“[‘Ascension’] foi a tocha que
acendeu o free-jazz.
Quero dizer, ele
começa com Cecil (Taylor) e Ornette (Coleman) em 1959,
mas ‘Ascension’ foi como
um santo padroeiro que dizia:
‘está bem – isso é válido’.
Acho que teve um
efeito muito maior
sobre todo mundo do que ‘A Love Supreme’”.
Dave Liebman
“Trabalhei feito um condenado.
Não consegui sentir prazer na sessão.
Se não fosse uma gravação, eu teria me
divertido.
Sabe, estava de olho no relógio e tudo mais.
Quanto a ouvir o disco,
disso eu gostei;
gostei de todas as contribuições individuais”.
John Coltrane
Ao mesmo tempo é uma tarefa fácil e difícil falar de “Ascension”, de John Coltrane. Fácil pelo motivo óbvio: a inegável qualidade superior
que o músico imprimia em tudo que fazia, ainda mais em seus trabalhos mais
maduros, como neste caso, sua última gravação em estúdio. Além do fato de ser
apenas instrumental, também ajuda na apreciação o formato, pois, ao invés de se
explanar sobre várias faixas, como num disco pop, ou mesmo 4 ou 5 delas, comum
a um álbum de jazz, “Ascension” tem apenas um tema monotemático. Um extenso e
único número contínuo. E é aí que saltamos da facilidade para a complexidade –
e, curiosamente, todos os motivos que talvez lhe facultassem facilidade passam
a ser vistos de outro ângulo.
Se fosse uma trilha de simples deglutição, ainda vá. Só que o fato de
ser altamente ruidoso e intrincado já refuta qualquer amenidade na análise. Como
um filme de Bergman ou um quadro de Bacon, em que, mesmo se gostando, se é
desafiado a apreciar, ouvir “Ascension” exige sensibilidade e retidão. Se for considerar
os adjetivos costumeiramente usados ao longo dos anos para definir “Ascension” aí
sim se verá que realmente o buraco é mais embaixo. Classificado como
“visceral”, “rebelde”, “complexo”, “urgente”, “provocativo”, “cerebral” e “catártico”,
para ficar em apenas alguns exemplos, trata-se do célebre canto-do-cisne do
genial Coltrane, o que somente por isso já valeria um registro nos anais.
Porém, além de tudo, é o sucessor da obra-prima "A Love Supreme" e o disco simboliza
o ápice de um artista cuja carreira foi de total devoção à sua arte, pautada
pelo constante amadurecimento e que paulatinamente voltou-se a uma busca
espiritual de seu autor. Estava ali ele exposto, inteiro e indivisível.
Mas se o resultado final de “Ascension” aparenta ser sucinto, os meios pelos
quais Coltrane chegou a tal não são nada simplórios. Além de sua banda de fé,
que o acompanhava havia quatro anos – os gigantes McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, na bateria, e Jimmy Garrison, contrabaixo –, Trane, incansável perscrutador de novos horizontes sonoros e metafísicos, surpreendeu
a todos ao adicionar à aparentemente imexível formação novos integrantes.
Primeiro, mais um baixo, o de Art Davis. Ainda, nada menos que outros seis
sopros além do dele: dois trompetes, a cargo de Freddie Hubbard e Dewey Johnson; dois saxofones alto, Marion
Brown e John Tchicai, e
mais dois sax tenor para somarem-se ao seu, recrutando os então jovens
admiradores Pharoah Sanders e
Archie Shepp. Para quem vinha de um bom tempo desenvolvendo trabalhos autorais em
quarteto (e não era qualquer um: era O quarteto de jazz!), colocar 11 músicos –
sendo 7 deles, de sopros – e de diferentes origens (dos oriundos dos conservatórios
a rapazes da nova geração passando pelos tarimbados do be-bop) era, no mínimo, desafiador. Por mais habilidoso que o
engenheiro de som Rudy Van Gelder fosse. Mas Coltrane já era o grande nome do
jazz moderno àquela altura, e tanto músicos como técnicos tinham essa noção. Por
isso entendiam que, fosse como fosse, estavam prestes a preencher mais um
capítulo da história do jazz naquela noite de 28 de junho de 1965.
O que se revelaria, enfim, dessa inusitada reunião? Nem quem estava
acostumado com as experiências de Coltrane – sua banda, o produtor Bob Thiele e Van Gelder – imaginava o que ele propunha. Afinal, o conceito guardava
realmente um arrojo inigualado até então. Coltrane já havia experimentado
performances contínuas e longas tanto ao vivo quanto em estúdio. Mas não com
tamanha complexidade, o que lhe deu um bocado de dor de cabeça. Mas, como se
sabe, a obsessão e o perfeccionismo são proporcionais à genialidade.
