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segunda-feira, 12 de abril de 2021

John Coltrane Quartet - "Crescent" (1964)



“Em vários aspectos, ‘Crescent’ é um rascunho da tela concebida por inteiro em ‘A Love Supreme’”. 
Ashley Kahn, jornalista de música, autor de “A Love Supreme: A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane”

“Considerei ‘A Love Supreme’ pelo que era, mas esse disco nunca atingiu minha alma do mesmo jeito que ‘Crescent’”.
Michael Cuscina, produtor de jazz

Grandes obras da arte dificilmente acontecem da noite pro dia. Seja na literatura, no cinema, nas artes visuais ou na música, não raro há alguma obra antecedente ou mais que abriram caminho para que aquela ideia se concretizasse e a consagrada obra, enfim, fosse concebida. O que seria do estilo próprio de Pablo Picasso não fossem os quadros das fases azul e cubista? Ou as fotos do jovem Stanley Kubrick para a revista Look, nos anos 40, que apuraram seu senso fotográfico para o cinema anos depois? É o mesmo caso com outro gênio da arte do século XX: John Coltrane. Como uma Guernica de Picasso ou um filme como “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Kubrick, é difícil alguém não conhecer pelo menos de ouvir falar no seu mais famoso e definitivo disco, “A Love Supreme”, de 1965. 

Mas o que talvez nem todos se atentem é que Coltrane vinha construindo, juntamente com seu quarteto clássico, já de alguns anos aquilo que resultaria em sua obra-prima. Construção esta que passa, aliás, por outros grandes discos, sendo o que mais se aproxime desta sublimação é “Crescent”, de 1964. Dotado de características que unem com absoluta propriedade a sonoridade dos trabalhos anteriores do artista, o disco aponta indubitavelmente para o que viria logo a seguir na carreira de Coltrane, e que marcaria a vida e a obra tanto dele e de seus músicos, quanto de toda a história do jazz e da música moderna.

Já considerado um mito no meio jazz desde suas participações na banda de Miles Davis, nos anos 50, e na carreira solo, desde o início marcante, foi em Elvin Jones (bateria), McCoy Tyner (piano) e Jimmy Garrison (baixo) que Trane achava a química certa para elevar a sua música a patamares antes não atingidos. “Era uma banda de verdade. Eles sabiam completar a frase um do outro”, diz Ravi Coltrane, filho do artista e também talentoso saxofonista e compositor como o pai. Já para outro ilustre músico do jazz, o igualmente saxofonista Joshua Redman, o jazz se baseia na noção de relaxamento e tensão, e o quarteto de Coltrane representa o ápice deste conceito.

A entrada de “Crescent” é algo peculiar, mas que já vinha sendo amadurecido no estilo de Coltrane: spiritual jazz. Absoluta magia perfaz a faixa-título, cujo enigma já está nas notas soltas com delicadeza mas sem hesitação pelos quatro integrantes, como que se não precisassem se “acompanhar” para formar a matéria-som (ou a alma, como preferir). O tema revela seu lado bluesy depois da longa abertura de mais de 1min 30', quando o sax do autor, então, resolve voar. Digressões, rubatos, ciclos, saltos tanto de escala e quanto quânticos. Tudo se expande, cresce. Mescla de paixão e força. Via-se nascer um Coltrane que deixava para trás de vez a fúria e a impaciência para um outro tipo de urgência, mais contemplativa e circunspecta. Há, contudo, uma reminiscência romântica impregnada na melodia de “Crescent”, por vezes repousante, que, embora preveja o misticismo da seguinte e definitiva fase do artista, mantém uma ligação com a tradição bop, como que invocando em novas cores baladas como “Naima” e “I'm Old Fashioned”, dos seminais “Giant Steps” e “Blue Train”, respectivamente.

A delicadeza não só não se encerra como se agiganta. Queriam tema 100% romântico? Pois ganhem, então, “Wise One”. Tyner com seu piano acende uma vela de chama suave e solene, que faz iluminar a entrada dos pratos de Jones e o baixo introvertido de Garrison. Mas não só, obviamente. Sob aquela luz natural e apenas suficiente, a alma de Coltrane sopra solfejos que, em círculos magistrais, mágicos, fazem como se se retomasse ao início do sonho. Uma, duas, três vezes. Até que o sonho, enfim, começa. Leve aceleração no ritmo, mas ainda dormente, mesmo padrão de “Acknowlegement”, de “A Love...”. Além dos pratos, Jones incorpora agora estampidos de baquetas na borda da caixa e leves e secas batidas nos tom-tons. Nesta altura, sono profundo, quem está solando é Tyner, com seu tocante domínio da escala: poético, ousado, econômico em impulsividade, mas nunca em emoção. Coltrane, elevando um pouco mais a “anima”, impõe um batimento cardíaco mais passional, mas ainda sem acordar, ainda sobrevoando uma noite encantada. No final, a melodia torna à feição que lhe originou, o que faz com que se percebe agora sê-la mais spiritual do que se suspeitava. Nova batida à porta de “A Love...”.

Aí, vem um hard-bop como os mestres ensinaram e aprenderam. “Bessie's Blues” é Dex, é Cannonball, é Monk. É Miles, é Shorter, é Rollins, é Dolphy. Mas é também algo que se veria em “Resolution”, de “A Love...”, principalmente em seu balanço 4/4. Time solto, entrosado, à vontade como que inebriados pela fumaça dos night clubs nos quais se apresentavam quase todas as noites. É tanta perfeição, que talvez até escape a percepção de que esta pode manifestar-se em um breve blues, a menor faixa de um disco disposto a celebrar tudo aquilo que cresce dentro dos corações. 

