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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Música da Cabeça - Programa #94


Fenômenos naturais estão acontecendo. Não, não é eclipse, lua de sangue, terremoto, furacão e nem tsunami. É o Música da Cabeça dessa semana, gente! Quer fenômeno maior que Cannonball Adderley, Vitor Ramil, João Donato e The Cure juntos? E ainda tem mais! Além dos nossos quadros “Música de Fato” e “Palavra, Lê”, o “Sete List” dessa semana faz uma homenagem aos 60 anos de Nei Lisboa. Tudo isso no programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Nei Lisboa - Show "Duplo H" - Teatro Renascença - Porto Alegre/RS (12/06/2018)




Sou daqueles diletantes que comemoram datas de aniversários dos discos que gosto. Tenho feito isso direito no Clyblog por meio, principalmente, de resenhas da seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, que me dão oportunidade de falar a respeito de obras que admiro e ainda homenageá-las por estarem completando alguma idade fechada. Agora, nas comemorações de 10 anos do blog, tivemos o prazer de ter um desses discos aniversariantes resenhado pelo músico, escritor e jornalista Arthur de Faria: o “Hein?!”, do Nei Lisboa, que completa 30 anos de lançamento em 2018. Pois que, justo no Dia dos Namorados, tive – junto com Leocádia Costa, obviamente –, a felicidade de conferir pela primeira vez um show desse talentoso artista gaúcho especial não somente às três décadas do referido “Hein?!” como, igualmente, aos 20 de outro ótimo trabalho de sua discografia: o ao vivo “Hi-Fi”.

O show, muito bem intitulado “Duplo H”, referência às letras iniciais em comum do título de cada disco, fez lotar o Teatro Renascença em duas sessões naquele dia, sendo a anterior a que assistimos extra, devido à grande procura. Tocando os dois discos inteiros e na sequência, um simpático e sempre sagaz Nei Lisboa hipnotizou o público com o repertório ao mesmo conhecido, mas capaz de emocionar ao ser reouvido – ainda mais considerando a egrégora particular da ocasião.

Com Nei e Paulinho Supekóvia no violão/guitarra e Luis Mauro Filho ao piano/teclados, a apresentação deu a largada, conscientemente, pelas 14 faixas de “Hi-Fi”, cujo formato acústico original mostrou-se ideal para “começar os trabalhos” e por caber mais a este tipo de formação do conjunto. Os standarts, hits e AOR da música pop internacional, muito bem pescados por Nei para o set-list de “Hi-Fi”, são imbatíveis, visto que muito afins com o estilo e gosto pessoal dele. Tocando e, principalmente, cantando muito bem, Nei e a banda executaram as versões já tão queridas quanto suas originais, oscilando entre o folk, o blues, o country rock e as baladas no estilo da “Mellow Mafia” dos californianos anos 60/70. Casos de “Everbody's Talking”, do norte-americano Fred Neil; a linda “Summer Breeze”, da dupla setentista Seals & Croft; a beatle “Norwegian Wood”; “Fifity Ways to Leave you Lover”, do craque Paul Simon; e a sensibilíssima releitura de “Still... You Turn Me On”, da Emerson, Lake & Palmer.

Nei, ao centro, com sua enxuta e competente banda
Isso sem falar na emocionante “Cool Water”, de Bob Nolan e imortalizada na voz de Joni Mitchell, no reggae estilizado para “I Shot the Sherif”, de Bob Marley, no bluesão “Walking Away Blues”, de Ry Cooder, e em “Ruby Tuesday”, dos Rolling Stones, que, segundo Nei, embora não tenha entrado no show acústico em 1998, foi gravada em estúdio obedecendo a mesma ideia de arranjo, pois, “se tinha Beatles, não poderia faltar uma dos Stones”.

Completado “Hi-Fi”, agora era partir para as desafiadoras 11 faixas de “Hein?!”. Desafio duplo: primeiro, porque a formação do grupo não contava com bateria, fator essencial para a sonoridade do disco de 1988. “Como Nei vai resolver o arranjo?”, perguntava-me enquanto curtia o primeiro “H” da noite. O segundo desafio era mais íntimo ao próprio autor, uma vez que o disco foi composto sob a aura de uma tragédia na vida de Nei: a perda da então namorada, Leila Espellet, com quem se acidentou de carro na estrada, matando-a. “Como está o coração dele hoje, passadas três décadas, depois daquele acontecimento fatal? O que guarda no peito ainda: culpa, remorso, saudade, serenidade?”, passava-me à mente.

Parte da resposta veio na conversa com a plateia antes de começarem os números. De forma muito aberta e bonita, Nei pediu uma salva de palmas à memória da ex-companheira e executou na íntegra aquela que é apenas uma vinheta de abertura no álbum, “Zen”, escrita para o filho de Leila, à época com apenas 6 anos de vida. A música, a qual não conhecia por completo, apenas os poucos versos que foram parar na edição final de “Hein?!”, são um tocante recado de conforto de um padrasto talvez tão perdido e triste quanto àquele então pequeno órfão. “A vó da gente é mãe/ Da mãe da filha/ A filha da tia/ O pai do filho/ O espírito são/ Gente do bem, do mal/ Gente gorda, gente fina/ Quando vai pro céu/ O céu se ilumina”, diz a letra. Noutra parte (que também não consta no disco), Nei mostra o quanto aquelas palavras são tanto para ele quanto para o garoto: “Não tem desculpa, não tem culpa/ A culpa é sempre minha/ A culpa é da vizinha/ É uma chatice infernal.”

