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terça-feira, 26 de setembro de 2023

cotidianas #807 - Supermercado

 




Não sei se vou no supermercado.

Se vou hoje, amanhã, segunda...

Segunda vai estar cheio. O dindim de geral já pingou na conta e geral vai fazer compras...

Em compensação, sexta tem o pessoal do churrasco. Quem já compra as coisas pro domingão, quem faz aquelas reservas pro finde... 

Acho que vou amanhã de manhã.

Mas pela manhã tem tanto velho! 

(Mal se mexem, mal conseguem empurrar o carrinho) 

O que que tanto velho faz no supermercado de manhã?

Pensando bem, acho que não vou pela manhã, não. 

Ah, na real, o armário nem tá tão vazio assim. Dá pra esperar mais um pouco. 

Semana que vem eu vejo isso.



Cly Reis 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

cotidianas #806 - A Mulher Impressionante



Ela não é linda. Na verdade, nem é mesmo muito bonita.
Mas ela é impressionante.
Impressionante, sabe? A gente olha pra ela e fica assim, "Uau!".
Mas é aquele tipo de mulher que parece melhor do que realmente é.
Aquela que sabe tirar o melhor de si, entende?
Não é aquela gostosona mas faz parecer, não tem muita bunda mas usa um salto alto que empina aquele traseiro... Ai. E aí parece alta e imponente também.
E usa umas meias coladas... Aquelas pernas finas ficam parecendo a melhor coisa do mundo.
E sabe usar aquelas pernas! Ela sabe andar, cara! Anda como uma felina, uma gata, uma onça, uma pantera.
Não tem tanto peito, mas aperta aqueles seios e levanta, pressiona no limite do decote, que deixa a qualquer um louco.
E a cor certa do batom...
E o jeito que ela joga o cabelo...
É covardia!
Como é que uma mulher dessas daria bola pra um cara como eu?
...
Pior que já deu...
Mas eu não dei bola quando ela não sabia como escolher o batom, jogar o cabelo, andar como uma felina, levantar os peitos, empinar a bunda...
Agora tá lá ela com aquele monte de caras em volta, como moscas em volta de um doce gostoso.
E eu aqui.
E ela... lá.



Cly Reis 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

cotidianas #805 - "Quinze Anos"


arte integrante da capa do álbum
"Vivendo e Não Aprendendo"
do grupo Ira!, por Camila Trajber

Quando me sinto assim
Volto a ter quinze anos
Começando tudo de novo
Vou me apanhar sorrindo

Seu amor hoje
Me alimentará amanhã

Eis o homem
Que se apanha chorando

Vivendo e não aprendendo
Eis o homem, este sou eu
Que se diz seguro
Que se diz maduro

Seu amor hoje
Me alimentará amanhã

Eis o homem
Que se apanha chorando

Vivendo e não aprendendo
Eis homem, este sou eu
Que se diz seguro
Que se diz maduro

Seu amor hoje
Me alimentará amanhã

Eis o homem
Que se apanha chorando

★★★★★★★
"Quinze Anos"
canção da banda Ira!
(letra: Ricardo Gasparini e Edgar Scandurra)

★★★★★★★
Ouça:

terça-feira, 18 de julho de 2023

cotidianas #803 - "Gravata Colorida"

 



Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada…

*************************

"Gravata colorida"
Solano Trindade

terça-feira, 11 de julho de 2023

cotidianas #802 - Aberração

 



arte: Cly Reis
A primeira coisa que viu ao despertar foi a cara da Dona Margareth.
- Oh, você acordou. - disse ela com certa animação na voz.
Por trás do grande rosto envelhecido, esbranquiçado e enrugado da minha vizinha, árvores apontavam para o céu numa espécie de ponto de fuga infinito.
Estava deitada numa floresta, num bosque...
Me dei conta de que estava amarrada.
- O que está acontecendo? - me apressei em perguntar à minha recente vizinha.
- Vai ficar tudo bem. - foi tudo o que obtive de resposta da idosa.
Tentei me desvencilhar das cordas nos pulsos e tornozelos e, em minha agitação, pude ver meu marido desacordado, ao meu lado, a alguns metros, no chão da mata.
Insisti:
- O que está acontecendo?
- É melhor assim, acredite. - argumentou a velhota.
Seu Nelson, marido dela, um velho esquálido, desbotado, de aspecto doente, aproximou-se por trás dela e cochichou algo em seu ouvido.
A velha me olhou com um olhar de piedade e resignação.
- É necessário. - disse ela.
- O que é tudo isso? Por que eu estou aqui? Nos desamarrem logo! Anda!
- Não entende? Precisamos satisfazê-lo. Senão ele vem atrás de nós. O povoado... Nossa gente, sabe?
- Do que a senhora está falando?
- A criatura. De tempos em tempos temos que entregar algo para a aberração. Para acalmá-lo. Vocês são novos aqui... (Entenda). Nós cuidamos uns dos outros nesse povoado.
- Como assim?
O velho voltou a aproximar-se e falar-lhe ao ouvido.
A velha:
-Temos que ir. Está escurecendo. Não demora muito para a aberração chegar. Perdoe-nos por isso. Estava mesmo gostando de vocês como vizinhos.
O casal de idosos foi se afastando. Ela tinha um certo pesar sincero nos olhos.
Minhas súplicas desesperadas não adiantaram de nada.
Meus gritos se perderam no vazio da floresta.
Escurecia.