Em quantas direções mais haveriam de crescer? Não precisa recorrer ao ápice de “A Love...” para encontrar a resposta a esta retórica pergunta, pois ela está cristalizada não muito longe dali. Aliás, bem perto, na faixa seguinte: “Lonnie's Lament”. Assim como “Crescent”, novamente a abertura insinua uma melodia completa. São quase 2 min de um lamento tristonho e poético, vaporoso, vagaroso. Isso para depois entrarem em um jazz modal, mais uma vez, retrazendo aquilo que erigiram juntos a partir do exemplo de “Kind of Blue”, de Miles, de 1959, em que Coltrane é um dos nobres coadjuvantes, e praticado com destreza pelo quarteto nos anos seguintes, principalmente, a partir de “My Favourite Things”, de 1961. Tyner se encarrega de um longo improviso, dedilhando suas mágicas quartas justas ou aumentadas e os voicings, tudo em redor da tônica em Dó. Quem também ganha espaço é Garrison, com a deferência de todos os colegas calarem os respectivos instrumentos para seu solo. Ao final desta entrega do baixista, torna a vaporosidade da abertura, aquela que havia deixado com impressão de tratar-se de uma melodia final. E é ela, sim, que finaliza o lamento. Impossível não lembrar de “Presuance”, do clássico “A Love...”, prenunciada pela ideia do solo de baixo.

Talvez a mais distinta música de todo o repertório é também a mais parecida com o que Coltrane e seu grupo trariam no emblemático disco procedente a “Crescent”. A semelhança com a faixa “Psalm”, do álbum de 1965, é inconteste. Com uma percussão tribal e monorritimca, usando apenas tímpano e pratos, Jones marca o andamento com constância. É “The Drum Thing”, que, como o título indica, concentra-se na percussão – elemento altamente ligado à cultura e à religiosidade africana, que Coltrane tão bem resgata ao desenvolver o spiritual jazz. O ritualístico se manifesta nos sons percutidos, sobrando para o sax de Coltrane, geralmente protagonista, apenas sutis pronúncias da melodia ao início e ao final. Jones, afinal, é quem domina a faixa de cabo a rabo, engendrando um solo impressionante de aproximadamente 4 min e quando se vê sua habilidade incomum de variações rítmicas, de timbres e o fraseado "legato", límpido. Não poderia haver maneira peculiar e exata de encerrar o álbum.

Mesmo com toda a reverência e inegável influência de "A Love..." para o jazz e para a música moderna, não são poucos os que consideram “Crescent” o melhor trabalho de John Coltrane. Frank Lowe, Dave Liebman e Michael Cuscina são três grandes conhecedores de sua obra e da discografia jazz que defendem esta tese. Interposto entre a gênese de seu estilo spiritual e a exaltação deste, que desembocaria “A Love...”, "Ascension" e outros discos da fase final do artista antes de morrer, em 1966, este disco marca um momento ímpar na história de Coltrane e do jazz. Um instante imediatamente anterior a uma revolução. Por isso, “Crescent” é mais do que um disco: é a ligação entre passado e futuro, a união dos tempos - ou sua dissolução. Ao ouvi-lo, mesmo quase 60 anos depois de sua gravação, tudo vira presente, tudo está vivo. Para isso, tanto quanto para se chegar ao amor supremo, a uma Guernica ou um “2001”, é essencial passar por fases anteriores.  É essencial antes ter sabido crescer.


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FAIXAS:
1. "Crescent" – 8:41
2. "Wise One" – 9:00
3. "Bessie's Blues" – 3:22
4. "Lonnie's Lament" – 11:45
5. "The Drum Thing" – 7:22
Todas as músicas de autoria de John Coltrane

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OUÇA:
John Coltrane - "Crescent"


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

John Coltrane – “Ascension” (1965)




“[‘Ascension’] foi a tocha que acendeu o free-jazz.
Quero dizer, ele começa com Cecil (Taylor) e Ornette (Coleman) em 1959,
mas ‘Ascension’ foi como um santo padroeiro que dizia:
‘está bem – isso é válido’.
Acho que teve um efeito muito maior
sobre todo mundo do que ‘A Love Supreme’”.
Dave Liebman

“Trabalhei feito um condenado.
Não consegui sentir prazer na sessão.
Se não fosse uma gravação, eu teria me divertido.
Sabe, estava de olho no relógio e tudo mais.
Quanto a ouvir o disco, disso eu gostei;
gostei de todas as contribuições individuais”.
John Coltrane



Ao mesmo tempo é uma tarefa fácil e difícil falar de “Ascension”, de John Coltrane. Fácil pelo motivo óbvio: a inegável qualidade superior que o músico imprimia em tudo que fazia, ainda mais em seus trabalhos mais maduros, como neste caso, sua última gravação em estúdio. Além do fato de ser apenas instrumental, também ajuda na apreciação o formato, pois, ao invés de se explanar sobre várias faixas, como num disco pop, ou mesmo 4 ou 5 delas, comum a um álbum de jazz, “Ascension” tem apenas um tema monotemático. Um extenso e único número contínuo. E é aí que saltamos da facilidade para a complexidade – e, curiosamente, todos os motivos que talvez lhe facultassem facilidade passam a ser vistos de outro ângulo.

Se fosse uma trilha de simples deglutição, ainda vá. Só que o fato de ser altamente ruidoso e intrincado já refuta qualquer amenidade na análise. Como um filme de Bergman ou um quadro de Bacon, em que, mesmo se gostando, se é desafiado a apreciar, ouvir “Ascension” exige sensibilidade e retidão. Se for considerar os adjetivos costumeiramente usados ao longo dos anos para definir “Ascension” aí sim se verá que realmente o buraco é mais embaixo. Classificado como “visceral”, “rebelde”, “complexo”, “urgente”, “provocativo”, “cerebral” e “catártico”, para ficar em apenas alguns exemplos, trata-se do célebre canto-do-cisne do genial Coltrane, o que somente por isso já valeria um registro nos anais. Porém, além de tudo, é o sucessor da obra-prima "A Love Supreme" e o disco simboliza o ápice de um artista cuja carreira foi de total devoção à sua arte, pautada pelo constante amadurecimento e que paulatinamente voltou-se a uma busca espiritual de seu autor. Estava ali ele exposto, inteiro e indivisível.