Um show carregado de canções fortes e emocionais já começou assim! O coração seguiu batendo forte com “No Fundo” e a brilhante faixa-título, uma das melhores do cancioneiro do gaúcho de Caxias do Sul. Nela foi possível conferir o acerto na escolha do arranjo, visto que se trata de uma música-chave do disco e que, se não funcionasse sem a bateria (possante nas baquetas de Renato Mujeiko no disco de 1988), correria sério risco de perder intensidade e, por consequência, identidade. Não foi o que aconteceu. Harmonizando com o arranjo dado à primeira parte do show, o formato violão/guitarra/teclado se encaixou muito bem também na segunda metade da apresentação. A mesma sensação ficou em outras duas igualmente adoradas por mim e pela plateia: a sentida “Nem Por Força” (“Nem por força do diabo/ Eu volto a vegetar/ Nessas malditas esquinas/ Na pressa de te encontrar”) e “A Fábula (Dos 3 Poréns”), debochada mas igualmente ferida pela perda que a motivou ser escrita: “Quebrei uns vinte, trinta espelhos/ De perguntar/ Se tinha alguém mais bela que ela/ Noutro lugar/ Comi todas maçãs da feira/ Pra adormecer/ E em vez do príncipe encantado/ Veio um baixinho assim”.

“Faxineira”, um blues elétrico, ganhou uma sonoridade de piano-bar muito adequada, além de uma leve modernização na letra que, segundo Nei, são para a “faxineira empoderada” dos tempos atuais. Outras que sofreram adaptação para o arranjo foram a country-rock “Fim do Dia”, menos acelerada, e o sucesso “Telhados de Paris”, que, embora parecesse a mais fácil de se adaptar – haja vista que é originalmente só no violão e voz –, ganhou o acertado acompanhamento do piano de Mauro Filho e teve a linha vocal levemente modificada. Nada que comprometesse um dos hinos da Porto Alegre moderna.

Mas os questionamentos que levantei intimamente no início do show sobre o envolvimento emocional de Nei Lisboa com o marcante motivo de “Hein?!”, mesmo que não tenham sido respondidos totalmente, deram-me a entender que permanecem de alguma maneira ainda latente nele, homem amadurecido e vivido em relação àquela época da composição do disco, anos 80. O que talvez tenha me passado a impressão de que as baladas não eram de uma época, assim, tão remota foi a supressão dos últimos versos de uma das preferidas da galera: “Baladas”. Emotiva, a canção fala sobre a referida perda de Leila e a briga interna para manter-se íntegro e desvencilhado do passado. Porém, os versos de “Baladas” escritos depois do acidente, como relatou Arthur de Faria, desta vez não foram cantados: "Só, muito além do jardim/ Viajo atrás de sombras/ Não sei a quem chamar/ Mas sei que ela diria ao acordar/ ‘Tudo bem/ Você me arrasou, meu bem/ E qualquer dia desses eu como as tuas bolas/ Mas agora esqueça o drama na sacola/ Não puxe o cobertor/ Não tape o sol que resta nessa dor’/ Foi bom: não durou”.

Se Nei optou por não cantá-los por não enxergar-lhes mais sentido ou por qualquer outro motivo, os da talvez ainda mais carregada “Teletransporte nº 4” foram ditos na íntegra. Faixa que finaliza o disco num clima de balada triste, foi tocada exatamente como é originalmente: violão, guitarra, piano e muita dor. E que versos fortes! “Porém o céu parece estúdio/ Nem o silêncio não diz nada/ Mesmo essas frases vão pro lixo/ São como lenços de papel/ Ainda por cima aquelas pernas/ Algumas coisas serão eternas/ Que bela ideia acreditar/ Que o mundo te aprendeu.” Para arrebatar os corações apaixonados em pleno 12 de junho.

Depois de 25 sessões em que a carga emocional só foi aumentando, partindo das músicas de “Hi-Fi” para as de “Hein?!”, Nei Lisboa encerra com uma que não entrou no repertório do primeiro por acaso: “Live and Let Die”, de Paul McCartney, numa competentíssima versão que dispensou até a orquestra que embala as aventuras de James Bond. Show perfeito do início ao fim deste que é um dos ícones da cultura de Porto Alegre. Se já tinha assistido ao vivo Tangos & Tragédias, Replicantes, De Falla, Renato Borghetti e Orquestra da Ospa na Praça da Matriz, faltava-me um show de Nei Lisboa para completar a lista dos patrimônios culturais da minha cidade. Uma estreia de luxo.

SET-LIST:

"Hi-Fi":
1 Everbody's talking   
(Fred Neil)
2 Bennie & The Jets  
(Bernie Taupin, Elton John)
3 Summer breeze  
(Dash Crofts, Jim Seals)
4 Norwegian wood  
(John Lennon, Paul McCartney)
5 Sometimes it snows in April  
(Lisa Coleman, Rogers Nelson, Prince, Wendy Melvoin)
6 Fifty ways to leave your lover   
(Paul Simon)
7 I'm having a gay time  
(Alberta Hunter)
8 That's why God made the movies  
(Paul Simon)
9 Walking away blues  
(Ry Cooder, Sonny Terry)
10 Still... you turn me on  
(Lake)
11 Cool water  
(Nolan)
12 Ventura highway  
(Deney Bunnel)
13 I shot the sheriff   
(Bob Marley)
14 Ruby Tuesday  
(Mick Jagger, Keith Richards)


"Hein?!"
15 Zen [Vinheta] 
16 No fundo 
17 Hein!? 
18 Nem por força 
(Ricardo Cordeiro, Nei Lisboa)
19 A fábula [Dos três poréns] 
20 Faxineira 
21 Baladas 
22 Rima rica / Frase feita 
23 Fim do dia 
24 Telhados de Paris 
25 Teletransporte n 4 
(Glauco Sagebin, Nei Lisboa)
Todas composições de Nei Lisboa, exceto indicadas

Bis:
26. Live and Let Die
(Paul McCartney) 



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Música da Cabeça - Programa #62


E a bola vai rolar para o Música da Cabeça! Na semana em que inicia a Copa do Mundo da Rússia, a gente convoca o nosso scratch (que pode ser aquele mesmo do rap) e apresenta um jogo da maior qualidade. Atenção para a formação: Nei Lisboa, Brian Eno, The Offspring e Jorge Benjor. A escalação completa, vocês conferem no programa, que ainda terá o “Música de Fato” na meia, “Sete-List” avançando pela lateral e o “Palavra, Lê”, como último homem. Não perde, que quarta-feira é dia de futebol e de música. É às 21h, nos gramados da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e apito inicial: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:

segunda-feira, 16 de abril de 2018

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 10 ANOS DO CLYBLOG - Nei Lisboa - "Hein?!" (1988)




Causou espanto e surpresa quando, em meados dos anos 80, Nei Lisboa se declarou fã dos Engenheiros do Hawaii! “Carecas da Jamaica”, o disco, tinha até uma parceria dele com Humberto Gessinger (ainda que Nei ressalve hoje: “Peraí! Só metade do refrão de ‘Deixa o Bicho’ é dele!”). Além disso, dividia com o Gessinger os vocais da faixa-título. E havia ainda uma versão cool de “Toda Forma de Poder”, hit do primeiro LP dos Engenheiros.

Mas não seria só isso que teriam em comum. Logo Humberto e Carlos Maltz, com a saída do baixista Marcelo Pitz da banda, convidam Augustinho Licks pra vaga. Surpreendentemente, Augusto topa. E Nei se sente bastante traído – fato agravado por alguns incidentes desagradáveis em shows dos Engenheiros para os quais fora convidado a dar uma canja. 

Nei se via sem seu maior parceiro, num momento bem importante de sua carreira, de definições.

É quando, em julho de 1988, ainda contratado da EMI, Nei começa a gravar disco novo. O LP se chamaria “Hein?!” e, acreditavam todos, finalmente o projetaria nacionalmente. Ao menos era a aposta de quem acompanhava seu repertório daquele momento e o cruzava com o cenário de entressafra da MPB e do rock. No ano anterior, Vitor Ramil e Bebeto Alves haviam lançado seus discos mais populares até então,” Tango” e “Pegadas”, respectivamente. Mas faltava ainda um cara que transcendesse esse sucesso local pra pegar o Brasil pelo rabo.

As fichas locais estavam todas nele.

Só que, num intervalo das sessões, Nei volta ao Rio Grande do Sul e resolve passear na serra gaúcha com a namorada e uns amigos. E o imponderável age: um acidente de carro, perto da cidade de Nova Petrópolis. Leila, a namorada, morre.

Nada mais fez sentido. Termina o disco, é verdade. Que é, segundo muitos, seu melhor trabalho. Mas o astral era radicalmente oposto ao que tinha sido pensado. Era pra ser um LP debochado e irônico. Saiu amargo e doído.

Até a banda era das melhores e mais enxutas que ele já reuniu, com Pedro Tagliani – da banda instrumental Raiz de Pedra - no posto que fora de Augustinho, mais a cozinha de Renato Mujeiko e Fernando Paiva. Paiva logo depois se radicaria em Viena, onde se firmaria como grande instrumentista, e Pedro iria pra Munique com seu grupo. Os três juntos dão uma dinâmica e um senso de equilíbrio que resulta num disco com um raro colorido de vazios e espaços recortados por frases instrumentais inesperadas.

Alem dos três, gravados ao vivo no estúdio, pouco mais: Glauco Sagebin tocando piano e órgão numas poucas faixas, o violão de Nei em outras. Tudo mínimo, tudo cru e tudo muito sofisticado. Bem diferente dos trabalhos anteriores. Tanto que, ao contrário deles, é absolutamente atemporal. Você ouvia em 1988 e era atual. Você ouve hoje e segue contemporâneo.

