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quinta-feira, 13 de abril de 2017

Exposição "Entre Nós - A Figura Humana no Acervo do MASP" - Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Rio de Janeiro/RJ









A impressionante "A arlesiana" de Van Gogh.
Encerrou-se na última segunda-feira, dia 10 de abril, e eu corri para ver antes que não tivesse mais tempo, a exposição "Entre Nós - A Figura Humana no Acervo do MASP", que estava em cartaz no CCBB aqui do Rio. Não podia deixar passar uma oportunidade como essa de ver mais uma vez de perto obras de Van Gogh, Picasso, Malfatti, Renoir, Portinari, Goya e outros mestres, numa exposição rara como esta em que o MASP empresta parte de seu acervo  para exibição em outro estado.
Absolutamente impressionantes as obras dos mestres. É interessante mas para mim é sempre emocionante estar diante de trabalhos destes gênios, por mais que já tenha visto suas obras em outras oportunidades. A exposição traça um interessante percurso cronológico, com algumas exceções, dividida em cinco núcleos que apresentam a evolução não apenas técnica mas também conceitual dessa representação do homem enquanto arte, seja enquanto pintura, desenho, escultura ou fotografia. Em "Presenças", a primeira parte, o foco está na religiosidade e na espiritualidade; na segunda, "Retratos", a ênfase é a inserção do humano nos contextos que o rodeiam, dotando-o de características que identifiquem isso como postura, vestimenta, comportamento, etc.; "Corpos" abre mais as possibilidades da anterior fazendo com que figura humana, numa expressão mais intensa, manifeste intenções, anseios, desejos, inquietações; "Ações" tenta mostrar a atividade do homem em diversas situações e contextos como guerra, trabalho, lar, demonstrando, naquele momento, um interesse da arte pela relação do homem com seu espaço representando-o então de uma forma mais crítica; já "Simultaneidades", o espaço contemporâneo da exposição aponta para a multiplicidade de formas de expressão artística de representação do homem, com uma certa ênfase na fotografia e a captura de cenas cotidianas.
O trecho mais impressionante, a meu ver, foi a seção corpos, onde puderam ser admirados o incrível "Busto de Homem (O Atleta)" de Pablo Picasso, a impressionante "A arlesiana" de Vincent Van Gogh e esculturas de Degas relativas ao quadro "As Bailarinas"; já o núcleo "Simultaneidades", para mim, ficou devendo, para não dizer que, apresentado como foi, tornou-se quase desnecessário. Salvo a instalação que retratava Roberto Carlos como uma espécie de santo, de ídolo religioso, diria que a maior parte dos demais trabalhos eram bastante pouco expressivos, não somente em relação à proposta, mas principalmente em relação às quatro alas que a precederam.


Abaixo, algumas imagens da exposição.

Começando a exposição, no setor "Presenças",
o retrato do Cardeal Cristóforo Madruzzo, de Ticiano (1552)

Sant'Ana e a Virgem criança, escultura do século XVIII

São Sebastião por Pietro Peruggino
(século XVI)

Escultura de ídolo Yorubá de autor desconhecido

Desconhecido pintado por Anton Van Dyk
abrindo a parte de "Retratos"

"A educação faz tudo" de Fragonard

Detalhe do sensual "Angélica Acorrentada",
de Jean-Auguste Dominique Ingres

Toda a riqueza de expressão do Menino
de Arthur Timótheo da Costa

O belíssimo "A amazona", de Édouard Monet 

"Iracema", de Antonio Parreiras (1909)
no segmento "Corpos" da exposição

O elegante Leopold Zborovsi no retrato de Modigliani

O notável "Busto de Homem" de Picasso

"Banhista enxugando a perna direita"
de Pierre-Auguste Renoir, de 1910

Esculturas das bailarinas de Degas

A sugestão de uma criança brincando
no início da sala "Ações"

