A sensação do calor e a intensidade dos tiroteios nas ilustrações impressionantes de Rodrigo Rosa |
A beleza e a força da cena de Riobaldo invocando o demônio. |
A sensação do calor e a intensidade dos tiroteios nas ilustrações impressionantes de Rodrigo Rosa |
A beleza e a força da cena de Riobaldo invocando o demônio. |
Fora as atividades das quais participei, o festival teve uma impressionante quantidade de outras programações, como filmes, seminário, oficinas, ações e outros vários debates sobre os 31 filmes em disputa. Ao final, foram escolhidos pelo júri – composto por Fernanda Brenner, Flavia Guerra, Graciela Guarani e Linn da Quebrada – pare receber o Grande Prêmio 14º Cine Esquema Novo “Os Últimos Românticos do Mundo”, de Henrique Arruda (PE), e “Célio’s Circle”, de Diego Lisboa (BA/SP). Além destes, levaram reconhecimentos de destaque ”Perifericu”, de Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira (SP, Prêmio Perspectiva); “Ser Feliz no Vão”, de Lucas H. Rossi dos Santos (RJ, Prêmio Requadro); “Entre Nós e o Mundo”, de Fabio Rodrigo (SP, Prêmio Contra-Plano); “Caminhos Encobertos”, de Beatriz Macruz e Maria Clara Guiral (SP, Prêmio Quebra de Eixo); e “Atordoado, Eu Permaneço Atento”, de Henrique Amud & Lucas H. Rossi dos Santos (RJ/SP, Prêmio Ficção).
No meu caso, suscitado a dialogar sobre diversos temas, não raro delicados e polêmicos, mas sempre urgentes e necessários de serem abordados como racismo, política, violência, gênero e comportamento social. Foram, ao todo, nove títulos sobre os quais me debrucei, três em cada encontro, cujos temas e aspectos depreendidos eram ligados e debatidos à luz do fazer cinematográfico e de seus contextos sociopolíticos e culturais.
Telas preenchidas com debatedores convidados nos três encontros em que participei no CEN 2021 |
O desafio foi interessante para alguém que até então havia participado como jurado e debatedor mas ainda não como mediador. No primeiro, dia 10/4, temas como preconceito de raça e gênero, violência urbana e identidade circundaram os filmes “As Vezes Que Não Estou Lá”, de Dandara de Morais (PE), “Fazemos da Memória Nossas Roupas”, de Maria Bogado (RJ), e o já citado “Entre nós e o Mundo”, com a presença de seu diretor.
No segundo, dois dias depois, os questionamentos penderam para as verdades obscurecidas pela sociedade e pela história e as dimensões oníricas da vida (e da arte). Porém, não menos instigantes. Isso, através do aprofundamento dos filmes “Vento Seco” (GO), “Deserto Estrangeiro” (RS) e “A Chuva Acalanta a Dor” (CE/Portugal), que contou com a participação de seus realizadores: Daniel Nolasco, Davi Pretto e Leonardo Mouramateus, na ordem por obra.
Por fim, no dia 14, estive na interlocução daquele que talvez tenha sido ainda mais pulsante dos debates. Reunindo Lia Letícia, pelo filme “Per Capita” (PE), Victor Abreu, por seu “Milton Freire, um grito além da história” (RJ), e a dupla Rubens Rewald e Jean-Claude Bernadet – este último, lendário crítico/roteirista/cineasta/professor, uma referência para o pensamento do cinema brasileiro –, que competiam no CEN com o fervente “#eagoeraoque?” (SP). A situação política do Brasil foi propositadamente provocada não apenas em razão deste título, mas também no desassossegador curta de Lia e no forte filme de Victor, que aborda a violência aplicada aos doentes mentais.