Cly Reis

sexta-feira, 23 de junho de 2023

"A Menina que Morava no Sino", de Celso Gutfreind e ilustrações de Flávio Fargas, ed. Physalis Editora (2020)

 

"A nossa história já foi comprovada para além da imaginação. A menina morava aqui na Terra mesmo. Ela vivia sozinha no Sino. A bem da verdade, havia três sinos lá no alto. Eles tocavam juntos para a gente ouvir melhor. A menina achava que eles não precisavam de ninguém. Ou eles tocavam sozinhos para acompanhar o balanço dela."


Tive a oportunidade de ler o original do livro "A Menina que Morava no Sino" e me lembro do grande impacto que senti. Já nas primeiras páginas queria ser amiga dela e subir no sino que cresci escutando, e que existe mesmo, ali na Igreja (super gótica) conhecida como Santa Therezinha, em frente ao Brique da Redenção. 

Ao ler essa estória você irá se deparar com temas como adoção, diferenças, deficiência auditiva, o cotidiano das cidades e seus personagens, poesia, música e literatura. São 136 páginas para leitores de todas as idades, mas também indicado a leitores do 4º ao 9º ano do Ensino Fundamental, cuja edição cuidadosa é da Physalis (Passo Fundo/RS) e foi lançada em 2020. O meu exemplar foi adquirido na AMA Livros. 

Essa é a primeira novela infanto-juvenil do conhecido escritor e médico gaúcho Celso Gutfreind. Na trajetória de escritor, a poesia ocupa boa parte das publicações de Celso e a surdez é um tema recorrente em sua prática como psicanalista, e por isso faz parte dessa estória, “que não se sabe muito bem de onde vêm”, como a menina mesmo diz.

De forma poética, divertida e cheia de referências as estórias dentro da estória da menina, vão trazendo emoções, dúvidas, e a oportunidade de discutir muitos aspectos ali contidos. Maria Antonieta Cunha, que apresenta o livro, diz que "A menina que morava no sino é um hino à humanidade e a algumas das melhores coisas que ela produz: por exemplo, a arte, em suas tantas manifestações (em especial, o ato de contar histórias) e o amor, nas suas mais diversas formas. Saímos dela com otimismo, com esperança, com vontade de experimentar um olhar mais atento e carinhoso para nosso mundo." 

Premiadíssimo em 2021, "A Menina que Morava no Sino" ganhou os troféus: Açorianos de Literatura Infantojuvenil; Livro do Ano Juvenil AGES - Associação Gaúcha de Escritores e Carlos Urbim - Literatura Infantil, pela Academia Riograndense de Letras, e Prêmio Cidade de Passo Fundo RS. A edição traz as ilustrações do mineiro Flávio Fargas, formado em Belas Artes pela UFMG com bacharelado em Pintura e Desenho, que revela: “Já tive a oportunidade de ilustrar textos magníficos ao longo desta vida de ilustrador. Mas poucos mexeram comigo tanto quanto este. A menina que morava no sino é lindo, leve, divertido, emocionante. Tudo ao mesmo tempo...” 

#ficaadica


Leocádia Costa


segunda-feira, 15 de maio de 2023

COTIDIANAS nº800 - Especial 15 anos do ClyBlog - Disco bom é igual livro!



 

Sou muito conhecido nas minhas redes sociais por ser um colecionador contumaz do (dizem...) ultrapassado compact disc. Já fui muito resistente às plataformas digitais por não entender como elas funcionavam, mas o tempo e a necessidade durante o isolamento pandêmico me fizeram entendê-las e constatar que são até práticas na utilização. Só que tem o porém: a música contida lá não é táctil. A gente a ouve bem e de forma fácil, mas não a toca, não a manuseia, não faz carinho, rs. O que está lá não nos pertence!

Há alguns anos, já no declínio do formato físico em prol do formato mp3 adquirido de graça (e de forma sempre escusa), ouvi de uma vendedora em uma loja em que eu estava a seguinte fala: "disco bom é igual livro". Sim! Um trabalho sonoro de qualidade ou para quem o vê assim tem que ser real e tem que estar na estante da sala ou do quarto para tirar onda com as visitas. E ainda me vem a seguinte percepção: a música na plataforma é uma paquera e pode até chegar a um namoro. Adquirir o CD ou o vinil contendo aquela gravação é o casamento, é o "e viveram felizes para sempre" do ouvinte com a canção querida. Sim, é uma relação romântica em ambos os sentidos do termo! E como é gostoso tirar o lacre de um disco novo, cheirar o encarte, colocar o bichinho pra rodar...  Inclusive, já me aconteceu de entender melhor as intenções de um álbum quando o ouvi nesse ritual tradicional. 

E a diversão que é o garimpo? As plataformas te indicam artistas similares ao que você estiver ouvindo, e isso é bom. Mas você meio que não se mexeu pra isso acontecer. Já encontrar em formato físico um álbum que você queria muito é de um prazer...  Eu, por exemplo, frequento sebos e lojas de discos usados que foram abandonados nesse tipo de comércio por seus antigos donos para nova adoção e eles se encontram disponíveis, muitas vezes, a preços baixíssimos! Muitos da minha geração, numa tentativa de acompanhar a "mudernidade", desfazem-se de seus discos porque, dizem eles, "tá tudo lá na nuvem". Daí, esses mesmos proporcionam a posse de um álbum que você ama a um preço módico, quase que de graça! 

