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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Wayne Shorter - "Adam's Apple" (1966)

 

“’Adam’s Apple’, a faixa-título, representa à sua maneira uma espécie de jazz contemporâneo universal e o ímpeto da dance music combinados, uma atualização do blues mais familiar e um veículo para as divertidas jornadas às paradas de sucesso”. 
Don Heckeman, do texto da contracapa original do disco

Parecia interminável a inspiração de Wayne Shorter naqueles idos de anos 60. Não que o lendário saxofonista e compositor norte-americano não tivesse também representativa produção já nos anos 50, principalmente na The Jazz Massangers de Art Blakey na qual foi revelado, ou nas décadas que se seguiram dos anos 70 em diante. Ocorre que, principalmente no intervalo entre 1964 e 1970, anos em que esteve sob o selo Blue Note rodeado do que de melhor havia em capital humano e técnico, a obra do jovem Shorter, então na faixa dos 30 anos, dá a impressão de ter entrado num looping criativo. Foram vários discos dignos de perfeição, que pareciam encadear-se e lançados em curtos espaços de tempo entre um e outro -- não raro, num mesmo ano como “Night Dreamer”, “JuJu” e “Speak No Evil”, os três de 1964, ou “The Soothsayer”, “Et Cetera” e “The All Seeing Eye”, todos de um ano depois. Mudavam os integrantes, adicionavam-se elementos sonoros, experimentavam-se formatos, e a qualidade mantinha-se, como se fosse tudo a continuidade de uma mesma coisa.

E era. Devidamente selada pelo estilo marcante de tocar de Shorter – capaz de ir do mais feroz grito dissonante à absoluta leveza lírica –, esta sequência mágica de obras resulta, em 1966, em “Adam’s Apple”, seu 10º álbum solo e o 7º pela Blue Note. Nesta obra, o band leader está acompanhado de um trio afiadíssimo e com o qual tinha total entrosamento: Reggie Workman, na bateria; Joe Chambers, ao baixo; e o fiel escudeiro Herbie Hancock, ao piano. Experimentando aqui, reiterando características ali, “Adam’s...” é indubitavelmente mais um dos discos clássicos de Shorter desta fase áurea, o qual, inclusive, traz alguns de seus temas mais conhecidos.

Começando pela faixa-título, a primeira investida incisiva de Shorter no estilo jazz-soul. Lee Morgan, Donald Byrd, Blue Mitchell e o próprio Hancock já haviam aderido ao groove popular de James Brown, Otis Redding e Aretha Franklin, mas Shorter, be-boper de formação, não havia se entregado completamente ainda. “Adam’s Apple”, no entanto, é puro R&B, é o funk nas escalas jazzísticas que tanto o próprio Shorter se valeria anos mais tarde com a sua Weather Report, banda sinônimo do fusion. São quase 6 min de pura sonoridade pop: riff que gruda nos ouvidos; sax soando inteiro nas modulações de intensidade; piano martelando um ritmo que faz mexer os quadris; baixo dançante; e a bateria - um detalhe à parte - numa aula de marcação rítmica, tanto no chipô quanto na variação caixa/tom-tom. Shorter não resistia à tentação do pop e dava uma mordiscada graúda na maçã de Adão.

Como todo bom Shorter, não podem faltar as baladas, aquelas as quais ele se esbalda em elegância. Em “Adam’s...”, o músico faz isso em dois momentos: a versão de “502 Blues (Drinkin' And Drivin')”, um blues inebriado de paixão em que dá para se sentir, literalmente, dirigindo pela noite de Nova York enchendo a cara por um amor não correspondido; e na linda “Teru”, que retraz propositalmente acordes de outro de seus temas românticos, a clássica “Virgo”, de “Night Dreamer”.

Elemento fundamental para a estética de Shorter nesta e em várias outras épocas de sua longa carreira, o piano do amigo Hancock carrega toda uma atmosfera mágica que une classe, sensibilidade e arrojo. Essa característica, que perpasse toda a fase da Blue Note, quase como uma coassinatura, está fortemente presente em “El Gaucho”, uma bossa nova em que, mais uma vez, Workman se destaca executando com muito estilo e variabilidade timbrística o sincopado ritmo latino. Temas como este já davam a entender, aliás, porque Shorter e Hancock, em especial entre os quatro, se entrosariam tão bem com a música brasileira pouco tempo dali.