Parte dos méritos disso são do produtor Mayrton Bahia, famoso pelos discos da Legião Urbana – outros que também resistem bem ao tempo (ao contrário de Reinaldo Barriga, o preferido pelo rock gaúcho de então, cujos trabalhos soam hoje retratos de época).

Além disso, estava ali a faixa-título, uma espécie de continuação de “Verão em Calcutá”, glosando o mesmo mote em versos ainda mais cínicos com relação ao circo do showbizz. E cutucando diretamente Titãs, Raul Seixas, e, também, os Engenheiros:

"Comprei uma guitarra usada, alguma namorada me passou batom.
Durou um tempo, até foi bom.
Mas quando eu disse que era o Rei, tirou o copo da minha mão e disse:
Hey! Hein?!?! Meu amigo, não se desfaça nessa fama, todo esse mundo do rock´n´roll é ruim de cama! Eles querem diversão e bolo, eles querem tudo e mais um pouco, eles querem krig-há-bandolo e champanhe. Eles querem frases nos jornais, eles querem parecer sinceros demais. (...) Eles querem te fazer de tolo, e eu também!"

 Mas o disco não é só isso. Era também um trabalho de amor. Só que, quando aconteceu o acidente, nem todas as letras estavam terminadas. Era preciso, por exemplo, escrever a última estrofe de “Baladas”. Que saiu assim: 


"Só, muito além do jardim, viajo atrás de sombras.
Não sei a quem chamar.
Mas sei que ela diria ao acordar:
Tudo bem. Você me arrasou, meu bem, e qualquer dia desses eu como as tuas bolas. Mas agora esqueça o drama na sacola... Não puxe o cobertor! Não tape o sol que resta nessa dor! Foi bom: não durou.
Oh, mama! Não vale a pena pagar um centavo, um retalho de prazer...
Oh, mama! Eu quero morrer... bem velhinho, assim, sozinho, ali, bebendo vinho  e olhando a bunda de alguém."  

Evidentemente não houve nem alma nem ânimo pra trabalhar a divulgação. Uma terrível entrevista no programa de Jô Soares é a pá de cal nas suas relações já estremecidas com a gravadora: “No momento em que aconteceu o acidente, perdeu completamente o sentido aquele jogo que ao natural já se pode considerar medíocre: dono de gravadora, rádios FMs, essa rede que compõe o mercado, a indústria cultural. E que tu és obrigado a participar, te interessar, te preocupar e agir dentro disso se tu queres ‘tar no páreo da Música Popular Brasileira. Tudo isso, ao natural, já pode parecer medíocre. E naquele instante pra mim não valia um ovo. Eu queria era chutar o balde. E foi o que eu fiz em muitos instantes. No Jô foi um.”, disse Nei posteriormente.

A lápide foi sua recusa em gravar a versão de “Hey Jude”, dos Beatles, a tábua de salvação oferecida pela gravadora. Nei disse que até topava*, desde que ele escrevesse a sua versão da letra, em português. Bateram pé na versão dos anos 60, de Rossini Pinto. Não houve acordo.

Comprovando a tese dos caras, a canção virou um big hit na voz da segunda opção de artista pra gravá-la, Kiko Zambianchi. Durante muito tempo, o pessoal romantizou o lance. Mas atualmente Nei fala disso com crua sinceridade: “Meu público básico era todo daqui. Dez, 20 mil pessoas. Universitários, classe média. Que não aceitariam de jeito nenhum me ouvir cantar uma bosta daquelas. Ia jogar minha carreira pelo ralo. Não foi um gesto de ‘Isso é ruim, eu não quero cantar’, mas sim um gesto de ‘Isso é ruim e vai fuder com a minha carreira’. Cantar, em si, não ia me doer tanto.” 

Nei também estava certo. Assim como virou um sucesso, “Hey Jude” parou ali a carreira de Kiko, que só voltou a ser comentado 15 anos depois, tocando com o Capital Inicial.

trecho do livro inédito de Arthur de Faria

********

FAIXAS:

1. Zen - 00:30
2. No Fundo - 3:30
3. Nem Por Força - 4:12
4. A Fábula (Dos Três Poréns) - 3:50
5. Faxineira - 2:30
6. Baladas - 4:28
7. Rima Rica / Frase Feita - 4:07
9. Fim Do Dia - 3:40
9. Telhados De Paris - 5:20
10. Teletransporte Nº 4 - 3:03

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OUÇA O DISCO:
Nei Lisboa - Hein?!