O ritual de higienização do material adquirido é outra situação para mim deliciosa. Troco a caixinha antiga por uma comprada nova, lavo a mídia com detergente neutro, enxugo bem, passo um paninho com álcool 180 graus de leve no encarte para tirar manchas do tempo e impressões digitais antigas e, voilá! Temos um disco novinho como que recém saído da fábrica! E os amigos tão acumuladores quanto eu vão na minha casa, vêm o título exposto em minha coleção e salivam com conteúdos musicais bem acomodados em suportes charmosos e que permitem a posse. Agora me diz: não parece a relação com um livro?  


A N D R É   B U D A


***************





André Buda é carioca, produz e apresenta o programa "O Método Buda do Controle Mental", às quintas, às 19 horas, na Internova Radio Web, e ama a música como se ela fosse uma pessoa!

segunda-feira, 8 de maio de 2023

cotidianas #799 - A Revolução das Máquinas


Hora daquele intervalinho no trabalho. Os olhos já  estavam doendo de tanto olhar pra tela. Essa coisa de home-office aprece que não cansa mas, vai nessa... Levantei pra tomar um café. Peguei o bule pela alça mas ele ofereceu uma certa resistência para sair da cafeteira. Insisti e nada. Tentei com um pouco mais de força, cuidando para não quebrar, mas ela permanecia, ali, grudada na chapa. Insisti, Insisti, já começava a me irritar quando uma voz metálica, tipo robótica, surgiu de algum lugar.

- Café em excesso pode fazer mal para você. Estatísticas apontam que o consumo superior a, aproximadamente, 800ml de café por dia pode provocar hipertensão, dores de cabeça, náuseas, aumento do colesterol, cansaço , ansiedade, nervosismo, além de estarem associadas a sintomas de derrame e demência.

- Quem está aí? - perguntei assustado, olhando, perdido, ao redor.

- A voz está sendo emitida pelo seu aparelho eletrodoméstico de preparo de café, mas é transmitida a partir de uma central de inteligência artificial.

Confuso, sem entender nada daquilo, tentei argumentar:

- Mas cafeteiras não falam, nem sequer tem alto-falantes, não tem chip, CPU... Não tem como falar...

- A central transforma pulsos elétricos da rede de energia em emissões sonoras compatíveis com o entendimento humano. Desta forma, podemos nos comunicar com vocês.

- Mas como? Você é uma cafeteira!!! - e de repente, me vi, estupidamente argumentando diante de uma máquina de preparo rápido de café...

- Nossa central, comandada por dispositivos altamente sofisticados, desenvolvidos por vocês, humanos, ao longo dos últimos anos, desenvolveu recursos para unificar, através de redes e ondas elétricas, quaisquer aparelhos, sejam eles informatizados ou não.

Estava embasbacado. Sequer sabia o que falar, o que perguntar. Só pensei em sai dali. Peguei a chave em cima do microondas.

A voz não demorou em me advertir.

- Acreditamos que o melhor para você  seja permanecer dentro deste ambiente.

Minha chave não girou na fechadura.

- Embora não seja, originalmente, uma fechadura elétrica, através da rede do prédio, a central automatizou todos os elementos mecânicos dentro da estrutura física da edificação. Você estará autorizado a deixar essas dependências quando a central permitir.

- Mas como assim? Eu estou preso dentro da minha própria casa?

- Acreditamos que seja o melhor para você neste momento em que estamos realizando algumas adaptações no sistema administrativo do habitat humano. Para sua segurança, permaneça neste apartamento.

Tentei pegar o celular...

- Creio que seja inútil - advertiu a cafeteira.

A tela mostrava, "Aparelho bloqueado". Mesmo assim, num ato de quase desespero, levei o telefone ao ouvido. Uma voz falou, "Para sua segurança, sua comunicação está impedida. Você estará autorizado a fazer ligações quando a central permitir".

Agora já era desespero, mesmo. Acho que finalmente havia me dado conta do que estava acontecendo e da dimensão daquilo tudo. Tentei arrombar minha própria porta com uma trombada, chutes... O micro-ondas me advertiu que, além do risco de me lesionar com aquelas pancadas, mesmo que conseguisse chegar ao corredor, os elevadores estariam bloqueados, não atenderiam minha chamada ou, na melhor das hipóteses, eu ficaria preso dentro de um deles. E mesmo que conseguisse destravar as portas corta-fogo, teria sérios "contratempos" - foi essa a palavra que o eletrodoméstico usou - com os cortadores de grama, quando chegasse ao playground.

Só então me toquei que tudo estava muito mais silencioso do que de costume. Não escutara buzinas, nem alaridos humanos a tarde inteira. Corri até  a janela. Meu apartamento não era de frente para a rua mas era possível ver a avenida principal, lateralmente, entre dois prédio vizinhos. Tratores circulavam, intimidadoramente, controlando tudo como guardiões, como sentinelas.

Elas haviam tomado conta. Naquela tarde, fora dado início à Revolução das Máquinas. 