"A Taça da Dúvida" de Victor Brauner

O expressivíssimo São Francisco de Portinari, de 1941

Victor Brecheret e seu autorretrato esculpido

A chocante imagem da guerra de Lasar Segall

A  fotografia tem destaque no núcleo "Simultaneidades"

Carlos Andujar fotografou os Yanomamis

Série de desenhos de Albino Braz

"O Herói", de Anna Maria Maiolinno


A "Capoeira", retratada por Maria Auxiliadora da Silva




Cly Reis

domingo, 24 de junho de 2012

cotidianas #166 - "Noite de São João"


"Festa de São João" - Portinari, Cândido
(óleo sobre tela) 1958
Era noite de São João
E eu saia com meu irmão
De bigode de rolha
E chapéu novo em folha
Brim Coringa e alpargata

Toda noite de São João
Eu sonhava em pegar da mão
De uma prenda bonita
De vestido de chita
E Maria Chiquinha

Soltando foguete (tchê)
Pulando fogueira (há)
Era noite de São João

Toda noite de São João
A quermesse era um festão
Bandeirinhas no arame
De papel celofane
Pau de sebo e de fita

Era noite de São João
E depois de comer pinhão
Vinha pé-de-moleque
Puxa-puxa e um pileque
De caninha ou de quentão

Soltando foguete (tchê)
Pulando fogueira (há)
Era noite de São João

Era noite de São João
Cordeona com violão
Esquentavam as moça
E eu nesse bate-coxa
Não podia me segurar

Toda noite de São João
Eu voava que nem balão
Namorava as estrelas
Que são primas terceiras
E afilhadas de São João

Soltando foguete (tchê)
Pulando fogueira (há)
Era noite de São João


*****************************

letra de "Noite de São João"
(Kleiton e Kledir)

Ouça:
Kleiton e Kledir - "Noite de São João"

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

"Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)



Sei que praticamente tudo já foi dito sobre "Bacurau", mas queria registrar aqui, como amante do cinema, uma enorme satisfação em ver, de novo, um filme brasileiro figurando com destaque, sendo reconhecido e premiado em festivais internacionais, especialmente em Cannes onde o Brasil já brilhara em outras oportunidades com obras de arte como "O Cangaceiro", que em 1953 levava o  prêmio de melhor filme de aventura, com "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", que rendeu o prêmio de direção a Glauber Rocha, em 1969, e "O Pagador de Promessas" que desbancou, entre outros, "O Anjo Exterminador", de Buñuel, para ficar com a Palma de Ouro em 1962, voltando à evidência agora com um filme tão oportuno e relevante, e que resgata com dignidade diversos elementos da tradição cinematográfica brasileira.
"Bacurau" é uma resposta em forma de arte aos ataques, restrições, limitações, cortes que a cultura brasileira  vem sofrendo desde a vigência do atual governo e, como se não  bastasse o "desaforo", a afronta, para não cair no vazio ou na desimportância, ainda ganha os holofotes do mundo e não passa despercebida. Meio faroeste, meio drama, meio suspense, meio policial, e até meio terror, o filme dos pernambucanos Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho é construído pacientemente inserindo aos poucos elementos que vão nos elucidando a verdadeira trama, contando para isso com uma excelente  fotografia, uma trilha sonora precisa e atuações impecáveis, com destaque para o atemorizante Lunga, vivido por Silvero Pereira e para a brilhante Sônia Braga, como a médica alcoólatra Domingas.
"Bacurau" é um posicionamento diante da postura entreguista e lambe cu do atual governo brasileiro perante os norte-americanos, um grito de resistência, um brado retumbante. Uma declaração: nós não vamos nos entregar facilmente.
Em "Bacurau", a população do minúsculo povoado que dá nome ao filme e que, assim, do nada, some do mapa, se vê ameaçada diante da atuação de estrangeiros que vão à região com a intenção de caçar os cidadãos do lugar, por mero esporte, entretenimento, com a anuência do prefeito local, simplesmente porque quem vive ali, para eles não faz a menor diferença no mundo e sequer é gente. Mas no fundo a coisa não é tão simples assim, pois, como podemos observar no filme, a região que já fora um rico pólo aquífero, inclusive sediando uma barragem,  naqueles dias vive uma deplorável crise de abastecimento de água. Triste "semelhança" com um país que se submete a capacho, entregando suas riquezas de mão  beijada para os gringos por sua eterna síndrome de vira-lata e também, na verdade, por outros tantos interesses escusos.
"Bacurau" é Glauber, é Lima Barreto, é Nelson Pereira, Anselmo Duarte, Guimarães Rosa, é Portinari, é Lampião, é Canudos... "Bacurau" resgata o que o brasileiro realmente tem de melhor em arte e o que tem de mais forte em atitude. Se seu final sombrio, diante da revelação de que aquilo tudo é só o começo, nos faz vislumbrar tempos penosos, por outro lado nos estimula a buscar lá no fundo o espírito de luta e coragem que sempre guiou essa gente e, de certa forma, nos encorajam a afirmar, diante da ameaça do inimigo: "Podem vir. Estaremos prontos".
A comunidade reage. "Aqui, não!"
(muito Glauber essa cena)





