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segunda-feira, 24 de julho de 2023

Emílio Santiago & João Donato - “Emílio Santiago Encontra João Donato” (2003)

 

“João Donato é o maior músico do Brasil”
Tom Jobim

"Emílio Santiago é a voz do Brasil"
Roberto Menescal 


Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.

Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007. 

O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.

“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.  

O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).

Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato. 

Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.

Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio. 

Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita. 

Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.

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FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
2. “E Vamos Lá” (Joyce, Donato) - 2:57
3. “E Muito Mais” (Donato, Ênio) - 2:52
4. “Nunca Mais” (Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Donato) - 3:53
5. “Então Que Tal” (Donato, Ênio) - 4:03
6. “Até Quem Sabe” (Donato, Ênio) - 3:09
7. “Sambolero” (Carmen Costa, Donato) - 3:15
8. “Everyday” (Donato, Norman Gimbel) - 3:04
9. “Os Caminhos” (Abel Silva, Donato) - 3:42
10. “Pelo Avesso” (Donato, Ênio) - 2:53
11. “Mentiras” (Donato, Ênio) - 4:00
12. “Surpresa” (Caetano Veloso, Donato) - 2:14
13. “Clorofila Do Sol (Planta)” (Antunes, Donato) - 3:10
14. “A Paz” (Gilberto Gil, Donato) - 4:11



Daniel Rodrigues

sexta-feira, 12 de maio de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 2)

 

O novíssimo "Marte Um" já figurando
na lista dos melhores da história
A lista dos 110 filmes dos 110 anos de cinema brasileiro continua. Nesta segunda parte, na ordem decrescente iniciada da última posição, são mais 20 títulos, e a diversidade e criatividade típicas do cinema nacional se fazem cada vez mais presentes. Obras marcantes da retomada, como “Bicho de Sete Cabeças” e “O Invasor” convivem com clássicos combativos do cinema novo (“O Desafio”), documentários de décadas distintas (“Partido Alto”, dos anos 70, e “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto” e “O Fim e o Princípio”, anos 2010) e longas recentíssimos. Entre estes, “Marte Um”, o mais novo de toda a lista, que precisou de menos de um ano de lançamento para carimbar seu lugar ao lado de consagradas chanchadas ou de produções inovadoras, tal o experimental "A Margem" e “A Velha a Fiar”, primeiro “videoclipe” do Brasil em que o tarimbado Humberto Mauro ilustra a canção popular de mesmo nome do Trio Irakitã.

A ausência, pelo menos neste novo recorte, são os filmes dos anos 80, que geralmente pipocam entre os escolhidos, mas que certamente virão mais adiante. Interessante perceber que cineastas mundialmente consagrados como Babenco, Karim e Coutinho se emparelham com novos realizadores como os jovens Gabriel Martins e Gustavo Pizzi. Tradição e renovação. Fiquemos, então, com mais uma parte da listagem que a gente traz como uma das celebrações pelos 15 anos do Clyblog.

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90.
“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, Walter Avancini (1978)

Possivelmente, em algum momento o brasileiro viu uma cena em que Paulo Gracindo bebe um martelinho num boteco pensando que fosse cachaça e, indignado com a enganação, grita: “Água!”. A palavra ecoa enquanto a imagem congela e uma música brasileiríssima divina começa a tocar anunciando os créditos iniciais. Tanto quanto uma cena como a da nudez na praia de Norma Bengell em “Os Cafajestes” ou da operação do Bope no baile funk em “Tropa de Elite”, este começo do “teledrama” baseado no conto de Jorge Amado tem ainda a primazia de ser uma obra feita para a televisão, o que a coloca em tese em inferioridade diante do comum 35mm do cinema. Mas a questão instrumental não interfere neste média absolutamente brilhante dirigido por Avancini. Atuações e diálogos memoráveis, arte primorosa, ritmo perfeito, figurino geniais de Carybé, trilha magnífica de Dori Caymmi. Não à toa deu um dos Emmy conquistados pela TV Globo.


89. “O Invasor”, de Beto Brant (2001) 
88. “O Desafio”, Paulo César Saraceni (1965) 
87. “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor d'Alincourt (2013)
86. “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa, Raphael Alvarez (2005)
85. “Dois Filhos de Francisco”, Breno Silveira (2005)


84, “Partido Alto”, Leon Hirszman (1976-82)
83. “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (2000)
82. “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (2001) 
81. “O Homem do Sputnik”, Carlos Manga (1959)

80.
“Bicho de Sete Cabeças”, Laís Bodanzky (2000)

Da leva do início dos 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. Símbolo desta fase, “Bicho...” é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Ainda, está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.


79. “Marte Um”, Gabriel Martins (2022)
78. “Madame Satã”, de Karim Ainouz (2002) 
77. “Babilônia 2000”, Eduardo Coutinho (2001)
76. “Benzinho”, Gustavo Pizzi (2018)
75. “A Margem”, Ozualdo Candeias (1967)


74. “Estômago”, de Marcos Jorge (2007) 
73. “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco (1976) 
72. “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2006)
71. “A Velha a Fiar”, Humberto Mauro (1964)


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Geraes" (1976)

 

"Esses gerais são sem tamanho."
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas"

"Sou o mundo, sou Minas Gerais."
Da letra de "Para Lennon e McCartney", de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant


Tom Jobim e o desenho sinuoso e sensual da Rio de Janeiro. 

Dorival Caymmi e a Bahia dos pescadores e santos do candomblé. 

Moondog e as pradarias inóspitas do Wyoming. 

Robert Johnson e as infinitas plantações de algodão do Mississipi. 