“Footsprint”, embora menos “pop” que a música que dá nome ao álbum, é um dos temas mais conhecidos do vasto repertório autoral de Shorter, compositor gravado desde muito cedo por outros jazzistas, inclusive. Talvez seja justamente isso que tenha feito este belo tema bluesy cair nas graças de um outro artista: Miles Davis. E quando este ícone do jazz gostava de algo, sabia-se o destino: adquiria-se outro status. Adotada por Miles, que a gravou em seu “Smiles”, de 1967, “Footsprint” entrou no set-list do trompetista e foi largamente executada em turnê pela Europa e Estados Unidos naquela metade dos anos 60 contando, inclusive, com o próprio Shorter na banda. Não podia dar em outra coisa que não se tornar um clássico do jazz, aqui gravada pela primeira vez.

No continuum shortesiano, não pode faltar também aquela música que desassossega o ouvinte, como são “Night Dreamer”, do disco ao qual dá nome, ou a enigmática “Dance Cadaverous”, de “Speak No Evil”. Aqui, é o caso de “Chief Crazy Horse”, com sua construção harmônica modal (num show à parte de todos, aliás) e variações de escala e compasso. Certamente a mais desafiadora para a banda, o que, dados o entrosamento e perícia do quarteto, não foi nenhum problema.

Como disse o crítico e editor da American Record Guide Don Heckeman, Shorter tem o talento e a técnica para fazer tudo o que deseja, mas o que mais o impressionava no então jovem músico era a capacidade de compor obras coesas a partir desta plasticidade e versatilidade. Para ele, “Adam’s...” é exatamente isso: “uma conquista ainda melhor em sua totalidade, uma vez que nos fornece um corte transversal revelador daquela que é a mais rara das qualidades: a maturidade artística”.

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FAIXAS:
1. "Adam's Apple" – 6:49
2. "502 Blues (Drinkin' and Drivin')" (Jimmy Rowles) – 6:34
3. "El Gaucho" – 6:30
4. "Footprints" – 7:29
5. "Teru" – 6:12
6. "Chief Crazy Horse" – 7:34
7. "The Collector"* (Herbie Hancock) – 6:54 
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicadas
*Faixa bônus do relançamento em CD

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Wayne Shorter - "JuJu" (1965)



“Quando escrevi a música 'JuJu', 
estava pensando na África. 
Sua estrutura é um pouco reminiscente da simplicidade de um canto africano”. 
Wayne Shorter


A cultuada banda formada pelo pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e contrabaixista Jimmy Garrison ficou conhecida como o trio que acompanhou John Coltrane no seu período áureo por quase cinco anos. Mas, na prática, embora o êxito desse encontro e o longo período de parceria com o saxofonista autor de “A Love Supreme”, as coisas não eram assim tão exclusivas. Se e a afinidade musical fazia com que ganhassem essa marca junto a Coltrane, a mesma qualidade lhes garantia sucesso em outros projetos. Afinal, o período, primeira metade dos anos 60, era o de maior fertilidade do jazz pós-bop e, além do mais, os músicos da época conviviam e se trocavam sadiamente. Tanto que, praticamente a mesma banda, com ocasionais substituições, é responsável por discos como “Matador”, do guitarrista Grant Green (1964), “McCoy Tyner Plays Ellington”, de Tyner (1963), e outro magnífico álbum da época: “JuJu”, em que o grupo apoia outro mestre do sax alto: Wayne Shorter.

Com o mesmo vigor e brilhantismo que os faz ostentar a aura de melhor quarteto de todos os tempos do jazz, Tyner e Jones, desta feita acompanhados por outra fera do baixo, Reggie Workman, montam o palco ideal para a exibição de Shorter em “JuJu”. Numa estrutura parecida com seu disco imediatamente anterior, a obra-prima “Night Dreamer” (1964), que contava com esse mesmo time de músicos, “JuJu” inicia, assim como na abertura do outro disco, com uma intensa faixa-título. Trata-se de um bop modal em que ninguém fica para trás, nem band leader nem seus acompanhantes. O trio da “cozinha” não poupa, esbanjando inventividade nas variações sobre a escala. Tyner solta ataques abertos nas teclas brancas; Jones, polirrítmico, engendra um compasso 3/6 cheio de variantes; Workman, por sua vez, desliza os dedos em impulsos constantes sobre as cordas. Mas tudo, claro, a serviço do sopro de Shorter. Majestoso. Altivo. Carregado. Inspirado nos ritos religiosos da África ancestral (o ritual “voodoo” é a versão para “juju” no Haiti), é ele quem – com exceção do solo de Jones no meio do número – preenche do início ao fim a faixa unindo lirismo e ferocidade, disciplina e instinto.

