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segunda-feira, 11 de maio de 2020

As 5 melhores do Kraftwerk na escolha dos fãs - Homenagem a Florian Schneider

Florian Schneider, que morreu no último dia 6, foi, tanto quanto Ralf Hütter é, genial. Embora muito se hibridize a atuação de cada um na banda, não só pela coautoria de tudo, pela imagem/estética que se tem deles ou por conta da postura low profile e até arredia diante da mídia (principalmente de Florian), diz que é Florian a verdadeira cabeça da Kraftwerk.

Eberhard Kranemann, um dos integrantes da correligionária de krautrock Neu!, é categórico: “Para mim, Florian foi o fundador do Kraftwerk. Ele era a pessoa mais importante do Kraftwerk. Depois, as coisas mudaram, e eu tenho a impressão de que Ralf Hütter passou a ser o líder da banda, mas no começo a ideia toda foi do Florian”. Se Ralf passou a ter maior protagonismo no desenrolar da história de quase 50 anos da banda, Florian foi quem, por exemplo, construiu o primeiro drum machine (a partir de uma unidade de ritmo de um órgão!), a que se escuta em “Tanzmuzik”, de 1973, quando, a partir de então, a bateria tal como se conhecia passou a virar antiguidade. Mais do que isso: ele, Ralf e seus séquitos nos fizeram identificar/assimilar que som emite um computador. O imaginário da humanidade entende essa gênese sonora por causa deles. Isso não merecia um Grammy de Música, mas um Nobel de Ciência!

Como “Tanzmuzik”, poderia lançar aqui como exemplo inúmeras outras de autoria dele, esse esteta da era moderna. Várias da Kraftwerk, do "Radio-Activity", do "Trans-Europe Express", do "Authoban", do "The ManMachine". A precisa homenagem do Bowie a eles e a ele, "V-2 Schneider", também caberia. Mas não deixo só a mim esta tarefa. Convido fãs de Kraftwerk para escolherem a suas 5 preferidas, o que talvez nos faça conseguir exprimir um pouco da magnitude da genial obra de Florian Schneider-Esleben .

Daniel Rodrigues





"A Kraftwerk foi uma banda que eu conheci bem no momento que eu estava curtindo essas bandas antigas e mais experimentais, como New Order e Depeche Mode. A primeira música que eu ouvi foi 'The Robots' e vi o clipe naquele momento. Achei genial. Daí baixei o álbum deles chamado 'The Mix', que me marcou bastante. Hoje em dia as músicas todas têm elementos eletrônicos e, basicamente, eles foram os precursores nisso. Daí fico imaginando o pessoal do final dos anos 70 ouvindo Kraftwerk e pensando: 'Ouvir isso é dar um pulo para o futuro!' kkk."
- “Radio-Activity” (“Radio-Activity”, 1975)
- “Trans-Europe Express” (“Trans Europe Express“, 1977)
- “The Robots” (“The Man-Machine”, 1978)
- “Computer Love” (“Computer World”, 1981)
- “Pocket Calculator” (“Computer World”, 1981)




"Assisti à apresentação que o grupo Kraftwerk fez no Cais do Porto, aqui no Rio, em 2004. Foi o grande show da minha vida! Assisti Florian e Ralf fabricarem ali, aos meus olhos, o que definiu todo um mover musical posterior dentro do pop. Ali, bem na minha frente! Aquela apresentação me marcou para toda a vida."
- “Computer World” (“Computer World”, 1981)
- “Home Computer” (“Computer World”, 1981)
- “Numbers” (“Computer World”, 1981)
- “Tour de France” (single “Tour de France”, 1983, e “Tour de France Soundtracks”, 2003)
- “The Telephone Call” (Electric Café”, 1986)



"Muito triste o que aconteceu, mas faz parte não é? Difícil ver nossos heróis indo embora. Cinco músicas de uma das minhas bandas preferidas!"

- “Kometenmelodie II“ (“Autobhan”, 1974)
- “Antenna“ (“Radio-Activity”, 1975)
- “The Man-Machine“ (“The Man-Machine”, 1978)
- “Trans Europe Express“ 
- “Musique Non Stop” (Electric Café”, 1986)




"Eu conheci o Kraftwerk graças ao funk carioca! Viu como o funk salva?! Na verdade, conheci Africa Bambaata e Kraftwerk nos programas de funk da rádios Imprensa e Rádio 98. Entonces, eles fazem parte da minha vida desde criança, rárá!!  Isso também aconteceu com os desenhos animados e meu caso de amor com o jazz. Essas são as minhas preferidas."
- “The Man Machine” 
- “Computer World”
- “Sex Object” (Electric Café”, 1986)
- “Boing Boom Tschak” (Electric Café”, 1986)
- “Vitamin” (“Tour de France Soundtracks”, 2003)




"Difícil selecionar cinco músicas sendo que, pelo menos, dois álbuns da Kraftwerk são inteiramente indispensáveis: 'Trans-Europe Express' e 'Die Mensch-Maschine', que se tratam de instituições movidas por setores prazerosos que merecem muita atenção e preservação. Nossas sinapses agradecem."
- "Tanzmusik" (“Ralf und Florian” 1973)
- "Radio-Activity" 
- "Europe Endless" (“Trans-Europe Express”, 1977)
- "The Hall of Mirrors" (Trans-Europe Express”, 1977)
- “The Model" e "Neon Lights" (“The Man-Machine”, 1978)



"Minha escuta sempre se encantou com a atmosfera que o Kraftwerk possui. Tudo é  música, inclusive os silêncios e as performances. Tudo está  criado com um propósito . A contribuição é inegável e muito contagiou a todos."
- “Computer World”
- "The Hall of Mirrors"
- "Neon Lights"
- “Tour de France”
- “Kometenmelodie II“



"Curto muito Kraftwerk!"