Violeta Parra e a imensidão das cordilheiras andinas. 

É sublime quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o próprio lugar.

Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro, o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja, muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a qual se homogeiniza. 

Em meados dos anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria essência: a terra que lhe é e a qual pertence. 

Mas Milton, carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive. Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras, "Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.

A ligação entre uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava"). A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do próprio Bituca. 

O lado político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta (guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim, lançar a música e não se calar diante da barbárie. 

Quem também garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra, cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana: "O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)", Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”


Milton e Chico: encontro mágico promovido à época
de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira

A maturidade filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem filtro. 

As amizades, aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” 

Parece que não cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo, desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton, de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória, Toninho e toda a patota! 

Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”. 

Ouvindo-se “Minas” e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas, é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento. Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo, pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80 anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a harmonia do espaço. 

Milton é mais do que homem: é pedra. Eterna.

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É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.

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FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13

Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48


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OUÇA O DISCO
Milton Nascimento - "Geraes" 


Daniel Rodrigues

Milton Nascimento - "Minas" (1975)

 





"O disco é dedicado
a todas as pessoas que ajudaram
e pro Rubio, um menino
que juntou duas sílabas do meu nome
e descobriu o título."
Milton Nascimento



"Minas", parte Estado da Federação, parte estado de espírito... Por outro lado, duas partes de um nome: MIlton NAScimento. "Minas", cuja arte, belíssima, traz apenas a face, muito aproximada do cantor, na capa e contracapa, é um pouco de cada face de Milton. Doce, lírico, combativo, atrevido, arrojado, e acima de tudo, talentosíssimo.
"Minas", disco de 1975, é um trabalho ousado, quase experimental, de um músico completamente maduro e ciente de todas as suas possibilidades. 
Atravessado de ponta a ponta pelo coro infantil de "Paula e Bebeto", o álbum tem um formato, até por isso mesmo, pouco convencional. A canção composta em parceria com Caetano Veloso, uma espécie de pré-"Eduardo e Mônica", aparece desde a abertura, na belíssima "Minas", voa nas asas dos "...Aviões da Panair", reaparece na intensa "Idolatrada", até, finalmente ressurgir lá, quase no final do disco. 
No meio de tudo isso temos o rock-jazz sofisticado da desafiadora "Fé Cega, Faca Amolada", com a participação de Beto Guedes; a balada elegante "Beijo Partido"; o manifesto sobre a fome e desigualdade escondido sob uma lona colorida na ótima "Gran Circo"; toda a riqueza sonora de "Ponta de Areia", quase um ponto de capoeira transmutado nas mãos de Milton e Fernando Brant em uma melodia de ninar; a "estranha" crônica urbana, sombria e misteriosa, de "Trastevere", com participações do MPB4, Joyce e Nana Caymmi; e "Leila...", uma variação da base de "Milagre dos Peixes", de 1973, com belíssimas vocalizações de Milton sobre o arranjo de Wagner Tiso.
"Paula e Bebeto", que amarrara o disco até então, aparece mesmo, inteira, completa, com letra, dando seu recado de que "qualquer maneira de amor vale a pena", como penúltimo ato do disco, que finaliza com a faixa "Simples" que, apesar do nome, apresenta uma composição complexa, intrincada e uma poesia enigmática, sugestiva, com imagens de memória que beiram o surrealismo.
"Minas" é um disco múltiplo em sua concepção, em suas alternativas, em sua diversidade. Tem tantos compositores, tantas participações, tantos parceiros que parece um coletivo, quase um novo "Clube da Esquina", um novo Som Imaginário. Na verdade, é um pouco de tudo isso: apanhando características, experiências de discos anteriores, superando limitações, como a proibição das letras em "Milagre dos Peixes", tirando proveito do aprendizado dessa censura com o aperfeiçoamento das performances vocais sem letra que se tornaram sua marca, utilizando-se da parceria certa para cada intenção musical, sabendo mesclar possibilidades sonoras dentro da mesma obra, Milton chegava a um disco singular. E se alguém imaginava que não dava para repetir, ir mais longe ou superar, depois ainda viria o complemento de "Minas", "Geraes", de 1976. Mas isso já é outra história...


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FAIXAS:

1. Minas (Novelli)
2. Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos)
3. Beijo Partido (Toninho Horta)
4. Saudade dos Aviões da Panair (Milton Nascimento, Fernando Brant)
5. Gran Circo (Milton Nascimento, Márcio Borges)
6. Ponta de Areia (Milton Nascimento, Fernando Brant)
7. Trastevere (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos)
8. Idolatrada (Milton Nascimento, Fernando Brant)
9. Leila (Milton Nascimento)
10. Paula e Bebeto (Milton Nascimento, Caetano Veloso)
11. Simples (Nelson Angelo)


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Ouça:

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Copa do Mundo Gilberto Gil - classificados da segunda fase


Eis os classificados na segunda fase, que avançam no nosso pequeno certame futebolístico-musical.
Rapai..., a coisa foi braba nessa segunda fase! Nossos julgadores tiveram enorme dificuldade e alguns nomes grandes, potenciais candidatos, ficaram pelo caminho: "A Paz", "Se eu quiser falar com Deus", "Barracos", Ê, povo, ê", "Parabolicamará", "Extra", foram algumas das "camisetas pesadas" que deram tchau para a competição.  
E quer saber? 
Vai piorar. 
Ou melhorar, dependendo do ponto de vista. 
A partir de agora, a coisa afunila mesmo, e só as fortes sobreviverão. 
Aguardemos para ver. Aguardemos.
Confere aí, abaixo, quem avança na competição:






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resultados de Leocádia Costa


La Renaissence Africane 2x3 Ilê Ayê
O jogo virou e favoreceu esse hino que ecoa ancestralidade por todos os poros. Vitória justa!