O toque fugidio e aparentemente impreciso da abertura de “Deluge”, o tema seguinte, revela, assim que a melodia se define, que aqueles acordes eram, sim, sua assinatura. Jazz elegante e bluesy, tem um dos mais bonitos riffs criados por Shorter, exímio melodista autor de boa parte de seu próprio repertório e cujas músicas foram gravadas por vários outros artistas, de Miles Davis a Chick Corea. Assim como "Oriental Folk Song", também uma segunda faixa, no caso, no referencial “Night...”, “Deluge” guarda certo exotismo e mistério. Por contar apenas com o sax de Shorter como metal, assim como ocorre em todo o disco, a canção traz a marca forte do seu autor, que tem liberdade para desenvolver os improvisos sem “dividir” o tempo/espaço com outro solista (como em “Night...”, onde o trompete de Lee Morgan faz o segundo sopro). É Shorter brilhando livre com o rico amparo da estelar banda.

Caso da romântica “House of Jade", daquelas baladas dilacerantes de Shorter tal qual “Virgo”, igualmente terceiro número do disco anterior e cujo sentimentalismo é tão arrebatador quanto. Tyner está especialmente clássico, mostrando o quanto ele e outro genial pianista contemporâneo seu, Herbie Hancock, dialogavam. Nota-se Gershwin e Rachmaninoff no seu dedilhar onírico e inteligente, sabendo preencher o espectro sonoro com delicada precisão. Jones, capaz de oscilar da intempestividade à doçura, arrasta e bate a escovinha de leve, quando não solta a baqueta com mais intensidade nos pratos e na caixa. Workman, por sua vez, impecável ao extrair um blues triste do baixo, quase choroso. E Shorter, então?! Quanta beleza! Sopradas lânguidas, macias mas bem pronunciadas, variando das mais inventivas formas o tema central. A 3min30’, uma ligeira guinada para um blues mais embalado, quando se acelera levemente o compasso. Não o suficiente, contudo, para tirar-lhe o caráter lírico. Tyner, a pouco menos de 5min, ensaia um breve solo para, então, Shorter retornar e fechar com a mesma carga sentimental que rege “House of Jade".

Caso também de "Mahjong". Nesta, é a bateria que dá o tom, abrindo a faixa com variações de tan-tan e prato num ritmo sincopado, exótico. Tyner entra com um 3/2 modal como é sua especialidade. Aí, novamente, aparece a lindeza do riff de Shorter, em que as sonoridades orientais, tanto da Índia quanto do Extremo Oriente, se revelam mais presentes, igual o fez em "Charcoal Blues" de “Night...”. Após a abertura, Tyner, num dos momentos mais célebres do disco, engendra um solo de mão direita intrincado, enquanto sustenta com a esquerda a base. Parecem dois pianistas tocando – mas não é. Para responder a tal maravilha no mesmo nível, Shorter volta à carga para hipnotizar o ouvinte. Encadeamentos sobre uma escala de apenas 5 notas se dão em profusão, os quais vão se intensificando em figuras ora dissonantes, ora espirais. Totalmente a ver com a inspiração do tema, uma vez que o “mahjong”, um jogo de mesa de origem chinesa, tem peças que envolvem, justamente, imagens circulares.

A embalada “Yes or Not” já diz a que veio quando o sax Shorter larga soltando o riff. Depois, são quase 6min só de improviso, em que ele explora com agilidade escalas de tons inteiros formando relações diversas. No embalo, Tyner improvisa com igual desenvoltura valendo-se das mesmas premissas construtivas.

A talvez menos “espelhada” em relação a “Night...” seja, justamente, a música que encerra o álbum. Enquanto "Armageddon" finaliza aquele disco carregando na atmosfera avant-garde com dissonâncias e arroubos, a charmosa "Twelve More Bars to Go" é, como o próprio título diz, um passeio fagueiro pelas ruas de Nova York atrás de (mais 12) bares para se tomar um bourbon e ouvir um jazz. Bonito detalhe são os lances em que Shorter, na empolgação do improviso, acaba afastando o bocal do sax do microfone, gerando redução no volume da captação. O engenheiro de som, Rudy Van Gelder, com a habilidade e sensibilidade incomum que tinha, sabiamente não “corrige” a diferença nem durante a execução e nem depois. O que para muitos seria uma falha, nas mãos de Van Gelder vira um acerto divino.

Até mesmo a sonoridade límpida e equalizada dada por Van Gelder e a mais uma vez impecável arte de Reid Miles se repetem de “Night...” para “JuJu”, mostrando o quanto Shorter acertara neste conceito de obra, sua primeira pelo renomado selo Blue Note, o qual carrega toda a bagagem do hard-bop e que serviria de modelo para outros trabalhos igualmente inesquecíveis do artista logo em seguida, como “Speak no Evil”, “Etcetera” (ambos de 1965) e “Schizophrenia” (1967). No entanto, “JuJu”, tão mítico quanto estes, é, acima de tudo, um álbum único, haja vista todas essas suas qualidades, que o fazem chegar, bem dizer, à perfeição.