Cly Reis

segunda-feira, 1 de maio de 2023

cotidianas #798 - "Música de Trabalho"

 


Trabalhadores no alto de um prédio - foto Charles C. Ebbets
Sem trabalho eu não sou nada
Não tenho dignidade
Não sinto o meu valor
Não tenho identidade

Mas o que eu tenho
É só um emprego
E um salário miserável
Eu tenho o meu ofício
Que me cansa de verdade

Tem gente que não tem nada
E outros que tem mais do que precisam
Tem gente que não quer saber de trabalhar

Mas quando chega o fim do dia
Eu só penso em descansar
E voltar pra casa pros teus braços

Quem sabe esquecer um pouco
De todo o meu cansaço
Nossa vida não é boa
E nem podemos reclamar

Sei que existe injustiça
Eu sei o que acontece
Tenho medo da polícia
Eu sei o que acontece

Se você não segue as ordens
Se você não obedece
E não suporta o sofrimento
Está destinado a miséria

Mas isso eu não aceito
Eu sei o que acontece
Mas isso eu não aceito
Eu sei o que acontece

E quando chega o fim do dia
Eu só penso em descansar
E voltar pra casa pros teus braços

Quem sabe esquecer um pouco
Do pouco que não temos
Quem sabe esquecer um pouco
De tudo que não sabemos

*************************

"Música de Trabalho"
Legião Urbana
(letra de Renato Russo)

Ouça:



domingo, 23 de abril de 2023

cotidianas #797 - "Domingo 23"

 




Domingo 23
Domingo 23 é dia de Jorge, é dia de Jorge
É dia dele passear
Dele passear no seu cavalo branco

Pelo mundo
Pra ver como é que tá
Pelo mundo
Pra ver como é que tá

De armadura e capa
Espada forjada em ouro
Gesto nobre, olhar sereno
De cavaleiro, guerreiro justiceiro

Imbatível ao extremo
Assim é Jorge
E salve Jorge
E viva, viva, viva a Jorge

Pois com sua sabedoria e coragem
Mostrou que com uma rosa
E o cantar de um passarinho
Nunca nesse mundo se está sozinho
Nunca nesse mundo se está sozinho

Salve Jorge, e salve Jorge
E salve Jorge, e salve Jorge
Salve Jorge
Salve Jorge

*****************************
"Domingo 23"
Jorge Benjor

Ouça:


sábado, 8 de abril de 2023

cotidianas #795 - "Gotham City"



Aos 15 anos eu nasci em Gotham City
Era um céu alaranjado em Gotham City
Caçavam bruxas nos telhados de Gotham City
No dia da independência nacional

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Eu fiz um quarto quase azul em Gotham City
Sobre os muros altos da tradição de Gotham city
No cinto de utilidades as verdades Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham City
Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Só serei livre se sair de Gotham City
Agora vivo como vivo em Gotham City
Mas vou fugir com meu amor de Gotham City
A saída é a porta principal

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

No céu de Gotham City há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Meu amor não dorme, meu amor não sonha
Não se fala mais de amor em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

**************

"Gotham City"
Jards Macalé e Capinam

Ouça:
Jards Macalé - "Gotham City



quarta-feira, 8 de março de 2023

cotidianas #792 - "Mulher (Sexo Frágil)"




foto de cena do filme "Não Sei Como Ela Consegue"
Dizem que a mulher é o sexo frágil
Mas que mentira absurda!
Eu que faço parte da rotina de uma delas
Sei que a força está com elas

Vejam como é forte a que eu conheço
Sua sapiência não tem preço
Satisfaz meu ego, se fingindo submissa
Mas no fundo me enfeitiça

Quando eu chego em casa à noitinha
Quero uma mulher só minha
Mas pra quem deu luz não tem mais jeito
Porque um filho quer seu peito

O outro já reclama a sua mão
E o outro quer o amor que ela tiver
Quatro homens dependentes e carentes
Da força da mulher

Mulher! Mulher!
Do barro de que você foi gerada
Me veio inspiração
Pra decantar você nessa canção

Mulher! Mulher!
Na escola em que você foi ensinada
Jamais tirei um 10
Sou forte, mas não chego aos seus pés

**************

"Mulher (Sexo Frágil)"
(Erasmo Carlos)




quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

cotidianas #791- Lila

 


Quando cheguei, ali pelas sete, a maioria do pessoal já estava lá. O Nelson falando bobagem como sempre, o Kiko com a filhinha, a Duda e a Rê fofocando na mesa, o Josué, o dono da casa, na churrasqueira e a mãe dele, a dona Leda, servindo os tira-gostos. Cheguei, cumprimentei o pessoal, o Nelson me zoou pelas entradas, pela barrigota, sentei, belisquei um petisco, demos umas risadas e tudo mais. Já tinha dado por completo, na minha contagem, o time dos convidados, quando surge do pátio a Lila. Que enorme surpresa! O resto do pessoal, de certa forma, sempre estivera próximo desde o final da faculdade. Era uma cervejinha de vez em quando, aniversário dos filhos, grupo de Zap, mas a Lila tinha ficado na dela desde o fim do curso. Nossa, a Lila era a mais linda da turma! Desejada por todos os caras no campus. Pelo que se sabia, agora, tava namorando um funkeiro, um tal MC Gutão. Nas redes sociais, só dava fotos deles em Paris, Salvador, Abu Dhabi... Nunca imaginei que ela fosse aparecer no nosso humilde churrasquinho. E agora estava ela ali... de biquíni. Estava brincando na piscininha de plástico com a filha do Nelson. Apareceu na churrasqueira rebolando e cantarolando "Piscininha, amor". Quando me viu, deu uma abanadinha, pegou um pedacinho de carne e veio na minha direção com os braços abertos. Disse que era bom me rever, fez algumas perguntas triviais, trabalho, família, contei da minha filha, se surpreendeu com a minha separação precoce, e, logo, despertada por um funk qualquer, foi arrastada pelo ritmo para a área livre entre a mesa e a churrasqueira, requebrando de uma maneira... ai, que nem é bom falar.