Copo Vazio 1x3 Marginália 2
A poesia profética e cortante de Torquato Neto arrasou a canção cheia de lirismo. Sem chance de reação.


O Som da Pessoa 3x2 O Eterno Deus Mu Dança!
A disputa foi acirrada, mas “O Som da Pessoa” é pura poesia. E esse violão, minha gente!!! Agitou a galera!


Filhos de Gandhi 4x0 Ê, Povo, Ê
A canção que arrasta milhares de pessoas quando esse bloco sai em Salvador emociona demais. Essa música é “Filhos de Gandhi”. Clássico é clássico!


Three Little Birds 3x0 Ela
Bob Marley na voz de Gil é mágico. É como Garrincha jogando com Pelé, sabe? Essa canção é uma das minhas prediletas. Me sinto voando quando a escuto.


Panis et Circenses 3x2 Refavela
Jogo difícil, porque ambas são muito representativas, timaços em campo. Dessa vez fico com a lendária “Panis et Circenses”, que migrou para outros intérpretes e continua intacta, eterna.


Serafim 1x 3 Sítio do Pica-Pau Amarelo
O jogo foi fácil, porque o emocional atingiu a concentração dos competidores. Primeira infância emplacando os corações.


Oriente 3x0 Chuck Berry Fields Forever
A magistral canção que cresce quando executada não deu espaço e ganhou de lavada do adversário.

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resultados de Kaká Reis


Flora 1x0 Joao Sabino
Essa disputa já chegou de forma bem desafiante! Joao Sabino era até então desconhecida por mim, porém de uma enorme genialidade. Mesmo assim, nessa disputa. Flora vence por 1x0.

Esotérico 5x0 Norte da Saudade
Nem bem o juiz apitou e Esotérico meteu 5 bolas na rede! Essa é quase imbatível!

Punk da Periferia 1x3 Domingo no Parque
Complicou o meio de campo! O jogo abre com Domingo No Parque abrindo vantagem. Punk da Periferia consegue emplacar um gol, mas antes do final do 2º templo, Domingo no Parque fecha o Placar em 3x1. É muita música!!!!

Amarra o teu arado a uma estrela 1x0 Cores Vivas
Mais um confronto com uma “inédita” pra mim. Dessa vez, dificílimo julgamento da juiza! Rs. E acreditem se quiser, nessa disputa, conseguiu cravar 1x0 em Cores Vivas, ganhando a disputa.


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resultados de Joana Lessa


Drão 3x2 Barracos
Num clássico como esse, a disputa é apertada. Drão veio metendo 2, até que Barracos encostou. Mas no final deu Drão.


Lamento sertanejo 1x2 Andar com Fé
Placar apertado, mas pode se dizer que Andar Com Fé ganhou com uma certa tranquilidade.


Zumbi 5x2 Batmacumba
Zumbi já chegou goleando, mesmo com uma pequena reação de Batmacumba


Cinema Novo 1x3 Vitrines
Vitrines levou com facilidade. Já era superior antes mesmo de entrar em campo.


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resultados de Rodrigo Dutra


Lugar Comum 0x2 Maracatu Atômico
Ah, eu amo Lugar Comum por ser a cara de Donato, mas “Maracatu Atômico” é de Jorge Mautner e lembro como a versão de Chico Science definiu o Mangue Beat nos anos 90. “Manamaê ô!”


Quilombo, o Eldorado Negro 0x1 Aquele Abraço
“Aquele Abraço” pros quilombos. A música que Gil fez pra se despedir do Brasil é uma das favoritas ao título. Alô, Alô ClyBlog, olha o breque!


Queremos Saber 1x2222 Expresso 2222
Uma pena “Queremos Saber” enfrentar esse verdadeiro trem de ferro que é a magnífica “Expresso 2222”. É o retorno de Gil pro Brasil, é o olhar pro futuro, além do balanço forrozeiro único. Goleada absurda!


Procissão 0x0 Palco (2x3)
“Palco” ganha nos pênaltis, porque “Procissão”, embora seja pura poesia e tenha ouvido tanto na vida, não atinge o grau festeiro, oitentista, sagrado e popular de “Palco”, trilha até de Chiquititas.


Parabolicamará 2x4 Tempo Rei
Sou noveleiro, mas tenho que reverenciar a Coroa. “Tempo Rei” ganha com autoridade oitentista. Clássica!


Back in Bahia 1x0 Geleia Geral
Essa faço chorando, porque “Geleia Geral” é tão legal! Torquato Neto, Tropicália, Pindorama, a mistura regurgitofágica desses anos de ouro. Mas “Back in Bahia” é mais poderosa, em melodia e significado.


A Paz 4x5 Toda Menina Baiana
Outra parada duríssima. Queremos paz para nuestro pueblo, mas as meninas baianas imperfeitas se sobressaem. Foi um placar acirrado que Deus deu.


Kaya N'gan Daya 2x0 Nêga
“Nêga” caiu no ritmo contagiante da tribo fumacê jamaicana e perdeu o jogo. Trench Town ganhou de Londres.