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FAIXAS:
1. "JuJu" - 8:28
2. "Deluge" - 6:49
3. "House Of Jade" - 6:49
4. "Mahjong" - 7:40
5. "Yes Or No" - 6:35
6. "Twelve More Bars To Go" - 5:26
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Lee Morgan - “Search for the New Land” (1964)



"A única hora que você realmente 
é você mesmo é quando está tocando." 
Helen Moore

Lee Morgan é um dos jazzistas mais admirados de todos os tempos e sobre o qual pairam várias lendas. A principal delas está, tragicamente, ligada à sua precoce morte, aos 34 anos. Motivada pelas mãos da própria esposa. A história nunca ficou totalmente esclarecida, tanto que, Helen Moore, a senhora Morgan, nunca cumpriu a devida pena judicial, apenas a moral ante a opinião pública enquanto viveu, até 1996 – fatos que estão expostos no documentário “I Called Him Morgan”, de Kasper Collin (2016). O que se tem certeza é que o trompetista foi um dos maiores talentos do jazz moderno. Após brilhantes passagens pela banda de Dizzie Gillespie e Art Blakey, construiu carreira solo a partir do final dos anos 50, a qual é, certamente, das mais brilhantes do pós-bop. Encarreirou discos irrepreensíveis, sendo um deles o que traduz em seu título a irônica metáfora de sua vida: “Search for the New Land”, de 1964.

A música de Lee Morgan era impetuosa e atrevida como ele. Altamente técnica mas sabiamente maliciosa, refletia a tumultuada vida de excessos e transgressões do músico. Ou seja: ao mesmo tempo que lhe ajudara a tornar-se esta lenda, também se encurtara. Viciado em heroína, foi resgatado pela fã Helen, mulher mais velha que o tirou das ruas em meados dos anos 60 quando ele havia penhorado quase tudo que tinha – até o próprio instrumento de trabalho, o trompete. Ela virou sua esposa, empresária e cuidadora. Morgan, irrefreável, agradeceu drogando-se novamente e ficando com outra. Suficiente para, em uma noite de fevereiro de 1972, num clube de jazz de Nova York onde ele estava tocando, ela dirigir-se até lá para alvejá-lo no coração com a arma que ganhou do próprio marido. Morria o homem, nascia a lenda.

“Seach for the New Land”, faixa-título que abre o disco, é a materialização de toda a carga emocional e musical que Morgan atingiu. Poucas vezes no jazz moderno uma música se fez tão naturalmente completa e conceitual. À época, Morgan, com apenas 26 anos, já havia absorvido em seu hard bop afiado as estruturas modais que John Coltrane popularizara com seu clássico quarteto e os ritmos do novo R&B. “Search...”, desse modo, sintetiza essas tendências, numa estrutura harmônica cheia de altos e baixos, que põe a faixa ora na linha bop, ora num saboroso blues suingado, ora namorando com a avant-garde. Para tanto, o trompetista conta com a estelar ajuda de outros igualmente lendários como ele: Herbie Hancock, ao piano; Wayne Shorter, no saxofone; Grant Green, na guitarra; Billy Higgins; na bateria; e Reggie Workman, no baixo. A melodia é cíclica e onírica, com suas passagens melancólicas e sensuais em tom menor e suas viradas antecedidas de finais falsos reavivados pelo maravilhoso dedilhado de Workman. A construção melódica favorece que o time talentoso de músicos dê um verdadeiro espetáculo nos solos individuais. Pouco mais de 15 minutos de absoluto deleite. Tranquilamente, um tema do nível dos maiores clássicos do jazz moderno, como uma “All Blues” (Miles Davis), “Giant Steps” (Coltrane), “Maiden Voyage” (Hancock) ou "Well, You Needn't" (Thelonius Monk).

Lee e Helen: um caso de amor e ódio que resultou numa das
maiores lendas do jazz
A animada “The Joker”, na sequência, serve para trazer novamente o ouvinte para o mundo real depois da hipnose da faixa inicial. Aqui, é o clima boêmio das ruas e da noite nova-iorquina que prevalece. Shorter tem a primazia do primeiro solo, precedido do jovem band-leader, que faz o ambiente esquentar e passa a vez para os também moços Hancock (24 anos) e Green (29) que, num momento memorável, fazem piano e guitarra conversarem, repetindo o encontro de dois anos antes nos discos “Feelin' The Spirit” e “Goin’ West”, de Green. "Mr. Kenyatta", mais circunspecta, mostra Morgan exercitando aquilo que melhor sabia: notas despojadas e abusadas, mas dono de um pensamento musical capaz de arquitetar solos como se fossem histórias. Shorter, sagaz, segue na mesma linha arrojada, enquanto Hancock, Higgins e Workman seguram todas por detrás. Cabe ao dedilhado ágil de Green a continuidade dos solos, que passa a bola para Hancock demonstrar a mais pura habilidade com a mão esquerda. Para fechar, Morgan estufa os pulmões e retoma, elevando a tonalidade e intensificando o “despojamento controlado” que lhe era peculiar.

O título da faixa seguinte já indica o clima que virá: "Melancholee". No entanto, na linha de “Search...”, um misto de tristeza e sensualidade. Logo em seguida, Green, no melhor exercício modal, improvisa sobre os acordes em escala do piano, enquanto o chorus é dito pelos sopros. Lindeza pura até aí. Mas tem mais! Morgan, Hancock e Shorter, nesta ordem, experimentam um pouquinho cada um a dor sentida do tema. Bebem um bourbon sem gelo para afogar as mágoas e soltam acordes lânguidos, chorosos. Como falou Helen Morgan em uma entrevista pouco antes de morrer referendo-se ao sentimento que percebia no som da maioria dos jazzistas negros explorados pelos empresários brancos àquela época, anos 50/60: “Era um som tão triste. Você podia ouvir a melancolia na música se ouvisse com bastante atenção”.

Para encerrar num ânimo menos down, a bluesy "Morgan the Pirate" faz jus ao título brincalhão. Novamente, show de Morgan empunhando o seu instrumento. União entre alma e técnica num solo extenso tomado de fluidez e lirismo. É Green o responsável por estabelecer a ligação entre os dois sopros, visto que, depois dele, o sax de Shorter entra rasgando. Higgins inclui na combinação da levada o aro da caixa para a participação de Hancock, que, igualmente, emana maravilhas dos teclados para finalizar o número.

A perfeição estética e formal de “Search...” o coloca entre os mais célebres álbuns do gênero, seja da década de 60, seja da geração do hard bop, entre os discos do selo Blue Note ou mesmo da história do jazz. Se a vida errante de seu autor o impediu de levar mais tempo adiante sua genialidade, obras como esta dignificam sua trajetória. E se Morgan, com sua mente inventiva e instintiva, buscava desvairadamente por uma nova lenda, talvez não se apercebesse que esta se encontrava mais perto do que ele imaginava. Dento dele próprio.


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FAIXAS
1. "Search for the New Land" – 15:45
2. "The Joker" – 5:04
3. "Mr. Kenyatta" – 8:43
4. "Melancholee" – 6:14
5. "Morgan the Pirate" – 6:30
Todas as músicas compostas por Lee Morgan

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quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lee Morgan – “The Sidewinder” (1964)





“Quando a melodia de ‘The Sidewinder’
me veio à mente,
não estava pensando naquele tipo de cobra,
mas sim num cara mau”.

