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segunda-feira, 27 de maio de 2024

Philip Glass - "Symphony Nº 4 'Heroes'” ou "'Heroes' Symphony - by Philip Glass from the Music of David Bowie & Brian Eno” (1997)



As várias capas e edições de "Heroes" pelos selos
Point Music, Orange Mountain, Universal e Decca
  
“A influência contínua destas obras, ‘Low’ e ‘Heroes’, garantiu a sua estatura como parte dos novos ‘clássicos’ do nosso tempo. Assim como os compositores do passado recorreram à música do seu tempo para criar novas obras, o trabalho de Bowie e Eno tornou-se uma inspiração e ponto de partida para uma série de sinfonias de minha autoria”.
 
Philip Glass

Chegados os anos 90, Philip Glass já era uma lenda digna da idolatria. Ligado à música de vanguarda da Costa Leste norte-americana, pela qual surgiu nos anos 60, o autor das “Glassworks” e de peças revolucionárias como “Music in Twelve Parts”, “Koyaanisqatsi” e "Metamorphosis" já havia ultrapassado a linha entre erudito e popular fazia muito tempo, desde suas trilhas sonoras marcantes para o cinema quanto por sua aproximação com o rock e a world music. Porém, afeito a desafios, Glass deu-se conta de um gap em sua já extensa obra àquela época: por incrível que parecesse, faltava-lhe ainda a composição de uma sinfonia. Sim, Glass havia escrito óperas, concertos, corais, peças para câmara e teatro, prelúdios, partitas, balês, sonatas, trilhas sonoras e toda categoria musical que se possa imaginar. Menos sinfonia, justamente o gênero que tanto consagraria os grandes nomes da música clássica, aquele pelo qual os fariam mundialmente conhecidos, como Beethoven (5ª e ), Mahler (Trágica), Mozart (41ª ou Júpiter), Berlioz (Fantástica) e Shostakovich (8ª).

Glass precisava preencher essa lacuna. No entanto, dada a importância deste tipo de obra para um autor do gabarito dele, entendia que precisava ser algo especial. O “coelho da cartola” foi, mais uma vez, a versatilidade e o ecletismo: usar o rock como base para isso. Igual ao que compositores clássicos antigos faziam ao se referenciarem na obra de seus ídolos, só que de uma forma bem inovadora. Sobre temas do clássico disco “Low”, de David Bowie, de 1977, gravado na Alemanha e cuja batuta de Brian Eno mereceu-lhe créditos de coautoria, Glass elaborou sua primeira sinfonia em 1992. Um sucesso de crítica e, principalmente, junto aos próprios Bowie e Eno, que adoraram a homenagem, O mais legal da rica versão de Glass para as faixas do Lado B de “Low”, as de caráter mais ambient e avant-garde do álbum, foi que ele não criou uma ópera-rock, dando somente um teor erudito a sonoridades pop mas, sim, extraindo o que havia de “erudito” de cada música, de cada detalhe, fosse na instrumentalização, no redesenho sonoro ou mesmo na escolha de quais faixas usar.

Caminho aberto para as sinfonias, e Glass, então, não parou mais. Escreveu, nos anos subsequentes, as de nº 2 (1994) e nº 3 (1995) - formando, atualmente, 14 peças neste celebrado formato. Porém, a talvez melhor de sua carreira seja a que veio logo a seguir, em 1997: a “Sinfonia nº 4” ou simplesmente “Heroes”. Animado com a primeira experiência sinfônica e encorajado pelos próprios autores, Glass repete a dose de se inspirar noutro álbum célebre de Bowie/Eno: “Heroes”, de 1978, que forma, junto com "Low" e “Lodger”, de 1979, a famosa trilogia alemã que redefiniu o futuro da música pop com sua ousada combinação de influências da world music, da vanguarda experimental e do rock.

A experiência das sinfonias anteriores - bem como dos trabalhos com grande orquestra, como as óperas - foi, contudo, fundamental para que Glass chegasse à sua quarta empreitada neste tipo de obra mais equipado musical, formal e esteticamente. Glass sabia exatamente como fruir os sons e arranjos das canções originais para criar uma peça ainda mais singular. Ele utiliza flautins, clarinetes baixos, metais (trompete, trombone, trombone baixo, trompa e tuba), percussões (tambor lateral, tambor tenor, bumbo, pandeiro, pratos, triângulo, vibrafone, tam-tam, castanholas e carrilhão), harpa, celeste e cordas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo).

O melhor exemplo é o tema-título, o "1º Movimento". Quem escuta os acordes orquestrados de Glass dificilmente identifica a música de Bowie, aquele glitter rock potente e dramático. Aliás, talvez a única característica mais visível que ele tenha mantido nos quase 10 minutos que se transcorrem (em detrimento dos aproximadamente 3min30' da versão comercial de Bowie ou, no melhor dos casos, dos pouco mais de 6min da versão estendida) seja a dramaticidade, tendo em vista que a transforma num adagio instrumental cheio de idas e vindas, volumes e variações de intensidade, Mas, principalmente: o veterano minimalista deu uma personalidade única à música, recriando-a. O entendimento de Glass sobre o que ele ouve em “Heroes” é tão singular quanto genial, coisa de quem tem ouvido absoluto ou uma outra percepção sobre as coisas: uma audição além daquilo que os reles mortais alcançam. 

A “Heroes” de Glass, por sinal, é mais colorida do que a séria expressividade dada pelo autor da canção. E não se ceda à tentação de cogitar que a “Heroes” sinfônica é meramente uma orquestração do tema que a originou, como se fosse possível encaixar uma sobre a outra. É, sim, uma outra “Heroes” - ou melhor, a mesma, só que sentida de outra forma. E embora as dessemelhança, por incrível que pareça, há ainda um fio de identificação, como que a "alma" da criação tivesse se mantido. A se pensar em outros trabalhos da música erudita dos anos 90, década pouco densa em obras significativas nesse campo em relação a suas antecessoras, “Heroes, Moviment I” é comparável a outras três marcantes obras: “Kristallnacht”, de John Zorn, "Food Gathering in Post-Industrial America, 1992", de Frank Zappa, e “Blu”, de Ryuichi Sakamoto.

Na sequência, “Abdulmajid”, de um arranjo primoroso, pega emprestada com suavidade a atmosfera árabe deste b-side de “Heroes”, uma world music bastante eletrônica em sua concepção primal, próximo ao som de Jon Hassell e Terry Riley. Ela ganha, agora, um conjunto de cordas em variações de 5 e 7 tempos, castanholas e uma percussão cintilante de sinos, esta última, executora do “riff”. Assim como o movimento inicial, este andante é prova da tarefa nada óbvia a que Glass se propôs, uma vez que seria, por exemplo, muito mais fácil arranjar para orquestra o tema de feições orientais (e já instrumental) “Moss Garden”, uma das faixas de “Heroes” de Bowie que não aproveitou. Já “Sense of Doubt”, originalmente instrumental, é provavelmente a que menos trabalho lhe deu em adaptar, visto que sua estrutura melódica forjada nos sintetizadores já intui o som da orquestra.

Para “Sons of the Silent Age”, mais uma das originalmente cantadas assim como “Heroes”, Glass suprime as vozes e dá a roupagem mais clássica de todas do repertório. Elegante, explora bastante os sopros doces em contraste com os registros graves de tuba e trombone baixo. Pode-se dizer um balê glassiano, que traz as repetições circulares de cordas e sopros, as quais dão a sensação hipnótica peculiar de sua música, mas ao mesmo tempo bastante renascentista, fazendo remeter a outros mestres formadores de sua musicalidade como Bach e Mozart.

Outra que Glass consegue unir a originalidade de seu olhar sobre a obra alheia e o frescor daquilo em que se baseia é “Neuköln”, a música que os ingleses Bowie e Eno compuseram em homenagem a um dos bairros de Berlim no período em que se refugiaram na capital alemã para produzir “Low/Heroes/Lodger”. Nesta, o compositor norte-americano se esbalda sobre a ideia-base, a de uma peça eletroacústica que conjuga sintetizadores, guitarras e frases arábicas de um áspero sax alto tirada do atonalismo de Cage e La Monte Young, admirados por Eno. Sabedor de todos estes caminhos como poucos, tanto dos antecessores quanto dos contemporâneos, Glass reúne as pulsões sonoras distintas e promove uma reunião de tempos e intenções, redimensionando a própria música. Ele não deixa de aproveitar nenhuma nota, nenhum som para atribuir a “Movement V - Neuköln” um caráter particularmente épico. 

Encerrando, outra na qual Glass mostra o quanto suas antenas são capazes de sintetizar mundos. Homenagem de Bowie e Eno aos pais do pop eletrônico, a banda alemã Kraftwerk, ‘V2 Schneider” (referência ao sobrenome de um dos fundadores e principais compositores dos “homens-máquina”, Florian Schneider) ganha uma retextura de Glass à sonoridade high-tech em um corpo sonoro tradicional e secular. Conforme diz o crítico musical especializado em música clássica Richard Whitehouse, “V2 Schneider” abre com movimentos rítmicos animados em metais e percussão, cordas e sopros trocando temas à medida que a música ganha em incisividade. “O movimento rítmico solidifica-se num ostinato pulsante, ao longo do qual a atividade ganha intensidade textural e dinâmica, construindo um pico de que é encimado pelo vigoroso acorde de encerramento, arredondando assim toda a obra com um efeito decisivo”, completa. Ao traduzir Bowie/Eno, Glass retraduzia o kratrock alemão presenciado in loco pela dupla britânica e, por tabela, todos os que inventaram a música eletrônica, como o “germaníssimo” Karlheinz Stockhausen e a turma da Música Nova de Darmstadt dos anos 50.