Para entender melhor essas poucas e superficiais observações, recomendo altamente que se assistam os vídeos dos debates, que o CEN disponibiliza em suas redes. Aliás, estes e os vários outros debates e vídeos das diversas atividades, que trazem um conteúdo rico para quem preocupa-se em questionar assuntos prementes da nossa sociedade. Como disse o ilustre convidado Bernadet não nesta, mas numa outra ocasião, o fazer da crítica de cinema não pode se resumir a apenas avaliar filmes, mas, sim, exercer um papel ativo na interação com a produção e a criação da obra fílmica. Ao menos, tentei.
Confira os vídeos com os debates:
Daniel Rodrigues
Quando “Convoque seu Buda” foi lançado, no final de 2014, Criolo já ocupava seu merecido lugar no panteão dos grandes da música brasileira. “Nó na Orelha”, seu antecessor de três anos antes, havia garantido este posto ao cantor e compositor paulista ao lado de colegas do gabarito de Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento. Obras como “Subirodoistiozin”, “Não Existe Amor em SP” e “Grajauex” eram provas incontestes de que, depois de muitos anos, havia surgido um talento acima da média na já tão bem representada MPB, mas carente de novas referências.
Só status, contudo, não era suficiente para Criolo. Para um artista de alto nível e, principalmente, honesto consigo e para com seu público, contentar-se com a atribuição externa seria impensável. Ainda mais porque, indiretamente, espera-se, sim, que grandes artistas sigam produzindo bem e, consequentemente, evoluindo. Por isso, fazer um novo disco só para cumprir tabela lhe soaria, ao mesmo tempo, a mediocridade e calvário. O que se vê em “Convoque...”, além de um Criolo totalmente consciente de seu universo sonoro, é a manutenção de parte da estrutura narrativa da estreia, bem como da veia contestadora e do rap como força-motriz. Mas com acréscimos.
A pegada hip hop está lá, preservada, como na faixa-título e de abertura. Porém, já aí se nota um Criolo mais maduro e dono de uma musicalidade talvez menos instintiva. As referências não-óbvias ao rap samurai da Wu-Tan Clan, bem como a seus ídolos Sabotage e Racionais, chamam o ouvinte para uma experiência diferente. Na letra, a pungência onírica improvável de sua poética: "De uzi na mão, soldado do morro/ Sem alma, sem perdão, sem jão, sem apavoro/ Cidade podre, solidão é um veneno/ O Umbral quer mais Chandon/ Heróis, crack no centro/ Da tribo da folha favela desenvolvendo/ No jutsu secreto, Naruto é só um desenho".
Pronto: foi dada a largada para um novo grande disco de Criolo, que definitivamente não se resume ou se estreita, como “Nó...” já sugeria, apenas ao rap, sua raiz das quebradas paulistas. A musicalidade brasileira afro se homogeneíza fortemente agora. Caso evidente da obra-prima “Esquiva da Esgrima”. Misto de rap e candomblé. E que letra, que refrão! “Hoje não tem boca pra se beijar/ Não tem alma pra se lavar/ Não tem vida pra se viver/ Mas tem dinheiro pra se contar/ De terno e gravata teu pai agradar/ Levar tua filha pro mundo perder/ É o céu da boca do inferno esperando você”. E mais uma evolução visível: Criolo está cantando melhor. Seja nos detalhes de overdubs, nas variações de timbre e até na extensão, seu belo timbre está mais bem trabalhado e aproveitado.
Sem dar fôlego, Criolo apresenta aquela que é ao mesmo tempo a mais pop e uma das mais críticas do álbum: a sarcástica “Cartão de Visita”. Rap de excelente arranjo e cantado por ele com uma debochada voz afetada sobre a frivolidade perversa da alta sociedade, tem a parceira de Tulipa Ruiz no marcante refrão: “Acha que 'tá mamão, 'tá bom/ 'Tá uma festa/ Menino no farol se humilha e detesta/ Acha que 'tá bom/ Não é não nem te afeta/ Parcela no cartão/ Essa gente indigesta”. Nada menos que genial.
Mas Criolo estava, definitivamente, disposto a fazer história. “Casa de Papelão” pode não se tratar da melhor do disco, mas certamente a mais radical aproximação com aquilo que se entende por MPB. O arranjo, primoroso, lembra os dos clássicos discos dos anos 70 assinados por Rogério Duprat, Edu Lobo, Wagner Tiso ou Francis Hime. A música soa épica, densa, imponente. O forte teor social, igualmente, retraz as denúncias musicais e a atmosfera grave dos Anos de Chumbo, como "Cala a Boca, Bárbara", "Demônio de Guarda", "Sacramento", "Café". Deste nível. Criolo, que à época já ensaiava parcerias com Milton, Arthur Verocai e Tom Zé, chegava, sozinho, àquilo que seus mestres o ensinaram.
“Convoque...” tem, assim como “Nó...”, mais uma vez a mão dos produtores Daniel Ganjaman e de Marcelo Cabral nos arranjos, instrumentos e coautorias. Mas não se resume a estes, pois novos parceiros são, como o título sugere, convocados. A turma originalíssima da Metá Metá, donos da musicalidade afro mais raiz da música brasileira, são alguns deles. Seus integrantes, Kiko Dinucci, Thiago França e Juçara Marçal, aparecem em mais de uma faixa e em momentos fundamentais. É o que se vê noutra excelente do repertório, “Pegue pra Ela”, com a sonoridade folclórica dos pífaros tocados por França e a percussão marcante de Maurício Badé, bem como em “Pé de Breque”, dub jamaicano tal como reggae “Samba Sambei” do álbum anterior, compondo uma variação estratégica na narrativa sonora.
O samba, claro, está novamente presente. Repetindo também a "fórmula" de “Nó...”, que trazia o partido-alto "Linha de Frente", agora é vez da sociopolítica “Fermento pra Massa”, crônica urbana que defende em seus versos o direito à greve para se obter melhores condições de trabalho. Interessante que a música tem relação com o que Criolo fez antes, mas também com o que faria depois, a se ver por seu disco só de sambas “Espiral da Ilusão”, que lançaria 4 anos depois, e canções atuais.
Outra com olhar para a música brasileira de outros tempos, “Plano de Voo” carrega na lírica com uma letra extensa e densa que conta com ajuda do rapper Síntese. Encaminhando-se para o fim, a forte “Duas de Cinco” traz o sampler da canção "Califórnia Azul", de Rodrigo Campos, com a voz de Luísa Maita – filha de Amado Maita e de visível semelhança ao timbre da saudosa Beth Carvalho – para abrir a música com um canto melancólico e circunspecto, que dá lugar, aí sim, ao Criolo rapper. "Ela conta uma epopeia sem Ulisses", diz Criolo sobre seu rap-denúncia-confissão. Afinal, o narrador é um sujeito impregnado de "realidade", um sujeito comum que vivencia os fatos fractalmente narrados, sem a homérica intenção de heroísmo.
A excelente “Fio de Prumo (Padê Onã)”, com os vocais de Juçara e arranjo de Dinucci, inundam de signos brasileiríssimos e põem na boca de Juçara as palavras nagô: "Laroyê eleguá/ Guarda ilê, onã, orum/ Coba xirê desse funfum". Ancestralidade poética, musical, cultura. Resistência, ode, memória. Que forma de terminar um grande disco, aquele que punha definitivamente Criolo entre os maiores. Se “Nó...” serviu para ele abrir a porta ao de muito desvalorizado rap como sendo pertencente ao universo da música brasileira, “Convoque...” solidificou sua posição e desfez de vez qualquer preconceito musical, artístico ou cultural. E pode-se dizer hoje: sim, a linhagem de Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Gilberto Gil e outros gigantes fez-se preservada em Criolo.
A carismática e talentosa Mart'nália interagindo com o público |
Visão geral do bonito palco do BNDES |