- “The Model”
- “Autobahn” (“Autobahn”, 1974)
- “Radio-Activity”
- “The Robots”
- “The Hall of Mirrors”



"Impressiona-me que, assim como um Kubrick ou um Tarkovski no cinema, a obra da Kraftwerk é pequena em relação ao tempo de atividade, no caso da banda, quase 50 anos. São apenas 7 discos de músicas inéditas (tirando o de mixes e os ao vivo) e, grosso modo, todos essenciais. Um pouco como fiz lá na adolescência, quando apresentei meu primeiro programa de rádio na antiga Ipanema, em 1995, no saudoso Clube do Ouvinte, seleciono um pouco de cada época da banda para dar esse panorama de 5 faixas. Afinal, considero-lhes tudo essencial."
- “Airwaves” (“Radio-Activity”, 1975)
- “Trans-Europe Express”/ “Metal on Metal” (“Trans-Europe Express”, 1977)
- "Neon Lights"
- “Home Computer”
- "Elektro Kardiogramm" (“Tour de France Soundtracks”, 2003)




"Que tarefa difícil escolher só cinco!!! A gente fica pensando: 'Mas e aquela...', 'E aquela outra...' e 'Como é que aquela outra vai ficar de fora?'. É  um dilema. Esforçando-me, brigando comigo mesmo pra deixar alguma de fora, aí vão minhas cinco."
- “Ruckzuck” (“Kraftwerk”, 1971)
- “Kometenmelodie II“
- “Airwaves”
- “The Model”
- “It's More Fun to Computer” (“Computer World”, 1981)




“O Kraftwerk é mesmo uma raça rara: em uma carreira que se estende por 40 anos*, este é um grupo que nunca gravou um disco ruim sequer. De 1973 em diante, o Kraftwerk desenvolveu um estilo eletrônico único e completamente sedutor, alcançando seu auge em três álbuns essenciais: ‘Trans-Europe Express’, ‘The Man-Machine’ e ‘Computer World’, este último sem dúvida sua melhor definição. Não havendo uma compilação final de maiores sucessos de mercado, eis a seguir meu guia para as músicas* essenciais do Kraftwerk”.
- “Kristallo” (“Ralf und Florian”, 1973)
- “Autobahn” (single “Autobahn”, 1975)
- “Spacelab” (“The Man-Machine”, 1978)
- “Radioactivity” (“The Mix”, 1991)
- “La Forme” (“Tour de France Soundtracks”, 2003)

* Trecho do livro “Kraftwerk Publikation: A Biografia”, de 2012, quando a banda havia completado pouco mais de quatro décadas
** Buckley listou os “20 Bits” clássicos da Kraftwerk. Extraímos dessa lista 5 músicas não mencionadas nas outras listas








quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Kraftwerk – “Tour de France Soundtracks” (2003)





Ouvindo o álbum,
 você quase pode ouvir o som do vento
batendo no seu rosto”.
Jim DeRogatis,
crítico musical

“O Tour (de France) é como a vida:
uma forma de transe.
E o transe está baseado na repetição.
As máquinas são perfeitas para criar isso”
Ralf Hütter



Uma das definições do dicionário para "tecnologia" é: "Ciência cujo objeto é a aplicação do conhecimento técnico e científico para fins práticos". Porém, há também o entendimento de que tecnologia também é "o conjunto dos termos técnicos de uma arte ou de uma ciência". Juntando as duas subentende-se: é possível o ser humano criar arte a partir da tecnologia e vice-versa. Os papéis se confundem nessa hora.

Neste sentido, é interessante notar que todos os principais marcos da tecnologia dos últimos 200 anos criadas pela humanidade tenham se tornado música nas mãos do Kraftwerk. O trem do medley "Trans-Europe Express"/"Metal on Metal"; o rádio em suas mais diversas funcionalidades do disco "Radio-Activity"; o automóvel em “Autobahn”; o telefone em “Telephone Call”. Até a amplificação do som de um átomo eles forjaram (“Atom”, de “Kraftwerk 2”). Mas mesmo tendo sido responsáveis por legar à civilização moderna o imaginário dos sons de bits e bites dos computadores (em "Computer World", de 1981), a tecnologia que realmente encanta a dupla Ralf Hütter e Florian Schneider, as cabeças geniais do mítico grupo alemão, é a talvez mais lúdica e esportiva delas: a bicicleta. “Tour de France Soundtracks”, de 2003, último trabalho da econômica banda não apenas trabalha este tema como o explora de forma brilhante.

O passeio sobre duas rodas do Kraftwerk, contudo, começou em 1983, quando lançaram o single “Tour de France” em homenagem à tradicional competição ciclística. Uma ode à beleza do ato de pedalar e à interação do homem com a tecnologia, que traz uma base criada sobre a respiração uma humana, um ritmo funkeado envolvente e um magistral riff de teclado em tom alto, colorido. Traços mais do que sonoros e, sim, sensoriais, que põem o ouvinte a também percorrer as ensolaradas estradas francesas sobre o selim. De relativo sucesso à época, a faixa deveria fazer parte de um novo disco, projeto que foi substituído três anos depois por “Electric Café”. “Substituído” é o termo certo, pois não “descartado”. Duas décadas depois (o que, para os parâmetros krafterkianos não é um absurdo, haja vista que lançaram nesse ínterim apenas dois discos, sendo apenas um de inéditas), quando dos 100 anos da Tour de France, Ralf e Florian desengavetam um projeto comporem uma trilha sonora para um filme explorando todas as etapas da corrida, desde a preparação do atleta até o ápice.