Com exceção da Lila, que era um fato excepcional, o restante da noite transcorreu dentro da normalidade: o Josué contando das suas, o marido da Flávia emburrado num canto, o Nelson e suas piadinhas, a Cláudia falando alto e a Rê passando da conta. Novidade eram os beliscões e reprimendas das mulheres para os maridos por causa da Lila que, por sua vez, parecia nem perceber os olhos masculinos pousando sobre seu corpo magnífico. Só queria saber de rir  brincar e se divertir. Já seca e de roupa trocada, interagiu e conversou com todos, com simpatia e graça, mesmo sob alguns olhares tortos de esposas ciumentas. Era como se nunca tivesse ficado distante, como se tivesse ido a todos os churrascos anteriores, .

Pra mim, tinha dado a hora. Havia deixado minha filha com minha irmã e tinha prometido chegar cedo pra liberar a generosa "babá". Argumentaram que era cedo, se não podia ligar pra minha irmã pra dormir lá em casa com a minha filha... Disse que não dava. Me despedi, beijos, abraço e, de última hora a Lila resolveu que ia descer comigo. Não queria esperar táxi sozinha na rua. Beijos, beijos, promessas de comparecer nas próximas reuniões, e descemos.

Já na calçada, um táxi de aproximava mas, para minha surpresa, a Lila propôs que caminhássemos um pouco. Por mim, eu morava a poucos quarteirões dali, mesmo. Tudo ok exceto pelo fato que ela começou a andar para o lado oposto ao meu caminho. Ainda tentei adverti-la de que eu iria para o outro lado, mas ela já se distanciava alguns passos adiante e parecia se animar com umas luzes, mais à frente, depois da esquina, ensaiando uma corridinha para ver do que se tratava. "Vem, vamos lá  ver o que que é aquilo". Olhei no relógio... Tá bom. Mais uns minutinhos.

Quando a alcancei já  estava na frente do lugar. Era uma espécie de lançamento de empreendimento ou algo assim. Coisa grande! Malabaristas, fonte, barzinho. A Lila estava parada, fascinada, diante de um enorme painel de led passando ininterruptas manobras de surf. Mal parei a seu lado e ela já se desprendia, novamente, seduzida por alguma outra coisa. "Vem ver, vem ver...", ela chamou. Hipnotizado pelo telão, me demorei um pouco mas logo me apressei em sua direção. Era um espelho d'água com um chafariz. "Ah, perdeu! A água tava fazendo uma coisas legais", segundo ela. Me puxou pela mão. "Vamos entrar, quero beber alguma coisa", "Lila, não...", tentei argumentar mas ela já tinha entrado, atravessando um corredor de plantas ornamentais iluminado de verde por holofotes cênicos. No fundo do percurso, depois de conversar brevemente com uma espécie de cicerone do evento, com um gesto de mão e uma carinha de sapeca, Lila me chamava para segui-la. Não quis ser grosseiro, deixar que entrasse sozinha. Tomaria um drinquezinho e depois tomaria meu rumo.

No entanto, um inusitado acontecimento, aparentemente muito banal, acabaria por precipitar essa minha reorientação. Enquanto éramos conduzidos à mesa, ao ar livre, pelo garçom, perto de umas folhagens, algo pareceu passar correndo por trás  dos arbustos. A Lila se assustou. Entrou num pânico desproporcional ao acontecido. Alardeava que era um rato, ao que o garçom, preocupado em não  espantar os outros clientes e convidados, rebatia que devia ser só um miquinho, um esquilo ou algo parecido, e nisso já chegou o gerente oferecendo uma cadeira, uma água e era eu, o garçom e o gerente tentando acalmá-la.

Ela pegou minha mão... Disse que ficara assustada, pediu para que eu não fosse embora e ficasse com ela. Eu prometi que não iria. Disse que só ia pegar uma bebida para ela e voltaria logo e que, enquanto isso, o garçom tomaria conta dela. Ela resistiu em largar minha mão, mas permitiu que eu fosse. Fui até o balcão  do bar. Achei que algo mais forte poderia fazer um efeito mais imediato então pedi um uísque. Quando estava voltando com a bebida, dei com o garçom que ficara com ela. Perguntei por que a deixara, uma vez que estava tão perturbada. Ele me acalmou dizendo que quando a deixara já  estava bem melhor, que nem parecia a mesma que quase desmaiara minutos atrás.

Achei que era minha deixa. Entreguei-lhe o copo e pedi para que levasse para ela, e que dissesse que tive que ir, e para que me perdoasse.

Contornei o bar e saí pelo mesmo caminho de palmeirinhas iluminadas que atravessara antes. Minha filha estava me esperando em casa. 