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resultados de Daniel Rodrigues


Pai e Mãe 0x3 Refazenda 
Clássico Regional! Jogo de clubes (músicas) do mesmo lugar (disco). Mas é mais ou menos Inter x São José, Flamengo x Ameriquinha ou Atlético Mineiro x América Mineiro, sabe? Por mais que “Pai e Mãe” tenha bons momentos, emocionantes até, não tem como competir com “Refazenda”, que impõe seu esquema, refazendo tudo. Time que tem paciência de ver amadurecer o gol. Sabes ao que estou me referindo, né? O tempo demora a trazer o gol, mas, sem desistir, “Refazenda” chega ao primeiro e depois a bonança veio ao natural. Com tranquilidade, “Refazenda” fecha com uma quase goleada de 3 x 0.


Extra 0x1 Realce 
Reggae versus disco music. Seriedade versus alegria. Reflexão versus espontaneidade. Quem sai vencedor neste duelo de opostos? “Realce” se vale de seu futebol propositivo, sem medo de ser feliz, enquanto “Extra” tem um esquema bem pensado, que sabe onde quer chegar. Mas “Realce” não desespera, pois quando vai pro ataque fere a tal ponto que nenhum mágico interferirá. Tanto foi que, de repente, brilhou: “Realce” marca ali pela metade do primeiro tempo aquele que seria o gol da vitória. Apertada, mas suficiente para lhe colocar na próxima fase da Copa Gil. E a organizada LGBTQIA+ na arquibancada vai à loucura!


Super-Homem (A Canção) 2x1 Tradição 
Outro clássico de músicas irmãs. Os dois se sentem em casa. Mas “Super-Homem” entra em campo com uma vantagem, pois é ela que antecede justamente “Tradição” no disco e tem a função de lhe “passar a bola”. Só que ela devolve a bola no círculo central, porque conseguiu abrir o placar. Mas não tem jogo perdido! É o tipo da partida que tem emoção até o fim. “Tradição”, como o nome diz, tem uma camiseta pesada e muito recurso de gingado e empata. No segundo tempo, segue a igualdade: a emotividade de “Super-Homem” e a qualidade amadiana de “Tradição”. Até que, mudando como um Deus o curso da história, o super-homem veio restituir sua canção à glória, que marca no finazinho (ali quando Gil dá aquele agudo lindo: “Por causa da mulheeeer...”) e esta grande partida se encerra assim: 2 x 1 para “Super-Homem (a canção)”


Essa é pra tocar no rádio 0x1 São João Xangô Menino 
Jogo disputado, com muitas oportunidades de cada lado, chances de gol, bola na trave, gol anulado e... nada de sair do zero. Times bem parelhos: “São João” com status de Doce Bárbaros e “Essa...”, que já entra em campo desta vez não com a formação de “Refavela”, mas a de “Gil & Jorge”, ou seja, com um futebol mais malandro, ousado, pautado no “dibre”. Mas ninguém resiste àquele refrão móvel de “São João”, ainda mais naquele em que tasca várias referências a discos de Caetano, Gil, Gal e Bethânia (“Viva Refazenda/ Viva Dominguinhos/ Viva qualquer coisa/ Gal canta Caymmi/ Pássaro proibido”). Partida resolvida no detalhe, “São João” marca o seu e solta foguete pra comemorar. 1 x 0, placar final.


Meio de Campo 0x1 Raça Humana 
Outra parada dura. “Meio de Campo” se vale do privilégio de ser das poucas músicas de Gil com referência ao futebol, o que já a põe em vantagem. Outro fator importante: música pra voz de Elis Regina. Ou seja, daquelas de respeito. Só que ela, naquela filosofia “Eu não sou Pelé nem nada, se muito for eu sou um Tostão”, atacava, atacava, e nada de sair do zero. “Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão”, falou o técnico já irritado. E como camiseta não ganha jogo e não adianta manter o jogo só no meio de campo, a adversária, com leitura cirúrgica do fator humano, riscou, rabiscou e pintou um golaço na meta defendida pelo goleiro que joga na seleção. “Entrou com bola e tudo!”, disse o narrador. E foi assim que a partida se resolveu: com um belo gol, construído com trabalho de Deus. 1 x 0 “Raça Humana”.


Haiti 1x0 Se eu quiser falar com Deus 
Pedreira num jogo de iguais, mesmo que de épocas diferentes. A diferença de 12 anos a mais não fez com que “Se eu...” se intimidasse com o vigor da adversária e abre o placar. Mas “Haiti” não se assusta com a reza brava da adversária e reage em seguida, empatando. A partir daí o jogo fica encroado, nervoso, com os dois times se respeitando. Foi então que, numa distração de “Se eu...”, a ousada “Haiti” aproveita uma escapada pela ponta, na hora do rap de Gil (“111 presos, mas presos são quase todos pretos...”) e define: 1 x 0. “Haiti”, que não veio pra brincadeira nessa Copa, tira uma das fortes candidatas. Mas futebol é isso, e a torcida canta: “O Haiti é aqui!”


Cálice 2x0 Tenho Sede 
“Tenho Sede” é daquelas músicas tão bonitas que lhe cabe com precisão o termo “terna”. Só que pra jogar um torneio tão disputado tem que estar com a condição física em dia. “Cálice”, agressiva e com time bem posicionado (tendendo, muitas vezes, a fazer suas jogadas pela esquerda, obviamente), vale-se que a adversária cansou um pouco, precisava se hidratar, e aproveita essa queda de rendimento para forçar o jogo. Depois de uma tabelinha entre Gil e aquele atacante contratado do Politheama fã de Canhoteiro, o Chico, mete na rede. Na comemoração, dedinho em riste no lábio mandando recado pra torcida adversária: “Cale-se!”. Com mais um pra decretar o placar final, “Cálice” faz 2 x 0 e fecha a conta.