O filme não saiu, mas nem precisava. As músicas substituem qualquer imagem. Ou melhor: as supõem, as suscitam. A narrativa é tão cinematográfica quanto – sendo sinfônica ao mesmo tempo. Ao estilo dos temas longos de abertura de álbuns, uma de suas especialidades (a exemplo de “Boing Boon Tschak”/”Tecno Pop”/”Music Non-Stop” de “Electric Café”, ou a faixa-título de “Autobahn”), inicia com um prólogo, que anuncia em notas espaciais, mas não dispersas, frases que dotarão toda a trilha. Em ritmo de house music e trazendo uma variação do riff original, a primeira etapa do tema central entra com a tradicional voz robótica do VoiceModeler operado por Florian. Isso tudo num charmoso francês, idioma usado em todas as letras e sentenças faladas. “Étape 2” e “3”, seguem na mesma batida, agora explorando as variações de textura do trance, mas tendo como base a mesma ideia sonora: os frisos do pneu da bicicleta girando e promovendo som, num transe. “Chrono”, última desta primeira parte, intercala momentos instrumentais com os elementos-chave da temática-base, terminando com o “robô” anunciando que foi dada a largada: “Les coureurs/ Chronométrés/ Pour l'épreuve/ De vérité/ Radio Tour information/ Transmission/ Télévision/ Tour de France…”.

Primeiro ato concluído, pista preparada para o Kraftwerk passear com sua arte. Desacelerando um pouco a intensidade da pedalada e introduzindo uma percussão metálica variante e multiforme, “Vitamin” é a primeira dos preparativos para a corrida – afinal, todo corredor que se preze tem de atentar ao que manterá a sua máquina em condições de prova. Ralf lê uma sequência de ingredientes de suplementos (“Adrenalin endorphin/ Elektrolyt co-enzym/ Carbo-hydrat protein/ A-b-c-d vitamin”), enquanto teclados cumprem percussão e o grave, pondo acima as texturas e o riff, que também não passa longe do de “Tour de France”.

Das melhores do disco, “"Aéro Dynamik" retomando a batida da parte introdutória, é a própria tradução do conceito homem-máquina representado pelo Kraftwerk desde que surgiram, no final dos anos 60, na industrial Düsseldorf: o corpo sonoro projetado no espaço como metáfora do movimento humano vencendo os átomos no ar. “Percussivo e dinâmico”, como define o próprio Ralf. A letra diz em francês o que é de fácil entendimento a qualquer língua, pois universal: “Perfection Mekanik/ Materiel et Technik/ Condition et Physik/ Position et Taktik/ Aero Dinamik”.  "Titanium", misto de trance e ambient, acrescenta-lhe uma leve variação rítmica e harmônica, enfatizando agora o metal extraforte utilizado para a fabricação das “magrelas”. A percussão torna-se ainda mais metálica, por óbvio, do que em “Vitamin”.

Das melhores do álbum e da carreira da banda, "Elektro Kardiogramm", começa dizendo a que veio. Batidas de coração são ouvidas em um ritmo interessante, rítmico. O ritmo do próprio corpo. E isso não é licença poética, pois são gravadas dos batimentos cardíacos do próprio Ralf Hütter enquanto pedalava! E a genialidade não para por aí: este som, orgânico e científico ao mesmo tempo, é sinterizado eletronicamente ao de uma respiração, também embalada pelo ciclo da pedalada. O riff, igualmente na mesma escala que circunscreve o de todas as faixas, é em tempo 3x4. Tudo isso encapsulado por uma batida que acompanha o fluxo sanguíneo, mas o embala ritmicamente. É de "Elektro Kardiogramm" que saem os versos “Minimum Maximum”, que dariam nome à turnê e ao disco ao vivo de 2005. Afinal, a verdadeira interação entre homem, natureza e tecnologia. Como diz o biógrafo da banda, David Buckley, que considera a faixa um dos pontos altos do disco, é “uma exploração sonora da unidade formada por ciclista e bicicleta, homem e máquina”.

"La Forme", mais introspectiva, impressiona pelo ar quase oriental de seu riff de teclados deslizante. A percussão, só no “chipô” e “bumbo”, igualmente econômica e nipônica, dão ainda mais classe a esta faixa, a qual remete a obras do passado da banda, como “Neon Lights” e “Computer Love”. Depois de preparar a forma, vem a recuperação do corpo. Esta engata com "Régéneration", vinheta preparatória que faz a ponte entre a última meditação antes de lançar-se na prova de fato. É chegada a hora da magnífica "Tour de France", tal qual fora composta em 1983, porém repaginada pela limpeza da sonoridade digital ainda não alcançada àquela época. Das maiores peças pop de todos os tempos, é o símbolo e o ápice da ideia de interação homem e tecnologia. Respirações ofegantes de ciclistas são intensificadas no electrobeat – que retraz a batida pontilhada de “Numbers” –, enquanto o som de um baixo com slaps é recriado eletronicamente e os teclados passeiam pela paisagem, transmitindo cor e liberdade. “Dá quase para sentir o ácido lático se acumulando nas pernas enquanto a música se desenvolve”, brinca Buckley numa passagem do livro “Kraftwerk Publikation: a biografia”.

Suave e deslizante, “Tour de France Soundtracks” resgata em parte a bagagem do grupo criador da eletro music: a sonoridade elegante e limpa, a valorização do ritmo, a perfeição dos detalhes, a exploração das texturas sonoras e o conceito globalizado e integral que pontua toda a obra de menos de 10 álbuns mas de vasta influência na música moderna. Há quem torça o nariz para este disco, alegando que deixa a desejar em relação aos trabalhos antológicos do Kraftwerk como “The Man-Machine” e “Trans-Europe Express”. Talvez um pouco de preconceito pela ausência de Karl Bartos e Wolfgang Flur, “percussionistas” da formação clássica – substituídos aqui pelos engenheiros de som (mas que se mostram músicos altamente competentes) Fritz Hilpert e Henning Schmitz. Quiçá também a vulgarização natural ocorrida pelo avanço da computação no século XXI (o que, em música, o Kraftwerk é corresponsável nos últimos 50 anos, diga-se) tenha deixado a impressão de que a banda ficara ultrapassada. Pensamentos compreensíveis, pois deles sempre se espera o mais do que de qualquer outro. Soma-se a isso ainda o fato de raramente lançarem alguma coisa, o que aumenta ainda mais sua mítica e, automaticamente, a cobrança.