por Cly Reis

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

cotidianas #47 -"Lamento Sertanejo"


Lamento Sertanejo
(Gilberto Gil)

Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
"Menino com carneiro" - Cândido Portinari
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado.

Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo.
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo.


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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

cotidinas #102- "Dívidas"



Descendo ladeira abaixo
Uma grande correria
Só pra ver se não perdia
A primeira condução
Esqueceu de resgatar
Uma grana que devia
A um tal de Oliveira, marido da Conceição
"Favela" - Portinari, Cândido
Que pela mulher pressionado
Foi receber o dinheiro
Só encontrando a inocência
Deu início a discussão
Disse tudo que devia
Sem medir as consequências
Num bate boca danado
Diante do barracão

Quando ele voltou depois das seis, se aborreceu
Sabendo do "aperto" que a mulher atravessou
E muito magoado, saiu sem dizer nada
Achando que Oliveira esquecera da amizade
E a tudo a bem dizer, por uma nota de dez
Que o outro bem podia dispensar
Mas era fim de mês, e na quitando do Garcês
O Oliveira, precisava se explicar
E foi assim, que a demanda começou
Não aceitaram, argumentos de ninguém
Naquela noite, todo morro lamentou
Eu era menino, mas me lembro muito bem.

Descendo ladeira abaixo
...
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"Dívidas"
(Paulinho da Viola/ Elton Medeiros)

Ouça:
Paulinho da Viola - "Dívidas"

domingo, 7 de agosto de 2022

Caetano Veloso - “Estrangeiro” (1989)




“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.” 
Caetano Veloso


Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem. 

Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo. 

“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil. 

A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito. 

Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso 


Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious Lovers Peter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).

Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”. 

Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.

Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”. 

Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova. 

Caetano acompanhado de Brown e Moreno
na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).

Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.

Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou. 

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FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

As minhas 20 melhores capas de disco da música brasileira



Dia desses, deparei-me com um programa no canal Arte 1 da série “Design Gráfico Brasileiro” cujo tema eram capas de discos da música brasileira. Além de trazer histórias bem interessantes sobre algumas delas, como as de “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, “Severino”, dos Paralamas do Sucesso,  e “Zé”, da Biquíni Cavadão, ainda entrevistava alguns dos principais designers dessa área aos quais nutro grande admiração, como Gringo Cardia e Elifas Andreato.

Elifas: o mestre do design de capas de disco no Brasil
Motivo suficiente para que eu quisesse montar uma lista com as minhas capas de discos preferidas da MPB. Já tivemos aqui no Clyblog as melhores capas do pop-rock internacional, mas com esse recorte tão “tupiniquim”, ainda não. Além de eu gostar muito da música brasileira, desde cedo admiro bastante também as artes que acompanham. Seja por meio do trabalho de desingers gráficos ou da incursão de elementos das artes visuais, é fato que o Brasil tem algumas das mais criativas e peculiares capas de disco do universo musical.