Só quero um xodó 0x1 Barato Total
Sabe aquele time que tem um futebol bonito, que todos gostam de ver, e que tem carisma junto ao público? “Só quero um xodó” é assim. Parceria Gil e Dominguinhos não poderia dar noutra coisa, né? Mas o problema é que ela pegou pela frente a potente “Barato Total”. Música de muitos recursos (rítmicos, timbrísticos, harmônicos, vocais), que entra em campo com aquela aparente displicência, cantando “lalalá”, mas, no fundo, tá superligada na partida. A aposta é no futebol alegre, afinal, quando a gente 'tá contente, nem pensar que está contente a gente quer: a gente quer, a gente quer, a gente quer é fazer gol, claro! Vitória simples de 1 x 0, que poderia ter sido 2 ou 3 se “Barato...” não se esquecesse de vez em quando do seu compromisso de ganhar a partida.


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CLASSIFICADOS PARA A TERCEIRA FASE:
Drão
Andar com Fé
Zumbi
Vitrines
Barato Total
Cálice
Haiti
Raça Humana
São João Xangô Menino
Super-Homem (A Canção)
Realce
Refazenda
Kaya N'gan Daya
Toda Menina Baiana
Back in Bahia
Tempo Rei
Palco
Expresso 2222
Maracatu Atômico
Aquele Abraço
Flora 
Esotérico
Amarra o teu arado a uma estrela
Domingo no Parque
Oriente
Sítio do Pica-Pau amarelo
Panis et Circences
Ilê Ayê
Marginália 2
O Som da Pessoa
Filhos de Gandhi
Three Little Birds



Agora, tem novo sorteio, e nos próximos dias, 
divulgaremos os confrontos da nova fase da Copa Gil. 

quarta-feira, 9 de março de 2022

Música da Cabeça - Programa 257

 

Não é por acaso que a palavra "música" é feminina. Na semana que se comemora com beleza e consciência o Dia Internacional da Mulher, o MDC traz algumas delas para formar o programa 257. Vai ter Juçara Marçal (Metá Metá), Ana Terra (com Danilo Caymmi) e uma homenagem aos 80 anos de uma das lendas vivas do jazz mundial, a carioca Flora Purim. Além disso, os quadros fixos e móvel. Não perde: 21h, na feminíssima Rádio Elétrica. Produção e apresentação dela: Daniel Rodrigues

Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

"Doutor Gama", de Jeferson De (2020)

 

O Dia da Consciência Negra, embora não adotado em todo o Brasil (nem mesmo pela cidade na qual surgiu, Porto Alegre), tem ganhado a cada ano mais reverberação. Oxalá! Se acontecimentos recentes como a morte de repercussões mundiais de George Floyd ou o alarmante assassinato de Júlio César acabam por nos fazer lembrar da necessária e constante vigília contra o apagamento histórico – não raro, caracterizado pelo aniquilamento –, por outro lado, mais e mais a sociedade passa a enxergar esta data e não o 13 de Maio como aquela que, de fato, representa a valorização da cultura afro-brasileira e um avanço do maior espaço do negro em todas as esferas sociais.

Um dos aspectos positivos que esta conscientização gera é o do resgate da ancestralidade. E quando se fala em direito ao povo negro, é impossível não se lembrar no Brasil de uma personalidade tão histórica quanto admirável: Luiz Gama, figura central do filme "Doutor Gama", do diretor paulista Jeferson De. Nascido de ventre livre, o baiano Gama foi, mesmo assim, vendido como escravo aos 10 anos para pagar dívidas de jogo de seu pai, um homem branco. Mesmo escravizado, ele conseguiu se alfabetizar e, assim, conquistou sua liberdade, tornando-se um dos mais respeitados juristas de sua época. Vivido por Cesar Mello na vida adulta e por Angelo Fernandes na adolescência (além do competente Pedro Guilherme, que faz o personagem quando criança), o filme mostra a vida de Gama desde a infância até a conquista de seu primeiro grande caso jurídico, uma verdadeira quebra de paradigmas na mentalidade vigente da época cujo preconceito era ainda protegido por lei. 

Num desses apegamentos que a cultura colonialista tenta nos imputar, Gama por muito tempo foi classificado como “rábula”, ou seja, tanto "advogado pouco culto, incompetente, pilantra" quanto aquele que "exerce a advocacia sem ser qualificado". Errado. O historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha, mostra que esta imagem, propositadamente construída para diminuir a importância de Gama, está totalmente equivocada. E sempre esteve. Lima encontrou diversos (repito: não poucos, mas diversos!) documentos que provam que, já à sua época, Gama – que foi também escritor, jornalista e abolicionista – era creditado, sim, como “advogado”. Isso porque o exercício da advocacia não era restrito apenas aos bacharéis em Direito, mas também àqueles que tivessem alguma provisão, temporária ou definitiva, que reconhecesse a função por notório saber. 

O herói Luiz Gama: que rábula, que nada! Advogado

Não precisa de um profundo entendimento para se constatar que, num país forjado sobre a mentira da democracia racial, os ventos deste apagamento continuem sendo soprados. Recentemente, a tão conceituada editora Companhia das Letras foi motivadora de um episódio lamentável envolvendo a figura do próprio Luiz Gama. A editora decidiu retirar de circulação o livro infantil “Abecê da Liberdade: A História de Luiz Gama, o Menino que Quebrou Correntes com Palavras” depois de uma série de polêmicas na qual a empresa se colocou, deslavadamente, como "desavisada". Isso porque os autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta – brancos, claro –, tiveram a absurda irresponsabilidade (pra não dizer coisa pior) de escrever cenas do pequeno Gama quando criança brincando de “escravos de Jó” em pleno navio negreiro e pulando corda com as correntes... Ora, tenha dó! O próprio filme retrata esta passagem com a devida tristeza e crueldade como de fato ocorreu com Gama e milhares de negros escravizados. Mais uma mostra cabal do racismo estrutural, visto que mascarado de desentendimento, tanto por parte dos autores quanto da editora.