Porém, como disse o jornalista inglês Chris Jones, “se você (assim como eu) ainda encara o Kraftwerk como uma divindade que deu ao mundo algumas das mais encantadoras e influentes músicas eletrônicas de todos os tempos, então vai amar este disco”. Afinal de contas, conclui sabiamente o designer e fã ardoroso dos alemães Peter Saville: “mesmo um álbum medíocre do Kraftwerk é um trabalho de uma genialidade sublime”. Caso de Tour de France Soundtracks”, onde a capacidade humana opera com a tecnologia a serviço da mais bela arte, seja ela vinda de seres vivos ou artificiais.
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FAIXAS:
1. "Prologue" (Ralf Hütter/Florian Schneider/Fritz Hilpert) - 0:31
2. "Tour de France Étape 1" (Hütter/Schneider/HilpertMaxime Schmitt) - 4:27
3. "Tour de France Étape 2" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 6:41
4. "Tour de France Étape 3" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 3:56
5. "Chrono" (Hütter/Schneider/Hilpert/Schmitt) - 3:19
6. "Vitamin" (Hütter/Schneider/Hilpert) - 8:09
7. "Aéro Dynamik" (Hütter/Hilpert/Schmitt) - 5:04
8. "Titanium" (Hütter/Hilpert/Schmitt) - 3:21
9. "Elektro Kardiogramm" (Hütter/Hilpert) - 5:16
10. "La Forme" (Hütter/Hilpert) - 8:41
11. "Régéneration" (Hütter/Hilpert) - 1:16
12. "Tour de France" (Hütter/Schneider/Schmitt/Karl Bartos) - 5:12

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OUÇA O DISCO:






sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

"Kraftwerk: Publikation - A Biografia", de David Buckley - ed. Seoman (2015)




"Nós falávamos a mesma língua (...)
Éramos Sr. Kling e Sr. Klang."
Ralf Hütter,
sobre quando conheceu Florian Schneider


"As ideias refletidas no nosso trabalho são internacionalistas e também
uma mistura de diferentes formas de arte (...)
a ideia de não separar
a dança aqui, a arquitetura ali e a pintura lá.
Nós fazemos tudo e a união da rte com a tecnologia
constituía o Kraftwerk..."
Ralf Hütter
sobre o trabalho da banda, em 2006



Se as caixas "The Catalogue" e, mais recentemente, a ao vivo "The Catalogue 3D" repassam musicalmente a carreira e  obra do grupo Kraftwerk, um dos mais importantes de todos os tempos pelo seu pioneirismo e definição de uma linguagem, a biografia "Kraftwerk: Publikation - A Biografia" de 2015, faz o mesmo em forma de palavras, indo ainda mais fundo do que as compilações, mergulhando nas origens do projeto chegando desde seus primeiros formatos e configurações.
O livro do autor britânico David Buckley faz uma retrospectiva cronológica desde o momento em que os então jovens Ralf Hütter e Florian Schneider decidem unir suas ideias e pretensões artísticas, até os dias de hoje quando já encontra o atual projeto 3D que baseou o último lançamento.
Fato é que a não ser que Ralf ou Florian resolvam em algum momento lançar suas próprias biografias, nenhum material será melhor e mais completo que "Kraftwerk: Publikation", uma vez que este traz colaboração substancial de uma das vozes de dentro do grupo, da formação clássica e idolatrada, nada mais nada menos do que Karl Bartos, percussionista e integrante desde 1975, que concordou em ser entrevistado e dar seus relatos e versões sobre fatos duvidosos e matérias até então obscuras da história da banda que permaneciam ainda sem esclarecimento exatamente pela característica tão arredia e reservada que seus integrantes sempre mantiveram com a imprensa.
Mas além de Bartos, o grande trunfo jornalístico do biógrafo, o livro ainda conta com depoimentos de pessoas ligadas à banda como o amigo Ralf Dörper e a artista gráfica Rebecca Allen; de contemporâneos como o pessoal do Can e do Tangerine Dream que transitaram na mesma incipiente cena vanguardista alemã; e ainda ex-integrantes como Wolfgang Flur, também da formação clássica; Michael Rother, ex- Neu! e integrante da primeira fase, e ainda Ebenhardt Kranemann, membro do breve período do Kraftwerk, pasmem!, sem Ralf Hütter.
O excelente trabalho de Buckley examina cada um dos discos (mesmo os mais antigos, pouco considerados pela banda) com nomes de capítulos criativos que remetem a cada um dando detalhes técnicos dos mesmos e contextualizando-os ao momento de seus lançamentos, revelando motivações, ideias e peculiaridades que levaram às suas respectivas concepção. A surpresa geral causada por "Autobahn"; o minimalismo de 'Radio-Activity"; o pioneirismo inigualável de Trans-Europe Expressl; a antecipação da disco com "The Man-Machine"; a antevisão da internet de 'Computer World"; o refugo em "Techno Pop" que viria a tornar-se "Electric Café" e a materializar-se conforme o pretendido apenas em "The Mix"; e a finalização de um projeto em "Tour de France Soundtracks", tudo é abordado em "Publikation" com muita pesquisa, informação e seriedade. E mais: curiosidades como os "dois Kraftwerks", a procura de Michael Jackson para uma parceria; os detalhes de seu acidente ciclístico de Hütter, sua personalidade centralizadora; e a demissão do músico português Fernando Abrantes por, supostamente, fazer uma mixagem muito original de "Music Non Stop" e dançar muito entusiasticamente fugindo do padrão caracteristicamente robótico da banda, são apenas alguns dos lances interessantes e marcantes da obra.
Com um volume caprichado, a edição nacional, além dos prefácios do próprio autor, e do ex-kraftwerk Karl Bartos, conta ainda com um prólogo do jornalista Camilo Rocha, ex-Bizz, e um muito legal do DJ Paulo Beto do projeto eletrônico Anvil FX. "Kraftwerk: Publikation" é uma viagem obrigatória pela longa autoestrada da carreira deste extraordinário grupo que, sem dúvida alguma, tem seu nome gravado com honras na história da música.