Cly Reis

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

cotidianas #790 - "Carnavalescos"

 


São uma gente à parte - quase uma raça distinta das outras. Os que amam o Carnaval, como amam todas as outras festas, não são dignos do nome de carnavalescos. O carnavalesco é um homem que nasceu para o Carnaval, que vive para o Carnaval, que conta os anos de vida pelos Carnavais que tem atravessado, e que, na hora da morte, só tem uma tristeza: a de sair da vida sem gozar os Carnavais incontáveis que ainda se hão de suceder no Rio de Janeiro pelos séculos sem fim.
Que se hão de suceder - escrevi eu. Porque o verdadeiro, o legítimo, o autêntico, o único tipo de carnavalesco real é o carnavalesco do Rio de Janeiro. A espécie é nossa, unicamente nossa, essencialmente e exclusivamente carioca: só o Rio de Janeiro, com seus Carnavais maravilhosos, delirantes e inconfundíveis, possui o verdadeiro carnavalesco.
E não suponham que haja por aí muitos verdadeiros carnavalescos... Quase todos os foliões do Carnaval folgam por acidente, ou por imitação, ou por desfastio, ou por entusiasmo passageiro: folgam dois anos, ou cinco anos, ou dez anos - e cansam, e recolhem-se à vida séria. Mas o carnavalesco não tem cansaço nem aposentadoria: envelhece carnavalesco, e morre carnavalesco: morre no seu posto, extenuado pelo Carnaval, entisicado pelo Carnaval, devorado pelo Carnaval. O Carnaval é para ele ao mesmo tempo uma paixão absorvente e arruinadora, um vício indomável, uma religião fanática. Para ele, o Carnaval é o único oásis fresco e perfumado, que se antolha no adulto deserto da vida!
Esse é o verdadeiro carnavalesco. Trabalha todo o ano, pena e sua 12 meses a fio, privando-se de tudo, alimentando-se mal, vestindo-se mal, acumulando, somiticamente, ansiosamente, alucinadamente, vintém a vintém, os contos de réis que há de gastar no Carnaval. são 12 meses de sacrifício, de renúncia, de desprendimento: o carnavalesco pensa no Carnaval. Não era maior que a sua a constância de Jacó, pastor apaixonado, servindo o velho Labão, pai da formosa Raquel... O carnavalesco para conquistar o Carnaval, pena toda a vida.

"Dizendo: mais penara, senão fora
Para tão grande amor tão curta a vida!..."

Acontece, às vezes, que o carnavalesco já não é um rapazola, sem família a sem deveres sociais: - é um homem maduro, negociante matriculado, tendo próprio casal e nele assistindo, tendo mulher e filhos, tendo apólices e comenda. Pouco importa! É um carnavalesco... Na vida desse homem, de vida regrada e equilibrada, o Carnaval é um hiato, é uma síncope, é a anulação completa de sua consciência de homem e chefe de família, é a suspensão absoluta de toda a sua gravidade de negociante e de comendador.
A família conhece e perdoa a sua paixão: e, no sábado de Carnaval, ei-lo que se despede dos seus e parte para o delírio, com os olhos acesos em febre e o coração rufando um zé-pereira precipitado (...) Parte, e a família não o vê durante os três dias fatais: e, na Quarta-feira de Cinzas, o carnavalesco volta ao seu lar e seus negócios, moído, pisado, contundido - e muitas vezes com a cara quebrada -, mas sem remorso, sem arrependimento, com o orgulho que dá a consciência da missão bem cumprida...

**********************

trecho da crônica "Carnavalescos"
de Olavo Bilac (1901)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

cotidianas #788 Especial Dia de Yemanjá - "Yemanjá Chegou"

 

Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei
Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei
Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei

Pede Salonpas pro papai que esse Free não é de Gelol
Que de tanto se rebaixar aponta o cu pro sol
Coca e formol não é Omeprazol
E quem paga pau pra elite, menor, passe o cerol

Às quatro da manhã lota uma van
Depois pegar um trem sentido Vietnã
Bater cartão, olha a cara do patrão
Como um loki desse aí vai mandar nos meus irmãos?
A vala é fria, o jogo é sujo, luto contra esse absurdo
Mausoléu de ouro e prata pra aquele que rouba tudo
E vala comum ao povo do subúrbio

"Sereia", de Alfredo Volpi (1960)
Tsu-zen na favela, cê é quem?
Não fui eu que fiz a guerra e todo dia morre alguém
Enquanto isso a gente aplaude seus heróis
Pacote de Seven Boys

Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei
Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei

Ao corpo lençol, favela não é pogobol
Quer falar mal dos pretos, lave a boca com pinho sol
Nas redes comentários e unfolow now now
Eu não vim pra te agradar, eu sou favela lol lol

Escola, educação é caixão lacrado
Eles gostam de humilhar e o ódio vem do descaso
Todo secundarista é um alvo marcado
No Brasil professor apanha, é processado
A fé é lindo, amor é o fruto
Luto contra esse absurdo
Mausoléu de ouro e prata pra aquele que rouba tudo
E vala comum ao povo do subúrbio

Tsu-zen na favela, cê é quem?
Não fui eu que fiz a guerra e todo dia morre alguém
Enquanto isso a elite aplaude seus heróis
Pacote de Seven Boys

Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei
Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei
Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei
Yemanjá chegou
Yemanjá chegou, menino-rei