Em 1971, dois jovens músicos de aparência kitsch interessados em arte para além do rock assistiam empolgados à estreia em Londres de “Music in Changing Parts”, obra da primeira fase de Glass. Esses jovens eram David Jones e Brian de La Salle Eno, já artistas consagrados, mas nem por isso incapazes de admirar um de seus heróis na música. Tamanha reverência parece ter, de alguma forma, influído para que esse “herói” concretizasse, mesmo que apenas mais de três décadas depois, a autoexigência de compor sinfonias tendo como objeto exatamente aqueles dois rapazes fãs de tanto tempo. Sucessor de “Low” na fase alemã de Bowie, “Heroes” fazia-se, agora sinfônico, igualmente sucessor, mas na carreira de Glass - que ainda concluiria a veneração à trilogia berlinense com “Symphony Nº 12  - Lodger”, de 2022. Criadores e criaturas se intercambiam e se referenciam mutuamente. Como dizem os versos da música que dá nome a ambas as obras, a de Bowie/Eno e a de Glass, “Nós podemos ser heróis”. Todos são.

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Como ocorre com obras do catálogo ligado à música clássica, “Heroes Symphony” ganhou mais de uma edição. Em pelo menos duas delas, a peça vem acompanhada no CD de outras duas também orquestrais: o "Concerto para Violino", de 1987 (edição Deutsche Grammophon/Decca, de 2014), e outra em conjunto com “Low Symphony” (Universal, 2003). 

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FAIXAS:
1. “Movement I - Heroes” (David Bowie/Brian Eno) - 9:28
2. “Movement II - Abdulmajid” (Bowie/Eno) - 9:24
3. “Movement III - Sense of Doubt” (Bowie) - 7:29
4. “Movement IV - Sons of the Silent Age” (Bowie) - 8:37
5. “Movement V - Neukoln” (Bowie/Eno) - 7:58
6. “Movement VI - V2 Schneider” (Bowie) - 7:17

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 9 de março de 2017

Brian Eno - “Before and After Science” (1977)




“Eu não sou músico.
 Meu instrumento é o estúdio.” 
Brian Eno


“A biologia sonora de Eno
disseca e remonta células do rock
 contemporâneo, e nesse aspecto
a sua mão é de um virtuoso.”
Piero Scaruffi, crítico e historiador musical




Parece estranho, mas à medida que vai se conhecendo mais a música de artistas do mundo pop, mais se conhece não as obras deles, mas sim a de Brian Eno. Profundamente influente sobre uma importante parcela de nomes referenciais do pop-rock nas últimas quase cinco décadas, Eno tem traços visíveis do seu trabalho refletidos nos de ícones como David Bowie, U2, Robert Wyatt, David Byrne, Massive Attack, Björk, Beck, entre outros. Seja na Roxy Music, nos discos solo precursores do pop anos 80 (“Taking Tiger Mountain” e “Here Comes the Warm Jets”) ou nos de ambient music, sua linguagem, que une num só tempo música a artes visuais e cênicas, formando um espectro sonoro-sensorial único, está presente em quase tudo que se ouviu em termos de música pop dos anos 70 em diante por influência direta ou indireta. Eno, mais que um músico, um “cientista”, como se autoclassifica, ditou o que é moderno ou não até hoje. Pois a grande síntese de todas essas pontas – da vanguarda ao folk, passando pelo blues, rock, progressivo, jazz e eletrônica – está em “Before and After Science”, disco que completa 40 anos em 2017.

O álbum, produzido pelo próprio autor em conjunto com Rhett Davies, antecipa e/ou reafirma uma série de conceitos utilizados por ele em produções a outros artistas e trabalhos solo. A concepção dos dois “movimentos” da obra é uma delas. A exemplo do que fizera em “Low” e “Heroes”, de Bowie (naquele mesmo 1977) e, três anos depois, em “Remain in Light”, do Talking Heads, “Before...” tem uma narrativa muito clara: um “lado A” agitado, num tom acima, e um “B” onde desacelera o ritmo e vai gradativamente baixando a tonalidade. Como uma sinfonia iniciada em alegro, o disco começa com o embalo afro-pop da estupenda “No One Receiving”. Eno comanda tudo tocando piano e cantando, além de fazer os efeitos de guitarra e manipular os sintetizadores e a programação de ritmo – as batidas que reverberam de tempos em tempos. Junto com ele está nada mais nada menos que Phil Collins na bateria, marcando o ritmo com maestria, e Paul Rudolph, que se esmera no baixo e na rhythm guitar, ao estilo Nile Rodgers. Para fechar o time, Davies no agogô e o exótico stick. Com seu tradicional canto tribal no refrão, que inspirou diretamente muita gente, é muito parecida em conceito e sonoridade com o que Eno dirigiria pouco tempo depois junto aos Heads (“I Zimbra” e “Born Under Punches”, ambas também faixas de abertura em discos produzidos por ele para a banda). Um começo arrasador.

Como é de sua especialidade, a segunda, “Backwater”, é um rock estilo anos 50 tomado de texturas eletrônicas, o que lhe confere certo precursionismo da new wave. E mais interessante: feita só com sintetizadores da época, todos ainda muito por evoluir, a sonoridade de “Backwater” jamais datou mesmo com a evidente defasagem tecnológica em relação à hoje, em que se pode fazer isso com menor risco de soar artificial. Afora isso, Eno está cantando muito bem, com voz inteira e potente. O próprio repetiria essa fórmula de canção em seu disco duo com John Cale (“Wrong Way Up”, 1989) na faixa “Crime in the Desert” e daria o “caminho das pedras” para o U2 em "The Wanderer”, cantada por Johnny Cash em “Zooropa” (1993).

A veia africana aparece noutro formato agora, mais brasileiro e “sambístico”. Trata-se de "Kurt's Rejoinder", um proto-samba eletrônico que traz novamente a profusão de estilos como essência. O amigo Wyatt aparece para fazer soar o timbal, que se soma, na percussão, com a bateria de Dave Mattacks. Pois este é um dos detalhes de “Kurt’s...”: parece um samba muito percussivo, mas a maior parte de sua timbrística está nos teclados de Eno e no baixo com delay de Percy Jones. Outro fator interessante da faixa são suas incursões de gravações e interferências, as mesmas que Eno exploraria com os Heads em “Remain...” numa das canções precursoras do sample na música pop, “Once in a Lifetime” – expediente, aliás que Eno e David Byrne usariam bastante no álbum dos dois, “My Life in the Bush of Ghosts de 1981, servindo de exemplo para outros vários artistas, como Malcom McLaren em seu aclamado “Duck Rock”.

Quebrando o ritmo quase de carnaval, a linda e introspectiva instrumental "Energy Fools the Magician" traz uma atmosfera de jazz fusion, lembrando bastante Miles Davis de “In a Silent Way” e “Bitches Brew”. Phil Collins está mais uma vez muito bem na bateria, marcando o tempo no prato mas sem deixar de executar viradas inteligentes. "Energy…” funciona como uma breve passagem para outra seção agitada, a que fecha o “1º movimento” do disco. Mas desta vez o ritmo não é de batucada e nem de new wave, mas sim o pop-rock exemplar de "King's Lead Hat". Primorosa em produção e mixagem, é daqueles exemplos de rock escrito na guitarra, ao melhor estilo hard rock. Eno e o craque Phil Manzanera dividem a rhythm guitar, mas é outro mestre do instrumento, Robert Fripp, quem comanda o solo. Com efeitos de teclados e de mesa, “King’s...”, em sua união de eletrônico e pós-punk, afina-se com o que ele e Bowie faziam naquele mesmo fatídico ano em temas referenciais como “Heroes”, “Beauty and the Beast”, “Funtime” e “Be my Wife”, influenciado grupos como Joy Division, The Cure e Bauhaus (estes últimos, que gravariam em 1982 “Third Uncle”, de Eno). Além disso, antecipa outro estilo musical que ganharia o mainstream anos mais tarde com as bandas New Order, Depeche Mode, Eurythmics, Ultarvox e outros: o synthpop.

Se a vigorosa “King’s...” termina a primeira parte de “Before...” lá no alto, o segundo ato já inicia mais leve com a melodiosa "Here He Comes". Com a bela voz de Eno cantando em overdub desde que os acordes da guitarra de Manzanera anunciam a largada, embora a melodia guarde certo embalo, já dá mostras que a rotação foi alterada para menos. O moog e o sintetizador de Eno conferem-lhe o clima espacial que se adensará na sequência em "Julie With...", esta, sim, totalmente ambient. Enquanto canta os belos versos com suavidade (“Estou em mar aberto/ Apenas vagando à medida que as horas andam lentamente/ Julie com sua blusa aberta/ Está olhando para o céu vazio...”), os teclados e sintetizadores desenham uma melodia cristalina como o céu limpo a que se refere na letra. Afora do baixo de Rudolph, Eno toca todos os outros instrumentos, inclusive a guitarra do curto mas belo solo, fazendo lembrar Fripp.

Mais uma especial (e espacial) do disco é "By This River", parceria dele com os krautrocks Moebius e Rodelius, mais conhecidos como a banda Cluster. O trio, que naquele ano havia gravado um trabalho em conjunto, o clássico “Cluster & Eno”, deixou guardada essa outra joia. De riff espiral marcado no piano, é sem dúvida a mais clássica do repertório, remetendo às bagatelas românticas, mas também à síntese formal do minimalismo. Nova instrumental, a ambient "Through Hollow Lands" é uma homenagem ao amigo e parceiro Harold Budd, com quem Eno fez diversos trabalhos desde aquela época. Não à toa, a música traz o clima introspectivo e contemplativo de Budd que tanto confere com este lado da musicalidade de Eno, neoclássico e new age.

Se como numa obra clássica “Before...” inicia com o allegro de “No One...”, prossegue variando allegretto e presto e em "Julie With..."/"By This River"/"Through...”  encontra características de lento e de adagietto, "Spider and I", de ares litúrgicos e caráter emotivo, é o finale desta grande peça num andamento adagio. E se “No One...” começa arrasando, “ “Spider...” é um desfecho digno.