Cly Reis

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Kraftwerk - "The Man-Machine" (1978)





“É uma relação bem mais sofisticada.
Existe uma interação.
Uma interação de ambas as partes.
A máquina ajuda o homem
e o homem admira a máquina.
Este aparelho é uma
extensão de seu cérebro.
[apontando para o gravador]
Ele ajuda você a se lembrar.
É o terceiro homem
sentado a esta mesa.
Quanto a nós,
nós amamos nossas máquinas.
Temos uma relação erótica com elas.”
Florian Schneider,
sobre a relação homem/máquina



Era a hora de, finalmente, o Kraftwerk deitar na cama que ele havia preparado tão generosamente para um monte de gente. No final dos anos 70, a tecnologia musical havia avançado bastante, os sintetizadores já eram relativamente populares, a música eletrônica não era mais um alienígena, a disco music, em alta naquele momento, a utilizava de maneira bastante efetiva, e até correntes do punk ousavam inseri-la em suas sonoridades. Ou seja, o eletrônico já era usado com sucesso, gerando dinheiro, sem toda aquela resistência inicial, e só o Kraftwerk, logo o Kraftwerk, que pacientemente construíra aquela linguagem, ainda era visto sob o preconceituoso olhar da esquisitice e do experimentalismo.
Em 1978, então, pela primeira vez, o Kraftwerk fazia um disco que se aproximava do que costumamos chamar de pop. "Autobhan" já era (e continua sendo) a base de toda a música eletrônica, "Trans-Europe Express" já era reverenciada e extremamente influente, mas ambos faziam parte de projetos musicais mais complexos e por isso de menor potencial comercial. "The Man-Machine", no entanto, sem apelar para o pop óbvio, cheio de vícios e clichês, trazia formatos musicais mais convencionais e estruturas um pouco mais familiares ao ouvinte comum, sem abrir mão de princípios artísticos e de ambições conceituais. O álbum, de marcante capa escarlate, na qual o design inspirado no construtivismo russo interage brilhantemente com o expressionismo alemão da foto da banda, antecipava a relação homem-máquina, hoje algo tão corriqueiro para nós com inteligências artificiais, perfis robôs, próteses médicas, drones e funções humanas automatizadas, transitando por outros assuntos como a corrida espacial, as grandes metrópoles e a moda, fazendo com que o tema central funcionasse como uma espécie de fio-condutor que estabelecia relações e conexões com os demais.
"The Robots" abre o disco reforçando aquilo que, no fundo, todos desconfiamos: que aqueles caras só podem ser robôs! Mas a afirmação que se repete como verso principal da vigorosa peça musical de abertura, não se resume a essa ambígua "confissão", ela é provocativa, na sua aparente simplicidade, sugerindo uma reflexão sobre a rotina, o cotidiano, sobre o automatismo que muitas vezes toma conta de nossas vidas, mas também sobre as relações humanas de trabalho e sobre como muitas vezes nós somos os robôs de um sistema que só visa produção. "Ja tvoi sluga/ Ja tvoi Rabotnik" ("Eu sou seus escravo/ Eu sou seu trabalhador"), afirma, em russo, uma voz robótica na música.
A reflexão se estende a "Metropolis", que ao mesmo tempo que é uma constatação do crescimento  das grandes cidades e de suas novas possibilidades naquele momento, é uma evidente ode à grandiosa obra de Fritz Lang de mesmo nome, marco da ficção-científica, que muito antes do Kraftwerk já antevia a era da robótica, a relação homem-máquina, e levantava questões, entre outras coisas, sobre trabalho abusivo e exploração humana. Um filme que retratava homens que, como desejavam os poderosos daquela cidade futurista, deviam trabalhar como máquinas.
O elemento metrópole é a chave para outra conexão dentro dos disco. Desta vez a ligação dá-se com "Neon Lights", a faixa mais longa de um disco em que as durações são mais comedidas para os padrões Kraftwerk. A canção é uma belíssima e elegante declaração de amor à cidade no que talvez seja o momento mais humano do álbum. Mas a amarração não se esgota por aí, uma vez que a alusão às luzes de neon também dialoga, de certa forma, com a era dos robôs proposta pelo disco. Hoje, às voltas com telas HD, lasers e painéis de LED, talvez não tenhamos exata noção de que, ali pelos anos 70, o neon com seus letreiros luminosos e coloridos, de certa forma, transmitia uma certa sensação de futurismo, o que fica evidente até mesmo pela sua presença em diversos filmes que, na época, e ainda hoje, pretendem ilustrar uma imagem de futuro.
Os manequins idênticos frequentemente 
presentes no palco, na época.
Outra que, por um momento, até nos faz pensar que o quarteto Hütter, Schneider, Bartos e Flür talvez fosse formado por humanos é "The Model", um pop perfeito, lição de casa pro pessoal do synthpop dos anos 80, uma melodia elegantemente simples e de uma levada comedidamente contagiante, que descreve em sua letra uma fascinação quase platônica por uma modelo, deixando transparecer em si uma série de "pequenas emoções" como desejo, frustração, recalque, desprezo... "Ela é uma modelo e ela está bonita/ Eu gostaria de levá-la para casa, isso é certo/ Ela se faz de difícil, sorri de vez em quando/ Basta uma câmera pra fazê-la mudar de ideia". Mas o olhar sobre essas musas da beleza vai um pouco além de uma mera e rara manifestação de emoções dos nossos robôs de Düsseldorf. Com "The Model", o Kraftwerk, de certa forma, também antecipa a sociedade de consumo, superficialidade e aparências na qual vivemos hoje, onde tudo tem seu preço, inclusive o prazer e a beleza. Se pode adquirir, por exemplo, bonecas em tamanho natural que imitam quase que perfeitamente formas e feições humanas e que satisfazem desejos e fantasias sexuais. Prazer. Beleza. Robôs.