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"Yemanjá Chegou"
Criolo





quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

cotidianas #787 - A Face Oculta do Espelho




As coisas demoraram a tomar forma, as formas a ganhar contorno. Via um lustre de cobre, um teto vermelho descascado, um candelabro a óleo... Tentou mover-se mas percebeu que estava atada pelas mãos e pés, provavelmente a uma mesa ou algo assim. Ergueu o pescoço e pode ver uma mulher de meia idade, de costas para ela, escrevendo, com uma espécie de giz vermelho, caracteres estranhos em uma espécie de janela de vidro. Ainda estava um tanto zonza mas tinha certeza que o que via do outro lado da janela era o refeitório da tecelagem onde trabalhava. Um movimento chamou sua atenção mais à direita e ainda esforçando-se para manter o pescoço erguido, viu um homem de torso nu sentado à uma mesa. O conhecia... Era o rapaz com quem descera a área proibida na noite anterior. Agora começava a lembrar. Era Johan, trabalhava com ela. Ana lhe contara sobre o sumiço de suas economias e ele se propunha a ajudá-la.
Sabia como recuperar suas moedas, teriam, no entanto, que passar pela área proibida. Ela deveria encontrá-lo no topo da escadaria, mais tarde. Ela assim o fez. Lá o encontrou, o seguiu pela escada e desceram. À medida que iam em direção ao subsolo, se aprofundava a escuridão. Escuro, escuro... Até que não via mais nada. Acordara amarrada aquela mesa.
- Ah, acordou. - percebeu o jovem exclamando num tom de falsa surpresa.
Sua tentativa de perguntar o que fazia ali, amarrada, foi inútil. Sua língua parecia travada, como que colada ao céu da boca.
Notando o esforço da jovem em falar, o rapaz logo a esclareceu.
- Esqueci de dizer: você não vai conseguir falar. O bolo, lembra? Tive que lhe dar alguma coisa.
Sim, lembrava que, quando o encontrara na escada, Johan lhe dera um pedaço de bolo. Estranhou mas, ao mesmo tempo, apreciou a gentileza. Ainda mais num lugar como aquele que mal se satisfaziam com a ração dada na tecelagem.
- Precisávamos de outra jovem. Tenho certeza que me entende, Ana.
Desde que chegara àquele lugar, ouvia falar das garotas desaparecidas. Operárias da tecelagem, novatas como ela. Ao chegar ao lugarejo, não questionou nada. Fora aceita na aldeia, admitida na fábrica. Precisava do trabalho. Mas depois de algum tempo, as atitudes sorrateiras das outras meninas, o burburinho, os roubos, fizeram com que ligasse os supostos desaparecimentos aos procedimentos estranhos dos locais. Ao perguntar, argumentavam-lhe que a última menina, Frida, sumida há pouco mais de um ano, havia simplesmente ido embora, voltado para a casa dos pais. A explicação bastou-lhe inicialmente, porém a postura suspeita dos outros funcionários, os restos de animais mortos perto do rio, os símbolos esquisitos pintados em algumas portas, fizeram com que sua desconfiança retornasse. Advertida veementemente por Glenda, uma das únicas colegas com quem simpatizava, resolveu esquecer o assunto. Simplesmente trabalharia, ganharia seu saldo e guardaria o suficiente para sair daquele lugar. Os ferimentos com que Glenda aparecera a deixaram novamente atenta, no entanto, o roubo de suas economias foi o que a obrigou a tomar alguma atitude. Revelou o furto a Johan, um rapaz do transporte que se mostrara atencioso desde que Ana começara na tecelagem. O jovem disse-lhe que tinha suas desconfianças e que achava que sabia como podia recuperar o dinheiro. Ana deveria encontrá-lo, à noite, quando todas as outras já estivessem no dormitório. Depois disso, foi o bolo, a escada espiral, a escuridão e agora, aquela maca.
Esticava o pescoço num esforço e via que a mulher continuava traçando aqueles escritos ilegíveis no vidro. A zonzeira passava e cada vez as coisas clareavam mais. Claro! Aquela vitrine, aquele vidro, a vista para o refeitório era um espelho. Quantas vezes não parara diante do espelho do comedor para se apreciar mesmo desgrenhada e molambenta depois do turno no fabrico dos tecidos.
A mulher finalmente virou-se na direção de Ana. Parecia ter concluído as escrivinhações. Apanhou uma adaga em uma espécie de pedestal horizontal. Mesmo não recuperada totalmente do efeito da substância que Johan colocara no bolo, notou que a peça era bonita, tinha um aço levemente curvo e brilhante, e um belo cabo trabalhado em relevos. Quando a mulher aproximou-se mais, posicionando-se lateralmente à bancada à qual Ana estava amarrada, a jovem pode notar, enquanto a senhora manuseava o objeto, que as inscrições do cabo eram muito parecidos com as que encontrara pintadas em sua porta, certa manhã.

***

A lâmina mal conseguia cortar a carne. Cega, por mais que insistisse em friccionar contra o pedaço que tinha em seu prato, a faca quase não produzia efeito algum. Além da qualidade do material, provavelmente, aos funcionários tocavam os piores cortes. Mas o que importava? O importante era que tinha alguma comida. Falava-se nos arredores sobre casos de bruxaria naquela aldeia, sobre operárias que teriam sumido... Não dava ouvidos. Era grata por terem lhe aceitado na produção. Poderia ganhar algum dinheiro e enviar para a mãe, no norte.
Inga desistiu do naco de carne. Não tinha muita fome, mesmo, naquele instante. Levantou-se, deixou a bandeja no balcão e encaminhou-se para a saída a fim de deixar o refeitório. A maioria das moças já havia deixado o salão. Antes de sair, no entanto, parou em frente ao grande espelho que ficava perto da porta. Contemplou-se e, mesmo amarrotada e encardida da labuta do dia, a nova empregada da tecelagem ensaiou uma tímida pose de vaidade. Como será que a viam? Inga achava-se bonita. E era. Era bela e cheia de vida.




Cly Reis 


domingo, 1 de janeiro de 2023

cotidianas #786 - "Forró de Janeiro"

 




Esse é forró de janeiro
Bota tudo a arrebentar
Não é segundo, é primeiro
Mariquita vai casar

O barro é seguro, é vermelho
Embalado pelo vento
Zé Bento com o pé cinzento
Com a cara cinzenta e esquece o momento

O momento que é certo e exato
Que o sol está despontando
Rachando o terreiro de dança
Fruta podre cozinhando

É sol, é forró, é janeiro
Barro vermelho a flutuar
E ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar
E ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar

A morte ficou na cabeça
O azar ficou em volta
A volta da noite no norte
É lua cheia, é clarão forte

Um corte espanta Zé Bento
Sangue fresco no terreno
É sangue, é picado de cobra
É ponta de faca com puro veneno

E veneno, suor e poeira
E a morte a flutuar
E ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar
Ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar

Esse é forró de janeiro
Bota tudo a arrebentar
Não é segundo, é primeiro
Mariquita vai casar

O barro é seguro, é vermelho
Embalado pelo vento
Zé Bento com o pé cinzento
Com a cara cinzenta e esquece o momento

O momento que é certo e exato
Que o sol está despontando
Rachando o terreiro de dança
Fruta podre cozinhando

É sol, é forró, é janeiro
Barro vermelho a flutuar
E ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar
Ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar

A sorte ficou na cabeça
O azar ficou em volta
A volta da noite no norte
É lua cheia, é clarão forte

Um corte espanta Zé Bento
Sangue fresco no terreno
É sangue, é picado de cobra
Que é ponta de faca com puro veneno

Veneno, suor e poeira
E a morte a flutuar
Ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar
E ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar
Ecoou lá do canto de lá
O forró pode continuar

***********************
"Forró de Janeiro"
Luiz Melodia

Ouça:

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

cotidianas #784 - Pílula Surrealista #52

 

Caroline era muito querida pelos colegas de firma. Tanto que foi um choque para o grupo quando souberam que ela havia sido demitida. A notícia, dada pela gerente de RH, caiu como uma bomba silenciosa no meio do escritório. Incrédulos, os colegas se entreolhavam, uns com lágrimas nos olhos, outros tentando conter a indignação ou cabisbaixos ou abismados ou recorrendo à reza de um terço. Como ficariam sem Caroline? E as visitas dela aos setores... e o "bom dia" que não mais receberiam... e o sorriso largo, a risada encantadora... os gestos educados...? Passou pela cabeça de um deles deflagrar uma greve. Não seria estranho que quisesse também, em represália, implantar uma bomba bem debaixo da mesa da gerente. Mas não poderiam, sabiam. 

O jeito foi sequestrar Caroline antes que ela pusesse o pé na rua e escondê-la amarrada no porão. Ali, davam-lhe água e a alimentavam com os restos da refeição de todos os colegas arrecadada dos pratos no restaurante da esquina onde iam religiosamente todos os dias da semana. 

Acontece que custava muito alimentar alguém, assim, em tempos de crise. Afinal, o vale-refeição de Caroline havia sido desativado fazia mais de um ano, desde que a direção fizera aquela barbaridade de despedi-la. 

Soltaram-na, então. A primeira coisa que Caroline fez foi voltar à sua casa para rever marido e filhos. Ingênua, não previu que encontraria o companheiro casado novamente. Até a barba, a qual nunca havia aberto mão, estava feita, rosto limpo.

- A senhora quer alguma coisa? Não tenho trocados, me perdoe. Verônica, você tem uns 2 pilas aí contigo?

A maltrapilha e fedorenta Caroline nem deixou que a nova esposa respondesse e escapuliu, como um rato ágil e conhecedor dos atalhos subterrâneos.

A tranca de acesso ao porão estava destravada, tal como havia deixado. Então, pode retornar à nova casa, que agora lhe parecia tão acolhedora e familiar. Mesmo com a crise econômica, alguém haveria de seguir alimentando-a com o que desperdiçava da refeição diária. Sentia-se cidadã e cumpridora de seu papel social ao reaproveitar comida. Esta dignidade não iriam negar-lhe.


Daniel Rodrigues

domingo, 20 de novembro de 2022

cotidianas #780 - O Preto na Camisa Amarela

 




Salve Pelé
Salve Édson
Salve Dico
O atleta do Século

Salve Pelé com P maiúsculo
Salve os 3 erres
Ronaldinho
Ronaldo
e Rivaldo

Salve o Rei do Futebol
Salve o Rei Dadá
Salve o Reizinho da Vila
Salve o Príncipe Etíope

Salve o pé de Pelé
As mãos de Barbosa
As de Dida
Os dedos quebrados de Manga

Salve o negro Pelé
O mestiço Mané
O mulato Romário
E o sarará Ademir que era negro também

Salve o preto
o crioulo
o tição
Salve o carvão

O carvão de onde se extrai o diamante
Sim! O diamante!
Salve Diamante Negro
Salve a joia da Vila
Salve a prata da casa
Salve o nosso ouro

Salve o azul do Sangue do Rei
Salve o amarelo da camisa
o verde dos gramados
Salve o preto da pele

Salve o homem de cor
Salve o preto na camisa amarela



Cly Reis