O crítico musical da Rolling Stone Joe Fernbacher diz que “Before...” é o álbum perfeito da carreira de Eno. Faz sentido, pois, ativamente participante do que estava sendo produzindo de inovador naquele momento, como “The Idiot”, de Iggy Pop, “Vernal Equinox”, de Jon Hassell, e os já citados “Low” e “Heroes”, de Bowie – todas obras de 1977 e responsáveis por alguma sonoridade que ditaria as mentes musicais nas décadas seguintes –, Eno resumiu a sua contribuição para uma nova cara da música pop em “Before...”. "Apesar do formato pop do álbum”, disse outro crítico, David Ross Smith, “o som deste álbum é único e distante do mainstream". Compreendendo todas as suas vertentes musicais e artísticas, Eno compõe um trabalho que alia o agradável e o denso, o popular e o complexo, a vanguarda e o pop. Ao ouvir o disco, pode-se dizer sem erro que a música pop divide-se, literalmente, em “antes e depois da ciência”, a ciência inventada por este alquimista dos sons chamado Brian Eno.

Brian Eno - "No One Receiving"



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FAIXAS:
1. "No One Receiving" - 3:52
2. "Backwater" - 3:43
3. "Kurt's Rejoinder" - 2:55
4. "Energy Fools the Magician" - 2:04
5. "King's Lead Hat" - 3:56
6. "Here He Comes" - 5:38
2. "Julie With ..." - 6:19
3. "By This River" (Eno, Hans-Joachim Roedelius, Dieter Moebius) - 3:03
4. "Through Hollow Lands" - 3:56
5. "Spider and I" - 4:10
Todas composições de autoria de Brian Eno, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Black Grape - "It's Great When You're Straight... Yeah" (1995)


"Shaun Ryder nos Happy Mondays não era eu.
Ele era uma caricatura"
Shaun Ryder,
da autobiografia “Twisting my Melon”



“Os Happy Mondays nunca mais haviam gravado nada de muito interessante. Não como Happy Mondays”.

Assim terminei a resenha do disco "Pills 'n' Thrills and Bellyaches", aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Pois é. Pois não é que pouco tempo depois de anunciarem o fim da banda, apareciam com um novo projeto, encabeçado pela dupla de frente do Happy Mondays, Shaun Ryder e o dançarino Bez? Era o Black Grape.

Contando com músicos de diversas outras bandas, um DJ, metais, percussionistas, o som dos ex- Mondays aparecia agora ainda mais dançante, mais black, incrementado com elementos rap, hip-hop, funk e reggae, e “It's Great When You're Straight... Yeah” de 1995, seu álbum de estreia soa como uma grande festa cheio de vibes, fanfarras e curtição.

“Reverend Black Grape”, que abre o disco já dá o tom, numa faixa embalada, cheia de funk, tempero e salvas, com uma harmônica marcante e gostosa que pontua a canção ao longo de sua duração. Uma nova religião estava sendo inaugurada e o seu líder era um reverendo devasso! A ótima “In the Name of the Father”, com ares meio indianos, teve inclusive um trecho adaptado para o tema do filme “Madagascar'; a irônica “Kelly's Heroes”, mais rockada, tem uma guitarra sobreposta aos outros instrumentos, que conduz a música de maneira vibrante; a chapada “Tramazi Party”, aludindo aos 'comprimidinhos' das festas, cheia de metais, é louca, frenética e muito legal; “Shake Well Before Opening” lembra muito “Bob's Yer Uncle” dos próprios descendentes; “A Big Day in north” vai numa levada mais lenta e sensual; “Shake Your Money” tem um embalo todo reggae, num clima mais ameno; e “Little Bob”, encerra a festa em grande estilo, mantendo o clima lá em cima,  num encerramento digno de um grande álbum.

Era como se fosse o Happy Mondays com outro nome tendo acompanhado a evolução sonora daquele tempo, as tendências, os recursos, o momento. Se era o que tinha que acontecer para que voltassem a fazer um grande disco, que fosse. O resultado deu certo.

Ao que parece, soube por alto, os Happy Mondays estão de volta à ativa, mas sem o mesmo brilho de outrora, ou mesmo sem o brilho do próprio Black Grape. Uma sugestãozinha apenas: já pensaram em mudar de nome de novo?

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FAIXAS:
  1. " Reverend Black Grape " – 5:12 
  2. "In the Name of the Father" – 4:21 
  3. "Tramazi Parti" – 4:45 
  4. "Kelly's Heroes" – 4:22 
  5. "Yeah Yeah Brother" – 4:10 
  6. "A Big Day in the North" – 4:10 
  7. "Shake Well Before Opening" – 5:40 
  8. "Submarine" – 3:50 
  9. "Shake Your Money" – 4:13 
  10. "Little Bob" – 5:33

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Ouça:

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

The Stranglers "Greatest Hits - 1977-1990"



Meu pai me aparece em casa um dia com uma fita cassete de uma banda de rock e me dá. Como se só por ser banda de rock eu fosse gostar assim, sem mais. Ele costumava comprar umas tralhas de um bêbado, maltrapilho quase mendigo que arranjava relógios, bijuterias baratas, ervas para chás e desta vez uma fita cassete. Me deu a fita. Li “The Stranglers”. Nunca ouvira falar. Fui ouvir... Até que era bom. E foi melhorando. Cara, é muito bom!
Vim ouvindo hoje no caminho para o trabalho o mesmo Stranglers que ganhei e ouvi naquela época cheio de desconfiança, The Greatest Hits- 1977-1990”. Depois vim a descobrir que os caras foram parte importante do movimento punk e foram grande influência de uma série de bandas dos anos 80, em especial de uma da qual gosto muitíssimo, o Cure.
Greatest Hists” mostra esta linha de evolução sonora. O início com a ótimaPeaches” é bem reflexo do punk com uma bateria seca, um baixo cru e um vocal rasgado e agressivo. “No More Heroes” mantém a linha mas com um trabalho de teclado mais bem acabado. O ponto alto da coletânea vem com a versão para a música multi-regravada de Burt Bacharach, “Walk on By”, um épico de uns sete minutos com um baixo agressivo e incendiário permeado pelo teclado característico da banda, que a faz lembrar muito The Doors. A influência do pessoal do Jim Morrison mostra-se evidente pela característica do timbre do teclado e de como ele é colocado nas músicas. Confirma essa fonte de inspiração principalmente a regravação do hit dos KinksAll Day and All of the Nght” que, a propósito, é parecidíssima com “Hello, I Love You” dos Doors tendo gerado inclusive uma suspeita de plágio na época de seu lançamento. Gravar “All Day...”, no fim das contas era como tocar Doors sem estar tocando “Doors”. “96 Tears’ e “No Mercy” que fecham a coletânea já demonstram uma inserção nos anos 80 com uma ar bem mais pop e acessível.
A obra-prima dos caras na verdade é o álbum “Black and White” de 1978, que tem a doida “Nice’n’ Sleazy” e a punkíssimaEnough Time”. Li também que o primeiro disco “Ratus Norvegicus” é excelente mas não ouvi ainda. O que tenho em casa e que devo ao fato de meu pai comprar “porcarias” por aí é este ótimoGreatest Hists- 1977-1990”.
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FAIXAS:
  1. "Peaches"
  2. "Something Better Change"
  3. "No More Heroes"
  4. "Walk On By"
  5. "Duchess"
  6. "Golden Brown"
  7. "Strange Little Girl"
  8. "European Female"
  9. "Skin Deep"
  10. "Nice in Nice"
  11. "Always the Sun"
  12. "Big in America"
  13. "All Day and All of the Night"
  14. "96 Tears"
  15. "No Mercy"

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terça-feira, 24 de novembro de 2009

200 Melhores Músicas de Todos os Tempos

Saiu uma dessas listas da Rolling Stone com as 200 melhores músicas de todos os tempos.
Concordo com muitas, é lógico, discordo de alguma ordem que outra mas fundamentalmente me parece uma lista excessivamente conservadora. Só foi no certo. Não arrisca quase nada acima dos anos 80. Pode ser que o crítico, os críticos, os votantes, sei lá quem, realmente achem que não existe nada que valha a pena nos últimos tempos, mas assim parece uma lista de melhores até 1975, com raras exceções.
Exceção louvável é ver o Nirvana com justiça já figurar nas 10 primeiras posições.
Vale pela curiosidade:

1. Bob Dylan "Like a Rolling Stone" 1965
2. Rolling Stones "(I Can't Get No) Satisfaction" 1965
3. John Lennon "Imagine" 1971
4. Marvin Gaye "What's Going On" 1971
5. Aretha Franklin "Respect" 1967
6. Beach Boys "Good Vibrations" 1966
7. Chuck Berry "Johnny B. Goode" 1958
8. Beatles "Hey Jude" 1968
9. Nirvana "Smells Like Teen Spirit" 1991
10. Ray Charles "What'd I Say" 1959
11. The Who "My Generation" 1966
12. Sam Cooke "A Change Is Gonna Come" 1965
13. Beatles "Yesterday" 1965
14. Bob Dylan "Blowin' in the Wind" 1963
15. The Clash "London Calling" 1980
16. Beatles "I Want to Hold Your Hand" 1964
17. Jimi Hendrix "Purple Haze" 1967
18. Chuck Berry "Maybellene" 1955
19. Elvis Presley "Hound Dog" 1956
20. Beatles "Let it Be" 1970
21. Bruce Springsteen "Born To Run" 1975
22. The Ronettes "Be My Baby" 1963
23. Beatles "In My Life" 1966
24. Impressions "People Get Ready" 1965
25. Beach Boys "God Only Knows" 1966
26. Beatles "A Day in the Life" 1967
27. Derek and the Dominos "Layla" 1971
28. Otis Redding "Sitting on the Dock of the Bay" 1968
29. Beatles "Help!" 1965
30. Johnny Cash "I Walk the Line" 1956
31. Led Zeppelin "Stairway To Heaven" 1971
32. Rolling Stones "Sympathy For The Devil" 1968
33. Ike and Tina Turner "River Deep, Mountain High" 1966
34. Righteous Brothers "You've Lost That Lovin' Feelin'" 1964
35. The Doors "Light My Fire" 1967
36. U2 "One" 1991
37. Bob Marley and the Wailers "No Woman No Cry" 1974
38. Rolling Stones "Gimme Shelter" 1969
39. Buddy Holly and the Crickets "That'll Be the Day" 1957
40. Martha and The Vandellas "Dancing In The Street" 1964
41. The Band "The Weight" 1968
42. The Kinks "Waterloo Sunset" 1967
43. Little Richard "Tutti Frutti" 1956
44. Ray Charles "Georgia On My Mind" 1960
45. Elvis Presley "Heartbreak Hotel" 1956
46. David Bowie "Heroes" 1977
47. Simon and Garfunkel "Bridge Over Troubled Water" 1969
48. Jimi Hendrix "All Along The Watchtower" 1968
49. The Eagles "Hotel California" 1977
50. Smokey Robinson and the Miracles "The Tracks Of My Tears" 1965
51. Grandmaster Flash and The Furious Five "The Message" 1982
52. Prince "When Doves Cry" 1984
53. Sex Pistols "Anarchy In The UK" 1977
54. Percy Sledge "When A Man Loves A Woman" 1966
55. The Kingsmen "Louie Louie" 1963
56. Little Richard "Long Tall Sally" 1956
57. Procol Harum "Whiter Shade Of Pale" 1967
58. Michael Jackson "Billie Jean" 1983
59. Bob Dylan "The Times They Are A-Changin'" 1963
60. Al Green "Let's Stay Together" 1971
61. Jerry Lee Lewis "Whole Lotta Shakin' Goin' On" 1957
62. Bo Diddley "Bo Diddley" 1957
63. Buffalo Springfield "For What It's Worth" 1968
64. Beatles "The She Loves You" 1964
65. Cream "Sunshine of Your Love" 1968
66. Bob Marley and the Wailers "Redemption Song" 1968
67. Elvis Presley "Jailhouse Rock" 1957
68. Bob Dylan "Tangled Up In Blue" 1975
69. Roy Orbison "Cryin'" 1961
70. Dionne Warwick "Walk On By" 1964
71. Beach Boys "California Girls" 1965
72. James Brown "Papa's Got A Brand New Bag" 1965
73. Eddie Cochran "Summertime Blues" 1958
74. Stevie Wonder "Superstition" 1972
75. Led Zeppelin "Whole Lotta Love" 1969
76. Beatles "Strawberry Fields Forever" 1967
77. Elvis Presley "Mystery Train" 1956
78. James Brown "I Got You (I Feel Good)" 1965
79. The Byrds "Mr. Tambourine Man" 1968
80. Marvin Gaye "I Heard It Through The Grapevine" 1965
81. Fats Domino "Blueberry Hill" 1956
82. The Kinks "You Really Got Me" 1964
83 Beatles "Norwegian Wood" 1965
84. Police "Every Breath You Take" 1983
85. Patsy Cline "Crazy" 1961
86. Bruce Springsteen "Thunder Road" 1975
87. Johnny Cash "Ring of Fire" 1963
88. The Temptations "My Girl" 1965
89. Mamas And The Papas "California Dreamin'" 1966
90. Five Satins "In The Still Of The Nite" 1956
91. Elvis Presley "Suspicious Minds" 1969
92. Ramones "Blitzkrieg Bop" 1976
93. U2 "I Still Haven't Found What I'm Looking For" 1987
94. Little Richard "Good Golly, Miss Molly" 1958
95. Carl Perkins "Blue Suede Shoes" 1956
96 Jerry Lee Lewis "Great Balls of Fire" 1957
97. Chuck Berry "Roll Over Beethoven" 1956
98. Al Green "Love and Happiness" 1972
99. Creedence Clearwater Revival "Fortunate Son" 1969
100. Rolling Stones "You Can't Always Get What You Want" 1969
101. Jimi Hendrix "Voodoo Child (Slight Return)" 1968
102. Gene Vincent "Be-Bop-A-Lula" 1956
103. Donna Summer "Hot Stuff" 1979
104. Stevie Wonder "Living for the City" 1973
105. Simon and Garfunkel "The Boxer" 1969
106. Bob Dylan "Mr. Tambourine Man" 1965
107. Buddy Holly and the Crickets "Not Fade Away" 1957
108. Prince "Little Red Corvette" 1983
109. Van Morrison "Brown Eyed Girl" 1967
110. Otis Redding "I've Been Loving You Too Long" 1965
111. Hank Williams "I'm So Lonesome I Could Cry" 1949
112. Elvis Presley "That's Alright (Mama)" 1954
113. The Drifters "Up On The Roof" 1962
114. Crystals "Da Doo Ron Ron (When He Walked Me Home)" 1963
115. Sam Cooke "You Send Me" 1957
116. Rolling Stones "Honky Tonk Women" 1969
117. Al Green "Take Me to the River" 1974
118. Isley Brothers "Shout - Pts 1 and 2" 1959
119. Fleetwood Mac "Go Your Own Way" 1977
120. Jackson 5, "I Want You Back" 1969
121. Ben E. King "Stand By Me" 1961
122. Animals "House of the Rising Sun" 1964
123. James Brown "It's A Man's, Man's, Man's, Man's World" 1966
124. Rolling Stones "Jumpin' Jack Flash" 1968
125. Shirelles "Will You Love Me Tomorrow" 1960
126. Big Joe Turner "Shake, Rattle And Roll" 1954
127. David Bowie "Changes" 1972
128. Chuck Berry "Rock & Roll Music" 1957
129. Steppenwolf "Born to Be Wild" 1968
130. Rod Stewart "Maggie May" 1971
131. U2 "With or Without You" 1987
132. Bo Diddley "Who Do You Love" 1957
133. The Who "Won't Get Fooled Again" 1971
134. Wilson Pickett "In The Midnight Hour" 1965
135. Beatles "While My Guitar Gently Weeps" 1968
136. Elton John "Your Song" 1970
137. Beatles "Eleanor Rigby" 1966
138. Sly and the Family Stone "Family Affair" 1971
139. Beatles "I Saw Her Standing There" 1964
140. Led Zeppelin "Kashmir" 1975
141. Everly Brothers "All I Have to Do is Dream" 1958
142. James Brown "Please Please Please" 1956
143. Prince "Purple Rain" 1984
144. Ramones "I Wanna Be Sedated" 1978
145. Sly and the Family Stone "Every Day People" 1968
146. B-52's "Rock Lobster" 1979
147. Iggy Pop "Lust for Life" 1977
148. Janis Joplin "Me and Bobby McGee" 1971
149. Everly Brothers "Cathy's Clown" 1960
150. Byrds "Eight Miles High" 1966
151. Penguins "Earth Angel (Will You Be Mine)" 1954
152. Jimi Hendrix "Foxy Lady" 1967
153. Beatles "A Hard Day's Night" 1965
154. Buddy Holly and the Crickets "Rave On" 1958
155. Creedence Clearwater Revival "Proud Mary" 1964
156. Simon and Garfunkel "The Sounds Of Silence" 1968
157. Flamingos "I Only Have Eyes For You" 1959
158. Bill Haley and His Comets "(We're Gonna) Rock Around The Clock" 1954
159. Velvet Underground "I'm Waiting For My Man" 1967
160. Public Enemy "Bring the Noise" 1988
161. Ray Charles "I Can't Stop Loving You" 1962
162. Sinead O'Connor "Nothing Compares 2 U" 1990
163. Queen "Bohemian Rhapsody" 1975
164. Johnny Cash "Folsom Prison Blues" 1956
165. Tracy Chapman "Fast Car" 1988
166. Eminem "Lose Yourself" 2002
167. Marvin Gaye "Let's Get it On" 1973
168. Temptations "Papa Was A Rollin' Stone" 1972
169. R.E.M. "Losing My Religion" 1991
170. Joni Mitchell "Both Sides Now" 1969
171. Abba "Dancing Queen" 1977
172. Aerosmith "Dream On" 1975
173. Sex Pistols "God Save the Queen" 1977
174. Rolling Stones "Paint it Black" 1966
175. Bobby Fuller Four "I Fought The Law" 1966
176. Beach Boys "Don't Worry Baby" 1964
177. Tom Petty "Free Fallin'" 1989
178. Big Star "September Gurls" 1974
179. Joy Division "Love Will Tear Us Apart" 1980
180. Outkast "Hey Ya!" 2003
181. Booker T and the MG's "Green Onions" 1969
182. The Drifters "Save the Last Dance for Me" 1960
183. BB King "The Thrill Is Gone" 1969
184. Beatles "Please Please Me" 1964
185. Bob Dylan "Desolation Row" 1965
186. Aretha Franklin "I Never Loved A Man (the Way I Love You)" 1965
187. AC/DC "Back In Black" 1980
188. Creedence Clearwater Revival "Who'll Stop the Rain" 1970
189. Bee Gees "Stayin' Alive" 1977
190. Bob Dylan "Knocking on Heaven's Door" 1973
191. Lynyrd Skynyrd "Free Bird" 1974
192. Glen Campbell "Wichita Lineman" 1968
193. The Drifters "There Goes My Baby" 1959
194. Buddy Holly and the Crickets "Peggy Sue" 1957
195. Chantels "Maybe" 1958
196. Guns N Roses "Sweet Child O Mine" 1987
197. Elvis Presley "Don't Be Cruel" 1956
198. Jimi Hendrix "Hey Joe" 1967
199. Parliament "Flash Light" 1978
200. Beck "Loser" 1994

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

David Bowie Eternamente

Bowie, imenso caleidoscópio

É difícil mensurar a real dimensão de um artista como David Bowie. E são vários os motivos desta dificuldade: 1. o fato de que ele se encontra em plena atividade criativa, tendo retornado à vida pública com o ótimo álbum "The Next Day", em 2013, após um silêncio voluntário de dez anos; 2. o fato de que se encontra inserido no coração mesmo da cultura do espetáculo e do entretenimento de massas, dispensando certas reservas e certa imunidade crítica das quais poderia lançar mão caso fosse associado às“belas artes”e ao campo mais tradicional das artes instituídas – Bowie, ao contrário, é um legítimo artista pop e, como tal, é um típico produto de consumo –; 3. o fato de que se constituiu artisticamente em função de sua permanente mutabilidade e reinvenção – Bowie, o andrógino; Bowie, o camaleão; Bowie, esperada surpresa, incógnita e esfinge –; 4. o fato de que atravessou, ao longo dos anos, ao longo de cinco décadas de intensa vida artística, praticamente todos os formatos, as modalidades e os nichos midiáticos de nossa contemporaneidade – além da música, o cinema, o teatro, a moda, a dança, a performance e as artes do vídeo. Nem mesmo as artes plásticas lhe escaparam.
Mas, acima de tudo, é muito difícil dimensionar-lhe o real valor, sua real importância, simplesmente porque o amamos. Amamos Bowie e envelhecemos com ele. Não há, portanto, a menor capacidade de avaliá-lo sem que estejamos contaminados por esta paixão, impregnados pela memória afetiva que tecemos juntos. Assim, é muito difícil distanciar-se. Diante dele, é difícil ser comedido e justo.
Em síntese, foi esta a sensação que tive, recentemente, ao visitar a Mostra David Bowie, realizada no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Opulência e variedade, encanto e maravilhamento são palavras óbvias demais para descrevê-la. Aliás, são termos recorrentes na própria fortuna crítica do cantor inglês, no curso quase completo de sua biografia. Bowie, de fato, parece fadado a nos inebriar e seduzir. Inventividade, delicadeza e elegância não lhe faltam, de modo nenhum. A Mostra dá sólidas evidências disto.
Particularmente, interessei-me por aspectos relativos a seu processo criativo, pelos recursos técnicos empregados em certos álbuns e/ou canções, tais como o Verbasizer, um aplicativo concebido para o embaralhamento randômico de manchetes de jornal, derivando daí a produção dos versos a serem cantados, e o Stylophone, uma espécie de proto-sintetizador empregado em "Space Oditty", por exemplo. Além disso, há um fascínio estranho em observar de perto os rascunhos das canções, as partituras originais, as letras escritas e reescritas à mão, os rabiscos nas margens comuns de uma folha de papel. E o que dizer dos figurinos exatos, vestidos em tantas performances memoráveis? E quanto às botas de salto, os sapatos efetivamente calçados? É como se o corpo do artista estivesse ali presente, imobilizado e oferecido à vista, à visitação. É como se o corpo da obra estivesse sendo examinado por dentro, vasculhado e dissecado.
Enquanto observava, uma questão insistente me vinha à mente: “a quem está endereçada esta exposição”? Ao público leigo ou ao fã incondicional, conhecedor altamente especializado? Estaria dedicada ao admirador médio (como eu)? De início, suspeitei que estivesse dirigida aos dois primeiros. Depois, me convenci de que está direcionada a todos aqueles que se disponham a montar um quebra-cabeças e a encontrarem-se refletidos no imenso caleidoscópio que é a obra de David Bowie.



Vai em Paz, David Bowie
por Paulo Moreira


Quando eu era um adolescente de 12, 13 anos, surgiu nas páginas da revista POP (a única na época) uma figura andrógina, com cabelo, olho pintado e francamente gay. Como todo mundo, fiquei curioso com aquele cara que se colocava como uma figura andrógina naquele mundo pop altamente macho. Aí, começaram a aparecer os discos no Brasil, as músicas no rádio ("Rebel, Rebel", "Ziggy Stardust" e "Life on Mars", que o Cascalho rolava o clipe no Portovisão). Quando lançou o "Young Americans", comprei o LP e quase furei de tanto ouvir. A partir daí, fiquei acompanhando a carreira dele à distância (confesso que com 17 anos, não consegui entender "Low" e "Lodger", apesar de achar o "Heroes" interessante. "Ashes to Ashes" ganhou todo mundo com aquele clipe maluco.
Só voltei a mergulhar no Bowie em 1983 com o incrível "Let's Dance", onde ele pegava o som do Nile Rodgers e subvertia totalmente. Era como se o Chic tivesse enlouquecido e misturado com altas doses de DB e saiu um disco que era pop e experimental ao mesmo tempo. Ouçam "Ricochet" com sua levada "My Favourite Things" do John Coltrane (influência normal para um cara que era saxofonista). Ou "China Girl" que tem toda a cara de Bowie com o Tony Thompson destruindo a bateria e o Carmine Rojas dando um banho no baixo. Ou talvez "Cat People". Todas elas com o Steve Ray Vaughan comendo a guitarra com farofa. Aliás, descoberta para o mundo do sr.David Jones.
Daí pra frente, foram momentos esporádicos ("Loving the Alien" e a versão de "God Only Knows", que eu adoro), mas ele sempre surpreendendo aqui e ali. Há três anos atrás, comprei o "The Next Day" e confesso que achei mais do mesmo. Mas este "Blackstar" é um clássico. Vai em paz, David Bowie.



Alma de Influência Infinita
por Tatiana Viana
(convidada)

Há poucos dias atrás, no dia do aniversário (8 de janeiro) de David Bowie estava eu a comentar sobre a importância de alguns músicos e de suas obras na história de nossas vidas e com certeza muitas pessoas compreendem o que quero dizer.
Cresci ouvindo, assistindo e colecionando o que podia de David Bowie, sempre contemplei de forma apaixonada sua forma camaleônica de ser. Suas músicas habitaram muitos de meus dias e noites e foram fundamentais para instigar em mim o desejo de conhecer e buscar mais sobre a mutabilidade e a constante evolução do som através deste grande mestre que a cada canção e aparição se reinventava me causando sempre a surpresa de a cada vez gostar mais de suas composições, sem entender como suas músicas nunca me cansavam.
Lembro das vezes que fui assisti-lo no cinema mais de uma vez seguida o mesmo filme, minha primeira fita cassete que foi "Ziggy Stardust", depois vieram as VHS e a cada play parecia ver ou ouvir algo novo que surgia através do seu magnetismo impresso em sua marca pessoal.
Um cara tão complexo e genial que sua transcendência não coube nesse mundo.
Bela alma de influência infinita!




A Morte
por Cly Reis


Poucas vezes lamentei tanto a morte de uma figura pública quanto a que ocorreu no último domingo. David Bowie, um dos artistas mais influentes de todos os tempos, que vinha lutando contra um câncer descoberto não há muito tempo, deixou nosso mundo e foi juntar-se a outras lendas que habitam um lugar especial no céu ou seja lá onde for. Sou um tanto pragmático quanto à morte, entendendo-a como parte inevitável da vida e, normalmente, não me sensibilizo excessivamente com os desencarnes, até mesmo de pessoas próximas ou familiares, passando às vezes até por insensível. Se essa 'insensibilidade' é usual até mesmo em familiares, quem dirá a um estranho, uma pessoa que não  tem nada a ver comigo, que vive a milhares de quilômetros de mim, que nunca me deu nada. Assim, minha comoção com artistas costuma ser ainda menor, ainda mais com os de idade mais avançada, cujo ciclo da vida de certa forma já se completou, e mais ainda com os que é sabido que não colaboraram muito em suas vidas para que sua estada neste planeta não fosse mais longa.
Mas não sou uma pedra de gelo!
Lamento muito por artistas novos, muito jovens, de evidente talento que, depois de amostragens iniciais, um ou dois álbuns gravados, um filme apenas, um livro publicado, etc., indicavam que teriam coisas incríveis a fazer, apresentar, nos surpreender e foram levados precocemente. Imagine o que Kurt Cobain estaria fazendo hoje? Chico Science, Amy Winehouse? Também há aqueles que estabelecem uma relação tão próxima conosco que parecemos sentir como se uma parte nossa tivesse sido arrancada. Lembro quando da morte de Renato Russo que preferi, simplesmente, não pensar no assunto. Se eu '"tivesse consciência" que ele estava morto, minha tristeza naquele momento seria incomensurável. E acho que, no fundo, continuo agindo assim sobre Renato Russo até hoje.
Houve exceções destes já mais velhos e que colaboraram para seu fim: Miles Davis já beirava os 70, tinha quase se matado um zilhão de vezes, mas os projetos que vinha realizando nos anos anteriores à sua morte me faziam imaginar onde poderia chegar ainda aquele cara. Esse era daqueles que não poderia ter ido.
Ontem com David Bowie foi um misto das duas sensações, da emocional, que costumo ter poucas vezes, com a egoísta de não querer prescindir da obra daquela criatura no planeta Terra. O motivo que faz com que sua partida seja tão dificilmente aceita se confunde e funde. Sua obra, seu talento, sua capacidade artística, sua imprevisibilidade que o tornam tão imprescindível para mim no cenário musical e das ideias no mundo de hoje, são os mesmos motivos que me moldaram meu apego a esse gênio. Diferentemente de um Renato Russo, quase um amigo conselheiro, meu carinho por David Bowie edificou-se a partir da admiração o que, por mais que também admire muitos outros artistas, não toma essa forma com facilidade. E na segunda pela manhã, quando topei com a notícia na internet eu percebi isso. Não era só mais um astro pop que havia morrido. Eu realmente estava triste por aquilo.
Mas como triste? Que que ele tinha a ver comigo, tava lá do outro lado do oceano, nunca fez nada por mim... Engano! Esse é o tipo do cara que a gente lamenta ter ido embora exatamente porque tem tudo a ver com você. Pode viver no outro lado do mundo mas está sempre pertinho da gente. E pode ter certeza que, com sua música, já fez mais por mim do que muita gente poderia ter feito.
De qualquer forma, se era hora de ir, então vá, David. Vá em paz. Eu, egoísta queria mais. Queria mais de você. Queria que você virasse o mundo de cabeça pra baixo de novo como já fez tantas vezes e como, acho, só você poderia fazer novamente. Outras atitudes revolucionárias, outros discos fundamentais, outras auto-reinvenções, outros sucessos. Mas vá, eu entendo. Você já deixou o suficiente aqui para que nos deleitemos ainda por muito e muito tempo. É justo. Você estava mesmo precisando descansar. Descanse em paz. Você merece. Já nos deu muito.




autorretrato capa álbum "Outside"


David Robert Jones
(David Bowie)
08/01/1947 - 10/01/2016

segunda-feira, 21 de março de 2022

Suzanne Vega - “99.9 F°” (1992)

 

“'Foi muito emocionante trabalhar com ele, porque a música era sua paixão e ele sabia muito sobre isso.”
Suzanne Vega sobre Mitchell Froom, em entrevista de 2017

"Você me parece/
Como um homem/
A ponto de queimar/
99,9 graus Fahrenheit"
Da letra da faixa-título

Dizem que as paixões são febris. Intensas, podem durar pouco como o fulgurante instante de um gozo, mas nem por isso - na verdade, inclusive por isso – deixam de ficar marcadas para sempre na pele de quem sente. E quando se juntam paixão carnal e espiritual, então! Aí o ser humano atinge o raro momento de completude. Suzanne Vega pode dizer que viveu um momento assim há exatos 30 anos. Cantora e compositora de mão cheia e poetisa afiada, esta nova-iorquina filha de um escritor e de uma professora traz na voz doce e afinada a pronúncia cristalina de um inglês o qual se vale com sensibilidade e inteligência literária, buscando referências tanto nas feministas quanto na geração beat. De ouvido raro, adiciona ainda à sua musicalidade a música brasileira, latina, celta e do Oriente. Foi com essa personalidade única que Suzanne surgiu com seu folk pop para o showbizz no elogiado disco de estreia, em 1985. 

No entanto, já no segundo trabalho, “Solitude Standing”, de dois anos depois, aconteceu-lhe o que todo artista pop almeja: fama. O hit “Luka”, 3º lugar na Billboard Hot 100 e indicado a Grammy em três categorias, estourou e tornou-a mundialmente conhecida. Porém, perigosamente estigmatizada. Suzanne Vega havia virado sinônimo de “Luka”. O que poderia ser bom para muito artista descompromissado com sua obra, para alguém como ela, que sabia ter muito ainda a dizer, definitivamente não era. Parafraseando a letra da própria música, Suzanne precisava sair daquele mesmo segundo andar em que Luka morava e mudar-se para outro lugar longe dali. 

Depois de “Solitude...”, veio ainda o belo “Days of Open Hand”, de 1990, nova parceria com o produtor e arranjador Anton Sanko, com quem havia obtido o seu até hoje maior êxito comercial. Mas Suzanne sentia que precisava de algo mais, algo que a movesse, que a desacomodasse. Que fizesse pulsar seu coração de forma diferente. Uma paixão. Foi então que o destino lhe pôs na frente o músico e produtor Mitchell Froom, que havia trabalhado com Elvis Costello e Los Lobos. Suzanne e Froom identificaram-se, apaixonaram-se e passam a viver sob o mesmo teto, tanto do estúdio quanto de casa. Num intervalo de 6 anos, casaram-se, tiveram uma filha, Ruby, e produziram dois discos, os melhores da carreira de Suzanne: “Nine Objects of Desire”, de 1996, e o primeiro em colaboração: o não coincidentemente intitulado “99.9 F°”: a temperatura do corpo, correspondente a 37,72°C, a partir da qual pode-se considerar que alguém está com febre.

O disco, de fato, respira essa ruptura artística e pessoal de Suzanne, que urgia mostrar isso. O recado é dado já no primeiro verso de “Rock in this Pocket”, a impressionante faixa de abertura em que ela diz elegantemente, como lhe é característico, mas de maneira abertamente confessional: "Desculpe/ Se eu puder/ Volte sua atenção/ A meu caminho/ Um momento/ Eu não vou implorar/ Não é muito/ É o que eu preciso". E que refrão! (“And what's so small to you/ Is so large to me/ If it's the last thing I do/ I'll make you see” - “E o que é tão pequeno para você/ É tão grande para mim/ Se é a última coisa que eu faço/ Eu vou fazer você ver”). A ideia do álbum está já toda ali, em brasa: sonoridade moderna, discurso intimista, texturas, poesia e a evolução conceitual de uma artista parindo a si própria para uma nova vida.

Em “99.9F°”, mantém-se a seresteira da tradição voz e violão e a criadora de "chicletes de ouvido" melodiosos, mas adiciona a isso a visão de uma mulher madura, sensualizada e de veias pulsantes. É esta a ideia da brilhante “Blood Makes Noise”, em que uma programação eletrônica engendra um ritmo que supõe o som de um fluxo sanguíneo, como se fosse possível captar - e transformar em música - a sensação de um corpo afogueado de tesão, de urgência. A sonoridade dá forma a esta nova proposta na injeção pertinente de sons sintetizados, vestindo a música naturalmente criativa dela com uma roupagem moderna. Longe da singeleza melancólica de “Luka”, dá pra ouvir até os respiros de Suzanne enquanto canta este rap estilizado e potente: “Mas o sangue faz barulho/ É um zumbido no meu ouvido/ O sangue faz barulho/ E eu não posso ouvi-lo/ No espessamento do medo”.

O excelente clipe de "Blood Makes Noise"
dirigido pelo alemão Nico Beyer

A faixa-título, por sua vez, leva ainda mais às entranhas a dicotomia carne/espírito. Se “Blood...” emula através de sons mecânicos a ideia de um organismo vivo, “99.9° F” reconduz a artista a origens selvagens, instintivas. Numa espécie de tribal pop, Suzanne dança nua em plena floresta para atrair o seu amor: “Algo legal/ Contra a pele/ É o que você/ Pode estar precisando”. Prenúncio de sexo quente.

Já na lírica “In Liverpool”, outra joia do disco, vê-se a cantora e compositora de temas melodiosos como “Night Vision”, de “Solitude...”, e “Thin Man”, do posterior “Nine...”, certeira em sua delicadeza. Tão lírica que foi a música escolhida por Suzanne para dividir os vocais com o tenor italiano Luciano Pavarotti em “Pavarotti & Friends”, daquele mesmo 1992. Aliás, lirismo este o qual a norte-americana nunca abandonou. Com “Blood Sings”, que vem na sequência, ela reitera a temática "blood on the tracks" do disco – já a essas alturas o mais ousado de sua carreira. Porém, fez resgatando a singer woman dos primórdios. Somente voz e violão de aço tocado com dedos chorosos e uma melodia primorosa, a la Bob Dylan e Leonard Cohen, dois de seus ídolos, igual os que ela inundou seu primeiro disco, em 1985. “Quando o sangue vê sangue/ De si próprio/ Ele canta para se ver novamente/ Ele canta para ouvir a voz que é conhecida/ Ele canta para reconhecer o rosto”. Triste e profundamente bela. 

A ótima banda, que conta com o próprio Froom aos teclados e arranjos, mais Bruce Thomas, ao baixo, Jerry Marotta, bateria e percussão, e David Hidalgo, Tchad Blake e Richard Pleasance, nas guitarras – além de Suzanne no violão base –, dá uma reviravolta no climão deixado pela faixa anterior e engata a simpática “Fat Man And Dancing Girl”. Algo como um eletro-jazz em que se ouve com destaque o baixo, aqui tocado por Jerry Scheff, sob a arquitetura sonora estilosa dada por Froom na mesa de estúdio. Mesma coisa ele faz em “(If You Were) In My Movie”, de ares arábicos como Suzanne já havia feito em “Room of the Street”, de “Days...”, mas agora mais texturizado, encorpado. Por feitos como este, ele recebeu indicação ao Grammy de produtor do ano em 1993 por este disco.

Sequência de fotos da arte do encarte:
Suzanne descobre-se feminina e plena

Já em “As a Child”, Froom põe sua musa a brincar num carrossel de parque de diversões, literalmente, como uma criança, enquanto que “Bad Wisdom”, logo em seguida, quebra de novo o estado de euforia. Introspectiva, tem a cara dos tradicionais temas do folclore norte-americano, especialidade de Suzanne, a se ver pela cara country que ela sabe muito bem imprimir como já o fizera em “Predictions”, de “Days...”, e “Cracking”, do álbum de estreia. E como Suzanne está cantando bem! Impossível não lembrar uma de suas principais referências no canto, a bossa-novista brasileira Astrud Gilberto

Num disco tão peculiar como este, até o “perfect pop” não é, assim, tão “perfeito”. Diferentemente do que fez em exemplos clássicos disso, como “Book of Dreams” e a própria “Luka”, em “When Heroes Go Down” ela não respeita o tempo de duração comum a uma música de trabalho (entre 3min30 e 4min), e condensa a ideia em menos de 2 min! Mas o faz aproveitando cada segundo, visto que é daquelas de sair dançando imediatamente. Com cara de que se está se encaminhando para o final, “As Girls Go”, com um excelente solo de guitarra de Richard Thompson ao final, tem, regendo toda a banda, o violão. O velho violão desde sempre tocado com muita habilidade por Suzanne, outra de suas marcas. 

Pinho, aliás, que encerra triunfalmente um álbum surpreendente até nisso. Se começou e se manteve repleto de efeitos e experimentações, agora baixa a rotação e aposta na simplicidade do acústico. “Songs of Sand”, deprê, mas absolutamente poética em letra e melodia, faz Suzanne remeter ao violão perfeito e a colocação exata das frases vocais de Nick Drake. As cordas, arranjadas por Froom, adensam ainda mais essa atmosfera. É o violão também que volta puro novamente na valseada “Private Goes Public” (faixa adicional da edição europeia), em que se ouvem apenas as cordas para finalizar o repertório: as do seu vocal e as do instrumento.

Mesmo com esse encerramento, “99.9F°” é, nos seus contornos e contrastes, um instante de êxtase. Naquele começo de anos 90, Suzanne sabia que nunca mais faria o sucesso que fez com “Luka”, e pelo visto nem desejava isso. Queria, a partir de então, satisfazer-se, estar plena como mulher e artista, e em Mitchell Froom ela encontrou abrigo para tal aspiração existencial. Mas como o fogo dos arrebatados, a chama foi arrefecendo. Como uma fogueira acesa, ainda teve força para iluminar o sensual “Nine...”, registro daquele momento da relação em que ainda desconfiavam se o ardor poderia transformar-se em amor eterno. Não aconteceu: Suzanne e Froom separaram-se e nunca mais voltaram a trabalhar juntos. A temperatura, antes febril, foi baixando cada vez mais no ponteiro do termômetro até voltar a um grau de normalidade corporal. A paixão, tal uma enfermidade deleitosa, enfim, passou. Suzanne, hoje casada há 16 anos com outro homem, talvez veja um disco como 99.9F°”, gravado há três décadas, como algo valioso mas pertencente a um passado muito distante. Da MPB que ela tanto adora, talvez se enxergue naqueles sábios versos de Chico Buarque“vestígios de estranha civilização”.  Já Froom, por sua vez, quem sabe ainda pense consigo mesmo ouvindo a mesma música: “Futuros amantes, quiçá/ Se amarão sem saber/ Com o amor que eu um dia/ Deixei pra você”.

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FAIXAS:
1. “Rock In This Pocket (Song Of David)” - 3:31
2. “Blood Makes Noise” - 2:28
3. “In Liverpool” - 4:41
4. “99.9F°” - 3:15
5. “Blood Sings” - 3:18
6. “Fat Man And Dancing Girl” - 2:18 (Mitchell Froom/ Suzanne Vega)
7. “(If You Were) In My Movie” - 3:06
8. “As A Child” - 2:56
8. “Bad Wisdom” - 3:22
9. “When Heroes Go Down” - 1:54
10. “As Girls Go” - 3:26 (Nils Petter Molvær/ Vega)
11. “Private Goes Public” - 1:57
Todas as composições de autoria de Suzanne Vega, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

U2 - "Zooropa" (1993)

 

Atento, bebê?

“Quando começamos ‘Zooropa’, sugeri à banda que ficassem improvisando no estúdio regularmente. Eles haviam perdido esse hábito de improvisar e, por vários motivos, não o faziam. Então eu disse: ‘devemos imaginar que estamos fazendo trilhas sonoras de filmes hipotéticos, não fazendo músicas.’”
Brian Eno

Nunca acreditei em “Achtung Baby”, o tão celebrado disco da U2 de 1991. É este mesmo o termo: "acredito". Não se trata de "gostar", mas sim de crer. Aliás, gostar, até gosto. "One", "Until the End of the World" e “Acrobat” estão aí para provar. Porém, estas e todas as demais nove faixas de “Achtung...” são, a rigor, de longe menos inspiradas do que diversas outras da banda e, principalmente, graus abaixo do que Bono Vox, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton têm condições de entregar. Por que, então, falo de credibilidade e não necessariamente de qualidade? E por que abro o texto indo na contramão da maioria falando de uma obra consagrada e não daquela que motiva este artigo, “Zooropa”? Afora a ordem sucessória entre um disco e outro, é necessário que se volte alguns anos antes ao grande sucesso comercial e de crítica da U2 nos anos 90 para entender aquela que considero a maior farsa planejada da música pop moderna.

O ano é 1988. A U2 ostentava a posição de grande banda do rock internacional. Com o término da The Smiths e os às vezes errante caminhos da The Cure, a U2 somava todos os elementos para ocupar tal posição, rompendo a linha que divide o underground do início da carreira para o status de lotadores de estádio. Musicalmente, um fenômeno gerador de hits, vendas de discos e canções clássicas. Tinha um vocalista de admiráveis qualidades vocais e letrísticas, um guitar hero sofisticado e criativo e a "cozinha" mais competente do rock 80. Politicamente, foi o grupo mais engajado da sua geração. A coroação veio com “The Joshua Tree”, de 1987, que deu aos irlandeses discos de ouro, platina e diamante em vários países e um Grammy de Álbum do Ano, consolidando-os no mercado mundial com sucessos como "With ir Without You" e "I Still Haven't Found What I'm Looking For".

Arte do famigerado "Achtung...", de 1991
Ocorre que “Joshua...” é daquelas obras tão divisórias na carreira de qualquer artista, que lhes surtiu o efeito contrário. Ao invés de orientar Bono & Cia., desnorteou-os. Que rumo tomar depois de tamanho êxito comercial e artístico? O longo e irregular “Rattle and Hum”, no qual voltam os olhares para a cultura folk norte-americana, simboliza este hiato conceitual. A imagem da capa de Bono apontando o holofote para The Edge, mais do que uma mostra da saudável parceria entre ambos, simboliza uma necessidade (talvez inconsciente) de valorização da forma sobre a aparência. A U2 queria dizer que não se resumia ao Bono front man e, sim, que formavam um coletivo do qual seu guitarrista era o melhor representante. Nem todos entendiam isso, entretanto; E pior: continuavam exigindo-lhes a divindade cega atribuída às celebridades. Então, para que lado ir se já afastados da forte pegada política de “Sunday Blood Sunday” e alçados a astros planetários? Foi então que, naquele mesmo ano de 1988, a resposta se insinuou como uma solução: a fraude da dupla alemã Milli Vanilli.

Surgidos como revelação da música pop, Fab Morvan e Rob Pilatus foram acusados de não interpretarem as próprias músicas. Desmascarados, foram demitidos da gravadora que os fez vender milhões e tiveram que devolver o Grammy que venceram. Morvan e Pilatus precisaram convocar uma vexatória coletiva para confessarem que, de fato, apenas faziam playback em cima do palco e que ghostsingers cantavam por eles em estúdio. Justificaram que haviam sido recrutados pelo visual, como uma estratégia de publicidade. Bono, então, ouviu e ligou os pontos: “Fraude, Grammy, publicidade, paradas de sucesso, personagens...”. Deu-lhe um estalo: ali estava a chave para os problemas da U2.

Não é possível medir o quanto Bono ficou impactado com tal ocorrido, embora a polêmica da Milli Vanilli tenha ganhado tamanha proporção que, provavelmente, deu um sinal de alerta para qualquer um que pertencesse à indústria cultural. Bono, ao que tudo indica, perspicaz como é, captou a essência da discussão, mas injetou-lhe doses de ironia. Numa fase de “crise de identidade”, o negócio era assumir uma “não identidade”. Genial! Já distante da figura politizada que os consagrou e diante da incerteza que o estrelato provocou, a escolha da U2 foi criar uma nova imagem pública: dar vida a personagens fictícios e produzir músicas de fácil assimilação. 

Os riffs de “Achtung...”, basta notar, são bastante simples, até simplórios em alguns casos em se tratado da alta técnica de The Edge. "Who's Gonna Ride Your Wild Horses", "The Fly", "Mysterious Ways", "Tryin' To Throw Your Arms Around The World" são assim: quase sem graça. O minimalismo característico de The Edge transformou-se em preguiça. Praticamente todas as faixas têm o mesmo embalo. Mas, claro, com a caprichada produção de Brian Eno, que mascarava tudo. Além disso, fotos e clipes de Anton Corbijn, mixagem de Daniel Lanois e Robbie Adams e engenharia de som de Flood. Invólucro perfeito, como todo produto premium de supermercado. Para arrematar a traquinagem, o disco é gravado na mesma Alemanha em que David Bowie e o mesmo Eno conceberam a nova música pop no final dos anos 70. Mas também a mesma Alemanha da Milli Vanilli... 


Agora, valendo!

Jamais a U2 tinha feito algo tão raso como “Achtung Baby”, e isso queria dizer alguma coisa. O circo foi tão bem montado que, com absoluta unanimidade, todos caíram na deles. Público e crítica elevaram o disco a obra-prima mesmo sem ter um riff à altura de “Bad”, “Red Hill Minning Town”, “God Part 2”, “Like a Song...” e por aí vai. Quando um artista chega a determinado estágio, o que se espera é que, no mínimo, supere o que já fez. Mas diante da incapacidade crítica da pós-modernidade, a U2 percebeu que isso não se aplicaria a ídolos acima de qualquer suspeita como eles. Na verdade, fizeram o contrário: ao invés de evoluir, deram passos para trás, mas com muita inteligência e marketing. E ego. Bono encarnava personagens como The Fly e The Macphisto com visível falta de habilidade cênica, mas suficiente para encantar os fãs. A piada foi tão bem contada que, somado ao respeito e a credibilidade de que jamais uma banda “séria” como a U2 faria algo assim, ninguém desconfiou de nada.

Por sorte, a enganação deliberada de “Achtung...” foi, em trocadilho com o próprio título, apenas para ver se a galera estava “atenta”. Como ninguém estava, no fundo o tiro saiu pela culatra. O negócio era desistir da palhaçada e fazer algo bom novamente. Fruto de canções surgidas durante a turnê e de suspeitas “sobras” do afamado disco anterior, “Zooropa” mostra porque a U2 chegava, enfim, à maturidade. Improvisos, experimentações, ousadias, ludicidade. É possível sentir um clima de liberdade criativa em suas faixas. Se a ida para Berlim anos antes foi, como fez Bowie, para se afastar do burburinho da mídia, enfim a intenção funcionava para a U2. 

Um rápido paralelo entre as faixas de um disco e outro provam que a turma estava mesmo interessada em fazer o que sempre soube: pop-rock forjado no pós-punk, somado aos elementos do tecno, como downtemto, synth pop e experimental. Na abertura, para uma pirotécnica ”Zoo Station”, mandam ver “Zooropa”, extensa, pouco vendável, sem pressa para começar e nem para terminar. Riff bem elaborado que, lá pelas tantas, ainda sofre uma virada que acelera seu compasso, gerando quase que uma outra música. Excelente cartão de visitas para deixar claro que a U2, definitivamente, havia deixado as máscaras de mosca em segundo plano.

A melódica “Babyface”, algo semelhante em atmosfera a “So Cruel”, de “Achtung...”, faz homenagem ao músico de R&B que influenciaria bastante o som da banda naquele momento. Esta antecipa a primeira obra-prima do álbum: “Numb”. Desviando os holofotes quase monopolizados por Bono, a banda realiza de vez o que prenunciavam na capa de “Rattle...” com The Edge fazendo as vezes de protagonista. E aqui Eno, novamente recrutado como um quinto integrante, faz valer sua arte de produção. E não para “salvar” a música, mas para potencializá-la. Construtiva, a partir de uma programação eletrônica e um riff estetizado, “Numb” vai agregando elementos como bateria, efeitos de teclados, frases de guitarras, sintetizadores e contracantos, como o belo falsete de Bono dizendo versos como: “I feel numb” e “Too much is not enough”. Tão original que é sem comparação com qualquer uma de “Achtung...”.

Outra pérola: “Lemon”. Mais uma cantada em falsete, agora com Bono retomando o centro do palco, lembra “Misterious Ways” por certa latinidade da percussão de Mullen Jr. Mas apenas de longe, pois é muito melhor e bem mais elaborada. A começar pelo riff, este sim minimalista como The Edge é craque, mas saborosamente criativo, forjado apenas no efeito de pedal, que se forma através de ressonâncias. O baixo de Clayton, idem: seguro como sempre, fazendo a base perfeita para esta world music moderna. Mas principalmente: o arranjo de Eno. Nesta faixa fica evidente o quanto o papel do eterno Roxy Music foi fundamental para a retomada da U2 à sua raiz de beleza estética com liberdade e ousadia. Os coros em tom menor, com contracantos acentuados, dão um exótico ar étnico à música. Impossível não lembrar das contribuições de arranjo e melodia de Eno para a Talking Heads em “Remai in Light” (“Born Under Punches”/“Crosseyed and Painless”/”The Great Curve”), de 1980, ou músicas de seus trabalhos solo como “No One Receiving” (de “Before and After Science”, 1977).

clipe de "Lemon", com direção de Mark Neale

Já “Stay (Faraway, So Close!)”, se não supera “One”, sua mais evidente correspondente em “Achtung...”, emparelha, ainda mais porque, balada sentimental tanto quanto, faz paralelo também com outra do álbum anterior, “Until...”, pois ambas são temas de trilhas sonoras de filmes do cineasta alemão Win Wenders – neste caso, a tocante continuação de “Asas do Desejo” homônima à canção. Virando a chave, “Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car” devolve energia a “Zooropa” – aliás, como até então não havia ocorrido. Tecno industrial com um riff bem sacado, bateria eletrizante e uma produção, meus amigos! Que habilidade numa mesa de som tem o sr. Brian Peter George St. John le Baptiste de la Salle Eno! Ele colore a música do início ao fim, ressaltando todas as texturas e detalhes que ela tem de melhor, mas sem tirar o brilho original, deixando os louros para a performance da U2. Distantes da espetacularização da turnê Zoo TV, a banda irlandesa realmente está espetacular.

Se “Daddy’s...” lembra em certa medida “The Fly” e “Zoo Station”, de “Achtung...”, “Some Days Are Better Than Others” equivale a "Tryin' To Throw Your Arms Around The World". Novamente, contudo, vencendo a disputa. E quão simbólica a letra para aquele momento de autorreconhecimento, quase um mea culpa: “Alguns dias você usa mais força do que o necessário/ Alguns dias simplesmente nos visitam/ Alguns dias são melhores do que outros”. Já a escondida “The First Time” é uma surpresa altamente positiva, que começa com uma leve base de baixo sob a linda voz de Bono para ir ganhando, aos poucos, outros instrumentos/elementos, que lhe aumentam a emotividade. Além disso, faz analogia com “Love Is Blindness”, última do trabalho antecessor. Mas como assim, se ela não encerra “Zooropa”? Aham! A estratégia narrativa usada para gerar estardalhaço anteriormente, agora era empregada a favor da feitura da obra. “The First...” prepara o terreno para a penúltima faixa, “Dirty Day”, outra que, assim como “Zooropa”, não se apressa em começar e a se desenrolar. Pop eficiente, tem o detalhe da voz de Bono sobre todos os outros sons, como que viva diante do microfone, expediente imortalizado por Eno e pelo produtor Tony Visconti em “Heroes”, de Bowie, em 1978, daquela mesma inspiradora fase alemã do Camaleão do Rock. 

Eno com Edge e Bono em estúdio
dando as coordenadas pra banda
Toda essa construção narrativa, quase como a de um filme ou de uma ópera-rock (seria a tragédia do famigerado personagem The Fly?), converge para um gran finale: “The Wanderer”. Pode ser que tenha sido coisa de Bono ou dos outros integrantes da U2, mas ninguém me tira da mente que a ideia de chamar o mitológico Johnny Cash para cantar triunfalmente a última faixa do disco foi de Eno. A base totalmente em teclados, contrastando com o estilo country-folk orgânico de Cash, dão uma clara pista de que a música surgiu desta ideia central pensada por ele. O estilo melódico, a reelaboração modernista do rock 50, os coros estilo Phil Spector, o refrão com melodia emotiva terminado em uma nota baixa e melancólica... Tal “The River”, de Eno e John Cale, tal “Golden Hours”, do seu solo “Another Green World”. Muita coincidência. Ou a U2 emulou Eno, ou essa música, meus amigos, é de Eno com participação da U2! O que, na verdade, é uma prova de grandiosidade da banda, que soube abrandar os egos e delegar a alguém um fator importante da obra, mas sem perder sua marca própria. Isso se chama maturidade.

E quanta beleza em “The Wanderer”! Escritos para o barítono embriagado Cash, os versos (de Bono, credite-se) largam dizendo: “I went out walking/ Through streets paved with gold/ Lifted some stones, saw the skin and bonés/ Of a city without a soul” (“Eu saí caminhando/ Pelas ruas pavimentadas com ouro/ Levantei algumas pedras, vi pele e ossos/ De uma cidade sem alma”). Uma clara referência ao clássico “Walked in Line”, imortalizada na voz do errante Homem de Preto, mas também à própria consciência da U2 pelas perigosas trilhas da fama. “The Wanderer” ainda serviu como uma homenagem em vida a Cash. Eterno outsider e já no ostracismo naqueles idos, ele viria a se revitalizar como artista e gravar seus últimos álbuns na série “American”, morrendo 10 anos depois daquela gravação (a versão definitiva de “One”, aliás, é de seu “American III”, de 2000). Um digno final de disco da U2, o mais tocante e melhor de sua discografia, mais bonito até do que “MLK” encerrando “The Unforgatable Fire” ou do que “All I Want Is You” fechando “Ratlle...”. Um final para desfazer mal-entendidos e enterrar qualquer piada de mal gosto que um dia tenham feito.

clipe de "The Wanderer", com participação de Johnny Cash

“Zooropa”, o melhor disco da banda em toda a década de 90 e seu último grande álbum, completa 30 anos de lançamento. Isso nos leva a deduzir que, há três décadas, a U2 desfazia um erro grotesco chamado “Achtung Baby” para, responsavelmente para com sua própria obra, dignidade e reputação, conceber “Zooropa”. O processo de concepção conduzido por Eno, livre das amarras do enterteinment e voltado às origens deles como músicos, foi tão rico, que rendeu, dois anos depois, o ótimo “Passengers: Original Soundtracks 1”, em que encarnam com humildade a inédita nomenclatura para compor trilhas sonoras para diversos filmes. Um pouco do que já era “Zooropa”: uma narrativa, uma história.

O certo seria Bono, Edge, Mullen Jr., Clayton e Eno, assim como fez a Milli Vanilli no passado, chamar a imprensa para uma coletiva e confessarem o engodo de "Achtung Baby" – de preferência, em Berlim, cidade acostumada a reconstruções e onde a farra foi cometida. Mas isso jamais acontecerá. Para mim, contento-me em ouvir “Zooropa” e saber que ele veio reestabelecer minha relação com a U2, o que vinha gradativamente perdendo força e sofrera considerável abalo quando do meu desmascaramento solitário. “Zooropa”, com sua força e identidade, zerou tudo. A U2 está para sempre desculpada.

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FAIXAS:
1. Zooropa - 6:30
2. Babyface - 4:00
3. Numb - 4:18
4. Lemon - 6:56
5. Stay (Faraway, So Close!) - 4:58
6. Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car - 5:19
7. Some Days Are Better Than Others - 4:15
8. The First Time - 3:45
9. Dirty Day - 5:24
10. The Wanderer - 5:42
Todas as composições de autoria de Bono Voz, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton

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OUÇA O DISCO


Daniel Rodrigues