Arthur de Faria é músico, compositor e arranjador. Produziu 27 discos, escreveu 35 trilhas para cinema e teatro, integra o Duo Deno, a Surdomundo Imposible Orchestra, o espetáculo Música de Cena e Música Menor – duo com o argentino Omar Giammarco. Por 20 anos liderou o Arthur de Faria & Seu Conjunto, com quem lançou cinco de seus oito discos e tocou em meia dúzia de países. Jornalista e mestre em Literatura Brasileira, ministra cursos sobre música popular brasileira no Brasil, Argentina e Uruguay, trabalha há 20 anos em rádio, publicou dezenas de ensaios, artigos, livros e fascículos sobre música popular e dedica-se há três décadas a pesquisa sobre a história da música de Porto Alegre.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Música da Cabeça - Programa #47


Intervenção, o caramba! Aqui, a gente vai na contramão disso: intervir só se for com música e informação. É o que vamos fazer em mais um programa, trazendo os quadros 'Musica de Fato', 'Palavra, Lê' e 'Cabeça dos Outros', com a música que esteve na mente de quem nos ouve. Ainda, Nei Lisboa, Deee-Lite, Pink Floyd, Jorge Ben e mais. É hoje, às 21h, na Rádio Elétrica, e sem decreto presidencial. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


sábado, 17 de fevereiro de 2018

cotidianas #553 - Produção Urgente



O mundo dá voltas à volta de Piccadilly Circus
Buscando a nota exótica que falta
Ao seu traje blasé televisivo

O mundo dá tratos à bola
À mesma que destrata
Pisando na miséria imediata

"Jesus Mendigo", escultura em bronze de Timothy Schmalz
Contrata para produção urgente
Um negro bem dotado
E um latino quase inteligente

O mundo é dos vivos
O mundo é dos bancos
E os bancos dos mendigos

O mundo é de loucos
Que mundos não têm dono
E só somos vencidos pelo sono

O mundo é do novo
E o novo dos antigos
O mundo é quem sobrar no fim da noite
Dos amigos

Produção Urgente
(Nei Lisboa)


OUÇA
Nel Lisboa - "Produção Urgente"

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Música da Cabeça - Programa #32


Uma das definições possíveis para “música” é a de que o músico traça notas em conjunto como que num desenho. Pois essa analogia entre música e figuração vamos ter no Música da Cabeça de hoje num bate-papo muito legal com o ilustrador Guilherme Tesch no quadro “Uma Palavra”. Além disso, claro, os sons que rodearam nossa mente na semana, como Marvin Gaye & Diana Ross, Stevie Wonder, Jamiroquai e Portishead. Pra finalizar, um “Palavra, Lê” com a poesia de Nei Lisboa. Motivos para você não perder não faltam, né? Então, escuta lá hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e rabiscos: Daniel Rodrigues.



Ouça: Programa #32

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

“Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”, de Zoravia Bettiol - Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs) – Porto Alegre/RS











O belo e moderno autorretrato de 2002
“Zoravia faz arte como vive.”
Moacyr Scliar




Mais de um motivo levou Leocádia e eu a irmos a vernissage da exposição de Zoravia Bettiol no Margs. O primeiro e mais óbvio é a importância de sua obra para as artes visuais no Rio Grande do Sul e no Brasil nos últimos 60 anos, tempo o qual está sendo comemorado juntamente aos 80 de vida da artista admirada por gente como Jorge Amado, Moacyr Scliar, Erico Verissimo, Mário Quintana, Mário Schemberg e o próprio Vasco Prado, marido por quase três décadas e com quem compartilhara, inclusive, admiração. Só isso, já justificaria a ida. Mas tem mais. Filha de Iemanjá assim como Leocádia, a quem conhece e nutre amizade há pelo menos uma década, Zoravia dedica, entre as 150 obras selecionadas de diversas fases, técnicas e produções, algumas aos orixás e, obviamente, à Rainha dos Mares. Mas não para por aí. Justamente uma das obras mais representativas e impactantes da mostra, uma escultura em ferro fundido de cerca de 1 metro e meio chamada exatamente de “Iemanjá”, de 1973, é do acervo pessoal de Leocádia, que a cedeu para a rica exposição “Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”. Claro que estaríamos lá.

Tal foi nossa surpresa que a referida escultura encontra-se logo na entrada das quatro salas que compõem a diversa e numerosa seleção feita pelos curadores Paula Ramos e Paulo Gomes, a qual vasculha as variadas fases criativas de Zoravia. Há desenhos, pinturas, gravuras, arte têxtil, objetos, ornatos e joias, além de registros de performances. Disso, resulta uma impressionante diversidade de técnicas e estilos, as quais Zoravia domina com naturalidade, sem excetuar seu rigor de perscrutadora voraz e quase obsessiva. Além da visível liberdade criativa e da utilização das cores, nota-se um exercício permanente para encontrar a trama certa dos fios, a pincelada mais expressiva, a textura ideal da impressão. Tudo intenso, em permanente ebulição.

Esse cuidado e labor extremos se notam muito nas xilogravuras, das especialidades de Zoravia. O detalhismo do desenho se expressa lúdico na Série “Circo”, de 1967, cujos traços refazem de os cordéis nordestinos, principalmente na forma das figuras humanas. Na série que versa sobre os pecados capitais, é possível identificar a textura do tramado da corda, vista em trabalhos têxteis feitos à base desse material. O lúdico, igualmente, está presente de maneira incisiva, caso das séries Namorados (1965) e as dedicadas aos deuses gregos (1965-66/76), onde se nota, aliás, parecença com as imagens do candomblé – o maravilhoso “Netuno”, tal um preto velho, não deixa dúvida dessa universalidade. Desta cultura tão brasileira quanto universal, Zoravia extrai outros trabalhos e séries, como a própria série “Iemanjá” (1973). Sobre isso, Jorge Amado tem um depoimento sobre Zoravia destacado na mostra: “Como ninguém, Zoravia canta e transmite a atmosfera desse universo infantil onde o maravilhoso é o cotidiano e onde o insólito é a terra”.