Mas se o resultado final de “Ascension” aparenta ser sucinto, os meios pelos quais Coltrane chegou a tal não são nada simplórios. Além de sua banda de fé, que o acompanhava havia quatro anos – os gigantes McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, na bateria, e Jimmy Garrison, contrabaixo –, Trane, incansável perscrutador de novos horizontes sonoros e metafísicos, surpreendeu a todos ao adicionar à aparentemente imexível formação novos integrantes. Primeiro, mais um baixo, o de Art Davis. Ainda, nada menos que outros seis sopros além do dele: dois trompetes, a cargo de Freddie Hubbard e Dewey Johnson; dois saxofones alto, Marion Brown e John Tchicai, e mais dois sax tenor para somarem-se ao seu, recrutando os então jovens admiradores Pharoah Sanders e Archie Shepp. Para quem vinha de um bom tempo desenvolvendo trabalhos autorais em quarteto (e não era qualquer um: era O quarteto de jazz!), colocar 11 músicos – sendo 7 deles, de sopros – e de diferentes origens (dos oriundos dos conservatórios a rapazes da nova geração passando pelos tarimbados do be-bop) era, no mínimo, desafiador. Por mais habilidoso que o engenheiro de som Rudy Van Gelder fosse. Mas Coltrane já era o grande nome do jazz moderno àquela altura, e tanto músicos como técnicos tinham essa noção. Por isso entendiam que, fosse como fosse, estavam prestes a preencher mais um capítulo da história do jazz naquela noite de 28 de junho de 1965.

O que se revelaria, enfim, dessa inusitada reunião? Nem quem estava acostumado com as experiências de Coltrane – sua banda, o produtor Bob Thiele e Van Gelder – imaginava o que ele propunha. Afinal, o conceito guardava realmente um arrojo inigualado até então. Coltrane já havia experimentado performances contínuas e longas tanto ao vivo quanto em estúdio. Mas não com tamanha complexidade, o que lhe deu um bocado de dor de cabeça. Mas, como se sabe, a obsessão e o perfeccionismo são proporcionais à genialidade. Referenciando-se no free-jazz de Ornette Coleman e Cecil Taylor, nos arranjos engenhosos de Charles Mingus para grandes bandas com vários tipos de sopros, bem como nas pesquisas das culturas oriental e africana e nas inovações tonais/atonais da vanguarda erudita (Messiaen, Bártok, Ives), Coltrane juntou tudo isso a seu gigantesco cabedal musical e engendrou uma ideia a qual já praticamente consolidara no seu celebrado álbum anterior: a da construção de uma peça una cuja “alma” conduzisse a “técnica”. Pautados pela ideia-base de “ascensão”, era o coração dos músicos, conectados com seus deuses interiores, que, a partir do conhecimento e experiências de cada um, constituiria o âmago de “Ascension”. Assim, ainda mais que “A Love...”, esta obra soa como uma suíte altamente coesa – no caso, uma improvável sinfonia para 5 saxofones e 2 trompetes.

Tal alquimia é arranjada com maestria no cadinho mental de Coltrane. A canção-tema se constitui de ensembles intercalados com solos de todos os instrumentistas em uma ordem preestabelecida. Uma semipartitura elaborada por ele institui quem entra, quando e quanto tempo tem para desenvolver-se considerando o arranjo e o tempo máximo de duração que cada lado do LP suportaria. Nos momentos conjuntos, a liberdade é total. Há uma quase imperceptível melodia-base de 3 acordes, mas, inspirado no exemplo de “Free Jazz”, de Coleman (1960), o que dá o direcionamento é a sensação momentânea do músico, e não um tempo ou escala predeterminados que o motivem. E é assim que já inicia e peça: sob uma tempestade de solos. Rajadas, gritos, ataques violentos, espasmos, glissandos, rubatos, fluxos densos, clusters, dissonâncias mil. Uma impressionante parede sonora que remete à politonalidade de Darius Milhaud e às camadas inter-relacionadas de Elliot Carter. Impacto é o termo certo.

A divisão dos solos é minuciosamente organizada, bem como impressionantemente sutil em meio a todo o caos: naquela avalanche de sons, o encadeamento entre estes e os ensembles, seja nos começos ou nos finais de cada um, é perfeito. A abertura do tema é longa, de mais de 4 minutos de extravaso. Emendando, de modo a começar as sequências individuais, o próprio Coltrane faz as boas-vindas em exatos 2 minutos de absoluta entrega. No auge de sua maturidade musical, sente-se um Coltrane sendo Coltrane mais do que nunca. Jogando a escala lá no alto de cara, ele começa em repetições lancinantes, sustentando o clima, a partir dali, com sua alta técnica e emotividade. Os saltos de modulação, a multitonalidade, os vibratos potentes e os double stops, característicos de seu estilo, estão todos ali, cristalinos. Os arroubos roucos, bem como a escalada emotiva, também: presentes. Termina, como não poderia ser diferente, explorando os limites do instrumento.  Fúria e paixão.

O fato de os músicos terem seus espaços predefinidos dentro da melodia não significava que, nos próprios intervalos, quando todos executam juntos, também não houvesse improvisos, às vezes tão significativos quanto os lances reservados. Na verdade, é como se ninguém parasse de solar do início ao fim. O trompete de Johnson, por exemplo, começa a soar mesmo antes de ele entrar sozinho. Mas quando é seu momento, o trompetista não deixa por menos: força a que se crie uma atmosfera de blues acelerado, lançando frases curtas e ligeiras em dissonâncias. Parece querer dar ainda mais significado ao solo anterior proposto por Coltrane, explicando-o em outras “palavras”, cuspidas e sem paciência. Já Sanders, dos mais felizes pupilos de Coltrane e igualmente instigado pelas questões da espiritualidade, aproveita a oportunidade para disparar de seu tenor um rascante e intenso solo, cheio de agudez e desespero, deixando evidente o estilo que o marcaria como band-leader a parir de então.
Hubbard, o solista seguinte, ao contrário de Sanders, já calejado e mais cerebral, em contrapartida à intensidade anterior, prefere dar um refinamento diferente à música. Ele, que nunca havia tocado com Coltrane, demonstra sua gratidão por ser chamado àquela sessão sabidamente histórica e explora seu inigualável bom gosto hard-bop e assertividade nas escolhas das notas – sem, contudo, sair do clima ardoroso. Impecável o mestre Hubbard.