O que dizer, então, dessa sociedade preconceituosa que pretensamente grita aos quatro cantos que é antirracista mas que, justamente por isso – por não sê-lo, por não acreditar no que mesmo diz – acaba por ser exatamente aquilo que era desde o princípio: racista? Diretamente ligado a isso, note-se que "Doutor Gama" avança discursivamente num aspecto de profunda violência e desumanidade da escravocracia, que é a possibilidade de se subjugar, apenas pela cor da pele, alguém que nem mais escravo era - reforçando, pois, que a ideia de escravidão era e é social e não somente política. Este aspecto é o mote do oscarizado "Doze Anos de Escravidão" (de Steve McQueen, 2013) e é impressionante ver que somente agora obras comecem a relembrar tais práticas repugnantes. Porém, enquanto no filme norte-americano o protagonista passa uma vida lutado para sair da condição a qual foi injustamente colocado, em "Doutor Gama" vê-se um passo além: não só trata de um negro que conquistou a liberdade como ajudou outras centenas a também exercerem seus direitos à vida.

O longa brasileiro, por sinal, é muito bem realizado tanto técnica quanto narrativamente. Roteiro na medida certa entre o recorte histórico e a abordagem biográfica; fotografia impecável de Cristiano Conceição constituída sobre o conceito de luz natural de um Brasil de fins de século XIX; trilha deslumbrante do músico baiano Tiganá Santana (que em vários momentos lembra os memoráveis arranjos e composições de Dori Caymmi para televisão e cinema) e, principalmente, as interpretações. Neste aspecto – além da aparição sempre iluminada de Zezé Motta e de um igualmente luminoso Romeu Evaristo – é Cesar Mello quem mais desponta. O papel de Gama é difícil, visto que requer uma construção histórico-fisiológica longínqua e pouco documentada. Mas é ainda mais elogiável quando se considera o tamanho da responsabilidade para atores negros como Mello e Fernandes representá-lo. Aliás, sempre foi assim: tudo o que cabe a um negro fazer que não seja o seu comum papel subalterno carrega o dobro de obrigação para que não se perca a oportunidade nunca tida.

Cineasta negro, De é uma referência para a negritude de alguém capaz de ascender no meio audiovisual ainda tão desigual e racista. Sua produção, desde o longa de estreia "Bróder” (2005), aborda a questão negra em diversos aspectos. Recentemente, De lançou a comédia a la Globo Filmes "Correndo Atrás", com Aílton Graça no papel principal, que embora guarde suas validades, difere drasticamente da qualidade e essencialidade de “Doutor Gama”. Neste ponto, o longa de De acerta em cheio, preservando na força dos diálogos a dificuldade de negros e abolicionistas e, em contrapartida, o desafio dos primeiros impulsos contrários a este tão perverso status quo. As sequências de tribunal são exemplares, uma vez que visivelmente se baseiam nos autos jurídicos para sustentar a dramaticidade proposta.

Juntamente com o sucesso de bilheteria “Marighella”, com Seu Jorge como protagonista, e “Pixinguinha”, também estrelado pelo músico e ator carioca, Gama, com o filme, também passa a ser mais publicitado proximamente como de fato foi. O cinema nacional, assim, começa a recuperar seus personagens negros de uma forma como nunca foram realmente considerados. Afinal, suas importâncias vão muito além de uma obra de cinema, haja vista que têm dimensões sócio-políticas que repercutem até hoje. Ao passo de que Marighella não era um assassino perigoso e que Pixinguinha não foi somente mais um músico de antigamente, Gama merece ser lido nos livros de história pela sua gigantesca contribuição para a sociedade brasileira. Como Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares, dos poucos cinebiografados até então, são eles verdadeiros heróis nacionais que começam a se salvar das forças do apagamento/aniquilamento. Caso de Doutor Gama. Não o rábula, mas o advogado Gama, Vossa Excelência.

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trailer de "Doutor Gama"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Emílio Santiago - "Emílio Santiago" (1975)

 

As duas versões da capa do disco
lançado pela CID em 1975

“Emílio Santiago, como o Rio de Janeiro, começou pronto. Pronto e total. O que é muito importante. Você não conta nos dedos cantores totais nascidos nesse hemisfério. Total, vocês já estão sabendo, é o que na gíria esportiva a gente diz ‘bate com todas’. Emílio Santiago canta qualquer gênero com um mesmo e espantoso desembaraço. Em Emílio Santiago cabem pontes equilibradas no espaço, como lhe fica muito bem as palmeiras imperiais do Jardim Botânico. Tudo se coloca em torno de Santiago, ele absorve e vira ele.”
Ronaldo Bôscoli, no texto original da contracapa

Em meados dos anos 70, todo mundo sabia que a chegada de Emílio Santiago ao cenário musical significava o ápice da arte do canto na música brasileira. Menos o próprio Emílio Santiago. Havia décadas que os tronos restavam devidamente ocupados: Roberto Carlos reinando para as massas; Orlando Silva, uma lenda vida; Cauby Peixoto emocionando plateias; Nelson Gonçalves mantendo a tradição da Rádio Nacional; Agnaldo Timóteo caprichando no “dó de peito”. Até que surgiu um cantor que não só reunia todas as qualidades de seus colegas quanto, ainda, era capaz de superá-los. Dono de uma voz de barítono que conectava num tempo potência, leveza e perfeição técnica, além de um timbre aveludado inconfundível, Emílio há muito impressionava. Embora sua fama já corresse havia um tempo, aquilo que todos desconfiavam aconteceu de fato somente em 1975, quando lança, pela Companhia Industrial de Discos (CID), seu álbum de estreia e se confirma como o mais completo talento masculino da arte de interpretar canções no Brasil.

Precisou, no entanto, que muita água passeasse debaixo da ponte para que o próprio Emílio se convencesse disso. Desde os anos 60, quando ainda estudante de Direito na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, sua cidade-natal, ele ansiava pela emancipação que seus antepassados não tiveram. Sabia que pertencia à primeira leva de negros brasileiros de uma recente classe média que chegava à universidade após séculos de escravidão e poucas décadas de liberdade. Não queria perder, portanto, a oportunidade de se tornar alguém reconhecido e, por isso, pensava em formar-se advogado ou até, quem sabe, diplomata. Porém, nem desconfiava que seria por outro caminho que este reconhecimento viria. Na faculdade, quando não estava em sala de aula estudando as leis, Emílio cantava nos bares em roda de amigos. Mas como o seu talento era evidente para os outros, mas não para o próprio Emílio, que relutava em se tornar um cantor profissional, por obra divina, quando as inscrições do festival de música da faculdade foram abertas, os amigos o inscreveram sem que ele soubesse. Resultado? Emílio participou e venceu o concurso, chamando a atenção dos jurados, entre eles, Beth Carvalho. 

A partir daí, a música já falava mais alto na vida de Emílio. Sua presença em festivais estudantis passou a ser frequente, ganhando todos os concursos dos quais participava. Formou-se em Direito, mas abandonou a toga para dedicar-se àquilo que agora ficava-lhe claro que havia ganho de sobra dos céus: a voz. Participou do programa de auditório de Flávio Cavalcanti, trabalhou como crooner da orquestra de Ed Lincoln e substituiu Tony Tornado quando este saiu para disputar o V Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Já famoso no meio musical foi, então, que Emílio gravou, enfim, seu primeiro e aguardado disco. O prestígio era tamanho que ninguém quis ficar de fora daquele projeto, o qual reuniu músicos do mais alto gabarito como João Donato, Azymuth, Ivan Lins, Tita e Dori Caymmi, que fizeram questão de montar a cama para que sua voz de ouro brilhasse soberana.

O repertório, inteligentemente bem montado, trazia canções de compositores consagrados e de várias épocas e vertentes, mas não óbvias escolhas. Começava ali a se configurar um estilo de repertório que marcaria sua carreira. De Gilberto Gil, nada de consagradas como “Aquele Abraço” ou “Procissão”, e, sim, “Bananeira”, coautoria com Donato que, inclusive, conta com este ao piano elétrico e na assinatura do arranjo, de ares jazzísticos e certamente um dos mais brilhantes de toda a música brasileira. Emílio, depois de muito relutar, agora tinha plena noção de que seu debut devia ser à altura do tamanho que já alcançara. Por isso, “Bananeira” é mais do que somente a faixa de abertura do álbum, e, sim, um “cartão de visitas”. Samba-funk com cores da soul como é típico dos sopros em tons médios de Donato, tem, no entanto, na voz elástica de Emílio uma prova de que estava ali o cantor mais versátil que a MPB via até então. E que “cozinha”: Ariovaldo e Orlandivo na percussão; Vitor Assis Brasil, Zé Bodega e Aurino Ferreira no sax; Carlos Roberto Rocha e Durval Ferreira na guitarra; Edson Maciel, no trombone; e Marcio Montarroyos no trompete!

Muita classe para interpretar o samba-dark de Nelson Cavaquinho “Quero alegria”, dando ao partido-alto um tom de bossa-jazz, o qual conta novamente com Donato no arranjo e electric piano, mais o arranjo de cordas de Dori. Ainda, o baixo magistral do “Clube da Esquina” Novelli e a bateria igualmente classuda de Wilson das Neves marcando o ritmo. A melodiosa “Porque Somos Iguais”, com a participação de outros craques – a guitarra de Helio Delmiro, a bateria de Ivan Conti "Mamão" e a flauta de Danilo Caymmi, além do arranjo do irmão Dori – é mais uma prova da capacidade interpretativa de Emílio, bem como ”Batendo a porta”, outro samba que vem na sequência. De autoria da certeira dupla Paulo César Pinheiro e João Nogueira, aqui, é à malandragem que o ex-office boy morador do subúrbio recorre para cantar com a malemolência que o carioca tem. O célebre refrão (“Pode tentar, pode me olhar, pode odiar/ E pode até sair batendo a porta/ Que a Inês já é morta do lado de cá”), conhecido na voz potente de Nogueira, ganha na versão de Emílio uma elegância insuperável. Novamente, que arranjo de Donato! E ainda conta com os serviços de Copinha, lenda da flauta.

O primeiro lado do LP ainda traz Emílio cantando uma das duas de Ivan Lins no disco, “Depois”, com arranjo e piano do próprio e o acompanhamento do grupo Modo Livre. Fortemente combativo à Ditadura Militar em suas canções à época, Ivan não amolecia nesta. O que os milicos achavam tratar-se de uma lamúria romântica, era, na verdade, um recado de resistência: “Não vou no teu segredo eu já sei/ Vou aumentar teu medo eu bem sei/ Não me arrependo e fico na lei/ A culpa só se pune uma vez”.

Depois de virar o vinil num samba-canção “barra pesada”, mais uma surpresa, que demonstrava toda a versatilidade e inteligência de repertório de Emílio. Assim como iniciou o disco, com uma autoria de Gil e Donato menos óbvia, na segunda metade ele faz o mesmo, porém com outro consagrado compositor da música brasileira: Jorge Ben. “Taj Majal”? “Fio Maravilha”? “Chove Chuva”? Como diria o próprio Ben, “mas que nada”! Emílio simplesmente regrava a improvável “Brother”, do cultuado disco “A Tábua de Esmeraldas”, gravado por Ben um ano antes mas que, até então, ninguém havia sondado em explorá-la. E o faz resgatando a tarimba de crooner ao desenvolver num belo inglês a letra original deste gospel transformado em samba-rock. As ajudas, também, são à altura: a lendária Azymuth na base, Assis Brasil no sax alto; Delmiro na guitarra; Zé Bodega no sax barítono; percussão de Orlandivo e Ariovaldo mais Chacal; e um coro que conta, entre as vozes, com as de Lucinha Lins e as irmãs Jurema e Nair. Pouco mais de 2 min de puro suingue e maestria.

A rumba “La Mulata”, dos irmãos Valle, quebra mais uma vez a linearidade e transporta o ouvinte para um novo universo. E quando se fala em ritmo latino, claro que Donato estaria presente. É ele quem, novamente, assina o arranjo e ataca nos teclados, enquanto os sopros conversam entre si e a sessão rítmica, composta pelo trio da percussão Wilson, Ariovaldo e Orlandivo, garante o sacolejar dos quadris. Noutro samba de morro, a clássica “Nega Dina”, de Zé Keti, repete-se o primor de Emílio para este tipo de tema. Aqui, no entanto, Donato com ginga nos teclados (mais a graciosa flauta de Copinha) garante um arranjo orgânico, com breques insuspeitos e compasso propício para Emílio desfilar seu barítono invejável.

Ivan Lins, que havia concluído o lado A, volta agora a ser interpretado noutro samba ainda mais mordaz: “Doa a quem doer”. “Eu não sei ganhar/ Que eu só sei perder/ Que eu não sei matar Eu só sei morrer (...)/ Nessa escuridão/ Quero me acender/ Quero me atiçar/ Doa a quem doer”. Precisa dizer mais? Arranjo magistral de Gilson Peranzzetta, que trabalhava à época com Ivan em seus discos, e a Modo Livre de Joãozinho, Luiz Carlos, Wagner Santos e cia. se despede do disco, que já vai chegando ao final. E que final! O que começa como uma balada somente ao violão, “Sessão das Dez”, vai aos poucos evoluindo para um blues pra lá de sensual. O vozeirão de Emílio, quase sussurrado na primeira parte, faz arrepiar. Arrepia também o sax intenso do genial Assis Brasil, o violão da autora Tita e o electric piano de Laércio de Freitas, que assume somente para esta faixa o arranjo, inclusive das cordas, comandadas pelo germânico-brasileiro Peter Dauelsberg. Cazuza certamente se inspiraria muito neste tema anos mais tarde.

A admiração da crítica e do meio artístico Emílio já tinha antes de lançar sua marcante estreia fonográfica. Outros belos discos vieram na sequência, porém, o sucesso comercial demorou. Voz e qualidade musical tinha de sobra; precisava era acertar o conceito. Foi, então, somente na segunda metade dos anos 80, que Emílio obteve o verdadeiro reconhecimento das massas com a série “Aquarela Brasileira”, lançada pela Som Livre e produzida por Roberto Menescau. Os pout-pourri de sambas-enredo e o repertório pop com músicas como “Você é Linda”, “Bem que se Quis” e os megahits “Saigon” e “Verdade Chinesa” caíram nas graças do público e Emílio vendeu como jamais havia conseguido. No entanto, os admiradores de antes torceram o nariz para a “plastificação” da sua sonoridade, bastante pobre na comparação com trabalhos antigos. 

Independentemente dessa discussão, Emílio forçou que se providenciasse um novo trono no panteão dos grandes cantores da MPB. Gay, preferiu em toda a carreira a discrição como fizeram Johnny Alf e Assis Valente, artistas negros como ele igualmente sabedores do preconceito que sofreriam. Ainda ganharia um Grammy Latino como melhor álbum de Samba-Pagode por “Só Danço Samba Ao Vivo”, de 2011, até sofrer um AVC dois anos mais tarde, que tirou sua vida prematuramente aos 66 anos. Como se vê, não fosse o abreviamento do destino, Emílio Santiago estaria produzindo e logrando reconhecimentos como fez desde que entendeu que o mundo inteiro cabia em sua voz.

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FAIXAS:
1. Bananeira (Gilberto Gil, João Donato)
2. Quero Alegria (Guilherme de Brito, Nelson Cavaquinho)
3. Porque Somos Iguais (Pedro Camargo, Durval Ferreira)
4. Batendo a Porta (Paulo César Pinheiro, João Nogueira)
5. Depois (Otávio Daher, Ivan Lins)
6. Brother (Jorge Ben)
7. La Mulata (Paulo Sergio Valle, Marcos Valle)
8. Nega Dina (Zé Keti)
9. Doa a Quem Doer (Ivan Lins)
10. Sessão Das Dez (Édson Lobo, Tita, Renato Rocha)

Daniel Rodrigues