Há também lindas obras como “Criança Adormecida” (xilo, 1961), em que o traço do desenho mostra-se rigorosamente estudado na criação final, e “Meias Amarelas”, da série Romeu e Julieta (1970) A temática sociopolítica, igualmente forte em toda sua carreira, tem uma das longas paredes da mostra praticamente dedicadas com exclusividade. “Só o povo pode fazer o novo” (acrílica sobre madeira, 1984), carrega o espírito do período do clamor pelas Diretas a qual o Brasil passava naquele então. Visto com o olhar de hoje, em que aquele grito democrático parece ter perdido significado, lembrei-me dos realistas versos de Nei Lisboa: “cada povo tem o novo que merece”.

Adentrando a sala mais ao fundo, depara-se com o que talvez tenha mais impressionado a mim e até a Leocádia, acredito: o conjunto completo de xilogravuras para a lenda “A Salamanca do Jarau”, publicada por Simões Lopes Neto em seu célebre “Lendas do Sul” (1913). Zoravia ilustrou o texto em 1959, produzindo 27 imagens que estão sendo expostas pela primeira vez em sua totalidade, acompanhadas por vários – e belos – estudos preparatórios. Cada imagem é de uma riqueza impressionante. Para mim, que já vi algumas séries baseadas em obras literárias, como as que Dalí fez para a "Divina Comédia" ou “Alice no País das Maravilhas”, esta não fica a dever em nada.

Uma exposição de absoluta diversidade, que instiga justamente por isso. Como bem descreve o texto curatorial: “O fato é que Zoravia Bettiol, ao contrário de muitos artistas de sua geração, preocupados com a unidade estilística e fiéis a determinado meio expressivo, buscou na diversidade parcelas dela mesma. Porém, em cada manifestação, em cada trabalho, é sempre ela, Zoravia.”

*********

“Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”
onde: Margs -  Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli
(Praça da Alfândega, s/n° Centro – Porto Alegre/RS)
quando: até 11 de dezembro, de terça a domingo, das 10h às 19h
entrada: gratuita
curadoria: Paula Ramos e Paulo Gomes

 
Da série Circo, dos anos 60.

Obra da série Namorados.

Os Deuses Gregos em traços que remetem ao candomblé.


Netuno imponente sobre as águas

Estandarte de Oxóssi, da série Iemanjá.

A belíssima criança adormecida, dos anos 60.

Sensualidade na obra da série dedicada a Romeu e Julieta.

Política e causa social em acrílica sobre madeira.

Uma das mais belas séries, inspirada nos 7 Pecados Capitais, de 1987.

Zoravia desenhada pelo marido Vasco Prado
a traços próximos aos de Picasso.

Uma das obras de 2005 em que a artista
interage com diversas técnicas.

Capa da impressionante série dedicada à obra
de Simões Lopes Neto.

Mais uma das xilos de A Salamanca do Jarau.

Outra das gravuras da série inspirada em Simões Lopes Neto.


As duas filhas de Iemanjá com a escultura em homenagem à orixá.



por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

“Filme sobre um Bom Fim”, de Boca Migotto (2014)






Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter assistido ao documentário “Filme sobre um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal. Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”. Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia cultural recente da cidade.

Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional, cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno deste.

Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80.
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de 1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super 8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80, quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana. Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler, João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).

Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda), embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita, mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti, Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto, deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).

Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade.
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes, o hardcore d’Os Replicantes ou o pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil, que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.

E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”, “desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do município, e isso por causa de muita insistência. 

Peninha, ferino e hilário.
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um momento tão efervescente e interessante na cidade.

Sabemos que não se repetirá.

A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola. Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente, não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo, na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade. Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.

No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”, a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto Alegre de uma forma ou de outra como eu.

Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em 2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.


trailer de "Filme sobre um Bom Fim"



quarta-feira, 2 de setembro de 2015

cotidianas #391 - Ildo e a Porto Alegre que está se indo



Ildo, o garçom mais querido da cidade.
Não sou um andarilho de Porto Alegre. Já fui, não sou mais. O perímetro limitador do círculo casa-trabalho ajuda a isso. Mas não SÓ por isso. Cada vez mais desinteressada consigo, minha cidade vem ficando cada vez mais desinteressante para os outros. Políticas públicas burras, mal pensadas, não planejadas, intransigentes e corruptas a acinzentam diariamente. É resultado visível o atraso econômico, social e cultural a cada meio-fio sem pintura, a cada negócio de anos que fecha as portas, a cada buraco que aniversaria, a cada reestreia de peça teatral igual há 30 anos, a cada mão de via pública invertida sem por que. Não que deixe de circular e ir a lugares, teatros, museus, parques, shows, restaurantes, bares, etc. Faço; entretanto, em virtude de alguma atração ou programação prévia. Ir pelo prazer de ir, deriva, raramente.

Essa “desidentidade” que a cidade Porto Alegre (ou seria uma “des-cidade”?) vem sofrendo de mais de uma década para cá (assim como o Estado gaúcho, haja vista esse atual governo, a institucionalização do escapismo) com certeza é o que vem me afastando dela mesma. Adoro suas ruas, sua luminosidade subtropical, seu céu de azul paralelo 30, a beleza inequívoca de suas gentes, sua infinita e mal aproveitada capacidade intelectual. No entanto, de lugares, pontos-chave da urbanidade porto-alegrense, aqueles que são sinônimos e se confundem com a urbe, poucos se salvaram da despersonalização. Poucos, cabem nos dedos, mas existem. E a Lancheria do Parque é um deles, graças a Deus.

Por essas coisas que talvez somente Ele possa explicar (se quiseres, estou aqui de ouvidos atentos, combinado?), estávamos livres Leocádia, Carolina e eu antes do show de Caetano Veloso e Gilberto Gil, no Araújo Vianna, quase ali de fronte para a Lancheria. A conclusão foi óbvia: paramos antes na “Lanchéra” e depois “s’imbora pro show!”. Além do mais, fazia anos que cada um de nós não voltava lá. Desavisados de que um fato importante ocorreria dali a horas (menos de 48), sentamos no aperto das mesas e pedimos a um dos garçons mais novos xis e um balde de suco a preço de um copo cada um, como todo bom frequentador dali faz.
A emblemática Lancheria, de tão homogeneizada com o Bom Fim, com as imediações da Redenção, com a cidade de uma forma geral, parece existir ali desde que éramos ainda a Porto dos Casais (Não é essa a impressão que lhes dá também?). QG dos alternativos, cozinha dos moradores do bairro, ponto de encontro e turístico. Circulam ali jovens, velhos, crianças, hippies, punks, rajneeshes e até gente normal. E todo mundo convive todos os dias, como se o exótico não fosse exótico aos normais e como se os normais não fossem normais aos exóticos. Ou vice-versa. Essa naturalidade é tão mais democrática e simbólica do que qualquer protocultura de CTG nativista, muitas vezes segregadora e sexista. Uma Porto Alegre que tenta dar certo.

Histórias dali? Eu, como qualquer jovem porto-alegrense e roqueiro, tenho. Lembro de uma vez que, ainda redigindo meu livro "Anarquia na Passarela", estava com a bíblia punk “Mate-me, por Favor” a tiracolo para pesquisa. Lá pelas tantas, na mesa com alguns amigos meus, um frequentador, um cara vestido de forma simples mas com uma expressão nada simples – perturbada, pra ficar por aqui – vidrou no meu livro e veio até mim pedir-me emprestado enquanto eu permanecesse ali – e fez isso com toda a educação que podia, registre-se, até porque era evidente que queria MUITO ler o que desse e não podia correr o risco de receber de mim uma negativa. Claro que disponibilizei (não sou louco de negar pra um maluco daqueles!). Enquanto conversava com meus amigos, de vez em quando percebia o “colega” parar a leitura e virar devagarzinho não só para mim, mas para todos no bar, como numa panorâmica de filme de terror que antecede uma cena horripilante. Os olhos vidrados e um sorriso entre o sarcástico e o psicótico na boca. De arrepiar! Ficava imaginando e comentando na mesa: “que parte ele deve estar lendo pra ter essa reação?” Na hora de ir embora, mesmo com certo receio de pedir o volume de volta, tomei coragem e, em troca, fui até abraçado por ele num esfuziante agradecimento.

Coisas de Lancheria do Parque.

Pois uma dessas coisas peculiares ocorreu não naquela ida que nós três fizemos antes do show, mas logo depois. Espetáculo assistido, corações ainda pulsando, demos passos desnorteados pela Osvaldo Aranha em direção ao HPS pela quadra da esquerda. Ao passarmos pela Lancheria, brinquei:

- Vamos, então, na Lancheria? – num tom de como não tivéssemos feito isso a menos de quatro horas.

Já passos adiante da porta de entrada, Leocádia e Carolina param e respondem:

- Ué, por que não?

Voltamos. Para encerrar a noite com um derradeiro café e acalmar os ânimos daquele momento glorioso do qual vínhamos. Entramos no mesmo fuzuê de sempre: muita gente na porta, muita gente na frente do caixa, muita gente nos corredores estreitos, todo o tipo de gente sentada tomando uma ceva, comendo um lanche, mandando ver num suco. Nós queríamos um simples café. Já nos bastava.

Naquela mesa lá do fundo, aquela encostada na escadinha que dá para a cozinha (a mesma em que vi Nei Lisboa certa vez, sozinho e de porre), sentamos e enxergamos no cardápio a palavra que queríamos encontrar: “Café”. Estava completo nosso fechamento da noite. Até estranhamos nós, que não voltávamos lá fazia anos, estarmos ali pela segunda vez no mesmo dia... Quem veio nos atender? Não o mesmo garçom de horas atrás, mas o Ildo. Ele, que seria dali a menos de 48 horas o tal fato importante ao qual me referi. Pedi-lhe três cafés e ele, na sua simpatia de sempre, desculpou-se:

- Puxa, meu amigo, vou ficar te devendo. A essa hora a gente não serve mais café.
Entreolhamo-nos e, antes de nos esboçarmos frustração, Ildo largou uma joia:

- Café a essa hora só na Rodoviária!

Sim: em Porto Alegre, cujos atrasos e intransigências não preciso repetir, café àquelas alturas só mesmo na deslocada Rodoviária. Não falo de uma desértica madrugada de domingo, mas de um horário antes da meia-noite de uma agitada sexta-feira. Contudo, não ficamos chateados com o Ildo, afinal, a própria Lancheria fecharia dali a 15 minutos. De resto, é mais uma nesse poço que a cidade e seu comércio, por consequência, se meteu. Nem um local de circulação garantida 24 horas por dia com ali resiste ao empobrecimento social, econômico e cultural dos melancólicos dias atuais da metrópole gaúcha. Segurança? Hábito? Invalidade da demanda? Não sei; só sei que saímos com mais uma desgostosa confirmação da cidade onde vivemos.

Afora isso, Ildo, simpático e espirituoso, nos deu ao menos uma sensação de acolhimento, mesmo sem os cafés. Tentei argumentar, em vão, e foi então que ele completou com algo que me marcou. Simbólico por demais o diálogo:

- É que a gente teve aqui mais cedo, e agora só voltamos pra tomar um cafezinho – disse eu, ao que ele me responde:

- Eu sei que vocês tiveram aqui. Eu conheço todo mundo.

Tinha essa sensação de acolhimento na infância no antigo Naval, no Mercado Público, sobre o qual já falei noutra crônica. Paulo Naval e Mauro, os eternos garçons de lá, nos recebiam, desde guris, com esse mesmo espírito atencioso, honesto e alegre, invariavelmente com brincadeiras comigo ou com meu pai, com quem ia sempre. Era nítida a percepção de que eles, igualmente a Ildo, conheciam “todo mundo” que passava por ali. Embora de épocas diferentes em minha vida, ambos os estabelecimentos carregam o mesmo clima de um lugar que você entra e se sente bem. Digo sempre que a Lancheria, especificamente, é tão legal que não tem nada de especial: não há um prato campeão de concurso gastronômico, uma bebida conhecida da casa, nada suficientemente marcante de sua cozinha ou geladeiras que justifique tamanha fama. O legal da Lancheria é a Lancheria. E ponto. A atmosfera; o movimento; a luz branca forte; a permanente fila do banheiro feminino; a comida indigesta que passa o dia inteiro próximo à porta que dá pra avenida; a visão da Redença quando se está dentro.

E pessoas como o Ildo, ele, símbolo desse ambiente, desse universo. Ildo estava, sim, sempre de olho em tudo e sabia quem entrava e quem saía, por anos a fio, dia a dia. Até que resolveu dignamente recolher de vez o guarda-pó, o boné e o paninho úmido no armário.

Ildo está indo embora.

Soube pela Carolina, no dia seguinte, que Ildo se despediria da Lancheria, dos fregueses e amigos no último dia 30 de agosto. Estava explicada nossa misteriosa segunda ida na noite anterior. Uma comoção bonita na cidade a fez ganhar quase esquecidas cores de beleza e sinceridade, abafando um pouco o cinzento cotidiano. Ildo recebeu centenas de pessoas, que foram se despedir dele num domingo de sol quente em temperatura e afetividade. Mal trabalhou: ficou ali tirando fotos e selfies, dando entrevistas, brindando com a cerveja que era acostumado a servir. Recebendo o destaque que alguém como ele raramente recebe. E que bom que numa época como a de hoje alguém com ele receba. Vendo a mobilização, uma amiga postou no face algo como: “às vezes, ainda creio na humanidade”.

Não fui à despedida oficial do Ildo. Nosso último encontro dentro da Lancheria valeu como uma. Informal, como ele sempre agiu com todos que atendia. Afinal, não acredito (e é aí que Tu entras, viu, Deus?) que aquele improvável e até mal explicado retorno nosso à Lancheria, quase à meia-noite, como que empurrados para retroceder os passos que já dávamos adiante, tenha sido uma coincidência. Foi algum toque dos deuses do Bom Fim (Scliar, Nêga Lu, RöhneltNico, Hartlieb), das forças míticas oswaldeiras que nos puseram lá de novo para sermos atendidos pela derradeira vez por Ildo. Justo por ele entre tantos garçons. Definitivamente, não era o café que nos aguardava. Era ele, para um último aperto de mão engendrado pelo destino.

Embora sutil e desavisada, foi uma despedida como a que não pude ter com Paulo e Mauro do Naval: quando voltei lá, uma nave espacial clean e carioquesada havia aterrissado sobre o verdadeiro boteco. Mas a Lancheria do Parque permanece lá, orgânica e resistente. Mesmo sem o querido Ildo. Diferente de lugares como o próprio Naval, irremediavelmente solapados pela nossa “desidentidade/des-cidade”. Não sou um andarilho de Porto Alegre; já fui, como disse. Mas bem que vale a pena às vezes circular, mesmo numa cidade que está se indo a olhos vistos. E pior: sem a integridade com que Ildo o fez.