Lee Morgan



O trompetista norte-americano Lee Morgan é um dos maiores nomes da história do jazz, inegavelmente. Porém, seu caminho poderia ter sido ainda mais frutífero não fossem essas coisas inexoráveis da vida. No caso dele, a morte. Porém, durante os 36 anos em que esteve no planeta Terra iluminando-o com sua música, o período entre 1963 e 1964 lhe é especialmente relevante. Foi quando ele produziu algumas de suas mais significativas obras. Poderia muito bem falar aqui do hard bop “The Gigolo”, com sua explosão soul de “Yes I Can, No You Can't”, que lançou, em 1965, com uma afinadíssima banda (Harold Mabern, piano; Bob Cranshaw, baixo; Billy Higgins, bateria; e o mestre Wayne Shorter, no sax tenor). Podia, igualmente, voltando dois anos no tempo, exaltar o brilhante “Search for the New Land”, cuja faixa-título é dos colossos do jazz mundial mas que, para além disso, é inteiramente radioso, contando com os mesmos Higgins e Shorter e mais as luxuosas adições de Reggie Workman, no baixo, e os dedos mágicos de Grant Green na guitarra e de Herbie Hancock ao piano. Ainda caberia trazer o obscuro bop modal “Tom Cat”, em que Morgan se juntara, logo depois, às feras Jackie McLean (sax alto), Curtis Fuller (trombone), McCoy Tyner (piano), Cranshaw (baixo) e seu “padrinho” Art Blakey (bateria).
Porém, a fase era tão produtiva que Morgan não ficou apenas nesses grandes feitos. Outro deles pode ser considerado ainda mais revolucionário e esplendoroso: “The Sidewinder”. Juntamente com o já resenhado aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS "Empyrean Isles", de Hancock, compõe o duo de discos que lançaram, há exatos 50 anos, as bases do jazz-funk, inspirando toda uma geração de jazzistas (Vince GuaraldiMiles Davis, Green, Henri Mancini, João Donato, Don Salvador) além da soul music e do pop-rock. Foram os discos que fizeram o jazz sair do chão. A beleza formal dos acordes complexos ganha aqui ainda mais malícia, gingado, groove.
Nascido na Filadélfia, o prodígio Edward Lee Morgan começou pré-adolescente a soprar seu instrumento inspirado em Miles, Clifford Brown – seu ídolo – e Dizzy Gillespie, com quem tocara no início da carreira. Em 1956, aos 19 anos, tem a chance de integrar a The Jazz Massangers de Blakey, mesmo ano em que assina pela primeira vez com o selo Blue Note, do qual saiu quatro anos e sete discos depois. Nessa época já se via o virtuosismo, a fluência e o vigor de seu toque, destacando os poderosos registros agudos, estilo que foi aperfeiçoando ao longo dos anos (inclusive, na célebre participação como sideman em “Blue Train”, memorável álbum de John Coltrane de 1957). Até que, após passagens por gravadoras menores, em 1963 retorna à “casa” e, com a mão Rudy Van Gelder na mesa de som e produção de Alfred Lion (além da sempre linda arte de Reid Miles na capa), leva ao estúdio da Blue Note, em Nova York, os camaradas Cranshaw e Higgins juntamente com as feras Joe Henderson, no sax alto, e a Barry Harris, no piano, para registrar “The Sidewinder”.
Como todo bom jazzista, Morgan é altamente ligado ao blues. Entretanto, ele injeta ao rhythm’n’blues uma carga ainda inédita do funk oriundo das ruas dos guetos urbanos, que tinham, desde os anos 50, na figura de James Brown, Otis Redding, Solomon Burke e Aretha Franklin seus principais representantes. A química foi infalível. A faixa-título faz as honras de abertura, mostrando como se faz jazz com inteligência, apuro técnico e alma soul. Cranshaw dedilha um acorde de quatro notas que desencadeia uma explosão de groove, com Higgns, brilhante, metendo swing na caixa e no prato; Harris, segurando tudo num gostoso tempo 2 x 2; e os sopros, que mandam ver no chorus. Impossível não balançar o esqueleto! Tão lindos quanto o improviso de Morgan, de Harris e de Henderson – músico experiente como Morgan que de cara já diz a que veio –, o de Cranshaw, atrevido, fecha a sequência de solos, quando a banda retoma inteira para concluir o número. Para coroar o feito de Morgan, ninguém menos que uma de suas principais inspirações, James Brown, regravou a faixa menos de um ano depois. O Godfather of Soul gostou tanto da homenagem que pôs a The James Brown Band a executar uma mais acelerada versão de “The Sidewinder” em “James Brown Plays James Brown: Yesterday and Today”, com nada menos que um naipe de cinco metais à frente.
“Totem Pole”, com base de acordes circulares do baixo, traz uma estrutura mais tradicional do hard bop. Porém, os solos são de uma malemolência inquestionável. Morgan arranja o seu numa combinação orgânica com o piano de Harris, que dialoga com o trompete durante todo o improviso. Nesta, Handerson, que já havia soltado as garras na anterior, realiza um de seus mais memoráveis solos. Capaz de unir a bossa-nova e o be-bop a um virtuosismo de cores parkerianas, ele incrementa a música com seu estilo particular.
“Gary's Notebook” traz ainda mais embalo e um riff complexo, tocado com simetria pelos sopros. De encher os olhos. Morgan mais uma vez se dá o direito de iniciar os improvisos, ditando um toque fluente e variante que Henderson e Harris seguem com desenvoltura. Na mesma linha e ritmo, "Boy, What A Night" é mais uma de impressionar pela sincronia de toda a banda, seja no chorus ou nos momentos de realce dos instrumentos. Desta vez, é o sax de Henderson que inicia os trabalhos, num conceito interessante em que ele estende as notas, criando intervalos diferenciados e elásticos. Que Morgan é sempre um espetáculo é sabido; mas nesta Harris não fica para trás, seja na marcação swingada da base, seja no solo, certamente o destaque da faixa. Tomada de blues, a improvisação do piano bem poderia figurar em qualquer rock de Little Richard ou Jerry Lee Lewis.
Colorida, “Hocus Pocus” fecha o álbum em alto astral. Morgan eleva a escala, num tocar radiante. Van Gelder inteligentemente deixa o microfone captar ao fundo a empolgação de algum dos músicos, que acompanha com a voz algumas frases dos instrumentos (provavelmente o próprio band leader) – o que faz lembrar Charles Mingus em sua ode ao blues “Oh Yeah”, de 1962. Henderson e Harris mantêm o clima e a qualidade indiscutível. Perto do final, Higgns, dos principais responsáveis pelo conceito do álbum, uma vez que o amarra de ponta a ponta com um ritmo gingado e bluesy, ganha seus momentos de improviso também, conversando com o trompete de Morgan. Este, por sua vez, também não deixa terminar a gravação sem emitir suas peculiares notas agudas, que surpreendem o ouvido e o deliciam ao mesmo tempo.
“The Sidewinder” entrou para a história como o maior sucesso de Lee Morgan, atingindo o 10º lugar na categoria R&B da Billboard. Os anos subsequentes iriam alçar o músico cada vez mais ao posto de um dos grandes do jazz universal, ao lado de craques da sua geração como Sonny Rollins, Hancock, Shorter, Henderson, Cannonball Adderley, Ornette Coleman e Coltrane. Porém, como havia ocorrido com este último em 1967, vitimado por um câncer, os céus tinham outros planos para Lee Morgan. Todo aquele talento foi bruscamente ceifado por um brutal assassinato pelas mãos da própria esposa, de quem recebeu um tiro no coração quando tocava num clube em Nova York em 1972. O motivo? Não se sabe. O crime ainda hoje é mal explicado. O que a levou a cometer tal ato? Será que, domesticamente, Morgan encarnava o tal “cara mau” a quem o próprio se referiu? Não se sabe – e nem importa. Resta, sim, sua obra, que somente um cara com uma boa dose de “maldade” podia ter criado. Uma maldade no sentido de “malícia”. Afinal, não há males que vêm para bem?
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FAIXAS:
1 - The Sidewinder – 10:25
2 - Totem Pole – 10:11
3 - Gary's Notebook – 6:03
4 - Boy, What a Night – 7:30
5 - Hocus Pocus – 6:21
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Lee Morgan  - "The Sidewinder"