Outro ensandecido fã de Trane dá as graças. É Sheep, à época, também dos iniciantes da New Thing como Sanders. Ele já sai despejando notas raivosas e frases discordantes, potencializando a maneira de tocar do professor. Mais um “chorus” de alta habilidade antecipa a entrada de Tchcai, o qual, num solo expressivo, faz oscilar na maior parte do tempo entre duas escalas, como que num dueto consigo mesmo – quem sabe, não era este o meio encontrado por Tchcai, respondendo à instigação de Coltrane, para demonstrar sua “ascendência” pessoal? Outra brilhante participação. Mantendo o mesmo instrumento, é a vez de Brown revelar seu íntimo, o que o faz com densidade e potência. A permanente construção da melodia, que desfaz os limites do que é conjunto e o que é individual, leva a que a entrada de Brown funcione como um desdobramento, uma continuidade do que já vinha sendo desenvolvido. Estreante, Brown traz para dentro do furacão sonoro um misto do formalismo, adquirido nos conservatórios de Atlanta e Washington, e um natural lirismo inquieto, típico da avant-garde que ajudou a cunhar.

Tyner, cuja inteligência e sensibilidade ao piano o fazem manter-se presente a todo instante – seja demarcando, pontuando, mantendo ou ajudando a evidenciar os outros instrumentos –, tem a sua hora exclusiva. Mas nem o diferenciado timbre das teclas faz com que seu solo também não se homogeneíze ao restante (está tudo integrado enredado). Coltrane está ainda improvisando quando Tyner “avisa” que vai entrar. Uma, duas, três vezes. Até que, quando se vê, é o piano que já domina o campo. Seus peculiares acordes martelados enriquecem o drama da peça. Ele articula tempos diferentes com as duas mãos, parecendo claramente em alguns instantes serem dois pianistas (ou não seriam?...).

No que Tyner encerra, Jones larga rolos bem marcados para dividir o improviso do piano com o dos baixistas. Davis e Garrison, então, apresentarem o momento certamente mais erudito do tema. Com acompanhamento só da bateria, seu duo é curto mas repleto de nuanças que somente as cordas de um contrabaixo podem dar. Neste caso, dois baixos, sendo que, num deles, Davis puxa o arco e transforma seu instrumento num cello, enquanto Garrison segue dedilhando e tracejando, longe dali, elevado. Um minuto basta para ambos, pois, logo em seguida, Jones, ativo em toda condução rítmica e harmônica desde o primeiro segundo, presenteia os diletantes com um ainda mais sucinto solo (apenas 25 segundos), porém possível de identificar toda sua habilidade e pungência. Ele merecia essa distinção, mesmo que assim, no final, antecipando a nova torrente de sons que, em pouco menos de 3 minutos, vem à tona para encerrar a suíte.

Várias análises podem se tirar de “Ascension”, haja vista sua infindável e desafiadora complexidade como obra. Entretanto, antes de tudo, é muito bonito o resultado que Coltrane extraiu desse verdadeiro tour de force coletivo. A conjunção de estilos de cada integrante forma uma espécie de “teia de temperamentos”, rica em personalidades e pulsação. Viva, uma obra viva. Do material maciço que o tema se compõe é possível, com aceitação e dedicação, derivar uma comovente procura interior. Comprometido apenas consigo e com sua obra, Coltrane desdenhou o sucesso imediato de “A Love...” e não se escondeu atrás do mito. Pelo contrário: saiu em busca de novos entendimentos de si e de sua música, fosse provocando ou resignando, inquietando ou contristando. Séria e comprometida união dos polos de uma existência: deus e diabo, bem e mal, amor e ódio, leveza e cólera. Como um Messiaen, que enxergava Deus em todos os sons, das naturais consonâncias aos diabólicos trítonos, observadas em profusão em sua última peça intitulada “Flashes da vida após a morte”. Como um Glauber Rocha que, em seu derradeiro “A Idade da Terra”, fez encarnar no Brasil urbano um Jesus freudiano cheio de aflições e belezas. Todas obras de final de vida de artistas irrequietos, por mais fatalista ou sublime que isso signifique. Coltrane, no seu último suspiro, igualmente mirou essa providência por meio da linguagem pela qual mais conseguia essa aproximação com o elevado. Como numa ascensão aos céus, a qual – provavelmente não por coincidência – cumpriria dali a menos de 2 anos rumo à eternidade, deixando uma das obras mais ricas que o mundo da música já conheceu.

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“Soberba”, de Orson Welles, é ainda hoje considerado um dos melhores filmes da história do cinema, mesmo sua edição final tendo ficado a cargo dos estúdios e não do cineasta, a contragosto deste, claro. A primeira versão de “Ascension”, lançado com John Coltrane ainda vivo, trazia o primeiro take dos dois que gravara com a banda na fatídica noite de junho de 1965. Porém, Coltrane havia gostado mais da segunda sessão – e manifestara isso a gravadora Impulse! quando do lançamento. A queixa ficou guardada por 44 anos. Como fazer, então? Realizar o sonho do autor antes tarde do que nunca. Em 2009, uma edição em CD, hoje tida como definitiva, traz as duas editions de “Ascension”, priorizando a preferida de Trane, “Edition II”, de cerca de 40 minutos e sem o solo final de Elvin Jones, e, em seguida, a versão impressa originalmente, de 38 minutos e meio. Delícia tanto para puristas quanto desapegados.
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FAIXA:
1. "Ascension" – 38:31

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OUÇA O DISCO





terça-feira, 28 de maio de 2013

Wayne Shorter - "Night Dreamer" (1963)



“Este disco é um marco para mim,
pois veio em um momento em que eu
 estava entrando em uma nova fase como autor.
E também eu sabia que
 em meu primeiro álbum para a Blue Note
eu teria que dizer algo substancial.”
Wayne Shorter,
no texto do encarte original


São inúmeros os discípulos de Miles Davis no universo do jazz. A lista vai de mestres geniais como Chick Corea, Herbie Hancock, Sonny Rollins, John McLaughlin e John Coltrane – para mim, o maior deles. Mas talvez o mais fiel aluno tenha sido outro genial jazzista: o saxofonista Wayne Shorter, lenda viva da música mundial. De estilo arrojado tanto nos improvisos quanto nas harmonias, Shorter começou na cena em 1959 na banda bebop de Art Blakey, a The Jazz Messengers, pela qual não só ajudou a gravar álbuns memoráveis, como, hábil e líder, tornou-se logo o diretor musical do grupo. Além disso, como todos da sua geração, foi fortemente influenciado pelo jazz em escalas do “divisor de águas” "Kind of Blue", de Miles (1959), passando, tempo depois, a formar o aclamado “segundo grande quinteto” do mestre, juntamente com Hancock, Ron Carter e Tony Williams. Tudo isso deu embasamento para Shorter, valendo-se de todas estas referências, gravar, em 1963, seu grande trabalho: o encantador “Night Dreamer”, onde se nota um compositor maduro e criativo, além de um instrumentista virtuoso.

Depois de três LP’s pelo selo Vee-Jay, onde ainda se percebe um artista em busca de identidade própria, “Night Dreamer”, seu primeiro pela mais cultuada gravadora do jazz, a Blue Note, é o acerto da medida: cool, sofisticado, intenso, coeso. Tudo favorecendo: a técnica de estúdio Rudy Van Gelder, a produção caprichada de Alfred Lion e esplêndida arte, na foto borrada de Francis Wolff e o design de Reid Miles. Campo preparado para um disco impecável. Como o título sugere, começa numa atmosfera de sonho com a arrebatadora faixa-título, em que o piano de McCoy Tyner anuncia, em acordes ondulantes e oníricos, a beleza da melodia modal que se forma a seguir com o restante da banda (e que banda!): Lee Morgan (trompete), Reggie Workman (baixo) e Elvin Jones (bateria). O chorus, sobre o andamento cadenciado e bluesy de Jones e dos dois tempos de quatro do piano, desenha um riff pegajoso que, entre leves ascendências e declives, surpreende pelas dissonâncias sem, contudo, se afastar do coração do ouvinte. Espiral como um sonho, volta, no fim da série, para o acorde inicial. A mesma ideia circular serve de concepção para os improvisos, momento em que Shorter dá um verdadeiro show de tempos, variações e groove. Há claras inspirações no fraseado econômico e certeiro de Miles, inclusive na repetição da famosa frase de trompete que antecede o solo histórico de Coltrane em "Freddie Freeloader", do “Kind of Blue”, que Morgan pronuncia rapidamente mas com exatidão, numa visível homenagem. No final, ao invés de toda a banda tencionar para cair junta, o mais comum à época, Shorter subverte, desfechando-a em pleno solo ascendente, em ritmo aberto.

Os anos como cérebro da The Jazz Messengers deram à Shorter a cancha de produzir adaptações tão primorosas como a de "Oriental Folk Song", uma canção tradicional chinesa em que o músico recria o tema original timbrística e harmonicamente, compondo um jazz novamente complexo em construção, mas orgânico a quem ouve. A introdução em tons orientais abre espaço para uma segunda e intermediária parte com o chorus de tempos longos e articulados. Porém, a música progride ainda mais, e uma terceira sequência atinge outra envergadura, subindo a gradação em uma interpretação vigorosa de toda a banda.

“Virgo”, uma das mais lindas baladas do cancioneiro jazz, vem em seguida, e aqui Shorter novamente arrebenta, mas não da forma carregada como nas primeiras faixas, mas, sim, em solos lânguidos e perfeitamente pronunciados. Sem pressa e repleta de sussurros, pausas e desvelos; sensual como uma transa apaixonada madrugada adentro. É tão incrível que, mesmo empunhando um saxofone tenor, há momentos em que parece estar tocando um sax alto, tamanho rebuscamento que extrai das notas graves e na modulação que atinge com o instrumento. Para arrematar, um breve solo enlevado à capela, só sax e ouvidos. Perfeita.

Embalada e não menos saborosa, “Black Nile” vem com toda a banda em altíssimo nível de performance. É, seguramente, a mais “agitada” do disco, que só veio a acelerar-se um pouco mais já na sua segunda metade. No entanto, o tom suave que perfaz o álbum é novamente demarcado em "Charcoal Blues", em que o saxofonista exercita pequenas variações sobre o riff, numa simplicidade mais uma vez com ares de Miles Davis, inclusive pelo visível apreço pelo blues. Nesta, McCoy Tyner merece atenção especial na manutenção da base e, principalmente, em seu solo.

Nada mais perfeito para terminar uma noite de fantasia do que com o próprio “Armageddon". Considerada por Shorter como o ponto focal do álbum, contém como mensagem a força da dualidade do ser humano na última batalha entre o bem e o mal. Por isso, as notas reflexivas e densas, mas nem por isso menos belas. Nela, sonho passa a significar utopia, alucinação. “A minha definição do julgamento final é um período de esclarecimento total que vai descobrir o que somos e por que estamos aqui", disse o compositor sobre esta obra. Não sei se um dia chegaremos a isso, mestre Shorter, mas certamente sua música nos eleva a um ponto que, mesmo que apenas como meros sonhadores de uma noite qualquer, talvez consigamos revelar algo tão profundo de nós mesmos.

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Corrijo em tempo um erro desta resenha: “Night Dreamer” não é O grande trabalho de Wayne Shorter, mas, sim, seu PRIMEIRO grande trabalho. Em plena atividade mesmo prestes a completar 80 anos, o músico lançou este ano um novo CD, o elogiado “Without A Net”. Mas para alguém dono de uma obra tão extensa e marcante, eleger apenas um disco como o melhor é tarefa impossível. Basta lembrar-se de outros grandes discos solo, como ”Ju-Ju” (1964), “Speak no Evil” e “The Soothsayer” (ambos de 1965), os trabalhos com uma das pioneiras do jazz-fusion, a Wheater Report, nos anos 70, ou as parcerias, como os que gravou com Milton Nascimento, Carlos Santana e Joni Mitchell.

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FAIXAS:
1. Night Dreamer - 7:15
2. Oriental Folk Song - 6:50
3. Virgo - 7:00
4. Virgo (alternate take 14) – 7:03
5. Black Nile - 6:25
6 Charcoal Blues - 6:50
7. Armageddon - 6:20

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Ouvir:



segunda-feira, 28 de junho de 2021

Dexter Gordon - "One Flight Up" (1964)

 

“Não sei se houve algum significado especial no título deste álbum mas, de qualquer forma, poderia ser interpretado apropriadamente como o significando de que os pretendentes avançaram num voo em criatividade, que seus voos de fantasia são mais livres do que nunca sob os céus de Paris. Juntos, os cinco oferecem uma demonstração esplêndida de como falar a língua internacional do jazz.”
Leonard Feather, do texto original da contracapa do disco

Quase chegada a metade dos anos 60, Dexter Gordon já estava consagrado como um gigante do jazz norte-americano. Saxofonista "à moda antiga", carregava no corpanzil de 1,96m a estatura de mitos do sax tenor que o antecederam, como Coleman Hawkins, Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster. Nem a aparição àqueles idos de jovens talentos do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins, Joe Henderson e Wayne Shorter intimidavam o velho músico. Menos ainda as inovações sonoras e conceituais pareciam abalá-lo. Free Jazz? Avant Garde? Pós-bop? Creative jazz? Não importava. Confiante e em plena forma, seguia na sua linha clássica como um dos precursores do bebop.

O período em que esteve na Blue Note é o melhor recorte desta boa fase. Após anos pulando entre os selos Decca, Savoy, Jazzland e outros – sem, contudo, estabelecer-se em nenhum deles –, ele emenda, entre 1961 e 1966, uma série de sete álbuns memoráveis como "Doin' Alright", "Dexter Calling" e o aclamado "Go", constante invariavelmente em listas de obras fundamentais da história jazz. Todos no melhor estilo hard-bop, sua jurisdição. Somado a isso, recebe a acolhida de braços abertos da Europa, que, assim como para com diversos outros nomes do jazz, o idolatrava. Muda-se para Paris e vive um momento iluminado na – e pela –“Cidade Luz”. A confiança era tamanha que, para sustentar toda a envergadura de Dex, fosse física ou musical, precisava de tanto chão que não cabia nem nas dimensões territoriais de Estados Unidos e França juntas. Por isso, não era se de estranhar que passasse a também pisar novos terrenos. Foi o que fez em "One Flight Up", de 1964, passo firme do músico nos domínios do jazz moderno. 

Mas como estreitar a ponte entre Novo e Velho Mundo? Levando seus músicos para gravar no Barclay Studios, em Paris, ora. Aos 41 anos, assimilando como um garoto os preceitos do jazz modal – os quais haviam se tornado comuns ao repertório jazzístico havia uns 5 anos pelas mãos, principalmente, de Miles Davis e Dave Bruback –, Gordon, como vinha procedendo já de trabalhos anteriores, rodeia-se de uma banda que casa juventude e experiência: os conterrâneos Donald Byrd, ao trompete (32 anos); Kenny Drew, piano (36); e Art Taylor, bateria (30), mais o dinamarquês Niels-Henning Orsted Pedersen (de apenas 18 anos), ao baixo. O conjunto lhe dá, ao mesmo tempo, suporte à sua verve solística admirável e o municia desse ímpeto modernizante. O resultado é uma química perfeita entre o veterano saxofonista e grupo em apenas três faixas, todas irretocáveis.

E se é pra aderir àquelas que se apresentavam como novas formas, então que seja, literalmente, com grandeza. "Tanya" é isso: 18 min e 21 seg que preenchem o lado A com a fluidez controlada das escalas modais, o que não impede (até ressalta, aliás) as capacidades de improviso. Gordon, be-bopper nato acostumado a números extensos como os que executava nos night clubs desde os anos 40, destrincha um solo magnífico em que alia seu tradicional lirismo a um vigor renovado. Mas o band leader não monopoliza o espaço, dando igual prestígio a seus companheiros, a se ver pela participação de Byrd, autor da música, e um ainda mais inspirado Drew. Isso sem falar na linha de baixo marcante de Pedersen, das melhores performances do gigante de quatro cordas que o jazz já presenciou, digna de um Ron Carter, Paul Chambers ou Dave Holland.

Fôlego recuperado, o segundo lado do álbum traz "Coppin' the Haven", escrita por outro membro da banda, o pianista Kenny Drew. Suingue com alma de blues e bossa nova, casa a classe do bebop com texturas modernas, a se ver pelo toque destacado da bateria de Taylor, potente e sem discrição nas investidas na caixa como faziam os contemporâneos Elvin Jones e Tony Williams à época. Sinais de que os gêneros pop como o a soul, o rock e a música étnica já contaminavam o ambiente jazzístico. E Gordon os assimila com generosidade madura. A se destacarem ainda os solos – além do de Gordon, impecável – de Byrd ao trompete, forte e pronunciado, e de Drew ao piano, habilidoso em conduzir o improviso e não esquecer de manter a base.

O disco finaliza com um popular song de 1939 cujos acordes o jazz já havia incorporado havia anos. Aí, sai da frente, que Dexter Gordon vem com um show de interpretação! É a balada "Darn that Dream", imortalizada na voz de Billie Holliday e gravada por Miles Davis em seu clássico "Birth of the Cool", de 1949. Com Gordon e seu quarteto, o standart se redimensiona, ganhando uma amplitude onírica invejável que somente tenoristas daquela estirpe são capazes. Quanta fineza e sensibilidade! Notas e acordes saem elegantes, altivos e esguios como o seu emissor.

Apenas em 1976, de volta à terra natal, terminaria a temporada europeia de Gordon, a qual, além de extensa, findava-se absolutamente produtiva, ajudando a reforçar a mitologia em torno do lendário artista. “One...” é um retrato desta fase áurea, a verdadeira Conexão França do jazz. Só mesmo um gigante como Gordon para plantar com tamanha autoridade e firmeza um pé em cada continente.