Assim como ocorre nos Estados Unidos e Europa, a tradição da arte brasileira acabou por se integrar à indústria fonográfica. Principalmente, a partir dos anos 50, época em que, além do surgimento do método de impressão em offset e a melhora das técnicas fotográficas, a indústria do disco se fortaleceu e começou a se descolar do rádio, até então detentor do mercado de música. Os músicos começaram a vender discos e, na esteira, o pessoal das artes visuais também passou a ganhar espaço nas capas e encartes que envolviam os bolachões a ponto de, às vezes, se destacarem tanto quanto o conteúdo do sulco.

Arte de Wahrol para o selo
norte-americano Verve
Lá fora, o jazz e o rock tiveram o privilégio de contar na feitura de capas com as mãos de artistas como Andy Wahrol, Jackson Pollock, Saul Bass, Neil Fujita, Peter Saville e Reid Miles. No Brasil, por sua vez, nomes como Caribé, Di Cavalcanti, Glauco Rodrigues, Rubens Gerchman e Luiz Zerbini não deixaram por menos. Além destes consagrados artistas visuais, há, igualmente, os especialistas na área do designer gráfico. Dentre estes, o já mencionado Gringo, modernizador da arte gráfica nesta área; Elifas, de que é impossível escolher apenas um trabalho; Rogério Duarte, com seu peculiar tropicalismo visual; Cesar Vilela, o homem por trás da inteligente economia cromática das capas do selo Elenco; e Aldo Luiz, autor de uma enormidade delas.

No Brasil, em especial, a possibilidade de estes autores tratarem com elementos da cultura brasileira, rica e diversa em cores, referências étnico-sociais, religiosas e estéticas, dá ainda, se não mais tempero, elementos de diferenciação diante da arte gráfica feita noutros países. Assim, abarcando parte dessa riqueza cultural, procurei elencar, em ordem de data, as minhas 20 capas preferidas da música brasileira. Posso pecar, sim, por falta de conhecimento, uma vez que a discografia nacional é vasta e, não raro, me deparo com algum disco (mesmo que não necessariamente bom em termos musicais) cuja capa é arrebatadora. Quem sabe, daqui a algum tempo não me motive a listar outros 20?

Sei, contudo, que estas escolhidas são de alta qualidade e que representam bem a arte gráfica brasileira para o mercado musical. Impossível, aliás, não deixar de citar capas que admiro bastante e que não puderam entrar na listagem pelo simples motivo numérico: “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua”, de Sérgio Sampaio (Aldo Luiz); “Minas”, de Milton Nascimento (do próprio Milton); “Nervos de Aço”, de Paulinho da Viola; “Espiral da Ilusão”, de Criolo; “Bicho”, de Caetano Veloso (Elifas); “Paratodos”, de Chico; “Barulhinho Bom”, de Marisa Monte; “Besouro”, de Paulo César Pinheiro; “Com Você Meu Mundo Ficaria Completo”, de Cássia Eller (Gringo); “Wave”, de Tom Jobim (Sam Antupit); “Caça à Raposa”, de João Bosco (Glauco); “O Rock Errou”, de Lobão (Noguchi); “Nos Dias de Hoje”, de Ivan Lins (Mello Menezes); “Paulo Bagunça & A Tropa Maldita” (Duarte); “Getz/Gilberto”, de João Gilberto e Stan Getz (Olga Albizu).

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1 - “Aracy canta Noel” – Aracy de Almeida (1954)
Arte: Di Cavalcanti 


Era o começo da indústria dos “long playing” no Brasil, tanto que se precisou fazer um box com três vinis de 10 polegadas reunindo as faixas dos compactos que Aracy gravara entre 1048 e 1950 com o repertório de Noel Rosa. A Continental quis investir no inovador produto e chamou ninguém menos que Di Cavalcanti para realizar a arte do invólucro. Como uma obra de arte, hoje, um disco original não sai por menos de R$ 500.