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terça-feira, 28 de maio de 2013

Wayne Shorter - "Night Dreamer" (1963)



“Este disco é um marco para mim,
pois veio em um momento em que eu
 estava entrando em uma nova fase como autor.
E também eu sabia que
 em meu primeiro álbum para a Blue Note
eu teria que dizer algo substancial.”
Wayne Shorter,
no texto do encarte original


São inúmeros os discípulos de Miles Davis no universo do jazz. A lista vai de mestres geniais como Chick Corea, Herbie Hancock, Sonny Rollins, John McLaughlin e John Coltrane – para mim, o maior deles. Mas talvez o mais fiel aluno tenha sido outro genial jazzista: o saxofonista Wayne Shorter, lenda viva da música mundial. De estilo arrojado tanto nos improvisos quanto nas harmonias, Shorter começou na cena em 1959 na banda bebop de Art Blakey, a The Jazz Messengers, pela qual não só ajudou a gravar álbuns memoráveis, como, hábil e líder, tornou-se logo o diretor musical do grupo. Além disso, como todos da sua geração, foi fortemente influenciado pelo jazz em escalas do “divisor de águas” "Kind of Blue", de Miles (1959), passando, tempo depois, a formar o aclamado “segundo grande quinteto” do mestre, juntamente com Hancock, Ron Carter e Tony Williams. Tudo isso deu embasamento para Shorter, valendo-se de todas estas referências, gravar, em 1963, seu grande trabalho: o encantador “Night Dreamer”, onde se nota um compositor maduro e criativo, além de um instrumentista virtuoso.