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FAIXAS:
1. "Tanya" (Donald Byrd) - 18:18
2. "Coppin' the Haven" (Kenny Drew) - 11:17
3. "Darn That Dream" (Eddie DeLange, Jimmy Van Heusen) - 7:30
4. "Kong Neptune” (Dexter Gordon)*
*Faixa-bônus da versão em CD remasterizada de 2015

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

domingo, 2 de agosto de 2015

Feira do Vinil – Groovaholic – Porto Alegre/RS (4/7/2015)

Nós na adorável tarde no Grovaholic
foto: Juliano Oster
Sábado desses, entre várias atividades que começaram pela manhã e só terminariam por volta da meia-noite, Leocádia e eu achamos uma brecha na agenda para conferir a Feira do Vinil da Groovaholic, no bairro Bom Fim, convidados por nosso antenado e querido amigo Christian Ordoque, colaborador do blog, que nos esperava lá. Acompanhados da mana Carolina e da prima Gabriela, para Leo e eu tratava-se de um retorno, haja vista que havíamos estado na loja em fevereiro, quando a mesma recém abria suas portas. Não havia ainda nem o café, no qual paramos dessa vez para um agradável papo e um lanche.
Eu à cata dos LP's
foto: Leocádia Costa
Em seguida, entretanto, fui ao que mais interessava ali além das companhias: os LP’s. Quando estive pela primeira vez enlouqueci pela qualidade e variedade dos títulos oferecidos. Do rock anos 50, 60 e 70, passando pela soul music e o rap anos 80 e 90 mas, principalmente, vários clássicos de jazz. Tudo em edições novas, com arte de capa e encarte caprichados que reproduzem os originais, e gramatura do acetato de 180 gramas. Uma finura. Desta vez, não foi diferente: muitos títulos para escolher. No critério, esses aqui foram os que levamos pra casa:




"Crescent"John Coltrane Quartet (1963) – Dispensa apresentações. Talvez o melhor disco do mestre Trane e seu famoso time de craques (McCoy TynerElvin Jones e Jimmy Garrison), "Crescent" é nada mais nada menos que o último passo antes do “mantra musical” "A Love Supreme". Para alguns, inclusive, passo esse já definitivo e definidor  até melhor do que o grande clássico de 1964. Tudo é perfeito e elevado, mas as baladas! Meu amigo: que deslumbre! “Wise One” e “Lonnie’s Lament”. Isso sem falar da grandiosa faixa-título, da homenagem a Bessie Smith e da intensa “The Drum Thing”. Será ÁLBUNS FUNDAMENTAL certo.



"Loveless"My Bloody Valentine (1992) – Obra-prima do rock alternativo britânico, é maravilhoso tê-lo no formato vinil. Listado entre os 30 melhores discos de rock de todos os tempos pelo crítico musical e historiador italiano Piero Scaruffi (que também o inclui como 1° na de shoegaze rock), “Loveless” é uma verdadeira sinfonia das guitarras, tão distorcidas, sobrepostas e reafinadas que, homogeneizados aos outros sons e timbres, compõem uma peça única em que as faixas se tornam partes de um todo. Não à toa já é ÁLBUNS FUNDAMENTAL do Clyblog há horas.




“Speak no Evil!”, Wayne Shorter (1964) – Outro clássico do jazz, que completou louváveis 50 anos em 2014. Shorter, dos meus jazzistas preferidos, estava absolutamente encantado nessa época (haja vista que cunhou outra obra-prima naquele mesmo ano, "Night Dreamer"). Gosto muito desse disco também, em especial da faixa de abertura, “Witch Hunt”, e a elegantérrima ”Fee-Fi-Fo-Fum” e a lânguida “Infant Eyes”. Mas um dos motivos que me motivaram também a comprá-lo nesse formato é a maravilhosa arte da capa de Reid Miles, para mim uma das mais geniais de todos os tempos. Promete mais um ÁLBUM FUNDAMENTAL de Shorter.





“Black Monk Time”, The Monks (1965) – Assim como The Sonics, The Seeds e The Troggs, os Monks são das minhas amadas garage bands dos anos 60 que anteviram o punk. No caso deles, especificamente, o disco, talvez o primeiro “álbum preto” da história do rock (abrindo caminho para os vários “black” e “whitealbuns que viriam depois, de Beatles a Metallica), mereceu essa reedição é uma verdadeira preciosidade, muito bem acabada. Do sulco, sai pura corrosão! É fantástico imaginar que essa galera (norte-americanos que, servindo na Alemanha, gravaram-no em Berlim), travestindo-se de monges franciscanos (até no corte de cabelo!) faziam um som tão revolucionário e agressivo. Merece muitas audições.






segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

McCoy Tyner - "Extensions" (1972)

 

“Quem trouxer uma boa ação terá uma dezena como esta”. 
Corão, 6:161

A ideia que move o homem é a da perpetuação. Da espécie, da genealogia, das relações. E o homem desde as cavernas escolheu a forma mais elevada de expressar essa perpetuação: a arte. Embora a antiguidade da relação do ser humano com a arte, pode-se dizer que 60 anos é tempo suficiente para se verificar se um trabalho artístico conseguiu dar continuidade a algo que o motivou. “Extensions”, do pianista de jazz norte-americano McCoy Tyner, que não leva este nome à toa, é uma realização desta magnitude. 

Poucos anos após assimilar a morte do mestre John Coltrane, com quem havia se tornado um músico profissional, Tyner realiza uma viagem para dentro de si mesmo. Já havia intentado isso em “The Real McCoy”, de 1967, mas seguiu em busca do seu verdadeiro “eu”, explorando, descobrindo, expandindo-se. Por isso, a noção de extensibilidade proposta por Tyner vai além de um mero produto sonoro-musical, pois atinge num só tempo dimensões altamente profundas, como a da raça, da espiritualidade e da ancestralidade. Em “Extensions”, Tyner vai à gênese.

Coltrane, aliás, abridor de portas do spiritual jazz e da vanguarda jazzística, é fundamental para essa procura existencial e espiritual. Afora a própria influência do saxofonista mais cultuado do jazz para Tyner e toda uma geração, o pianista reúne figuras não apenas devotas ao autor de “Giant Steps” como ainda vai além. Estão com ele Elvin Jones, companheiro do “quarteto clássico” que acompanhou por cinco anos Trane em suas principais obras; o versátil Ron Carter, cujo baixo é capaz de apoderar-se do mais profundo intimismo; Wayne Shorter, um dos mais ilustres herdeiros do saxofone mágico da linhagem de Coltrane; Gary Bartz, cujo sax alto conversa igualmente com o extracorpóreo; e para fechar, ninguém menos que a esposa dele: a pianista e harpista Alice Coltrane, grandiosa compositora e arranjadora, que dividiu a vida, os estúdios e os palcos com o marido e que substituiu, justamente, o próprio Tyner, em 1966. Tê-la neste disco significava para Tyner não apenas um resgate para com ela, mãe de Ravi Coltrane, fruto do casal e músico talentoso como os pais, como uma reconexão com quem, mesmo não mais vivo, fora-lhe tão importante.