2 - “Canções Praieiras” – Dorival Caymmi (1954)
Arte: Dorival Caymmi

É como aquela anedota do jogador de futebol que cobra o escanteio, vai para a área cabecear e ele mesmo defende a bola no gol. “Canções Praieiras”, de Caymmi, é assim: tudo, instrumental, voz, imagem e espírito são de autoria dele. E tudo é a mesma arte. “Pintor de domingos”, como se dizia, desde cedo pintava óleos com o lirismo e a fineza que os orixás lhe deram. Esta capa, a traços que lembram Caribé e Di, é sua mais bela. Como disse o jornalista Luis Antonio Giron: ”Sua música lhe ofereceu todos os elementos para pintar”.




3 - “Orfeu da Conceição” – Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes (1956)
Arte: Raimundo Nogueira


A peça musical inaugural da era de ouro da MPB tinha, além do brilhantismo dos dois autores que a assinam, ainda Oscar Niemeyer na cenografia, Leo Jusi, na direção, e Luis Bonfá, ao violão-base. Só feras. Quando, por iniciativa do eternamente antenado Aloysio de Oliveira, a trilha da peça virou disco, Vinicius, homem de muitos amigos, chamou um deles, o pintor Raimundo Correa, para a arte da capa. Alto nível mantido.



4 - “À Vontade” – Baden Powell (1963)
Arte: Cesar Vilela

O minimalismo do P&B estourado e apenas a cor vermelha fazendo contraponto deram a Elenco – outro trunfo de Aloysio de Oliveira – a aura de cult. Além de, musicalmente falando, lançar diversos talentos no início dos anos 60, os quais se tornariam célebres logo após, o selo ainda tinha um diferencial visual. A capa de "À Vontade" é apenas uma delas, que junta o estilo cromático de Vilela com um desenho magnífico do violeiro, representativo da linhagem a qual Baden pertence. Uma leitura moderna da arte dos mestres da pintura brasileira aplicada ao formato do vinil.




5 - “Secos & Molhados” – Secos & Molhados (1971)
Arte: Décio Duarte Ambrósio


Impossível não se impactar com a icônica imagem das cabeças dos integrantes da banda servidas para o banquete. Impressionam a luz sépia e sombreada, o detalhismo do cenário e o barroquismo antropofágico da cena. E que disco! Fora o fato de que as cabeças estão... de olhos abertos!


6 - “Ou Não” ou "Disco da Mosca" - Walter Franco (1971)
Arte: Lígia Goulart

Os discos “brancos”, como o clássico dos Beatles ou o do pré-exílio de Caetano Veloso (1969), guardam, talvez mais do que os discos “pretos”, um charme especial. Conseguem transmitir a mesma transgressão que suas músicas contêm, porém sem a agressividade visual dos de capas negras. Ao mesmo tempo, são, sim, chocantes ao fazerem se deparar com aquela capa sem nada. Ou melhor: quase nada. Nesta, que Lígia Goulart fez para Walter Franco, o único elemento é a pequena mosca, a qual, por menor que seja, é impossível não percebê-la, uma vez que a imagem chama o olho naquele vazio do fundo sem cor.



7 – “Fa-Tal - Gal a Todo Vapor” - Gal Costa (1971)
Arte: Hélio Oiticica e Waly Salomão

Gal Costa teve o privilégio de contar com a genial dupla na autoria da arte de um trabalho seu. Em conjunto, Oiticica e Waly deram a este disco ao vivo da cantora um caráter de obra de arte, dessas que podem ser expostas em qualquer museu. Além disso, crítica e atual. A mistura de elementos gráficos, a foto cortada e a distribuição espacial dão à arte uma sensação de descontinuidade, fragmentação e imprecisão, tudo que o pós-tropicalismo daquele momento, com Caetano e Gil exilados, queria dizer.





