A força de ressignificação
por Daniel Rodrigues
Um dos trunfos do cinema moderno é o da subversão. Mais do que somente
a criatividade estética trazida pelos cinemas novos ou da reelaboração
narrativa proposta pelos “rebeldes” da Hollywood nos anos 70, o elemento que de
alguma maneira transforma o status quo,
que contraria o esperado pelo inconsciente coletivo, é o que determina com
maior eficiência a ponte entre moderno e clássico em cinema. Afinal, por que
até hoje é tão impactante o pastor assassino de “O Mensageiro do Diabo” ou a
brincadeira com a dualidade de gênero de “Quanto Mais Quente Melhor”, mesmo
ambos os filmes contados em narrativa tradicional? Em “Aquarius”
(2016), o diretor Kleber Mendonça Filho,
diferente do que fizera em seu filme anterior, o ótimo “O Som ao Redor”,
vale-se desta premissa com sucesso ao reelaborar, hibridizando ambas as formas,
significados muito peculiares do universo da história que se propôs a contar,
construindo uma narrativa impregnada desses elementos não raro surpreendendo o
espectador.
O longa conta a história de Clara (Sônia Braga, magnífica), uma
jornalista e crítica de música aposentada. Viúva, mãe de três filhos adultos e
moradora de um apartamento repleto de livros e discos na beira da praia da Boa
Viagem, em Recife, ela se vê ameaçada pela especulação imobiliária quando a
empresa detentora do seu edifício – o emblemático Aquarius – tenta a todo custo
tirá-la de lá para demolir o prédio e construir um empreendimento gigante e pretensamente
moderno. Fiel a suas convicções e sabedora de seus direitos, Clara resiste, não
sem consequências e retaliações.
As praias de Recife, elemento presente nos filmes
de Kleber Mendonça Filho.
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Antes de qualquer coisa, impossível dissociar a história de Clara do
momento do Brasil. O embate entre o poder estabelecido do capitalismo e a
resistência do pensamento humanístico, à luz do maniqueísmo ideológico que
tomou o País nos últimos anos, fazem de “Aquarius” um símbolo do cinema
brasileiro da atualidade, o que, em parte, explica o sucesso de bilheteria (mais
de 55 mil pessoas já assistiram). Entretanto, é a forma com que Mendonça Filho
escolha para contar que faz de “Aquarius” uma obra marcante e, talvez, tão
apreciada. Ele vale-se de elementos da cultura de sua terra natal, Pernambuco,
e principalmente da Recife enquanto símbolo de metrópole brasileira, com seus
medos, violências, angústias e neuroses, mas também as benesses: a ligação com
o mar e o mangue, o desenho da cidade, sua rica cultura e suas memórias. Aliás,
memória é o substrato do filme. Contrapondo permanentemente passado e presente,
o diretor suscita a crítica ao perpassar questões imbricadas à sociedade, como
a desigualdade socioeconômica, a “commoditização” dos relacionamentos, a
relação entre gerações e os preconceitos, sejam estes raciais, sociais, de
gênero ou condição física.
É com base nesta visão muito pessoal, a qual não esconde o inimigo nem
exclui o belo, que “Aquarius” se monta. Muitos dos significados vão ganhando
forma à medida que o filme transcorre, às vezes quase uma suspeita inconscientemente
desconsiderada assim que o enigma se dissolve. Como a relação de Clara com seu
sobrinho, a qual, num primeiro momento, pode parecer ao espectador, que ainda
não teve informações suficientes sobre ela (ou melhor: tem informações
suficientemente superficiais para desconfiar do mais vulgar e aparente),
tratar-se de um caso amoroso liberal e promíscuo. A explicação vem sutil, sem
alarde, mas dizendo muito sobre a personagem e a história.
A personagem, aliás, carrega em si outro símbolo: o da mulher
emancipada e independente. De pronto percebe-se que Clara é reconhecida como
profissional. Porém, à medida que se entende melhor, revela-se que ela, no
passado, optou em deixar os filhos ainda pequenos com o pai para não perder a
oportunidade de ganhar a vida no centro do País. De certa forma, um pouco da
própria Sônia Braga, que, de modo a dar a natural continuidade internacional à
sua trajetória já restringida no deficiente Brasil pré-democracia, precisou dar
as costas às críticas “vira-latas” e rumar para a indústria norte-americana –
sem, ao contrário do que lhe acusavam, perder identidade e raízes.
Sônia Braga, magnífica, à frente do famigerado ed. Aquarius" |
Estes dois exemplos mostram bem o jogo de ressignificações proposto por
Mendonça Filho. Largamente empregadas por cineastas maduros do cinema moderno,
como os irmãos Coen e Quentin Tarantino, a ressignificação tem o poder de
desfazer mitos e quebrar expectativas, muitas vezes a custa de anticlímaces e
desconstruções do imaginário sociocultural. “Aquarius” mostra não o
relacionamento de uma “tiazona” com um rapazote como propositadamente dá a
entender, mas, sim, uma possível, afetuosa e saudável relação entre tia e
sobrinho. O filme mostra não um estereótipo de heroína vencedora e invencível –
e, por isso, desumanizada e reforçadora da ótica sexista –, mas uma mulher com
suas qualidades e defeitos, com inquietudes e paixões tentando fazer o melhor
na vida.