Independente do que tocassem, só o fato de se reunir essa estelar turma já seria suficiente. Mas Tyner estava imbuído de pretensões mais elevadas neste projeto. Queria puxar o fio do novelo que lhe trouxera até ali como artista, como ser social e como pertencente de uma raça. Queria perscrutar a “extensão” de sua existência. A fonte para isso? A África. Muçulmano devoto, Tyner buscava invariavelmente nas raízes antepassadas a inspiração para sua música. No entanto, naquele momento de vida, calhava-lhe reunir os ecos do spiritual jazz – proclamado por Coltrane e muito bem progredido por outros músicos, como Albert Ayler, Pharoah Sanders e a própria Alice –, do bop e do modal com o legado dos ritmos africanos. A riqueza continental da África lhe oferecia a dimensão espacial perfeita para o autorreconhecimento, mas também para o do jazz e de toda a música moderna. A capa não deixa dúvidas ao mostrar a realeza negra com suas vestes islâmicas típicas.

O disco começa mandando uma mensagem vinda do rio que banha toda a África Continente e as áfricas imaginárias pelo mundo: o Nilo. Os mais de 12 minutos da faixa de abertura dimensionam a exuberância de um tema em homenagem ao maior – e mais histórico – rio do mundo. ”Message From The Nile”, com um início transbordante como uma nascente, abre ao som cintilante da harpa de Alice. Denso, o tema diz a que veio: variações de ritmo e textura da percussão, um piano lírico e consciente de seu papel central; e a dupla de sax, formando um só corpo – melódico e astral. Essencial para o desenvolvimento de civilizações milenares, como a egípcia, a grega e a hebraica, o Nilo recebe de volta Tyner em suas águas sagradas para um novo batismo. Essa é a mensagem. Tyner, Bartz e Shorter, padrinhos, parecem colocar a música a alguns metros do chão com seus improvisos, enquanto a harpa de Alice, última a solar, vem para, definitivamente, selar a sensação de elevação.  

Tyner com o mestre e amigo John Coltrane à época do
"quarteto clássico": inspiração espiritual

Estava muito clara a visão do band leader. Em uma época em que vários músicos do jazz, inclusive muitos contemporâneos de Tyner, se rendiam ao fascínio pop do jazz fusion, absorvendo com facilidade elementos do rock e da soul music, o pianista, convicto com seu Corão debaixo do braço, mantinha-se ainda mais fiel às raízes. Embora se abrisse para o matiz africano como os ultramodernos, fazia-o muito mais como contrição do que experimento ou frivolidade. “The Wanderer”, que vem na sequência, forjada no hard-bop ao qual ele e toda a banda se formaram, capta a ideia da “extensão” ao reafirmar aquilo que a música da África levou para o outro lado do Atlântico, como se a mensagem enviada do Nilo fosse justamente essa: o jazz puro e essencial. Como em todo o álbum, o autor prova que é a verdadeira ponte entre a tradição e o moderno.

Por falar em essência, o que é mais essencial para a música afro-americana do que o blues? “Survival Blues”, novamente faz uma ode aos ancestrais, mas localizando-os na América. O tema inicia com farfalhar de notas miúdas das mãos esquerda e direita de Tyner para, aos poucos e dissonantemente, formar um esboço melódico. É, sim, um blues, mas como o próprio título sugere, que necessita brigar por sua “sobrevivência”. As notas e acordes, como seres tirados de suas terras para servir de escravo por séculos num território que não era seu, travam uma batalha com o espaço sonoro para existirem, para ocuparem aquilo que lhes pertence. Jones, especialmente inspirado, está em casa: livre para exercitar sua verve polirrítmica. O blues, assim, como lamento e redenção, como música de trabalho dos trabalhadores escravizados, cumpre sua função sincrética, quase religiosa. Torna-se mais “espiritual” do que os mestres precursores jamais supuseram.

Se foi breve o passeio pela África, com certeza foi profundo. Por isso, não poderia deixar de se encerrar pedindo a bênção – seja de Alá ou dos orixás, que saíram da mesma África para jogar seus encantos na ponta sul da América. Mais spiritual jazz impossível, “His Blessings”  pega emprestada a atmosfera de Coltrane, principalmente, em seu maior canto divino, “A Love Supreme”, de 1964, em que Tyner foi um importante colaborador e Alice uma fundamental encorajadora. Com esparsas percussões (pratos ou rolos de tímpano), o tema tem na força dos sopros de Shorter e Bartz sua alma, suas vozes. Carter, outro fundamental para a construção harmônica, lança o arco para fazer de seu baixo uma flecha, como o caçador Oxóssi. A arpa de Alice desenha todo o espectro sonoro, atribuindo ares do Oriente egípcio, caldeu e fenício enraizado na civilização moderna. Já Tyner, dono e autor da canção, impregna-a de motivos oníricos e devotos, louvores urgentes de serem ditos.

Se Tyner já vinha de um tempo cogitando autodescobrir-se, em “Extensions” ele realiza justo o que o termo propõe: extensões deste significado. Afinal, não é um descobrir apenas de si, mas de seu povo, de sua raça, de sua gente. A civilização negra, seja da África, das Américas ou de onde quer que seja, está representada em seus acordes. Todos eles guardam no coração, inequivocamente, os sons que a Mãe-África lhes legou. E a arte, aqui respaldada pela linguagem da música, é capaz de manter vivas suas origens, de aproximá-la, de colá-la novamente à porção meridional ocidental, hoje chamada América e dividida por um imenso oceano, mas que um dia formou uma só terra.

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Gravado pelo selo Blue Note,, em fevereiro de 1970, no Van Gelder Studio, em Englewood Cliffs, New Jersey, “Extensions” foi lançado somente dois anos depois, em 1972, pela United Artists Records.

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FAIXAS:
1. “Message From The Nile” - 12:10
2. “The Wanderer” - 7:35
3. “Survival Blues” - 13:02
4. “His Blessings” - 6:41
Todas as composições de autoria de McCoy Tyner.

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Daniel Rodrigues