Referenciando-se no free-jazz de Ornette Coleman e Cecil Taylor, nos arranjos engenhosos de Charles Mingus para
grandes bandas com vários tipos de sopros, bem como nas pesquisas das culturas
oriental e africana e nas inovações tonais/atonais da vanguarda erudita (Messiaen,
Bártok, Ives), Coltrane juntou tudo isso a seu gigantesco cabedal musical e
engendrou uma ideia a qual já praticamente consolidara no seu celebrado álbum
anterior: a da construção de uma peça una cuja “alma” conduzisse a “técnica”. Pautados
pela ideia-base de “ascensão”, era o coração dos músicos, conectados com seus
deuses interiores, que, a partir do conhecimento e experiências de cada um,
constituiria o âmago de “Ascension”. Assim, ainda mais que “A Love...”, esta
obra soa como uma suíte altamente coesa – no caso, uma improvável sinfonia para
5 saxofones e 2 trompetes.
Tal alquimia é arranjada com maestria no cadinho mental de Coltrane. A
canção-tema se constitui de ensembles
intercalados com solos de todos os instrumentistas em uma ordem preestabelecida.
Uma semipartitura elaborada por ele institui quem entra, quando e quanto tempo
tem para desenvolver-se considerando o arranjo e o tempo máximo de duração que
cada lado do LP suportaria. Nos momentos conjuntos, a liberdade é total. Há uma
quase imperceptível melodia-base de 3 acordes, mas, inspirado no exemplo de “Free
Jazz”, de Coleman (1960), o que dá o direcionamento é a sensação momentânea do músico,
e não um tempo ou escala predeterminados que o motivem. E é assim que já inicia
e peça: sob uma tempestade de solos. Rajadas, gritos, ataques violentos, espasmos,
glissandos, rubatos, fluxos densos, clusters, dissonâncias mil. Uma
impressionante parede sonora que remete à politonalidade de Darius Milhaud e às
camadas inter-relacionadas de Elliot Carter. Impacto é o termo certo.
A divisão dos solos é minuciosamente organizada, bem como
impressionantemente sutil em meio a todo o caos: naquela avalanche de sons, o
encadeamento entre estes e os ensembles,
seja nos começos ou nos finais de cada um, é perfeito. A abertura do tema é
longa, de mais de 4 minutos de extravaso. Emendando, de modo a começar as
sequências individuais, o próprio Coltrane faz as boas-vindas em exatos 2
minutos de absoluta entrega. No auge de sua maturidade musical, sente-se um
Coltrane sendo Coltrane mais do que nunca. Jogando a escala lá no alto de cara,
ele começa em repetições lancinantes, sustentando o clima, a partir dali, com sua
alta técnica e emotividade. Os saltos de modulação, a multitonalidade, os
vibratos potentes e os double stops,
característicos de seu estilo, estão todos ali, cristalinos. Os arroubos
roucos, bem como a escalada emotiva, também: presentes. Termina, como não
poderia ser diferente, explorando os limites do instrumento. Fúria e paixão.
O fato de os músicos terem seus espaços predefinidos dentro da melodia
não significava que, nos próprios intervalos, quando todos executam juntos,
também não houvesse improvisos, às vezes tão significativos quanto os lances reservados.
Na verdade, é como se ninguém parasse de solar do início ao fim. O trompete de
Johnson, por exemplo, começa a soar mesmo antes de ele entrar sozinho. Mas
quando é seu momento, o trompetista não deixa por menos: força a que se crie
uma atmosfera de blues acelerado, lançando frases curtas e ligeiras em
dissonâncias. Parece querer dar ainda mais significado ao solo anterior proposto
por Coltrane, explicando-o em outras “palavras”, cuspidas e sem paciência. Já
Sanders, dos mais felizes pupilos de Coltrane e igualmente instigado pelas
questões da espiritualidade, aproveita a oportunidade para disparar de seu
tenor um rascante e intenso solo, cheio de agudez e desespero, deixando
evidente o estilo que o marcaria como band-leader
a parir de então.
Hubbard, o solista seguinte, ao contrário de Sanders, já calejado e
mais cerebral, em contrapartida à intensidade anterior, prefere dar um
refinamento diferente à música. Ele, que nunca havia tocado com Coltrane, demonstra
sua gratidão por ser chamado àquela sessão sabidamente histórica e explora seu
inigualável bom gosto hard-bop e
assertividade nas escolhas das notas – sem, contudo, sair do clima ardoroso.
Impecável o mestre Hubbard.
Outro ensandecido fã de Trane dá as graças. É Sheep, à época, também
dos iniciantes da New Thing como Sanders. Ele já sai despejando notas raivosas
e frases discordantes, potencializando a maneira de tocar do professor. Mais um
“chorus” de alta habilidade antecipa
a entrada de Tchcai, o qual, num solo expressivo, faz oscilar na maior parte do
tempo entre duas escalas, como que num dueto consigo mesmo – quem sabe, não era
este o meio encontrado por Tchcai, respondendo à instigação de Coltrane, para demonstrar
sua “ascendência” pessoal? Outra brilhante participação. Mantendo o mesmo
instrumento, é a vez de Brown revelar seu íntimo, o que o faz com densidade e
potência. A permanente construção da melodia, que desfaz os limites do que é
conjunto e o que é individual, leva a que a entrada de Brown funcione como um
desdobramento, uma continuidade do que já vinha sendo desenvolvido. Estreante,
Brown traz para dentro do furacão sonoro um misto do formalismo, adquirido nos
conservatórios de Atlanta e Washington, e um natural lirismo inquieto, típico
da avant-garde que ajudou a cunhar.
Tyner, cuja inteligência e sensibilidade ao piano o fazem manter-se
presente a todo instante – seja demarcando, pontuando, mantendo ou ajudando a
evidenciar os outros instrumentos –, tem a sua hora exclusiva. Mas nem o diferenciado
timbre das teclas faz com que seu solo também não se homogeneíze ao restante
(está tudo integrado enredado). Coltrane está ainda improvisando quando Tyner
“avisa” que vai entrar. Uma, duas, três vezes. Até que, quando se vê, é o piano
que já domina o campo. Seus peculiares acordes martelados enriquecem o drama da
peça. Ele articula tempos diferentes com as duas mãos, parecendo claramente em
alguns instantes serem dois pianistas (ou não seriam?...).
No que Tyner encerra, Jones larga rolos bem marcados para dividir o
improviso do piano com o dos baixistas. Davis e Garrison, então, apresentarem o
momento certamente mais erudito do tema. Com acompanhamento só da bateria, seu
duo é curto mas repleto de nuanças que somente as cordas de um contrabaixo podem
dar. Neste caso, dois baixos, sendo que, num deles, Davis puxa o arco e
transforma seu instrumento num cello,
enquanto Garrison segue dedilhando e tracejando, longe dali, elevado. Um minuto
basta para ambos, pois, logo em seguida, Jones, ativo em toda condução rítmica
e harmônica desde o primeiro segundo, presenteia os diletantes com um ainda
mais sucinto solo (apenas 25 segundos), porém possível de identificar toda sua
habilidade e pungência. Ele merecia essa distinção, mesmo que assim, no final,
antecipando a nova torrente de sons que, em pouco menos de 3 minutos, vem à
tona para encerrar a suíte.
Várias análises podem se tirar de “Ascension”, haja vista sua
infindável e desafiadora complexidade como obra. Entretanto, antes de tudo, é
muito bonito o resultado que Coltrane extraiu desse verdadeiro tour de force coletivo. A conjunção de
estilos de cada integrante forma uma espécie de “teia de temperamentos”, rica
em personalidades e pulsação. Viva, uma obra viva. Do material maciço que o
tema se compõe é possível, com aceitação e dedicação, derivar uma comovente
procura interior. Comprometido apenas consigo e com sua obra, Coltrane
desdenhou o sucesso imediato de “A Love...” e não se escondeu atrás do mito.
Pelo contrário: saiu em busca de novos entendimentos de si e de sua música,
fosse provocando ou resignando, inquietando ou contristando. Séria e
comprometida união dos polos de uma existência: deus e diabo, bem e mal, amor e
ódio, leveza e cólera. Como um Messiaen, que enxergava Deus em todos os sons,
das naturais consonâncias aos diabólicos trítonos, observadas em profusão em
sua última peça intitulada “Flashes da vida após a morte”. Como um Glauber Rocha que, em seu derradeiro “A Idade da Terra”, fez encarnar no Brasil urbano
um Jesus freudiano cheio de aflições e belezas. Todas obras de final de vida de
artistas irrequietos, por mais fatalista ou sublime que isso signifique. Coltrane,
no seu último suspiro, igualmente mirou essa providência por meio da linguagem
pela qual mais conseguia essa aproximação com o elevado. Como numa ascensão aos
céus, a qual – provavelmente não por coincidência – cumpriria dali a menos de 2
anos rumo à eternidade, deixando uma das obras mais ricas que o mundo da música
já conheceu.
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“Soberba”, de Orson Welles, é ainda hoje considerado um dos melhores
filmes da história do cinema, mesmo sua edição final tendo ficado a cargo dos
estúdios e não do cineasta, a contragosto deste, claro. A primeira versão de
“Ascension”, lançado com John Coltrane ainda vivo, trazia o primeiro take dos dois que gravara com a banda na
fatídica noite de junho de 1965. Porém, Coltrane havia gostado mais da segunda
sessão – e manifestara isso a gravadora Impulse! quando do lançamento. A queixa
ficou guardada por 44 anos. Como fazer, então? Realizar o sonho do autor antes
tarde do que nunca. Em 2009, uma edição em CD, hoje tida como definitiva, traz
as duas editions de “Ascension”, priorizando
a preferida de Trane, “Edition II”, de cerca de 40 minutos e sem o solo final
de Elvin Jones, e, em seguida, a versão impressa originalmente, de 38 minutos e
meio. Delícia tanto para puristas quanto desapegados.
FAIXA:
1. "Ascension" – 38:31
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OUÇA O DISCO
por Daniel Rodrigues
Bah, esse disco deve ser muito foda! Preciso tê-lo urgentemente (a edição especial, é claro).
ResponderExcluirParabéns por mais uma resenha espetacular.