Maior evidência dessa ressignificação é a cena do nu parcial da
personagem. A mensagem imediata que se transmite, ao vê-la começando a se
despir para tomar banho, é o de que se verá a antiga musa e símbolo sexual
despida agora com idade avançada. “Como estará o corpo de Sônia Braga aos 66
anos? Será que está uma velha gostosa?” Mendonça Filho quebra a lógica rala não
ao confirmar o que se suspeitava no que diz respeito às marcas da idade terem
chegado à Dona Flor. Fazendo emergir outro nível de mensagem, mais profundo e
agudo, mostrando-a com um dos seios amputados, consequência de um câncer da
personagem Clara. Em milésimos de segundo, entremeiam-se o preconceito com o
deficiente físico – algo explorado ainda mais e sem rodeios no decorrer –, com
a mulher “não-jovem”, com a mulher em si.
Interessante notar que, a título de narrativa, o cineasta dá um passo
atrás no que se refere à modernidade na comparação com seu filme anterior.
Enquanto “O Som ao Redor” é uma trama coral ao estilo das de Robert Altman e
Paul Thomas Anderson, “Aquarius”, por se concentrar numa personagem, torna-se
mais linear e anedótico. O que não é nenhum demérito, pelo contrário. Assim
como o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu, que depois de uma
trilogia de sucesso de tramas corais (“Amores Perros”, “21 Gramas” e “Babel”) e
de passar pelo radicalismo de "Birdman" optou acertadamente pelo formato
clássico para realizar "O Regresso", seu grande filme. Mendonça Filho parece de
certa forma e em noutra realidade repetir o recente feito de Iñárritu: iniciar
a carreira explorando uma linha intrincada de narrar para, em seguida,
aperfeiçoar seu estilo e simplificar a narrativa voltando as atenções a um herói/heroína.
Em “Aquarius”, contado em capítulos tal qual a construção literária de Stanley Kubrick e Tarantino – inclusive, com um prólogo, com Clara ainda jovem, em 1980
–, Mendonça Filho equilibra com assertividade a forma tradicional e a moderna
de contar a história.
Outros elementos de ressignificado são compostos de maneira muito
segura pelo diretor, que conduz o filme num ritmo cadenciado, por vezes
poeticamente contemplativo, como um ir e vir da onda do mar da praia. Igual a
“O Som ao Redor”, em “Aquarius” o mar é um olho divino que a tudo enxerga. O
som, inclusive, faz-se presente novamente e, agora, é demarcado pela música. De
Queen a Gilberto Gil, passando por Roberto Carlos e Taiguara, as canções pontuam
o filme do início ao fim, ajudando a construir a narrativa e dando-lhe uma
dimensão tanto documental quanto lúdica. Novamente, Mendonça Filho reelaborando
o passado para trazer luzes ao presente. Na guerra indigna que Clara tem de
deflagrar contra a construtora que quer tomar o prédio sob a égide monetária e
desfazendo o real valor sentimental e simbólico, fica clara a mensagem que o
autor que transmitir: o mundo precisa de mais poesia. Se Cazuza integrasse a
trilha com estes versos de “Burguesia”, não seria nenhum absurdo: “Enquanto houver burguesia não vai haver
poesia”.
Para além da discussão partidária e da polêmica em torno da afronta
direta ao Governo no episódio da classificação etária e da não escolha pelo
título à concorrência ao Oscar de Filme Estrangeiro, o objeto do filme é por si
saudavelmente revolucionário, o que o torna, por esse viés, sim, bastante
político. Como um “Sem Destino” ou “Um Estranho no Ninho”, marcos de uma era logo
ao serem lançados, “Aquarius” está igualmente no lugar e na hora certa, tornando-se
de imediato importante como registro do Brasil do início do século XXI
polarizado ideologicamente. Polarização largamente mais desfavorável do que
proveitosa. A ideia do que Clara representa, “minoria empoderada” e não sujeita
aos preceitos verticais da sociedade machista e ditada pelo dinheiro, celebra
uma verdadeira liberdade de pensamento e conduta cidadã a que tanto se aspira
entre os tantos tabus que hão de serem quebrados. Os novos significados, uma
maneira de pensar despida de pré-concepções e amarras sociais, é o que intentam
aqueles que acreditam em igualdade e fraternidade. Se isso concorda ou discorda
do pensamento de esquerda ou de direita, é outra questão. “Aquarius” é, isso
sim, um libelo da necessária subversão em tempos de intolerância.
trailer "Aquarius"
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