8 - “Clube da Esquina” – Milton Nascimento e Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos

Talvez a mais lendária foto de capa de todos os tempos no Brasil. Tanto que, anos atrás, foi-se atrás dos então meninos Tonho e Cacau para reproduzir a cena com eles agora adultos. Metalinguística, prescinde de tipografia para informar de quem é o disco. As crianças representam não só Milton e Lô como ao próprio “movimento” Clube da Esquina de um modo geral e metafórico: puro, brejeiro, mestiço, brasileiro, banhado de sol.




9 - “Lô Borges” ou “Disco do Tênis” - Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos

Não bastasse a já simbólica capa de “Clube da Esquina”, que Cafi e Ronaldo idealizaram para o disco de Milton e Lô, no mesmo ano, criam para este último outra arte histórica da música brasileira. Símbolo da turma de Minas Gerais, os usados tênis All Star dizem muito: a sintonia com o rock, a transgressão  da juventude, a ligação do Brasil com a cultura de fora, o sentimento de liberdade. Tudo o que, dentro, o disco contém.



10 – “Cantar” – Gal Costa (1972)
Arte: Rogério Duarte

Mais um de Gal. As capas que Rogério fez para todos os tropicalistas na fase áurea do movimento, como as de “Gilberto Gil” (1968), “Gal Costa” (1969) e a de “Caetano Veloso” (1968) são históricas, mas esta aqui, já depurados os elementos estilísticos da Tropicália (que ia do pós-modernismo à antropofagia), é uma solução visual altamente harmônica, que se vale de uma foto desfocada e uma tipografia bem colorida. Delicada, sensual, tropical. A tradução do que a artista era naquele momento: o “Cantar”.


11 - “Pérola Negra” – Luiz Melodia (1973)
Arte: Rubens Maia

Somente num país tropical faz tanto sentido usar feijões pretos para uma arte de capa. No Brasil dos ano 70, cuja pecha subdesenvolvida mesclava-se ao espírito carnavalesco e ao naturalismo, o feijão configura-se, assim como o artista que ali simboliza, a verdadeira “pérola negra”. Além disso, a desproporção dos grãos em relação à imagem de Melodia dentro da banheira dá um ar de magia, de surrealismo.




12 - “Todos os Olhos” – Tom Zé (1973)
Arte: Décio Pignatari

A polêmica capa do ânus com uma bolita foi concebida deliberadamente para mandar um recado aos militares da Ditadura. Não preciso dizer que mensagem é essa, né? O fato foi que os milicos não entenderam a ofensa e a capa do disco de Tom Zé entrou para a história da arte gráfica brasileira não somente pela lenda, mas também pela concepção artística revolucionária que comporta e o instigante resultado final.



13 – “A Tábua de Esmeraldas” - Jorge Ben (1974)
Arte: Aldo Luiz

Responsável por criar para a Philips, à época a gravadora com o maior e melhor cast de artistas da MPB, Aldo Luiz tinha a missão de produzir muita coisa. Dentre estas, a impactante capa do melhor disco de Jorge Ben, na qual reproduz desenhos do artista e alquimista francês do século XII Nicolas Flamel, o qual traz capítulos de uma história da luta entre o bem e o mal. Dentro da viagem de Ben àquela época, Aldo conseguiu, de fato, fazer com que os alquimistas chegassem já de cara, na arte da capa.




14 - “Rosa do Povo” – Martinho da Vila (1976)
Arte: Elifas Andreato

Uma das obras-primas de Elifas, e uma das maravilhas entre as várias que fez para Martinho da Vila. Tem a marca do artista, cujo traço forte e bem delineado sustenta cores vivas e gestos oníricos. De claro cunho social, a imagem dos pés lembra os dos trabalhadores do café de Portinari. Para Martinho, Elifas fez pelo menos mais duas obras-primas das artes visuais brasileira: “Martinho da Vila”, de 1990, e “Canta Canta, Minha Gente”, de 1974.