A opção de Ralph Hütter, o letrista e líder da banda, em simbolizar esse aparente rasgo de emoção diante da beleza física feminina, na figura da modelo, não é por acaso, uma vez que essas "mestras da sedução calculada", como definiu certa vez Fausto Fawcett, na passarela ou diante de câmeras, são, se definidas de maneira bem objetiva, seres de semblantes impassíveis com movimentos padronizados e poses programáveis que utilizam seu equipamento físico, talhado especificamente para aquele fim, para apresentar variedades de indumentárias humanas para consumo e provocar sensações das mais diversas. Quase robôs. Completando o conceito e a ironia, na época do lançamento do álbum, a banda utilizava-se com frequência de um conjunto de manequins, feitos à imagem e semelhança dos quatro integrantes, deixando-os no palco, nas posições dos verdadeiros, dos humanos, causando no público um misto de curiosidade, espanto, dúvida e inquietação. Definitivamente "The Model" era muito mais que uma recaída emocional.
"The Model " era uma aula de música pop que só comprovava a capacidade do Kraftwerk, já demonstrada em músicas como "Showroon Dummies" e "Airwaves", de álbuns anteriores, de simplificar sua linguagem e compor canções mais adaptadas a um padrão mais convencional. E não que isso fosse uma concessão em nome de aceitação ou "sucesso", era simplesmente o ponto onde sua trajetória havia levado, tendo, muitas vezes para chegar até ali, que extrair sons sons de onde não havia, inventar equipamentos e inovar em métodos de gravação. No entanto, naquele momento, diante das tendências musicais vigentes, repletas de sintetizadores e repetições eletrônicas, era o Kraftwerk que soava como oportunista. "Metropolis" e "Spacelab", ambas de ritmo repetido e pulsante, eram frequentemente comparadas a trabalhos de Giorgio Moroder, compositor e produtor de grande sucesso no universo disco-music daquela metade para o final dos anos 70, em especial a "I Feel Love", música gravada por Donna Summer e que havia sido lançada no ano antes. Semelhanças existem mas o "usurpador", no caso era o produtor italiano que encontrara pronto um modelo que os alemães vinham lapidando há muito tempo, o que pode ser observado, por exemplo, na música "Kristallo", do disco "Ralph und Florian", ainda da era pré-Kraftwerk que já continha o embrião daquela ideia. A mencionada "Spacelab", no que diz respeito à temática, por sua vez, mantém a linha de coerência e amarração do álbum uma vez que o espaço, as pesquisas, as descobertas, os desbravamentos, sempre tiveram no nosso imaginário, alimentadas pela ficção-científica, ligação com os robôs e humanoides.
Mas toda a questão homem-máquina converge para a faixa que encerra o disco e com ele divide o nome. "The Man-Machine", consegue com seus parcos e sucintos versos sintetizar toda a ideia do álbum, deixando em aberto questões como quem domina quem e quem, na verdade, é o robô: "Man-machine, pseudo human being/ Man-machine, super human being..." ("Homem-máquina, semi ser humano/ Homem-máquina, super ser humano...). Uma composição magistral que habilmente inverte a hierarquia melódica, fazendo com que, sobre uma percussão eletrônica bem marcada e uma base praticamente fixa, um vocal sintético guie ritmicamente a música até culminar numa repetição da palavra "machine", subindo em escala, até concluir com um último MACHINE prolongado, pronunciado como algo entre o agonizante e o ameaçador.
Apesar da flexibilização do Kraftwerk em "The Man-Machine" e da identificação com a sonoridade do momento, o disco não foi muito bem comercialmente, com exceção de "The Model", que acabou frequentando as paradas, mas mesmo assim, apenas em uma segunda investida, num relançamento três anos depois, como lado-B do single "Computer Love" do álbum sucessor, "Computer World", que daria continuidade ao conceito de "The Man-Machine" e confirmaria sua importância como consolidador da linguagem da banda dali em frente.
Um trabalho impressionante e assombrosamente profético. Em seis faixas o Kraftwerk antecipava elementos tecnológicos, urbanos, sociológicos e comportamentais do mundo atual como se tivesse visto tudo isso antes... Ei! Peraí...
Não, não pode ser...
...
Será?

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FAIXAS:
01 The Robots - 6:15
02 Spacelab - 5:57
03 Metropolis - 6:05
04 Model - 3:44
05 Neon Lights - 8:57
06 Man Machine - 5:30


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Ouça:
Kratwerk - The Man-Machine

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Música da Cabeça - Programa #162


Faz horas que vem se dizendo que o rock morreu, e talvez esse dia tenha chegado quando o mundo perde na mesma semana Little Richard e Florian Schneider da Kraftwerk. Um dos criadores e um dos reinventores do rock ‘n’ roll serão devidamente lembrados no MDC de hoje, que também terá muita variedade e qualidade em suas homenagens: Smashing Pumpkins, Os Replicantes, Norah Jones, The B52’s, João Bosco e mais. Ainda, um “Palavra Lê” dedicado a um dos aniversariantes da semana, Nei Lopes. Tudo às 21h, na roqueira Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. E lhes digo mais: “A-wop-bop-a-loo-wop-a-wop-bam-BOOM TSCHAK!”





segunda-feira, 27 de maio de 2024

Philip Glass - "Symphony Nº 4 'Heroes'” ou "'Heroes' Symphony - by Philip Glass from the Music of David Bowie & Brian Eno” (1997)



As várias capas e edições de "Heroes" pelos selos
Point Music, Orange Mountain, Universal e Decca
  
“A influência contínua destas obras, ‘Low’ e ‘Heroes’, garantiu a sua estatura como parte dos novos ‘clássicos’ do nosso tempo. Assim como os compositores do passado recorreram à música do seu tempo para criar novas obras, o trabalho de Bowie e Eno tornou-se uma inspiração e ponto de partida para uma série de sinfonias de minha autoria”.
 
