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sábado, 19 de novembro de 2011

John Coltrane - "My Favourite Things" (1961)



"John [Coltrane] era como um visitante a este
planeta.
Ele veio em paz e o deixou em paz."
Albert Ayler,
saxofonista norte-americano


Eu poderia falar aqui da importância de John Coltrane para a história do jazz.
(Ou tentar falar)
Ou mais, poderia falar da sua relevância para a história da música.
Eu poderia falar da relação de Coltrane com o saxofone e de sua deste artista para a consagração deste instrumento.
Poderia ressaltar todas as qualidades técnicas deste fantástico instrumentista.
Poderia tentar explicar suas grandes virtudes, seu estilo, características, mas como não sou um especialista, e sim apenas um apreciador, por certo, não conseguiria explanar tudo com precisão.
Poderia até...
Bom...
Poderia um monte de coisas.
Mas não vou.
Queria falar-lhes do disco "My Favourite Things" de 1961, mas... o que poderia dizer dele?
Falar da banda?
Do repertório de regravações de clássicos?
Porter, Gershwin, Rogers...? Hum...
Deixa pra lá.
Apenas dir-lhes-ei que "My Favourite Things" é uma daquelas obras que parecem preencher a alma d'a gente. Uma daquelas coisas que parecem não estar sendo tocadas por seres humanos. Que por vezes chega a parecer fazer-nos ficar em vias de desfalecer ou talvez, também, e não raro, sem nenhum aviso, fazer-nos apanharmo-nos inadvertidamante com lágrimas nos olhos.
Ah,
Dos meus favoritos.

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FAIXAS:
1."My Favorite Things" (Richard Rodgers) — 13:41
2."Everytime We Say Goodbye" (Cole Porter) — 5:39
3."Summertime" (George Gershwin) — 11:31
4."But Not for Me" (Gershwin) — 9:34

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Ouça:
John Coltrane My Favourite Things


Cly Reis

domingo, 27 de outubro de 2013

Grant Green - "Matador" (1964)


Acima, a capa original de 1964,
seguida da capa da reedição em CD
“Grant Green merece uma medalha por gravar o hit
‘My Favourite Things’ de [John Col]Trane
com o mesmo conjunto.
Mas embora o grupo se aproxime da canção
com o mesmo estilo 6/8
e da forma como Coltrane a sentia,
não a reduzem aos essenciais acordes básicos”.
Michael Cuscuna


O jornalista e crítico musical Márcio Pinheiro uma vez afirmou, com toda propriedade, que tudo o que os grandes nomes da MPB (Maria Bethânia, Caetano VelosoGilberto GilChico BuarqueGal Costa, João Donato, entre outros) produziram nos anos 70 é de ótima qualidade. É só pegar qualquer disco daquela época e ouvir que não tem erro. Infalível. Tudo favorecia para que tanta coisa boa acontecesse ao mesmo tempo e com um nível altíssimo de qualidade, o que ocorre de tempos em tempos conforme o cenário cultural, político, histórico e social de determinado local. Isso se aplica à produção de jazz norte-americana dos anos 40 a 60. Na época, gênios estavam a pleno (Miles Davis, Dizzie Gillespie, Charles Mingus, Duke Ellington), outros se estabeleciam rumo ao Olimpo (John Coltrane, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ornette Coleman) e, além destes, igualmente talentosos e sintonizados com aquela onda (Kenny Dorham, Joe Henderson, Lee Morgan, Freddie Hubbard, Sonny Rollins e mais centenas e centenas), não ficavam para trás em maestria e qualidade. Tudo conspirava a favor: retomada da sociedade civil no pós-Guerra; surgimento de uma nova classe afrodescendente e latina em fase de transformação sociopolítica; produções de várias lugares que se complementavam e se somavam; centros urbanos (Chicago, Nova York, Filadélfia, Los Angeles) suportando técnica e economicamente este contingente; encorpo da indústria cultural; e, o mais importante: o resultado de toda uma tradição musical, artística e antropológica trazida pelos negros da África e ressignificada na América que, agora, confluía de diversas formas e em quantidades amazônicas.

As gravadoras de jazz mantinham em seus portfólios artistas de primeira linha, mas, em especial, o Blue Note, principalmente no final dos 50 aos 60, era, esta sim, infalível. Tudo muito bom, sem exceção. A este selo pertenciam vários dos melhores jazzistas da época, e um deles era o guitarrista Grant Green. Com forte base no rhythm'n blues e com extremo domínio do bebop, além de ser também um espetacular solista em baladas, ele se junta, por força do destino, a McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, bateria, e Bob Cranshaw, baixo – ou seja, trocando-se Chanshaw por Jimmy Garrison, dá a “cozinha” que gravou com Coltrane o antológico “A Love Supreme”, a segunda melhor banda de jazz de todos os tempos depois do quinteto de Miles dos anos 50, que tinha o próprio Coltrane na formação.  Com eles, lança, em 1964, um disco cuja alcunha fala por si: “Matador”. Em apenas duas sessões (uma em maio e outra e junho, apenas cinco meses antes da gravação de “A Love Supreme”), conta, além da maestria desses músicos, com a mão apurada de Rudy Van Gelder na técnica, o alemão responsável pela operação de estúdio de 90% das históricas gravações de jazz da época, que afina a mesa de som de “Matador”. Igualmente, na arte da capa – mais uma particularidade dos selos de jazz, inclusive o Blue Note, que a valorizavam tanto quanto o conteúdo –, quem empresta seus traços em um desenho a nanquim de um esboço de Green empunhando a guitarra é ninguém menos que Andy Warhol.

Se fosse só isso, já seria legal. Mas aí vem o que interessa: música. Na faixa-título, Green abre o disco fazendo soar seu tom característico de dedilhado muito limpo ao ouvido, em que desliga os graves e agudos do amplificador e dá ganho nos alto-falantes. Ele exercita seu estilo técnico e habilidoso do R&B, porém colocando sempre a expressividade acima da perícia. Isso fica claro na linda escalada progressiva dedilhada com a suavidade do blues e em todo o enredo, desenvolvido com segurança e alma pelo quarteto. Aqui já se nota a predileção pelas quartas de Tyner, que dá saltos de três intervalos maiores acima da tônica da melodia, o que surpreende e mexe com o ouvinte. Também, tem a marcação balanceada e cheia de groove de Jones. Todos cobertos pelo baixo competente de Cranshaw. Soul-jazz da melhor qualidade.

Aí, preparem-se, leitores-ouvintes, pois vem uma das peças mais lindas que o abençoado jazz já cunhou. E a ligação de Green com Coltrane aqui se faz inequívoca. Não é apenas pela parceria com seus músicos de fé nem só pela contemporaneidade de ambos (naquele início de anos 60, o saxofonista era já uma lenda e talvez o maior astro de jazz vivo então), mas também de repertório e espírito. Tanto é que Green pinçou justamente o maior sucesso comercial de
Coltrane para uma gravação baseada não na original canção popular natalina de Hammerstein II e Rodgers, mas na versão marcadamente modal e particular criada por Coltrane: a obra-prima "My Favourite Things". Retomando a estrutura e o clima da faixa que Trane gravara quatro anos antes, Green simplesmente arrasa. Tyner e Jones, que compunham a banda de Coltrane na histórica sessão de 1960 (junto com Steve Davis, no baixo), aqui, sabem exatamente o que fazer. O piano, elegante e preciso no seu jogo modal em três tempos (meio tom acima que na versão clássica e em compasso ligeiramente mais acelerado); a bateria, puro ritmo em ataques sincopados da baqueta na caixa, rolos engenhosos e combinação constantemente diferenciada de pratos/bumbo/caixa. E Green... Ah! Este exala inspiração das cordas de sua Gibson em construções ágeis e luminosas não de modo a imitar Coltrane, mas, sim, de homenageá-lo. Os três, junto com Cranshaw, alternam lances de liberdade dissonante e politonalismo que atinge por vezes um epicismo quase sinfônico tamanha a sintonia. Não é exagero dizer que esta “My Favourite Things” só não é melhor que a de Coltrane – o que, convenhamos, é quase impossível, uma vez que se está falando de algo comparável ao "Bolero", a “For no One”, à Cavalgada d’"As Valquírias” e obras desse porte.

Green, por mais apurado que seja, é muito coração, pois sua técnica está sempre a serviço de uma música o mais pura possível, como um bom blues ou gospel. Tal qual Coltrane, ele evita os clichês, flutuando com expressividade dentro das escalas. “Green Jeans” é assim. Neste hard bop modal, a ágil e criativa mão esquerda de Tyner impressiona por seu lirismo, enquanto a direita modula e mantém a tônica. Jones faz a “cama”, dando ênfase na consistência do ritmo e na continuidade através dos pratos. Mas é Green quem brilha. Apreciador de jazzistas não apenas do seu instrumento, como Charlie Christian e Jimmy Raney, mas, principalmente, dos de sopro como Coltrane, refletia diretamente em seu fraseado o estilo reed style de tocar como os mestres Miles e Charlie Parker, a quem admirava especialmente. “Green Jeans” mostra bem isso, pois há momentos em que até parece que o solo está saindo de um sax alto ágil e suingado e não de uma guitarra. Mas é. Ao invés do stacatto (quando cada nota aparece destacada da seguinte), muito usado pelos guitarristas, usa o legato, ligando as notas de suas frases à maneira de um saxofonista.

“Badouin”, repleta de enlevos, traz as influências folclóricas que faziam a cabeça dos jazzistas da época. Seu riff carrega toques orientais, árabes e africanos num uníssono agudo de guitarra e piano, enquanto a bateria marca um ritmo tribal. Era o show de Elvin Jones só começando... A manutenção Tyner com o baterista é impecável, na medida certa, jogando a luz sobre o solista, mas sem se ausentarem do foco. Green, assim, improvisa acordes circulares e, às vezes, até repetitivos e hipnóticos, como os de um encantador de serpentes. O solo de Tyner é cheio de expressividade e classe. Já a marcação pontuada de Jones nos pratos e nos ataques de baqueta à caixa, ora fortes, ora suaves, antecipam seu único solo no disco. Mas que solo! Imponente, Jones vale-se de todo seu arsenal polirrítmico, dobrando compassos, variando volumes e extensões, combinando as texturas, salpicando sonoridades africanas e latinas. Um espetáculo. Depois, só restava mesmo voltar ao chorus e encerrar a faixa.

Finalizando o disco, num compasso um pouco mais ligeiro que uma balada tradicional, “Wives and Lovers”, clássico de Burt Bacharach, que ganha a sua talvez mais radiosa e definitiva versão no jazz. Longe do standart pop cantado por Frank Sinatra (lindamente, diga-se de passagem), “Wives...” recebe aqui outra roupagem, o que lhe dá uma nova vida. É um prazer inenarrável ouvir Grant Green executando o riff com toda aquela singeleza, movimento e sensualidade, num controle total de tempos e durações. Seu improviso traz lances de redemoinhos sonoros que enredam o ouvinte e que, logo, se resolvem numa nova e engenhosa solução, fazendo a música evoluir para um hard bop não menos romântico. Tyner, impecável como sempre; Chanshaw, escalonando com elegância; e Jones, mais uma vez inteligente e fluido, segura o ritmo no chipô e na vassourinha arrastando no couro da caixa, adensando o clima sensual e etéreo.

Apenas quatro faixas (considerando que “Wives...” foi incluída na edição em CD), mas que carregam todos os predicados do alto nível do jazz que a Blue Note produziu naquela fase de ouro. E mais do que isso: um disco coirmão da obra-prima “A Love Supreme”, quase que, junto a “Crescent”, do próprio Coltrane e também daquele mesmo ano, um ensaio de luxo para o que o gênio do saxofone iria revelar meses depois e com praticamente o mesmo time na retaguarda. O que dizer, então, deste disco de Grant Green? Numa palavra: “Matador.

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FAIXAS:
1. "Matador" (Green) – 10:51
2. "My Favorite Things" (Oscar Hammerstein II, Richard Rodgers) – 10:23
3. "Green Jeans" (Green) – 9:10
4. "Bedouin" (Pearson) – 11:41
5. "Wives and Lovers" (Bacharach, David) – 9:01


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Ouça:
Grant Green Matador




segunda-feira, 24 de julho de 2017

The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)



“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956

“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957

Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.

Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.

É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.

"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.

"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.

O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.

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FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09

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OUÇA

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Lee Morgan - “The Gigolo” (1965)

 

“Eu fiquei com raiva por ela ter feito aquilo com um amigo meu e alguém que contribuiu tanto em sua vida curta à nossa música, mas também senti compaixão, porque aquela era a mulher que havia lhe tirado da lama e tornou possível ele voltar a ser artista.” 
Paul West, baixista de jazz e amigo de Lee Morgan

Como no rock, a história do jazz também é marcada por astros que tiveram uma passagem muito breve sobre o palco da vida. Se é comum lembrar-se de Jim Morrison, Janis Joplin, Kurt Cobain e Amy Winehouse, no gênero mais norte-americano de todos não é muito diferente. Eric Dolphy, Albert Ayler (mortos aos 34 anos), Wynton Kelly (40), John Coltrane (41) e Django Reinhardt (43) são exemplos de músicos de jazz que tiveram suas trilhas abreviadas seja por questões de saúde, seja por alguma tragédia, caso este de outro grande nome do jazz: Lee Morgan. O enfant terrible do trompete, que, aos 17 anos, já assombrava Nova York com seu virtuosismo e confiança, foi assassinado quando tinha apenas 33 por um tiro desferido propositalmente pela própria esposa. Morgan, assim, viveria pouco mais de uma década após sua estreia. Tempo suficiente, contudo, para gravar 20 álbuns próprios, vários deles memoráveis e sem os quais é impossível contar a trajetória do jazz moderno, como “The Cooker” (1958), “Search For The New Land” (1966) e “Live At The Lighthouse” (1971). Além destes, outro indispensável trabalho de Morgan deste período mágico é “The Gigolo”, de 1965.

Tal um roqueiro, a vida intempestiva de Morgan refletia-se na sua arte para bem e para mal. Junto à genialidade, convivia a dependência de heroína, tristemente comum entre os músicos de jazz da época. Em meados dos anos 60, já alçado a grande talento do seu instrumento depois de Miles Davis, Morgan quase sucumbiu às drogas. Quem o salvou foi aquela que pode ser considerada seu “bálsamo maligno”: a esposa Helen, que anos mais tarde, ironicamente, seria também sua algoz. Mulher negra, independente e de vida difícil, foi ela, para quem tinha 13 anos de diferença, que recolheu da sarjeta o jovem Morgan. Afeiçoaram-se e casaram-se, o que não quer dizer, no entanto, que tenham vivido às mil maravilhas. Entre o amor e o ódio, a convivência entre os dois, abastecida por momentos bons mas também por ciúmes e traições, oscilava, o que aparecia na música de Morgan conforme a situação. “The Gigolo”, desta fase, não poupa em ironia, visto que faz uma sarcástica referência à conturbada e dúbia relação dele com Helen, que mais do que somente amante, também lhe era empresária e quase uma mãe adotiva. Um relacionamento tão controverso, que parecia por vezes que ele aproveitava-se dela como um gigolô.

Graças a ela, porém, Morgan entrava nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, em 1º de julho daquele ano de cara e pulmões limpos e com um supergrupo formado por Bob Cranshaw (baixo), Billy Higgins (bateria), Harold Mabern Jr. (piano) e Wayne Shorter (sax tenor). A boa fase fica explícita no memorável tema de abertura: “Yes I Can, No You Can't”. Um animado e suingado jazz-funk, fusão a qual Morgan já havia sido um dos precursores desde “The Sidewinder”, de um ano antes, gravada posteriormente, inclusive, pelo pai da soul, James Brown. Modernidade, porém, sem perder a elegância bop aprendida nos night clubs nova-iorquinos desde os anos 50 em bandas como a Orquestra Dizzy Gillespie, a Hank Mobley Quintet e a Jazz Massangers, nas quais tocou antes de alçar seu próprio voo. Shorter, virtuoso, abre os trabalhos de solo, seguido pelo próprio Morgan, que tem a “cozinha” mais eficiente da sua carreira em operação: um incrível Higgins não poupando pratos, rolos e batidas firmes marcando o ritmo; Mabern Jr., reverenciando o blues nos teclados; e Cranshaw, outro craque, fazendo o baixo mexer os quadris.

Escrita por Shorter – que dificilmente não deixa sua marca com alguma composição própria em trabalhos dos colegas, compositor profícuo que é – é o saxofonista que improvisa por cerca de 3 min dos pouco mais de 5 da faixa. Mabern Jr. também participa para, somente quase ao final, Morgan, generoso e com espírito de grupo, não ofuscar o parceiro e apenas dividir com ele um duo entre sax e trompete. Saborosa, daquelas de acompanhar estalando os dedos, “Speedball” vem na sequência, com seu riff encantador e seus detalhes de leve quebra das frases. O band leader, nesta, toma a frente no solo: limpo, bem pronunciado, engendrado com a máxima integridade de um músico em boa forma física e mental. 

Muito bem apropriada por Morgan, a música de Styne e Cahn, que dá título ao álbum, carrega complexidades harmônicas muito distintas, inclusive um toque hispânico pouco visto no trabalho do trompetista até então, talvez o que menos tenha aderido de sua geração a esta tendência, que fez a cabeça dos jazzistas a partir da segunda metade dos anos 50. Modal intenso, "The Gigolo" é daquelas que tiram o ouvinte do chão. E que solo de Morgan! Em tom alto, ele exercita tudo o que sabe (viradas, ataques, escalonamentos, vibratos), enquanto o grupo talentosamente mantém por trás uma base quase tão solística quanto. Shorter também se esmera no improviso, elevando ainda mais a atmosfera emotiva, algo que ele sabe muito bem fazer. Após mais um chorus, Morgan volta para, aí sim, arrebentar tudo de vez.

Mesmo não sendo um rocker, Morgan tinha muito do espírito jovem destes, pois também sabia quebrar padrões. É o que ele faz com sutileza com “You Go To My Head”, uma tradicional balada, que ganha, na versão do criativo e subversor trompetista, um tom mais inconstante e lírico como ele próprio o era em vida. Sem perder o romantismo, Morgan e sua trupe dão ao número um improvável clima cadenciado, boper, que redimensiona o charme desse standart. Como Coltrane fez com “My Favourite Things”, transformando um singelo tema infanto-juvenil em um jazz modal arrebatador, Morgan aplica a mesma inventividade ao capturar para si o cerne do tema da dupla Gillespie e Coots e recriá-lo. Um final de disco com o tamanho da revolução que Morgan legou ao jazz.

Ceifada prematuramente por um acontecimento trágico, assim como a de vários ídolos do rock, a vida de Lee Morgan guarda essa dubiedade muitas vezes típica dos grandes: uma capacidade que parecia infinita, não fosse a implacável finitude material. Como nos romances ou na mitologia, vida e morte, beleza e terror, amor e ódio se entrelaçam para deixar para sempre algo maior do que o convencional. Como lembra Shorter, falando com carinho do colega e parceiro: “Quando gravávamos, sempre havia a ideia de que aquilo duraria para sempre, de que o que escolhemos perdurará”.

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FAIXAS:
1. “Yes I Can, No You Can't” (Lee Morgan) - 7:23
2. “Trapped” (Wayne Shorter) - 5:57
3. “Speedball” (Morgan) - 5:29
4. “The Gigolo” (Jule Styne, Sammy Cahn) - 11:01
5. “You Go To My Head” (Haven Gillespie, J. Fred Coots) - 7:20

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2015





David Bowie nos deixou
ainda na liderança dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS
2015 acabou e como sempre, fazemos aqui no ClyBlog aquele balanço da movimentação dos álbuns fundamentais no ano anterior: artistas com mais discos na nossa lista, países com mias representantes, o ano e a década que apresentam mais indicados e outras curiosidades.
O ano abriu com a publicação de número 300 dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que teve a especialíssima participação do escritor Afobório falando sobre o grande "Metrô Linha 743", resenha que marcou assim a estreia, mais que merecida, de Raul Seixas no nosso time de fundamentais.
Outros que já estavam maIs que na hora de entrarem pra nossa lista e que finalmente botaram seu primeiro lá foram a musa punk, Patti Smith; o poeta do rock brasileiro, Cazuza; a banda cult Fellini; o grande Otis Redding, os new wave punk do Blondie; os na´rquicos e barulhentos Ratos de Porão; o mestre do blues Howlin' Wolf; e em especial o Mr. Dynamite, James Brown, com seu clássico no Apollo ThetreAlguns, por sua vez, se afirmaram entre os grandes tendo enfim seu segundo disco indicado pra mostrar que não foi acaso, como é o caso de Cocteu TwinsChico Science com sua Nação ZumbiLobão e Björk.
Com o ingresso, em 2015, do ótimo Ouça o que eu digo: não ouça ninguém", os Engenheiros do Hawaii finalmente completam sua trilogia da engrenagem; Bob Dylan que foi o primeiro a ter dois álbuns seguidos nos Álbuns Fundamentais, lá em 2010, depois de um longo jejum finalmente botou seu terceiro na lista, o clássico "Blonde On Blonde"; já John Coltrane que passou um bom tempo apenas com seu "My Favourite Things" indicado aqui, de repente, num salto, apenas em 2015, teve mais dois elevados à categoria de Fundamental, muito por conta do cinquentenário destes dois álbuns, bem como de outro cinquentão da Blue Note que também mereceu sua inclusão em nossa seleção, o clássico 'Maiden Voyage" de Herbie Hancock, alem do fantástico The Shape of Jazz to Come" como homenagem merecida a Ornette Coleman, falecido este ano.
Por falar em falecido recentemente, não tem como deixar de falar em David Bowie que deixa este mundo na liderança dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mostrando que toda a idolatria e reconhecimento do qual gozava não era a toa. Mas ele não está sozinho na ponta! Alavancado pela inclusão de seu ótimo "Aftermath", os Rolling Sones alcançam os líderes e empatam com Bowie e com seus "rivais", os Beatles, prometendo grandes duelos para as próximas edições dos A.F.
Como curiosidades, se no ano passado tivemos mais trabalhos de séculos passados, no último ano os A.F. tiveram um certo crescimento o número de álbuns produzidos no século XXI. Muito por conta de uma nova galera talentosa que vem surgindo por aí como Lucas Arruda e Tono que tiveram seus álbuns, "Sambadi" e "Aquário", respectivamente, reconhecidos  e incluídos no hall dos grandes álbuns. Os garotos também colaboraram para um fato interessante: o altíssimo número de discos nacionais neste ano. Foram 15 no total, empatando com o número dos norte-americanos neste ano e deixando bem para trás os ingleses com apenas 3 em 2015. O pulo brasileiro refletiu-se na tabela geral e pela primeira vez desde o início da seção o Brasil está à frente da Inglaterra em número de discos.
A propósito, falando de Brasil, se formos falar em termos nacionais, a principal mudança foi a elevação de Caetano VelosoEngenheiros do Hawaii e Tim Maia à vice-liderança, dividindo-a ainda com GilLegião e Titãs. Na ponta, segue firme o Babulina, Jorge Ben, com 4 álbuns fundamentais.
E aí? O que será que nos reserva 2016? Como será a batalha Beatles vs Stones? Alguém alcançará ou passara Jorge Ben na corrida nacional? E os ingleses reagirão contra os brazucas e mostrarão que são a terra do rock? Aguarde as próximas postagens e acompanhe o ClyBlog em 2016. Por enquanto ficamos com os números de 2015 e uma visão geral de como andam as coisas nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS.


PLACAR POR ARTISTA (GERAL)

  • The Beatles: 5 álbuns
  • David Bowie 5 álbuns
  • The Rolling Stones 5 álbuns
  • Stevie Wonder, Cure, Led Zeppelin, Miles Davis, John Coltrane, Pink Floyd, Van Morrison, Kraftwerk e Bob Dylan: 3 álbuns cada


PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Jorge Ben (4)*
  • Titãs, Gilberto Gil*, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia; 3 álbuns cada
*contando o álbum Gil & Jorge

PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 2
  • anos 40: -
  • anos 50: 13
  • anos 60: 63
  • anos 70: 90
  • anos 80: 82
  • anos 90: 62
  • anos 2000: 8
  • anos 2010: 7


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1

PLACAR POR ANO

  • 1986: 15 álbuns
  • 1985 e 1991: 13 álbuns cada
  • 1972 e 1967: 12 álbuns cada
  • 1968, 1976 e 1979: 11 álbuns cada
  • 1969, 1970, 1971, 1973, 1989 e 1992: 10 álbuns cada


PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 125 obras de artistas*
  • Brasil: 85 obras
  • Inglaterra: 80 obras
  • Alemanha: 6 obras
  • Irlanda: 5 obras
  • Canadá e Escócia: 4 cada
  • México e Austrália: 2 cada
  • Suiça, Jamaica, Islândia, Gales, Itália e Hungria: 1 cada

*artista oriundo daquele país




Cly Reis

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

John Coltrane - “Blue Train” (1957)

 


"Coltrane pode ter feito álbuns mais importantes, mas nenhum foi tão eficaz quanto este". 
Colin Larkin, criador e editor da Encyclopedia of Popular Music, no livro“All Time Top 1000 Albums”

“Aquela gravação de ‘Blue Train’ era mesmo diferente... dava para ver, havia algo de espiritual”.
Curtis Fuller 

Quando se fala em bandas no jazz, John Coltrane é conhecido pelo quarteto mágico que formou entre 1961 e 1965 ao lado de Elvin Jones, na bateria, Red Garland, piano, e Jimmy Garrison, baixo. Porém, é verdade também que Coltrane nunca deixou de experimentar outros formatos de banda menos enxutos. Compôs, por exemplo, em 1961, para o disco “Olé”, um septeto e para o free jazz avant-garde “Ascension”, de 1965, nada menos que um decateto. A versatilidade para aplicar seu gênio musical, fosse rodeado de menos ou de mais músicos, está, aliás, desde que se tornou um band leader no final dos anos 50. “Blue Train”, seu primeiro e único disco pela cultuada Blue Note e menos de quatro meses depois de sua estreia como líder em outro selo clássico, a Prestige, é fruto da sessão de gravação a 15 de setembro de 1957 com cinco parceiros em estúdio. 

Porém, não se trata apenas de uma mera reunião para mais um mero disco, nem muito menos Trane estava acompanhado de quaisquer músicos. O trompete, sim senhores, estava a cargo do enfant terrible Lee Morgan, então com apenas 19 anos, mas já considerado em toda a Costa Leste norte-americana como um fenômeno do jazz. Além de Morgan, estavam com ele naquele dia no Van Gelder Studios, em New Jersey, só craques: o trombonista Curtis Fuller, maior do seu instrumento à época e sucessor de J.J. Johnson; o já tarimbado pianista Kenny Drew, da escola de Charlie Parker e Johnny Griffin; o jovem baixista Paul Chambers, presença constante a toda turma do be-bop; e o disputado baterista Philly Joe Jones – estes dois últimos, aliás, ex-colegas de Coltrane do famoso primeiro quinteto de Miles Davis. O resultado é um dos maiores clássicos da história do gênero e um dos mais célebres da exitosa, mas curta carreira do artista.

Com uma das aberturas mais emblemáticas da discografia jazz, aquele chorus dos metais marcados pelos dois acordes de piano, a faixa-título é daquelas desbundes provadores de que ali estava pronto, lapidado, já no primeiro projeto solo, o maior nome do jazz: John Coltrane. Como compositor, arranjador e, principalmente, pelo sofisticado e intrincado modo de tocar. Algo único e inédito até então, haja vista que, experimentado nas bandas de Dizzy Gillespie e Earl Bostic, no quinteto de Miles Davis e ex-aluno de Thelonious Monk, Trane unia num só soprar o blues, o spiritual, o be-bop e a vanguarda. Em “Blue Train”, embora um trabalho inicial, já fica notória a forma de tocar de Coltrane num movimento em direção ao que se tornaria seu estilo característico: solos harmônicos e linhas arpejadas em que o tempo muitas vezes está fora ou acima do compasso, estabelecendo sutis conexões com a melodia.

Mas quem não fica para trás são Morgan e Fuller. Convidados de honra para dividirem os sopros com o anfitrião, eles se esmeram em suas participações sempre inspiradas. Caso de “Blue Train”, mas também da gostosa “Moment's Notice”, quando dividem o chorus com Coltrane. Fuller com seu jeito colorido de tocar um instrumento de registro grave. Já Morgan exibe seu virtuosismo possante de viradas criativas, agudos surpreendentes e encadeamentos improváveis. Chambers tira das cordas do baixo através do tanger do arco sons mágicos num solo luminoso. Já o blues ligeiro “Locomotion”, como o nome indica, tem na bateria de Joe Jones o impulso inicial para improvisações de alta habilidade de Coltrane, Morgan e Fuller. Mais uma vez, funciona com perfeição a trinca, com o devido destaque para cada um. Porém, não são somente eles que se sobressaem. Drew é pura elegância, enquanto Jones repete o destaque da abertura num curto, mas marcante improviso.

Diminuindo o ritmo com elegância, a romântica “I'm Old Fashioned”, originalmente da trilha sonora do musical de Fred Astaire “Bonita como Nunca”, de 1942, capta a atmosfera de que Coltrane muito se valeu junto a Miles Davis em suas inseparáveis baladas. Porém, também antecipa o tipo de releitura de standarts do cinema norte-americano que faria a partir de então, culminando na obra-prima “My Favourite Things”, de “A Noviça Rebelde”, o qual versaria em seu álbum homônimo em 1960. A pronúncia lânguida do sax na abertura, articulada com leves salpicos nas teclas, são de arrebatar. Escovinhas na caixa e no prato, um baixo vadio por detrás e um piano machucado dão aquele ar de fim de noite de nightclub

Para terminar, outro clássico, das preferidas dos amantes do jazz e de Coltrane: “Lazy Bird”, brincadeira com a progressão harmônica de “Lady Bird”, do pianista e então recente parceiro Tadd Dameron. A impressionante performance do líder pela metade da faixa quase não deixa perceber que quem a abre com o riff e executa a primeira sessão de improviso não é ele e, sim, Lee Morgan. A inteligência musical de Coltrane é tamanha que, longe de qualquer vaidade, ele percebe que cabia ao trompete esta função dentro do arranjo do tema. E olha que se trata do número de encerramento e para o qual podia, com todas as razões, puxar para si o protagonismo. Mas o que se escuta é, a bem dizer, uma música do repertório de Morgan. Na sequência, Fuller, Coltrane, Drew, Chambers e Jones cada um entra para seu momento, fechando, novamente, com a irreverência vigorosa de Morgan. 

Não por coincidência, "Blue Train" foi um dos trabalhos preferidos pelo próprio Coltrane, que continuaria a promover maravilhas fosse com duos, trios, quartetos, sextetos, octetos... Sua escalada sonora e espiritual ainda revelaria muitos momentos singulares para o desenvolvimento do jazz moderno até seu apogeu criativo naquela que pode ser considerada a trilogia máxima: "Crescent", "A Love Supreme" e "Ascencion". Porém, nada disso seria construído não fossem os trilhos abertos por este "trem azul", a linha de partida para o estilo hipnótico e exultante que o músico seguiria até sua prematura estação final, em 1966. Quase uma metáfora para um artista que passou pelo planeta "blue" na velocidade de um trem, iluminando por onde passava e emanando os sons que simbolizam o supremo.

*********
FAIXAS:
1. "Blue Train" - 10:43
2. "Moment's Notice" - 9:10
3. "Locomotion" - 7:14
4. "I'm Old Fashioned" (Johnny Mercer, Jerome Kern) - 7:58
3. "Lazy Bird" - 7:00
Todas as composições de autoria de John Coltrane, exceto indicada

*********
OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

David Bowie Eternamente

Bowie, imenso caleidoscópio

É difícil mensurar a real dimensão de um artista como David Bowie. E são vários os motivos desta dificuldade: 1. o fato de que ele se encontra em plena atividade criativa, tendo retornado à vida pública com o ótimo álbum "The Next Day", em 2013, após um silêncio voluntário de dez anos; 2. o fato de que se encontra inserido no coração mesmo da cultura do espetáculo e do entretenimento de massas, dispensando certas reservas e certa imunidade crítica das quais poderia lançar mão caso fosse associado às“belas artes”e ao campo mais tradicional das artes instituídas – Bowie, ao contrário, é um legítimo artista pop e, como tal, é um típico produto de consumo –; 3. o fato de que se constituiu artisticamente em função de sua permanente mutabilidade e reinvenção – Bowie, o andrógino; Bowie, o camaleão; Bowie, esperada surpresa, incógnita e esfinge –; 4. o fato de que atravessou, ao longo dos anos, ao longo de cinco décadas de intensa vida artística, praticamente todos os formatos, as modalidades e os nichos midiáticos de nossa contemporaneidade – além da música, o cinema, o teatro, a moda, a dança, a performance e as artes do vídeo. Nem mesmo as artes plásticas lhe escaparam.
Mas, acima de tudo, é muito difícil dimensionar-lhe o real valor, sua real importância, simplesmente porque o amamos. Amamos Bowie e envelhecemos com ele. Não há, portanto, a menor capacidade de avaliá-lo sem que estejamos contaminados por esta paixão, impregnados pela memória afetiva que tecemos juntos. Assim, é muito difícil distanciar-se. Diante dele, é difícil ser comedido e justo.
Em síntese, foi esta a sensação que tive, recentemente, ao visitar a Mostra David Bowie, realizada no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Opulência e variedade, encanto e maravilhamento são palavras óbvias demais para descrevê-la. Aliás, são termos recorrentes na própria fortuna crítica do cantor inglês, no curso quase completo de sua biografia. Bowie, de fato, parece fadado a nos inebriar e seduzir. Inventividade, delicadeza e elegância não lhe faltam, de modo nenhum. A Mostra dá sólidas evidências disto.
Particularmente, interessei-me por aspectos relativos a seu processo criativo, pelos recursos técnicos empregados em certos álbuns e/ou canções, tais como o Verbasizer, um aplicativo concebido para o embaralhamento randômico de manchetes de jornal, derivando daí a produção dos versos a serem cantados, e o Stylophone, uma espécie de proto-sintetizador empregado em "Space Oditty", por exemplo. Além disso, há um fascínio estranho em observar de perto os rascunhos das canções, as partituras originais, as letras escritas e reescritas à mão, os rabiscos nas margens comuns de uma folha de papel. E o que dizer dos figurinos exatos, vestidos em tantas performances memoráveis? E quanto às botas de salto, os sapatos efetivamente calçados? É como se o corpo do artista estivesse ali presente, imobilizado e oferecido à vista, à visitação. É como se o corpo da obra estivesse sendo examinado por dentro, vasculhado e dissecado.
Enquanto observava, uma questão insistente me vinha à mente: “a quem está endereçada esta exposição”? Ao público leigo ou ao fã incondicional, conhecedor altamente especializado? Estaria dedicada ao admirador médio (como eu)? De início, suspeitei que estivesse dirigida aos dois primeiros. Depois, me convenci de que está direcionada a todos aqueles que se disponham a montar um quebra-cabeças e a encontrarem-se refletidos no imenso caleidoscópio que é a obra de David Bowie.



Vai em Paz, David Bowie
por Paulo Moreira


Quando eu era um adolescente de 12, 13 anos, surgiu nas páginas da revista POP (a única na época) uma figura andrógina, com cabelo, olho pintado e francamente gay. Como todo mundo, fiquei curioso com aquele cara que se colocava como uma figura andrógina naquele mundo pop altamente macho. Aí, começaram a aparecer os discos no Brasil, as músicas no rádio ("Rebel, Rebel", "Ziggy Stardust" e "Life on Mars", que o Cascalho rolava o clipe no Portovisão). Quando lançou o "Young Americans", comprei o LP e quase furei de tanto ouvir. A partir daí, fiquei acompanhando a carreira dele à distância (confesso que com 17 anos, não consegui entender "Low" e "Lodger", apesar de achar o "Heroes" interessante. "Ashes to Ashes" ganhou todo mundo com aquele clipe maluco.
Só voltei a mergulhar no Bowie em 1983 com o incrível "Let's Dance", onde ele pegava o som do Nile Rodgers e subvertia totalmente. Era como se o Chic tivesse enlouquecido e misturado com altas doses de DB e saiu um disco que era pop e experimental ao mesmo tempo. Ouçam "Ricochet" com sua levada "My Favourite Things" do John Coltrane (influência normal para um cara que era saxofonista). Ou "China Girl" que tem toda a cara de Bowie com o Tony Thompson destruindo a bateria e o Carmine Rojas dando um banho no baixo. Ou talvez "Cat People". Todas elas com o Steve Ray Vaughan comendo a guitarra com farofa. Aliás, descoberta para o mundo do sr.David Jones.
Daí pra frente, foram momentos esporádicos ("Loving the Alien" e a versão de "God Only Knows", que eu adoro), mas ele sempre surpreendendo aqui e ali. Há três anos atrás, comprei o "The Next Day" e confesso que achei mais do mesmo. Mas este "Blackstar" é um clássico. Vai em paz, David Bowie.



Alma de Influência Infinita
por Tatiana Viana
(convidada)

Há poucos dias atrás, no dia do aniversário (8 de janeiro) de David Bowie estava eu a comentar sobre a importância de alguns músicos e de suas obras na história de nossas vidas e com certeza muitas pessoas compreendem o que quero dizer.
Cresci ouvindo, assistindo e colecionando o que podia de David Bowie, sempre contemplei de forma apaixonada sua forma camaleônica de ser. Suas músicas habitaram muitos de meus dias e noites e foram fundamentais para instigar em mim o desejo de conhecer e buscar mais sobre a mutabilidade e a constante evolução do som através deste grande mestre que a cada canção e aparição se reinventava me causando sempre a surpresa de a cada vez gostar mais de suas composições, sem entender como suas músicas nunca me cansavam.
Lembro das vezes que fui assisti-lo no cinema mais de uma vez seguida o mesmo filme, minha primeira fita cassete que foi "Ziggy Stardust", depois vieram as VHS e a cada play parecia ver ou ouvir algo novo que surgia através do seu magnetismo impresso em sua marca pessoal.
Um cara tão complexo e genial que sua transcendência não coube nesse mundo.
Bela alma de influência infinita!




A Morte
por Cly Reis


Poucas vezes lamentei tanto a morte de uma figura pública quanto a que ocorreu no último domingo. David Bowie, um dos artistas mais influentes de todos os tempos, que vinha lutando contra um câncer descoberto não há muito tempo, deixou nosso mundo e foi juntar-se a outras lendas que habitam um lugar especial no céu ou seja lá onde for. Sou um tanto pragmático quanto à morte, entendendo-a como parte inevitável da vida e, normalmente, não me sensibilizo excessivamente com os desencarnes, até mesmo de pessoas próximas ou familiares, passando às vezes até por insensível. Se essa 'insensibilidade' é usual até mesmo em familiares, quem dirá a um estranho, uma pessoa que não  tem nada a ver comigo, que vive a milhares de quilômetros de mim, que nunca me deu nada. Assim, minha comoção com artistas costuma ser ainda menor, ainda mais com os de idade mais avançada, cujo ciclo da vida de certa forma já se completou, e mais ainda com os que é sabido que não colaboraram muito em suas vidas para que sua estada neste planeta não fosse mais longa.
Mas não sou uma pedra de gelo!
Lamento muito por artistas novos, muito jovens, de evidente talento que, depois de amostragens iniciais, um ou dois álbuns gravados, um filme apenas, um livro publicado, etc., indicavam que teriam coisas incríveis a fazer, apresentar, nos surpreender e foram levados precocemente. Imagine o que Kurt Cobain estaria fazendo hoje? Chico Science, Amy Winehouse? Também há aqueles que estabelecem uma relação tão próxima conosco que parecemos sentir como se uma parte nossa tivesse sido arrancada. Lembro quando da morte de Renato Russo que preferi, simplesmente, não pensar no assunto. Se eu '"tivesse consciência" que ele estava morto, minha tristeza naquele momento seria incomensurável. E acho que, no fundo, continuo agindo assim sobre Renato Russo até hoje.
Houve exceções destes já mais velhos e que colaboraram para seu fim: Miles Davis já beirava os 70, tinha quase se matado um zilhão de vezes, mas os projetos que vinha realizando nos anos anteriores à sua morte me faziam imaginar onde poderia chegar ainda aquele cara. Esse era daqueles que não poderia ter ido.
Ontem com David Bowie foi um misto das duas sensações, da emocional, que costumo ter poucas vezes, com a egoísta de não querer prescindir da obra daquela criatura no planeta Terra. O motivo que faz com que sua partida seja tão dificilmente aceita se confunde e funde. Sua obra, seu talento, sua capacidade artística, sua imprevisibilidade que o tornam tão imprescindível para mim no cenário musical e das ideias no mundo de hoje, são os mesmos motivos que me moldaram meu apego a esse gênio. Diferentemente de um Renato Russo, quase um amigo conselheiro, meu carinho por David Bowie edificou-se a partir da admiração o que, por mais que também admire muitos outros artistas, não toma essa forma com facilidade. E na segunda pela manhã, quando topei com a notícia na internet eu percebi isso. Não era só mais um astro pop que havia morrido. Eu realmente estava triste por aquilo.
Mas como triste? Que que ele tinha a ver comigo, tava lá do outro lado do oceano, nunca fez nada por mim... Engano! Esse é o tipo do cara que a gente lamenta ter ido embora exatamente porque tem tudo a ver com você. Pode viver no outro lado do mundo mas está sempre pertinho da gente. E pode ter certeza que, com sua música, já fez mais por mim do que muita gente poderia ter feito.
De qualquer forma, se era hora de ir, então vá, David. Vá em paz. Eu, egoísta queria mais. Queria mais de você. Queria que você virasse o mundo de cabeça pra baixo de novo como já fez tantas vezes e como, acho, só você poderia fazer novamente. Outras atitudes revolucionárias, outros discos fundamentais, outras auto-reinvenções, outros sucessos. Mas vá, eu entendo. Você já deixou o suficiente aqui para que nos deleitemos ainda por muito e muito tempo. É justo. Você estava mesmo precisando descansar. Descanse em paz. Você merece. Já nos deu muito.




autorretrato capa álbum "Outside"


David Robert Jones
(David Bowie)
08/01/1947 - 10/01/2016

quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

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