histórica e antropológica da bossa nova para um país que passava, naquele ano, a exportar, como diz depois a letra, “o grau mais alto da capacidade humana”: a arte. O mesmo entendimento de Caetano.

Tanto “Tribunal...” quanto “Abraçaço” são dois grandes discos que valem a pena ao menos serem ouvidos com atenção e repetição, pois contêm muitas mensagens e percepções de dois artistas que nunca perderam a verve crítica e pensadora das coisas que os rodeiam. Concorde-se com eles ou não, goste-se deles ou não, o fato é que eles são, sim, muito coerentes com suas próprias obras e posturas, e isso é o que, visivelmente, mais indigna os críticos, pois não é por aí que eles podem ser criticados. Eu abertamente os admiro e não brigo com isso. Apenas discordo de Caetano em uma coisa: não é só a bossa nova: também ‘a Tropicália é foda’!


clipe oficial de “A BOSSA NOVA É FODA” - Caetano Veloso:




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FAIXAS “Tribunal do Feicebuqui":

1. Tribunal Do Feicebuqui (Marcelo Segreto/Gustavo Galo/Tatá Aeroplano/Emicida)
2. Zé A Zero(Tom Zé/Marcelo Segreto/Tim Bernardes)
3. Taí (Joubert De Carvalho/Tom Zé/Marcelo Segreto)
4. Papa Francisco Perdoa Tom Zé (Tim Bernardes/Tom Zé)
5. Irará Iralá (Tom Zé)

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FAIXAS “Abraçaco”:

1. A Bossa Nova é Foda
2. Um Abraçaço
3. Estou Triste
4. Império da Lei
5. Quero ser Justo
6. Um Comunista
7. Funk Melódico
8. Vinco
9. Quando o Galo Cantou
10. Parabéns
11. Gayana

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