Philip Glass

Chegados os anos 90, Philip Glass já era uma lenda digna da idolatria. Ligado à música de vanguarda da Costa Leste norte-americana, pela qual surgiu nos anos 60, o autor das “Glassworks” e de peças revolucionárias como “Music in Twelve Parts”, “Koyaanisqatsi” e "Metamorphosis" já havia ultrapassado a linha entre erudito e popular fazia muito tempo, desde suas trilhas sonoras marcantes para o cinema quanto por sua aproximação com o rock e a world music. Porém, afeito a desafios, Glass deu-se conta de um gap em sua já extensa obra àquela época: por incrível que parecesse, faltava-lhe ainda a composição de uma sinfonia. Sim, Glass havia escrito óperas, concertos, corais, peças para câmara e teatro, prelúdios, partitas, balês, sonatas, trilhas sonoras e toda categoria musical que se possa imaginar. Menos sinfonia, justamente o gênero que tanto consagraria os grandes nomes da música clássica, aquele pelo qual os fariam mundialmente conhecidos, como Beethoven (5ª e ), Mahler (Trágica), Mozart (41ª ou Júpiter), Berlioz (Fantástica) e Shostakovich (8ª).

Glass precisava preencher essa lacuna. No entanto, dada a importância deste tipo de obra para um autor do gabarito dele, entendia que precisava ser algo especial. O “coelho da cartola” foi, mais uma vez, a versatilidade e o ecletismo: usar o rock como base para isso. Igual ao que compositores clássicos antigos faziam ao se referenciarem na obra de seus ídolos, só que de uma forma bem inovadora. Sobre temas do clássico disco “Low”, de David Bowie, de 1977, gravado na Alemanha e cuja batuta de Brian Eno mereceu-lhe créditos de coautoria, Glass elaborou sua primeira sinfonia em 1992. Um sucesso de crítica e, principalmente, junto aos próprios Bowie e Eno, que adoraram a homenagem, O mais legal da rica versão de Glass para as faixas do Lado B de “Low”, as de caráter mais ambient e avant-garde do álbum, foi que ele não criou uma ópera-rock, dando somente um teor erudito a sonoridades pop mas, sim, extraindo o que havia de “erudito” de cada música, de cada detalhe, fosse na instrumentalização, no redesenho sonoro ou mesmo na escolha de quais faixas usar.

Caminho aberto para as sinfonias, e Glass, então, não parou mais. Escreveu, nos anos subsequentes, as de nº 2 (1994) e nº 3 (1995) - formando, atualmente, 14 peças neste celebrado formato. Porém, a talvez melhor de sua carreira seja a que veio logo a seguir, em 1997: a “Sinfonia nº 4” ou simplesmente “Heroes”. Animado com a primeira experiência sinfônica e encorajado pelos próprios autores, Glass repete a dose de se inspirar noutro álbum célebre de Bowie/Eno: “Heroes”, de 1978, que forma, junto com "Low" e “Lodger”, de 1979, a famosa trilogia alemã que redefiniu o futuro da música pop com sua ousada combinação de influências da world music, da vanguarda experimental e do rock.

A experiência das sinfonias anteriores - bem como dos trabalhos com grande orquestra, como as óperas - foi, contudo, fundamental para que Glass chegasse à sua quarta empreitada neste tipo de obra mais equipado musical, formal e esteticamente. Glass sabia exatamente como fruir os sons e arranjos das canções originais para criar uma peça ainda mais singular. Ele utiliza flautins, clarinetes baixos, metais (trompete, trombone, trombone baixo, trompa e tuba), percussões (tambor lateral, tambor tenor, bumbo, pandeiro, pratos, triângulo, vibrafone, tam-tam, castanholas e carrilhão), harpa, celeste e cordas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo).

O melhor exemplo é o tema-título, o "1º Movimento". Quem escuta os acordes orquestrados de Glass dificilmente identifica a música de Bowie, aquele glitter rock potente e dramático. Aliás, talvez a única característica mais visível que ele tenha mantido nos quase 10 minutos que se transcorrem (em detrimento dos aproximadamente 3min30' da versão comercial de Bowie ou, no melhor dos casos, dos pouco mais de 6min da versão estendida) seja a dramaticidade, tendo em vista que a transforma num adagio instrumental cheio de idas e vindas, volumes e variações de intensidade, Mas, principalmente: o veterano minimalista deu uma personalidade única à música, recriando-a. O entendimento de Glass sobre o que ele ouve em “Heroes” é tão singular quanto genial, coisa de quem tem ouvido absoluto ou uma outra percepção sobre as coisas: uma audição além daquilo que os reles mortais alcançam. 

A “Heroes” de Glass, por sinal, é mais colorida do que a séria expressividade dada pelo autor da canção. E não se ceda à tentação de cogitar que a “Heroes” sinfônica é meramente uma orquestração do tema que a originou, como se fosse possível encaixar uma sobre a outra. É, sim, uma outra “Heroes” - ou melhor, a mesma, só que sentida de outra forma. E embora as dessemelhança, por incrível que pareça, há ainda um fio de identificação, como que a "alma" da criação tivesse se mantido. A se pensar em outros trabalhos da música erudita dos anos 90, década pouco densa em obras significativas nesse campo em relação a suas antecessoras, “Heroes, Moviment I” é comparável a outras três marcantes obras: “Kristallnacht”, de John Zorn, "Food Gathering in Post-Industrial America, 1992", de Frank Zappa, e “Blu”, de Ryuichi Sakamoto.