Depois de três LP’s pelo selo Vee-Jay, onde ainda se percebe um artista em busca de identidade própria, “Night Dreamer”, seu primeiro pela mais cultuada gravadora do jazz, a Blue Note, é o acerto da medida: cool, sofisticado, intenso, coeso. Tudo favorecendo: a técnica de estúdio Rudy Van Gelder, a produção caprichada de Alfred Lion e esplêndida arte, na foto borrada de Francis Wolff e o design de Reid Miles. Campo preparado para um disco impecável. Como o título sugere, começa numa atmosfera de sonho com a arrebatadora faixa-título, em que o piano de McCoy Tyner anuncia, em acordes ondulantes e oníricos, a beleza da melodia modal que se forma a seguir com o restante da banda (e que banda!): Lee Morgan (trompete), Reggie Workman (baixo) e Elvin Jones (bateria). O chorus, sobre o andamento cadenciado e bluesy de Jones e dos dois tempos de quatro do piano, desenha um riff pegajoso que, entre leves ascendências e declives, surpreende pelas dissonâncias sem, contudo, se afastar do coração do ouvinte. Espiral como um sonho, volta, no fim da série, para o acorde inicial. A mesma ideia circular serve de concepção para os improvisos, momento em que Shorter dá um verdadeiro show de tempos, variações e groove. Há claras inspirações no fraseado econômico e certeiro de Miles, inclusive na repetição da famosa frase de trompete que antecede o solo histórico de Coltrane em "Freddie Freeloader", do “Kind of Blue”, que Morgan pronuncia rapidamente mas com exatidão, numa visível homenagem. No final, ao invés de toda a banda tencionar para cair junta, o mais comum à época, Shorter subverte, desfechando-a em pleno solo ascendente, em ritmo aberto.

Os anos como cérebro da The Jazz Messengers deram à Shorter a cancha de produzir adaptações tão primorosas como a de "Oriental Folk Song", uma canção tradicional chinesa em que o músico recria o tema original timbrística e harmonicamente, compondo um jazz novamente complexo em construção, mas orgânico a quem ouve. A introdução em tons orientais abre espaço para uma segunda e intermediária parte com o chorus de tempos longos e articulados. Porém, a música progride ainda mais, e uma terceira sequência atinge outra envergadura, subindo a gradação em uma interpretação vigorosa de toda a banda.

“Virgo”, uma das mais lindas baladas do cancioneiro jazz, vem em seguida, e aqui Shorter novamente arrebenta, mas não da forma carregada como nas primeiras faixas, mas, sim, em solos lânguidos e perfeitamente pronunciados. Sem pressa e repleta de sussurros, pausas e desvelos; sensual como uma transa apaixonada madrugada adentro. É tão incrível que, mesmo empunhando um saxofone tenor, há momentos em que parece estar tocando um sax alto, tamanho rebuscamento que extrai das notas graves e na modulação que atinge com o instrumento. Para arrematar, um breve solo enlevado à capela, só sax e ouvidos. Perfeita.

Embalada e não menos saborosa, “Black Nile” vem com toda a banda em altíssimo nível de performance. É, seguramente, a mais “agitada” do disco, que só veio a acelerar-se um pouco mais já na sua segunda metade. No entanto, o tom suave que perfaz o álbum é novamente demarcado em "Charcoal Blues", em que o saxofonista exercita pequenas variações sobre o riff, numa simplicidade mais uma vez com ares de Miles Davis, inclusive pelo visível apreço pelo blues. Nesta, McCoy Tyner merece atenção especial na manutenção da base e, principalmente, em seu solo.

Nada mais perfeito para terminar uma noite de fantasia do que com o próprio “Armageddon". Considerada por Shorter como o ponto focal do álbum, contém como mensagem a força da dualidade do ser humano na última batalha entre o bem e o mal. Por isso, as notas reflexivas e densas, mas nem por isso menos belas. Nela, sonho passa a significar utopia, alucinação. “A minha definição do julgamento final é um período de esclarecimento total que vai descobrir o que somos e por que estamos aqui", disse o compositor sobre esta obra. Não sei se um dia chegaremos a isso, mestre Shorter, mas certamente sua música nos eleva a um ponto que, mesmo que apenas como meros sonhadores de uma noite qualquer, talvez consigamos revelar algo tão profundo de nós mesmos.

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Corrijo em tempo um erro desta resenha: “Night Dreamer” não é O grande trabalho de Wayne Shorter, mas, sim, seu PRIMEIRO grande trabalho. Em plena atividade mesmo prestes a completar 80 anos, o músico lançou este ano um novo CD, o elogiado “Without A Net”. Mas para alguém dono de uma obra tão extensa e marcante, eleger apenas um disco como o melhor é tarefa impossível. Basta lembrar-se de outros grandes discos solo, como ”Ju-Ju” (1964), “Speak no Evil” e “The Soothsayer” (ambos de 1965), os trabalhos com uma das pioneiras do jazz-fusion, a Wheater Report, nos anos 70, ou as parcerias, como os que gravou com Milton Nascimento, Carlos Santana e Joni Mitchell.

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FAIXAS:
1. Night Dreamer - 7:15
2. Oriental Folk Song - 6:50
3. Virgo - 7:00
4. Virgo (alternate take 14) – 7:03
5. Black Nile - 6:25
6 Charcoal Blues - 6:50
7. Armageddon - 6:20

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Ouvir: