"Posso dizer que Gil e Caetano são gênios. Eu, na verdade, sou um trabalhador contumaz, sou obsessivo. Aí, quando entra o Milton e o Criolo, pronto."
Tom Zé
Confesso que resisti um pouco a
Criolo. Em 2011, por sugestão de meu primo-brother
Lúcio Agacê, ouvi o então recém-lançado
“Nó na Orelha” e me impressionei de cara. Conhecendo-me bem, Lucio acertara que eu iria gostar de um
rapper de São Paulo até então chamado Criolo Doido, que tinha tomado um “banho de loja” e produzira um disco de se prestar atenção. Como sempre, fui na dele, que nunca dá dica furada. E, caramba: que musicalidade era aquela?! Ao mesmo tempo em que destrincha
hip hop com estilo próprio de letras incomuns e rimas ligeiras, forjando quase uma nova linguagem que junta o vocabulário da periferia com um entendimento profundo do português culto, também mandava ver com naturalidade outros ritmos (às vezes, mesclando a este
rap tão original), como samba,
afrobeat, reggae e
soul.
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Ney Matogrosso, Tom Zé, Martinho da Vila e Milton Nascimento – ou seja, a nata da MPB – o elogiavam. Era tão legal, que cheguei a desconfiar. Pensei em escrever sobre o disco no calor do impacto, mas meu cérebro buscou comparações e parâmetros que, embora não devessem ter nada a ver com o simples ato de gostar, foram suficientes para, preconceituosamente, rechaçar a minha ideia de imediato. Para ajudar, um infeliz tributo a
Tim Maia ao lado de Ivete Sangalo, no qual Criolo se sujeitou a participar, em 2015, ajudou a alimentar minha antipatia por ele.
Entretanto, “Nó...” resistiu a mim. Por isso, faço aqui o que não tive coragem seis anos atrás depois daquela primeira audição. Afinal, o disco se mantém intacto em sua qualidade, simbolizando aquilo que na época já era uma certeza: a chegada do maior artista da música brasileira dos últimos tempos. Com a luxuosa produção e arranjos de Daniel Ganjaman (
Planet Hemp, Sabotage, Otto,
Racionais MC’s,
Nação Zumbi, entre outros, no currículo) e poucas mas preciosas participações (como da excelente cantora Juçara Marçal, da
Metá Metá, nos
backings), “Nó...” traz essa originalidade letrística e sonora, algo evidenciado já na faixa de abertura, “Bogotá”. Um ritmo latino com
beats e sopros afiados muito bem cantado com a voz melodiosa e agradável de Criolo. Não é
rap, mas namora com o estilo na força da mensagem e no
approuch, mostrando o quanto o artista, já no segundo disco, havia ampliado sua musicalidade.
Avança-se somente mais um pouco para provar definitivamente esta afirmação em “Subirusdoistiuzin”. Este, sim, um
rap, com direito aos tradicionais
beats funk, scratches e
samples. Mas cheio de
groove, numa atmosfera de
jazz-soul – adensada pelo elegante trompete de Rubinho Antunes e o baixo acústico de Marcelo Costa, coarranjador do disco. Novamente muito bem cantada por Criolo, destaca-se, antes de mais nada, pela letra de rimas improváveis e pela divisão silábica quebrada, como bem fazem Tom Zé e
Marlui Miranda. E o que dizer desses versos?
“Mandei falá/ Pra não arrastá/ Não botaram fé/ Subirusdoistiozin/ O baguio é loco/ O sol tá de rachá/ Vários de campana aqui na do campin/ Má quem quer preta/ Má quem qué branca/ Todo azule/ Requer seu rejuntin/ Pleno domingão/ Flango ou macalão/ Se o negócio é bão/ Cê fica é chineizin/ Cença aqui patrão/ Aqui é a lei do cão/ Quem sorri por aqui/ Quer ver tu cair/ É, é... justo é Deus/ O homem não/ Ouse me julgá/ Tente a sorte, fi”.
Na sequência, um dos motivos da reverência dos papas da música brasileira: “Não Existe Amor em SP”. Cantada por seu autor ao lado de Caetano no Video Music Awards daquele ano numa apresentação que “chancelara” a posição de Criolo no rol da MPB, a canção, contundente e melodiosa, já se tornou naturalmente um clássico e um novo hino popular sobre a cidade paulistana. O título, cuja menção à grande metrópole brasileira é pronunciada na forma de sigla (“essepê”), desvenda a mensagem:
“Um labirinto místico/ Onde os grafites gritam/ Não dá pra descrever”. Lembra, em poética e raciocínio, outro talentoso
rapper de Sampa, o amigo
Mano Brown, nos versos de “Vida Loka nº 1”, dos Racionais MC’s, quando diz
“em São Paulo, Deus é uma nota de 100”, principalmente comparada com esta parte da música de Criolo:
“Os bares estão cheios de almas tão vazias/ A ganância vibra, a vaidade excita/ Devolva minha vida e morra/ Afogada em seu próprio mar de fel/ Aqui ninguém vai pro céu/ Não precisa morrer pra ver Deus”.
“Mariô” vem dar ainda mais sentido à ideia jazzística lançada em “Bogotá” e “Subirusdoistiuzin”, uma vez que intensifica a pegada de jazz moderno, haja vista que é coescrita com
Kiko Dinucci, o principal compositor da Metá Metá, a inovadora banda paulistana do novo jazz brasileiro. Emulando sons e vocabulários do matiz africano, típico da musicalidade de Dinucci, remonta ao
“pop nagô” de Marku Ribas pela mistura de sonoridades funk, soul, samba e batuque de terreiro.
Surpreendendo novamente, Criolo traz o bolero "Freguês da Meia-Noite". Balada brega ao estilo Nelson Ned e Reginaldo Rossi, contextualiza mais uma vez a São Paulo urbana, aqui no clima decadente e rasgado da boemia noturna.
“Meia Noite/ Em pleno Largo do Arouche/ Em frente ao Mercado das Flores/ Há um restaurante francês/ E lá te esperei”. Já “Samba Sambei”, embora o título faça supor o estilo musical, é, na verdade, um reggae, engendrando a tirada metalinguística de canções como “Samba da Minha Terra”, de
Dorival Caymmi, na versão
heavy dos
Novos Baianos, o rock-exaltação “
A Bossa Nova é Foda”, de Caetano, ou “Amigo Punk”, a milonga (e não um
punk-rock) do grupo gaúcho Graforréia Xilarmônica.
Claro, a raiz de Criolo não poderia deixar de estar presente. Com a mesma desenvoltura que passeia por outras formas musicais, o artista também articula seu inato
rap. Caso de "Grajauex", com os criativos versos rimados em
“écs” (
“É o play 3 na golfera te sai, chanex/ É o ouro branco o pó mágico e o poder de Rolex/ Na favela com fome atrás dos Nike Air Max/ Os canela cinzenta que não tem nem cotonets/ Os Mc das antiga é dinossauro T-Rex/ Pra fazer bobaginha cole ali com Jontex/ Pra zoar na rua com os cachorro é pex pex/ E as princesinha na nóia de um papel faz bo...”); "Sucrilhos", crítica social em que exercita sua poética sui generis (
“Calçada pra favela/ Avenida pra carro/ Céu pra avião/ E pro morro descaso/ Cientista social/ Casas Bahia e tragédia/ Gosta de favelado mais que Nutella”); e "Lion Man", de excelente construção melódica e harmônica.
“Nó...” encerra revelando outra habilidade que Criolo traria mais vezes a partir de então – inclusive em parcerias com Martinho da Vila e Tom Zé –, que é o domínio do samba. Partido alto estiloso, que lembra os bambas da velha guarda, "Linha de Frente" faz uma brincadeira com os nomes dos personagens da Turma da Mônica, inserindo-os na realidade do tráfico de drogas na periferia. Os versos iniciais dizem:
“O nó da tua orelha ainda dói em mim/ E Cebolinha mandou avisar/ Que quando a ‘fleguesa’ chegar/ Muitos pãezinhos há de degustar”. O refrão é ainda mais interessante:
“O dinheiro vem pra confundir o amor/ O santo pesado que tá sem andor/ Na Turma da Mônica do asfalto/ Cascão é rei do morro e a chapa esquenta fácil”.
Dentre as várias qualidades de “Nó...” está a que o trabalho trouxe de vez a turma do
rap para o patamar dos músicos, vencendo a pecha de meros “coladores de música dos outros” ou de “vozes da favela”. Criolo representa a nova geração mestiça brasileira, saída das classes baixas e sintonizada com a política, com a produção cultural e com a realidade social, personalidades que têm (e se põem no) compromisso de pensar o Brasil. Além disso, o convencimento de que
rapper não sabe (e nem precisa) só fazer
rap. Mas mesmo com toda a diversidade sonora e de referências conceituais que carrega, “Nó...” é, contudo, um disco saboroso de se ouvir, mesmo que desafiador – desafio este que, de pronto, não me permiti vencer em relação a Criolo. Mais do que a “repaginada” a qual meu primo se referiu ao me indicar a audição, o disco é a afirmação de um artista que tem muito a dizer e que veio para ficar. Talvez por tudo isso, o disco tenha dado em meu pretenso conhecimento e gosto musical um verdadeiro nó na orelha. Acho que, com todas estas linhas escritas, eu agora tenha desenosado.
FAIXAS:
1. "Bogotá" - 4:40
2. "Subirusdoistiozin" - 3:33
3. "Não Existe Amor em SP" - 4:40
4. "Mariô" - 3:37
5. "Freguês da Meia-Noite" - 4:09
6. "Grajauex" - 2:36
7. "Samba Sambei" - 3:42
8. "Sucrilhos" - 4:00
9. "Lion Man" - 3:25
10. "Linha de Frente" - 4:30
Todas as composições de Criolo, exceto “Mariô”, de Criolo e Kiko Dinucci
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OUÇA O DISCO
Daniel Rodrigues