15 - “Memórias Cantando” e “Memórias Chorando” Paulinho da Viola (1976)
Arte: Elifas Andreato


Podia tranquilamente escolher outras capas que Elifas fez para Paulinho, como a de “Nervos de Aço” (1973), com seu emocionante desenho, ou a premiada de “Bebadosamba” (1997), por exemplo. Mas os do duo “Memórias”, ambas lançadas no mesmo ano, são simplesmente magníficas. Os “erês”, destacados no fundo branco, desenhados em delicados traços e em cores vivas (além da impressionante arte encarte dos encartes, quase cronísticas), são provavelmente a mais poética arte feita pelo designer ao amigo compositor.




16 - “Zé Ramalho 2” ou “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu” – Zé Ramalho (1979)
Arte: Zé Ramalho e Ivan Cardoso

A inusitada foto da capa em que Zé Ramalho é pego por trás por uma vampiresca atriz Xuxa Lopes e, pela frente, prestes a ser atacado por Zé do Caixão, só podia ser fruto de cabeças muito criativas. A concepção é do próprio Zé Ramalho e a foto do cineasta “udigrudi” Ivan Cardoso, mas a arte tem participação também de Hélio Oiticica, Mônica Schmidt e... Satã! (Não sou eu que estou dizendo, está nos créditos do disco.)





17 - “Almanaque” – Chico Buarque (1982)
Arte: Elifas Andreato

Mais uma de Elifas, é uma das mais divertidas e lúdicas capas feitas no Brasil. Além do lindo desenho do rosto de Chico, que parece submergir do fundo branco, as letras, os arabescos e, principalmente, a descrição dos signos do calendário do ano de lançamento do disco, 1982, é coisa de parar para ler por horas – de preferência, ouvindo o magnífico conteúdo musical junto.





18 - “Let’s Play That” – Jards Macalé (1983)
Arte: Walmir Zuzzi

Macalé sempre deu bastante atenção à questão gráfica de seus discos, pois, como o próprio diz, não vê diferença entre artes visuais e música. Igualmente, sempre andou rodeado de artistas visuais do mais alto calibre, como os amigos Hélio Oiticica, Lygia Clark e Rubens Gerchman. Nesta charmosa capa de figuras geométricas, Zuzzi faz lembrar muito Oiticica. Em clima de jam session basicamente entre Macalé e Naná Vasconcelos, a capa traz o impacto visual e sensorial da teoria das cores como uma metáfora: duas cores diferentes em contraste direto, que intensifica ainda mais a diferença (e semelhanças) entre ambas.




19 - “Cabeça Dinossauro” – Titãs (1986)
Arte: Sérgio Brito 

Multitalentosa, a banda Titãs tinha em cada integrante mais do que somente a função de músicos. A Sérgio Brito, cabia a função “extra” da parte visual. São dele a maioria das capas da banda, e esta, em especial, é de um acerto incomparável. Reproduzindo desenhos de Leonardo da Vinci (“Expressão de um Homem Urrando”, na capa, e “Cabeça Grotesca”, na contra, por volta de 1490), Brito e seus companheiros de banda deram cara ao novo momento do grupo e ao rock nacional. Não poderia ser outra capa para definir o melhor disco de rock brasileiro de todos os tempos.


20 - “Brasil” - Ratos de Porão (1988)
Arte: Marcatti

O punk nunca mandou dizer nada. Esta capa, do quarto álbum da banda paulista, diz tanto quanto o próprio disco ou o que o título abertamente sugere. “Naquele disco, a gente fala mal do país o tempo inteiro, desde a capa até a última música”, disse João Gordo. Afinal, para punks como a RDP não tinha como não sentar o pau mesmo: inflação, Plano Cruzado, corrupção na política, HIV em descontrole, repressão policial, a lambada invadindo as rádios, Carnaval Globeleza... Os cartoons de Marcatti, que tomam a capa inteira, são repletos de crítica social e humor negro, como a cena dos fiéis com crucifixos enfiados no cu ou dos políticos engravatados assaltando um moleque de rua. É ou não é o verdadeiro Brasil?



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de Márcio Pinheiro