Na sequência, “Abdulmajid”, de um arranjo primoroso, pega emprestada com suavidade a atmosfera árabe deste b-side de “Heroes”, uma world music bastante eletrônica em sua concepção primal, próximo ao som de Jon Hassell e Terry Riley. Ela ganha, agora, um conjunto de cordas em variações de 5 e 7 tempos, castanholas e uma percussão cintilante de sinos, esta última, executora do “riff”. Assim como o movimento inicial, este andante é prova da tarefa nada óbvia a que Glass se propôs, uma vez que seria, por exemplo, muito mais fácil arranjar para orquestra o tema de feições orientais (e já instrumental) “Moss Garden”, uma das faixas de “Heroes” de Bowie que não aproveitou. Já “Sense of Doubt”, originalmente instrumental, é provavelmente a que menos trabalho lhe deu em adaptar, visto que sua estrutura melódica forjada nos sintetizadores já intui o som da orquestra.

Para “Sons of the Silent Age”, mais uma das originalmente cantadas assim como “Heroes”, Glass suprime as vozes e dá a roupagem mais clássica de todas do repertório. Elegante, explora bastante os sopros doces em contraste com os registros graves de tuba e trombone baixo. Pode-se dizer um balê glassiano, que traz as repetições circulares de cordas e sopros, as quais dão a sensação hipnótica peculiar de sua música, mas ao mesmo tempo bastante renascentista, fazendo remeter a outros mestres formadores de sua musicalidade como Bach e Mozart.

Outra que Glass consegue unir a originalidade de seu olhar sobre a obra alheia e o frescor daquilo em que se baseia é “Neuköln”, a música que os ingleses Bowie e Eno compuseram em homenagem a um dos bairros de Berlim no período em que se refugiaram na capital alemã para produzir “Low/Heroes/Lodger”. Nesta, o compositor norte-americano se esbalda sobre a ideia-base, a de uma peça eletroacústica que conjuga sintetizadores, guitarras e frases arábicas de um áspero sax alto tirada do atonalismo de Cage e La Monte Young, admirados por Eno. Sabedor de todos estes caminhos como poucos, tanto dos antecessores quanto dos contemporâneos, Glass reúne as pulsões sonoras distintas e promove uma reunião de tempos e intenções, redimensionando a própria música. Ele não deixa de aproveitar nenhuma nota, nenhum som para atribuir a “Movement V - Neuköln” um caráter particularmente épico. 

Encerrando, outra na qual Glass mostra o quanto suas antenas são capazes de sintetizar mundos. Homenagem de Bowie e Eno aos pais do pop eletrônico, a banda alemã Kraftwerk, ‘V2 Schneider” (referência ao sobrenome de um dos fundadores e principais compositores dos “homens-máquina”, Florian Schneider) ganha uma retextura de Glass à sonoridade high-tech em um corpo sonoro tradicional e secular. Conforme diz o crítico musical especializado em música clássica Richard Whitehouse, “V2 Schneider” abre com movimentos rítmicos animados em metais e percussão, cordas e sopros trocando temas à medida que a música ganha em incisividade. “O movimento rítmico solidifica-se num ostinato pulsante, ao longo do qual a atividade ganha intensidade textural e dinâmica, construindo um pico de que é encimado pelo vigoroso acorde de encerramento, arredondando assim toda a obra com um efeito decisivo”, completa. Ao traduzir Bowie/Eno, Glass retraduzia o kratrock alemão presenciado in loco pela dupla britânica e, por tabela, todos os que inventaram a música eletrônica, como o “germaníssimo” Karlheinz Stockhausen e a turma da Música Nova de Darmstadt dos anos 50.

Em 1971, dois jovens músicos de aparência kitsch interessados em arte para além do rock assistiam empolgados à estreia em Londres de “Music in Changing Parts”, obra da primeira fase de Glass. Esses jovens eram David Jones e Brian de La Salle Eno, já artistas consagrados, mas nem por isso incapazes de admirar um de seus heróis na música. Tamanha reverência parece ter, de alguma forma, influído para que esse “herói” concretizasse, mesmo que apenas mais de três décadas depois, a autoexigência de compor sinfonias tendo como objeto exatamente aqueles dois rapazes fãs de tanto tempo. Sucessor de “Low” na fase alemã de Bowie, “Heroes” fazia-se, agora sinfônico, igualmente sucessor, mas na carreira de Glass - que ainda concluiria a veneração à trilogia berlinense com “Symphony Nº 12  - Lodger”, de 2022. Criadores e criaturas se intercambiam e se referenciam mutuamente. Como dizem os versos da música que dá nome a ambas as obras, a de Bowie/Eno e a de Glass, “Nós podemos ser heróis”. Todos são.

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Como ocorre com obras do catálogo ligado à música clássica, “Heroes Symphony” ganhou mais de uma edição. Em pelo menos duas delas, a peça vem acompanhada no CD de outras duas também orquestrais: o "Concerto para Violino", de 1987 (edição Deutsche Grammophon/Decca, de 2014), e outra em conjunto com “Low Symphony” (Universal, 2003). 

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FAIXAS:
1. “Movement I - Heroes” (David Bowie/Brian Eno) - 9:28
2. “Movement II - Abdulmajid” (Bowie/Eno) - 9:24
3. “Movement III - Sense of Doubt” (Bowie) - 7:29
4. “Movement IV - Sons of the Silent Age” (Bowie) - 8:37
5. “Movement V - Neukoln” (Bowie/Eno) - 7:58
6. “Movement VI - V2 Schneider” (Bowie) - 7:17

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues