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terça-feira, 22 de novembro de 2011

cotidianas #117 - Daniéis


Eram dias de pavor. Ou pelo menos de desagrado. Toda vez que se anunciava ou, pior ainda, éramos surpreendidos com a não-anunciada visita da tia Terezinha esse pavor batia. Não por causa da tia Terezinha, mas pelo “o que” a acompanhava, sempre, como um rabicho: seu filho, ou seja, meu primo.
Aquele conotativo “ah, não!” era sempre manifestado quando o guri apontava na frente de casa, o que significava um real motivo para esconder os brinquedos – mesmo os não muito valiosos – e o iogurte da frigidér, claro.
Mas eu devia aceitar, afinal, era meu primo. Adotado, não tinha o meu sangue (minha mãe, estudada em Direito, ajudou a tia Terezinha a cometer a adoção...). Mas... tá! Pertencia à família, é como se fosse dela. Só que ele era um chato! Pequeno, inocente, mais criança do que eu, inconveniente, meio aloprado. Um chato. E pior: um chato meu primo. E pior 2: um chato meu primo e meu xará! Pois é: a cria se chamava Daniel também – teria sido uma imposição “coruja” de minha mãe feita à pobre tia com a condição de que, se esta tivesse a coragem de adotar um chato, pelo menos lhe pusesse um nome empiricamente nobre?...
Estava dado o conflito. O Daniel (eu) era criança. Aninhos mais velho do que o Daniel (ele), diferença que me dava, mesmo sendo igualmente um piá, mais direitos. Ora essa! E o Daniel (ele) vinha ao mundo indiscriminadamente, sem a minha permissão tanto para integrar a ilustre genealogia dos Rodrigues quanto, muito menos, ter a petulância de copiar meu “provado e comprovado” nome. O Daniel (ele) se metera na verdadeira cova dos leões, onde o leão Daniel (eu!) era o mais faminto.
Pra fermentar ainda mais meu desprezo pelo pirralho, certa vez, numa festinha de família, entre as crianças estava lá meu adversário, com aquele seu caráter mais-criança do que eu nas fuças. Minha mãe (começo a julgá-la como a grande culpada pelo crime), a certa altura da festa, ao observá-lo com candura, comentou: “Olha, Daniel (eu...), ele até parece um homenzinho!” Aquela frase me apunhalou. Mas nem por isso perdi a pose! Dono de mim, respondi num reflexo que o Daniel (ele) até podia parecer mais velho, mas que o tal era igual à antiga propaganda da Denorex: “parece, mas não é”. Ela caiu na gargalhada, e eu consegui disfarçar, inteligentemente (como talvez ainda o faça...), meu ciúme.
............................
Indo para o Centro, ali, pela Tristeza, adentrou ao ônibus Renascença o tal Daniel. Ele. Grande, adulto, maior do que eu, cortês, meio comedido. Conversamos rápida e alegremente no calor dos bancos de trás. Casado, mostrou-me a foto da filha (bela menina; não recordo o nome). Estava lá eu, admirado com ele e tentando esconder a surpresa, indo em direção ao Centro e rememorando, adultamente (?), aquela inveja subconsciente.
Despedimo-nos como primos.
Não vou abrir inquérito contra minha mãe, quanto menos a tia Terezinha, mas contra o Daniel. O Daniel eu. O Daniel chato meu que eu, infantilmente, projetei no Daniel outrora chato, porém vulnerável e simplesmente infantil como qualquer criança, ele. O chato era e talvez seja eu. Pelo menos foi o que eu suspeitei ao reviver aquela crise de identidade ali, bem próximo do Bom Fim, entre a Redenção e o ponto final desta linha.



Daniel Rodrigues
(escrito originalmente em 1997 e revisto em 2011)

terça-feira, 21 de abril de 2015

Maria Bethânia – Show “Abraçar e Agradecer” – Teatro do SESI – Porto Alegre/RS (16/04/2015)



O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI
foto: Amanda Costa
Não sou um expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não há comparação.
O espetáculo “Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória, carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua trajetória como uma das mais importantes artistas da história da música brasileira.
Sob luzes intensas de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas, Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela (junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado “Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia, misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira, mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel), evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi” ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971, ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/ Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz: “Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia, retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”, aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia: a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano, faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos, voltar com toda a velocidade.
As referências aos orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e “vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”), “Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”) dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa: “Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”), “Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo, “Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”, “Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira, representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de 1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta, por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”. Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio” fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/ Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `”É o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando, entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.



sábado, 14 de dezembro de 2013

cotidianas #259 - Assinado: Vida



Confesso que tenho andado enciumada. Na verdade, puta da cara, mesmo.
Minha irmã sempre foi mais presente no mundo literário do que eu. Já escreveu muitos livros e foi personagem de tantos outros. Fico enciumada porque ela tem algo que eu não tenho: o mistério do desconhecido. E é justamente esse mistério que desperta em vocês, humanos, a curiosidade sobre ela.
Agora me digam, como eu, que estou com vocês por anos, que me apresento dura e reta por tanto tempo… Como eu, pobre coitada trabalhadora sem reconhecimento, vou competir com o mistério do desconhecido? A morte é agradável porque vocês fazem dela o que quiserem.  A morte é particular. É de cada um. Humanos pegam suas expectativas e a pintam do modo mais conveniente possível.
Vejam a ironia! Se a morte não faz sentido, essa falta de razão é venerada em poemas. Se eu não faço sentido, sou, no máximo, almejada de palavrões e atolada de culpas. Eu carrego a culpa dos erros de vocês. A morte carrega a redenção desses enganos. E contra isso, não posso competir.
Aí, vocês perguntam: Se somos irmãs, quem é a mais velha? Não existe resposta no nosso caso. A morte e a vida fazem parte da mesma moeda. Completamos-nos e nos opomos numa falta de sentido que até faz sentido, se vocês pararem para pensar.  Fato é que, geralmente, me porto como a irmã mais nova e inconsequente. Enquanto a morte é languida, com tentáculos que se entrelaçam de um jeito que tudo parece fazer sentido em sua falta de sentido, eu, pobre Vida, me embaralho em nós que só servem para produzir mais nós.
A morte tem hora e data para chegar. “Era a hora dela”, vocês dizem. “Estava na hora dele partir”, vocês consolam. A morte tem uma agenda impecável. Eu tenho, no máximo, um caderninho de anotações. Eu sou caótica, confusa, juvenil e não faço o menor sentido. Aceitem isso.
Não estou dizendo que a morte faz sentido. Também ela se perde, leva muito cedo, leva muito tarde… Mas aí está a diferença entre nós duas. Eu assumo minha falta de critério, de padrão. Mas minha irmã, não. Ela acha que sempre está com razão. Ela julga sempre fazer as coisas na hora certa e é por isso que chega sem avisar, sem dar sinal, levando embora quem ela acha que deve.
Eu ajo diferente.
A construção. Pra mim, queridos, a construção é mais importante do que qualquer resultado. Não o destino, não as consequências, não o fim. O que realmente é importante é o caminho, é a ação, é o meio. Sei que buscar sentido nas coisas é uma característica dos humanos. Mas, frequentemente, vocês fazem isso olhando somente a ponta da história! Viver não é alcançar, atingir, concretizar. É tudo que você faz para chegar até esses três verbos.
Para ser bem sincera, acho petulante quando minha irmã narra sobre vidas humanas que já acabaram. Como se, só a Morte pudesse dar sentido à existência delas. Como se, só depois de mortas, o que fizeram em vida valesse a pena ser contado. Fico frustrada quando obras só ganham importância depois que seus artistas já não me pertencem. A morte, gente, não glorifica ninguém. Morrer é muito fácil. Viver é que é difícil. O nascimento e o parar do coração não passam de pontos de partida e de chegada. O meio é que é penoso. Por isso, eu queria dizer: Somos todos  culpados e inocentes nesse construir.
Sabem? Humanos não são vítimas da vida.
São sócios.



sexta-feira, 17 de outubro de 2014

João Donato - 1º Porto Alegre Jazz Festival – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (12/10/2014)



Água!

Chuva só se foi de musicalidade com o versátil e eclético João Donato no palco.
O temor era de que caísse um toró como ocorrera na manhã daquele domingo. O espetáculo estava marcado para as 11h, porém, ali pelas 9h, o tempo mostrava-se nublado mas estável, sem nenhuma chuva. Com a programação confirmada pelas redes sociais, fomos, Leocádia e eu, assistir ao principal e derradeiro dos shows gratuitos do 1º Porto Alegre Jazz Festival. E, ao contrário do que pudesse se esperar, não foram pingos que caíram sobre nós, mas um sol forte de mormaço que assolou o Parque da Redenção. O clima abafado, entretanto, não tirou o prazer de assistir a uma das lendas vivas da MPB e da música mundial: o pianista, acordeonista, arranjador, compositor e cantor acreano João Donato.

Com sua simpatia peculiar, Donato, um dos principais músicos brasileiros de todos os tempos, veio à cidade comemorando seus 80 anos de vida. Acompanhado de uma maravilhosa banda – Robertinho Silva, craque da bateria; Luiz Alves, baixo acústico; Ricardo Pontes, sax alto e flauta; e José Arimatéa, flughorn e sax tenor –, ele nos inundou com o que há de mais cristalino na música brasileira sintonizada com o mundo. Tudo compartilhado com o público com a sabedoria e a doce malandragem que sempre lhe foram características. Não à toa, o tema inicial do show foi “Amazonas (Keep Talking)”, clássico do álbum "Quem é Quem", de 1972, resenhado aqui no blog por Márcio Pinheiro. Sente-se nela o mambo cubano, o jazz fusion, a Bossa Nova, a soul music, tudo enredado num riff de piano inconfundível e solos magníficos de Donato, de Alves e dos dois sopros. Grandiosa como o rio que leva seu nome.

A sensação mágica de estar vendo João Donato ao vivo logo se ressalta. É assombroso perceber que justo aquele senhor animado e tomado de genialidade no palco é o ÚNICO compositor pré-Bossa Nova vivo. O único! Todos já se foram: Dolores Duran, Antonio Maria, Billy Blanco, Johnny Alf, Paulo Moura, Moacir Santos – e, claro, o próprio Tom Jobim, que foi pré, durante e pós-Bossa. Donato, este músico de formação tão erudita quanto popular, que viveu o boom da Bossa Nova mas logo se bandeou para os Estados Unidos para realizar obras referenciais como “A Bad Donato” (1970) e “Donato/Deodato” (em parceria com Eumir Deodato, de 1973), não só seguiu produzindo espantosamente nos anos 70, 80 e 90 afora como, está aí até hoje, desbravando oceanos.

Sensação mágica de estar vendo ao vivo
um dos maiores gênios da música brasileira.
Mas se o assunto era água, em seguida Donato chamou a todos para caírem na lagoa com “O Sapo”, outro marco de seu repertório que, na versão do show, não veio com a letra de Caetano Veloso (que a reintitula de “A Rã”), mas com o vocalise clássico – algo como: “Pã-rã-rã-rã/ Pã-rã-rã-rã-rá daza-inguê/ Daza-inguê-inguê guin-rin-gui-din/ Guin-rin-gui-din gui-din gon-ron-gon-don/ Gon-ron-gon-don pã-rã-rã-rã...” – que, até onde vai meu conhecimento, teve sua “letra” inventada por João Gilberto quando este a gravou em 1971 no disco “João Gilberto en Mexico”.

Vieram outras belezas de total musicalidade: “Rio Branco” (referência à cidade-natal do compositor mas não menos aquífera em conceito); a gostosa “Nasci para Bailar”, que trouxe novamente os ritmos caribenhos; a romântica “Até quem sabe”; o bop “Song of my Father”, do pianista norte-americano Horace Silver; e o samba cool “Café com Pão”.

Das celebradas parcerias com Gilberto Gil tivemos o privilégio de ouvir algumas das melhores. Primeiro, “Bananeira” (“Bananeira, não sei/ bananeira, sei lá/ a bananeira, sei não/ a maneira de ver...”), animada e cantada pela plateia. “Lugar Comum”, das mais belas do cancioneiro de ambos os músicos, veio em ritmo de bossa nova, como a água do mar batendo, como um “começo do caminhar pra dentro do fundo azul”. A sabedoria oriental desta (“Tudo isso vem, tudo isso vai/ Pro mesmo lugar de onde tudo sai...”) se reflete em outra parceria da dupla, “A Paz”, das preferidas do público. Esta, porém, quase foi estragada por uma participação (nada) especial do músico gaúcho Totonho Villeroy (ah, não pode mais chamar de “Totonho”? Tem que ser Antonio agora, pra dar o ar de “artista sério”? Puxa, desculpe, mas até João Donato o anunciou assim). Não fosse o espetacular riff, a melancólica e profunda letra de Gil (que remonta ao cinema de Ozu à "Rosa de Hiroshima" de Vinícius) e o primor da execução da banda, Villeroy, desatento e sem brilho, quase direcionou a bomba atômica que cairia sobre o Japão para Porto Alegre. Ele conseguiu, apenas cantando e no único momento em que esteve no show, errar a letra! E duas vezes! O público e Donato (este, com oito décadas nas costas) tiveram que lembrá-lo, como num karaokê. Ridiculamente desnecessário.

Ainda rolaram duas de autoria de Donato com Martinho da Vila, mostrando o quanto a natureza africana e rural do segundo se reflete na universalidade estilística do colega. Uma delas, “Suco de Maracujá”, um samba maxixado cuja engraçada letra, de estilo literário típico do compositor carioca, relata a preocupação de um homem prestes a se casar com uma mulher muito fogosa (“Pra me casar com você/ Eu vou ter que me cuidar/ Contratar um personal/ Treiner pra me acelerar”). E, dependendo das situações do cotidiano do casal, a dieta dele vai se alterando: “Quando a gente for deitar/ Um bom pó de guaraná/ Se a quentura tiver morna/ Come um ovo de codorna/ E se a noite for infinda/ Aí só Pau de Cabinda/ Se ela quiser bis no fim/ Pimenta no amendoim/ E depois pra me acalmar/ Suco de maracujá.” O outro samba, “Daquele amor nem me fale”, também chistosa, dá uma cutucada no Governo: “Posso até discutir religião/ Ou falar num domingo de sol/ Criticar a terrível inflação/ O machismo, o racismo a tortura/ Mas daquele amor, Nem me fale...”.

O show terminou com João agradecendo aos gaúchos por terem trazido o sol, mas não sem antes gritar seu tradicional jargão para que a banda finalize os números: “Água!”. Coincidência ou não com a chuva que se prenunciava e não precipitou, ouvimos isso duas vezes, uma delas, inclusive, na faixa que encerrou a apresentação abaixo de muito sol, a marchinha “O bicho tá pegando” (“O coro tá comendo/ O bicho tá pegando”), que instaurou um clima de dança de salão no parque.

Assistir João Donato, ainda mais já numa idade assim tão avançada (e que, pelo contrário, ele não parece ter), é realmente muito especial, pois fica ainda mais evidente nessas horas a grandiosidade da música brasileira, que, naturalmente, se posiciona entre todos os chamados “estilos” musicais. Donato é genuinamente jazz? É. E é genuinamente MPB? É também. É tudo – e mais um pouco. Tanto faz o rótulo. O fato é que saímos, com perdão do trocadilho, encharcados de boa música, de música pura, límpida. Tu és água, João Donato.







segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

McCoy Tyner - "Extensions" (1972)

 

“Quem trouxer uma boa ação terá uma dezena como esta”. 
Corão, 6:161

A ideia que move o homem é a da perpetuação. Da espécie, da genealogia, das relações. E o homem desde as cavernas escolheu a forma mais elevada de expressar essa perpetuação: a arte. Embora a antiguidade da relação do ser humano com a arte, pode-se dizer que 60 anos é tempo suficiente para se verificar se um trabalho artístico conseguiu dar continuidade a algo que o motivou. “Extensions”, do pianista de jazz norte-americano McCoy Tyner, que não leva este nome à toa, é uma realização desta magnitude. 

Poucos anos após assimilar a morte do mestre John Coltrane, com quem havia se tornado um músico profissional, Tyner realiza uma viagem para dentro de si mesmo. Já havia intentado isso em “The Real McCoy”, de 1967, mas seguiu em busca do seu verdadeiro “eu”, explorando, descobrindo, expandindo-se. Por isso, a noção de extensibilidade proposta por Tyner vai além de um mero produto sonoro-musical, pois atinge num só tempo dimensões altamente profundas, como a da raça, da espiritualidade e da ancestralidade. Em “Extensions”, Tyner vai à gênese.

Coltrane, aliás, abridor de portas do spiritual jazz e da vanguarda jazzística, é fundamental para essa procura existencial e espiritual. Afora a própria influência do saxofonista mais cultuado do jazz para Tyner e toda uma geração, o pianista reúne figuras não apenas devotas ao autor de “Giant Steps” como ainda vai além. Estão com ele Elvin Jones, companheiro do “quarteto clássico” que acompanhou por cinco anos Trane em suas principais obras; o versátil Ron Carter, cujo baixo é capaz de apoderar-se do mais profundo intimismo; Wayne Shorter, um dos mais ilustres herdeiros do saxofone mágico da linhagem de Coltrane; Gary Bartz, cujo sax alto conversa igualmente com o extracorpóreo; e para fechar, ninguém menos que a esposa dele: a pianista e harpista Alice Coltrane, grandiosa compositora e arranjadora, que dividiu a vida, os estúdios e os palcos com o marido e que substituiu, justamente, o próprio Tyner, em 1966. Tê-la neste disco significava para Tyner não apenas um resgate para com ela, mãe de Ravi Coltrane, fruto do casal e músico talentoso como os pais, como uma reconexão com quem, mesmo não mais vivo, fora-lhe tão importante.

Independente do que tocassem, só o fato de se reunir essa estelar turma já seria suficiente. Mas Tyner estava imbuído de pretensões mais elevadas neste projeto. Queria puxar o fio do novelo que lhe trouxera até ali como artista, como ser social e como pertencente de uma raça. Queria perscrutar a “extensão” de sua existência. A fonte para isso? A África. Muçulmano devoto, Tyner buscava invariavelmente nas raízes antepassadas a inspiração para sua música. No entanto, naquele momento de vida, calhava-lhe reunir os ecos do spiritual jazz – proclamado por Coltrane e muito bem progredido por outros músicos, como Albert Ayler, Pharoah Sanders e a própria Alice –, do bop e do modal com o legado dos ritmos africanos. A riqueza continental da África lhe oferecia a dimensão espacial perfeita para o autorreconhecimento, mas também para o do jazz e de toda a música moderna. A capa não deixa dúvidas ao mostrar a realeza negra com suas vestes islâmicas típicas.

O disco começa mandando uma mensagem vinda do rio que banha toda a África Continente e as áfricas imaginárias pelo mundo: o Nilo. Os mais de 12 minutos da faixa de abertura dimensionam a exuberância de um tema em homenagem ao maior – e mais histórico – rio do mundo. ”Message From The Nile”, com um início transbordante como uma nascente, abre ao som cintilante da harpa de Alice. Denso, o tema diz a que veio: variações de ritmo e textura da percussão, um piano lírico e consciente de seu papel central; e a dupla de sax, formando um só corpo – melódico e astral. Essencial para o desenvolvimento de civilizações milenares, como a egípcia, a grega e a hebraica, o Nilo recebe de volta Tyner em suas águas sagradas para um novo batismo. Essa é a mensagem. Tyner, Bartz e Shorter, padrinhos, parecem colocar a música a alguns metros do chão com seus improvisos, enquanto a harpa de Alice, última a solar, vem para, definitivamente, selar a sensação de elevação.  

Tyner com o mestre e amigo John Coltrane à época do
"quarteto clássico": inspiração espiritual

Estava muito clara a visão do band leader. Em uma época em que vários músicos do jazz, inclusive muitos contemporâneos de Tyner, se rendiam ao fascínio pop do jazz fusion, absorvendo com facilidade elementos do rock e da soul music, o pianista, convicto com seu Corão debaixo do braço, mantinha-se ainda mais fiel às raízes. Embora se abrisse para o matiz africano como os ultramodernos, fazia-o muito mais como contrição do que experimento ou frivolidade. “The Wanderer”, que vem na sequência, forjada no hard-bop ao qual ele e toda a banda se formaram, capta a ideia da “extensão” ao reafirmar aquilo que a música da África levou para o outro lado do Atlântico, como se a mensagem enviada do Nilo fosse justamente essa: o jazz puro e essencial. Como em todo o álbum, o autor prova que é a verdadeira ponte entre a tradição e o moderno.

Por falar em essência, o que é mais essencial para a música afro-americana do que o blues? “Survival Blues”, novamente faz uma ode aos ancestrais, mas localizando-os na América. O tema inicia com farfalhar de notas miúdas das mãos esquerda e direita de Tyner para, aos poucos e dissonantemente, formar um esboço melódico. É, sim, um blues, mas como o próprio título sugere, que necessita brigar por sua “sobrevivência”. As notas e acordes, como seres tirados de suas terras para servir de escravo por séculos num território que não era seu, travam uma batalha com o espaço sonoro para existirem, para ocuparem aquilo que lhes pertence. Jones, especialmente inspirado, está em casa: livre para exercitar sua verve polirrítmica. O blues, assim, como lamento e redenção, como música de trabalho dos trabalhadores escravizados, cumpre sua função sincrética, quase religiosa. Torna-se mais “espiritual” do que os mestres precursores jamais supuseram.

Se foi breve o passeio pela África, com certeza foi profundo. Por isso, não poderia deixar de se encerrar pedindo a bênção – seja de Alá ou dos orixás, que saíram da mesma África para jogar seus encantos na ponta sul da América. Mais spiritual jazz impossível, “His Blessings”  pega emprestada a atmosfera de Coltrane, principalmente, em seu maior canto divino, “A Love Supreme”, de 1964, em que Tyner foi um importante colaborador e Alice uma fundamental encorajadora. Com esparsas percussões (pratos ou rolos de tímpano), o tema tem na força dos sopros de Shorter e Bartz sua alma, suas vozes. Carter, outro fundamental para a construção harmônica, lança o arco para fazer de seu baixo uma flecha, como o caçador Oxóssi. A arpa de Alice desenha todo o espectro sonoro, atribuindo ares do Oriente egípcio, caldeu e fenício enraizado na civilização moderna. Já Tyner, dono e autor da canção, impregna-a de motivos oníricos e devotos, louvores urgentes de serem ditos.

Se Tyner já vinha de um tempo cogitando autodescobrir-se, em “Extensions” ele realiza justo o que o termo propõe: extensões deste significado. Afinal, não é um descobrir apenas de si, mas de seu povo, de sua raça, de sua gente. A civilização negra, seja da África, das Américas ou de onde quer que seja, está representada em seus acordes. Todos eles guardam no coração, inequivocamente, os sons que a Mãe-África lhes legou. E a arte, aqui respaldada pela linguagem da música, é capaz de manter vivas suas origens, de aproximá-la, de colá-la novamente à porção meridional ocidental, hoje chamada América e dividida por um imenso oceano, mas que um dia formou uma só terra.

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Gravado pelo selo Blue Note,, em fevereiro de 1970, no Van Gelder Studio, em Englewood Cliffs, New Jersey, “Extensions” foi lançado somente dois anos depois, em 1972, pela United Artists Records.

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FAIXAS:
1. “Message From The Nile” - 12:10
2. “The Wanderer” - 7:35
3. “Survival Blues” - 13:02
4. “His Blessings” - 6:41
Todas as composições de autoria de McCoy Tyner.

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Daniel Rodrigues

sábado, 29 de dezembro de 2018

CLAQUETE ESPECIAL DE 10 ANOS DO CLYBLOG - "Tinta Bruta", de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon (2018), por Cleiton Echeveste



"Tinta Bruta"
por Cleiton Echeveste


Mesmo tendo assistido a “Tinta Bruta” há vários dias, os personagens e a história do filme seguem comigo. E a sensação que eu tenho é de que eles vão continuar me acompanhando ainda por um bom tempo. Em meio aos lançamentos de final de ano nos cinemas (entre eles tantos blockbusters, filmes descerebrados com personalidades de mídia e filmes desconectados de quaisquer questões humanas, e ainda alguns poucos que visam algo mais do que a arrecadação da bilheteria ou os prêmios da temporada), provavelmente “Tinta Bruta” tenha passado despercebido pela grande maioria. Ainda assim, o prêmio Teddy no Festival de Berlim e a distribuição (limitada, porém valiosa) da Vitrine Petrobras, a partir do seu sucesso no Festival de Cinema do Rio, sinalizam que há olhares atentos e – ainda, felizmente – caminhos para a distribuição do cinema independente de qualidade feito no país.
Depois de “Beira-mar” (disponível no Netflix), este é o segundo longa de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, que também assinam o roteiro do filme. Pedro (Shico Menegat) é um jovem com escassos vínculos afetivos. Sua mãe já morreu. Do pai, não teve mais notícias. Sua única irmã está de mudança para outro estado e sua avó mora no interior. Abandonou a faculdade por questões relacionadas ao bullying do qual é vitima e que foram a causa do processo criminal ao qual responde. A internet representa pra ele uma espécie de refúgio, onde assume a identidade de GarotoNeon, em performances eróticas nas quais pinta seu corpo com tinta fosforescente. Assim como tantos jovens, Pedro recorre ao imaginário, através do mundo virtual, para tenta dar algum sentido à vida. O mundo real, em contraponto, é uma Porto Alegre fria, sombria e opressiva, representada por silhuetas nas janelas, olhares que espreitam e que são testemunhas/espectadores de uma realidade pela qual não se permitem afetar. Um mundo nem um pouco propício para encontros ou trocas afetivas. Essas imagens são o epítome da sociedade contemporânea do espetáculo, em um viés conservador e decadente.
Na minha relação com a arte, busco ser o menos analítico possível ao vivenciá-la, esteja eu no lugar de criação ou de fruição. A análise é fria e requer distanciamento, e foi exatamente o contrário disso que “Tinta Bruta” me proporcionou: a vivência da minha humanidade, da minha falibilidade, de dores que são também minhas e que são, por isso, plenamente identificáveis. Se “Tinta Bruta” não é um marco no cinema brasileiro que aborda histórias de personagens LGBTIQ+, o filme, no entanto, significa, sem dúvida, um gesto forte e marcante, indispensável em um Brasil que, em boa parte, nega sua diversidade, sua memória e sua própria história, que criminaliza a arte e a cultura, e que diariamente mata (real ou simbolicamente) quem ousa conduzir sua vida de uma forma mais livre, sem a adesão a regras que, de tão podres, já não se sustentam.
Neste texto refaço um caminho particular por aquilo que me marcou no filme e que dialoga tão diretamente com questões muito definidoras da minha própria existência. Esta revisão, entretanto, é duplamente parcial, afinal “Tinta Bruta” é um filme que apresenta tantas camadas que uma resenha apenas não daria conta de abordá-las todas satisfatoriamente. É um filme difícil de ser definido ou enquadrado. É denso, chocante, assustador, mas também delicado e profundamente humano. Um tipo bastante raro de filme que se impõe pela consistência da sua estrutura.  São questões humanas que potencialmente atravessam todo e qualquer espectador. Por isso, dizer que se trata de um filme de gueto seria limitador.
Leo e Pedro  e sua geração que ainda busca
as tintas certas para colorir o seu mundo.
Talvez seja necessário dizer que “Tinta Bruta” não é um filme perfeito. Há falhas no roteiro, mais precisamente nos diálogos, vejo questões na direção de atores, na qualidade técnica, especialmente do som. E isso é bom, muito bom! Porque eu entendo que, ainda que pese a questão da limitação orçamentária, o filme não se pretende perfeito e acabado, até pelo próprio universo em (des)/(re)construção que ele nos apresenta e pelo que representa na trajetória de seus jovens criadores. E, ainda assim, são tantos os acertos e tão importante o impacto que ele gera no espectador, que os seus eventuais “defeitos” podem e devem ser relevados. Há um bem muito maior em questão e este bem é precioso.
A trajetória de Pedro é uma autêntica jornada rumo ao entendimento: o entendimento de si mesmo e do mundo que nos cerca, com suas idiossincrasias, sua crueldade, sua frieza, mas também com sua beleza, sua luz, sua poesia. Nesse sentido, é encantador acompanhar o encontro de Pedro e de Leo. Do atrito inicial, provocado por uma disputa sobre quem tem o direito de usar tinta fosforescente (num sentido literal, a tinta bruta a que o título alude) em suas performances na internet, a relação dos dois evolui para um encontro autêntico entre dois seres de uma geração que não vê muito sentido no mundo como ele se apresenta. São existências em ebulição, em transformação, seres potencialmente revolucionários. Ambos parecem estar em permanente tensão, em busca de um ponto de escape. Essas buscas são compartilhadas com o espectador, através de uma narrativa que tem o ritmo e o tempo certos. Na verdade, personagens e narrativa nos seduzem, nos envolvendo não como quem olha pelo buraco da fechadura, mas como quem compartilha o mesmo espaço, o mesmo ambiente incerto e sufocante. A questão que de início contrapõe Pedro e Leo não é pequena pra nenhum dos dois: pra Pedro suas performances representam sua única fonte de renda e, principalmente, elas são seu único elo com o mundo “real” – ainda que ele se dê exclusivamente pela via virtual; e para Leo, elas são a possibilidade de juntar dinheiro para uma desejada viagem de estudos ao exterior. Bailarino, Leo ganhou uma bolsa para estudar na Argentina, e promete a Pedro que sua concorrência tem prazo de validade. Mas aquele que aparenta ser um concorrente acaba por se tornar um parceiro. A certa altura esse prazo cai, mas isso se dá num momento em que Pedro e Leo já estão de tal maneira envolvidos afetiva e profissionalmente que, na prática, nada significa.
Apesar dos cíclicos reveses (culturais, históricos, econômicos, naturais), “Tinta Bruta” sinaliza que o sentido da vida é a evolução. Como a planta, nós também buscamos a luz. E a água e o alimento, material e espiritual. E pra que isso aconteça agimos como a planta – afinal somos também natureza – que ultrapassa obstáculos, transpõe limites, supera a si mesma, em alguma medida heroicamente, mas sempre demonstrando resiliência. “Tinta Bruta” nos faz lembrar que essa batalha é combatida individualmente, ainda que na eventual companhia do outro. E esse outro – cuja presença é ironicamente fundamental à nossa jornada – também trava suas próprias lutas, cotidianas e, muitas vezes, invisíveis aos olhos alheios. Os reveses na vida de Pedro são inúmeros. A vida nele, no entanto, pulsa.
A cena final do filme, sem palavras e plena de significados, até hoje me assombra e me comove. Me faz lembrar de algumas vezes em que uma única cena concentrou tamanha potência dramática e carga poética. Consigo lembrar de dois filmes que, aliás, também podem ser colocados sob o grande guarda-chuva de “cinema LGBTIQ+”, mas que igualmente transcendem esse rótulo: “O segredo de Brokeback Mountain” (2005) e “Me chame pelo seu nome” (2016). A pungência dos acontecimentos relacionados aos personagens centrais destes filmes e a força das imagens encontradas por seus diretores para expressá-las é algo que não se digere com facilidade. São vivenciais que saltam da tela e nos atingem por sua força e inevitabilidade. Em “Tinta Bruta”, no entanto, esse recurso alcança um efeito mais visceral. Se nos dois exemplos citados a dor que dilacera está relacionada à perda irreparável de um amor, aqui a dor é a dor do crescimento, do lançar-se ao mundo. Como num rito de passagem, a cena final significa uma mudança de eixo tão arrebatadora pra Pedro que um novo filme poderia começar ali. É a vida mesma que se insurge, se esgueirando por uma brecha, em busca da luz e que, determinada, vigorosa, doída e bela, redefine e recompõe uma existência. Para o espectador, é uma rasteira tão grande em quem eventualmente lesse o filme de uma maneira convencional, ou em quem esperasse uma habitual – e hipócrita – redenção pelo viés judaico-cristão de culpa e castigo, que ficamos afundados na poltrona do cinema, olhos vidrados e lágrimas escorrendo, estarrecidos com a força vital com que a tela se enche.
Se a vida pressupõe confrontação e, mais do que nunca, resistência, a arte se torna grande, imensa, quando nos oferece a oportunidade – assim como faz “Tinta Bruta” – de fortalecermos nossa confiança de que, sim, a vida vale a pena. Bravo!

Frente a frente, Leo, o GarotoNeon, e Pedro, o Guri, 25.


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Cleiton Echeveste é ator, dramaturgo e diretor de teatro, graduado em Artes Cênicas (UFRGS), onde também estudou Letras. É um dos criadores da Pandorga Cia. de Teatro, na qual é autor e diretor de O Menino que Brincava de Ser (indicação ao 2º Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças) e Cabeça de Vento (ganhador de prêmios de melhor texto nos festivais de Ponta Grossa/PR e Duque de Caxias/RJ). Com a Pandorga, criou Juvenal, Pita e o Velocípede (ganhador do 10º Prêmio Zilka Sallaberry de Teatro Infantil, categoria texto). Único dramaturgo latino-americano no festival de dramaturgia New Visions/New Voices 2014 (Washington, D.C./EUA). Em 2016, na Casa de la Literatura Peruana, em Lima, participou do VI Congreso de Literatura Infantil y Juvenil e do 1er. Festival del Libro y las Ideas, com mesas-redondas, conferências e oficina de processo colaborativo. Atualmente é o presidente do Conselho de Administração do Centro Brasileiro de Teatro de Teatro para Infância e a Juventude – CBTIJ/ASSITEJ Brasil. Site: https://pandorgaciadeteatro.wordpress.com/   

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Duelo - com Paulo Telles (2ª parte)



Seguindo com a segunda parte do duelo com o radialista, locutor, cinéfilo e blogueiro Paulo Telles num bate-papo tão apaixonado pela sétima arte quanto instrutivo. Se na primeira Telles aborda o faroeste norte-americano, destacando diretores, títulos referenciais e até sobre o papel da mulher no western, agora, ele fala um pouco mais sobre o spaghetti, a versão italiana para o gênero que não só ganhou fãs no mundo todo como, de certa forma, trouxe-lhe uma nova linguagem. Ainda, aquilo que todo cinéfilo gosta: listas. O entrevistado já sai elencando seus filmes preferidos nas duas categorias e defende com muito critério e poder analítico uma a uma de suas escolhas. Vamos, então, à segunda e última parte da entrevista:



FRANCISCO BINO:- Sei que não é fácil fazer estas coisas, mas nos faça uma lista com os dez melhores western Spaghettis de todos os tempos segundo você? E os dez melhores do cinema americano?
PAULO TELLES: E não é mesmo, prezado Bino (risos). Elaborar uma lista com apenas dez de cada estilo não é uma tarefa fácil. Entretanto, há outros títulos que também estão em minha apreciação que não se encontram aqui listadas, portanto, apresento os meus Top Ten de cada estilo do gênero:

  • AMERICANOS
1 - "RASTROS DE ÓDIO"/The Saerchers (1956) – Direção: John Ford
Foi através desta obra prima (assisti pela primeira vez em 1985, com catorze anos) que comecei a me interessar sobre cinema e tentar entendê-lo como arte. Foi a partir deste momento, que me deixei penetrar pelo mundo de John Ford e no mundo dos westerns. Não tem como você não se deixar encantar pela beleza majestosa e áspera do Monument Valley, cenário natural este preferido de Ford, e pela figura estoica de Ethan Edwards, interpretado por John Wayne. Em minha opinião, foi a melhor atuação de sua carreira, digna mesmo de um prêmio, trabalho este que rendeu até elogios do cineasta e filósofo Jean-Luc Godard, inimigo declarado de Wayne por razões políticas. “Rastros de ódio” conserva os elementos dramáticos do faroeste tradicional, por seu estilo peculiar, épico e lírico, onde o cineasta descreve a odisseia de Ethan e de seus discípulo Martin Pawley (vivido por Jeffrey Hunter) na perseguição aos comanches que raptaram a jovem Debbie (vivida por Natalie Wood), e isto tudo num relato de tensão ininterrupta e de grandeza plástica e cromática, segundo as nobres palavras do finado crítico Paulo Perdigão, ex-colunista do jornal O Globo. Recentemente, o filme foi exibido em reprise nas grandes salas do Cinemark, em sua sessão de clássicos, e assisti junto ao José Eugenio Guimarães, editor do blog Eugenio em Filmes. Mesmo sem o impacto do formato VistaVision, ainda assim valeu o ingresso.


"Rastros de Ódio", cena de abertura

2 - MATAR OU MORRER/High Noon (1952) – Direção: Fred Zinnemann
Um dos grandes westerns que estabeleceu o chamado Western Psicológico, uma alusão ao Macarthismo e a sociedade americana de então, uma das obras primas de um grande cineasta, Fred Zinnemann. Poucos sabem, mas os americanos consideram tão importante este filme que uma cópia desta obra prima foi depositada numa cápsula do tempo, que só será reaberta no ano 2213. Uma trama elevada à dimensão de tragédia grega tendo como herói o xerife Will Kane (em minha opinião o mais humanizado de todos os protagonistas no gênero, digno do título de herói) vivido por um dos atores que mais bem personificaram o mito do cowboy do oeste, Gary Cooper, em uma cruzada solitária para defender sua vida. Ele durante muitos anos cuidou de uma cidade e de seus habitantes, mas agora mesmo não estando sob a insígnia da lei, estes mesmos habitantes se recusam a ajudá-lo, pois todos temem o pistoleiro e seus comparsas que descerão no trem do meio dia para matar Kane. Um estudo acurado da consciência do herói que mesmo podendo fugir ou deixar a responsabilidade para o próximo xerife, ainda sim mantém sua dignidade para ter paz consigo mesmo. Não tem como não falar deste Western sem mencionar Grace Kelly como sua esposa quaker, e a famosa canção “Do Not Forsake Me Oh My Darling”, interpretada por Tex Ritter. Solidão, consciência, medo, e ingratidão são as temáticas principais desta obra de Zinnemann.
3 - O MATADOR/The Gunfight (1952) – Direção: Henry King
Outro grande western de base psicológica dirigida por um dos grandes artesões de Hollywood, e trazendo Gregory Peck numa das melhores atuações do gênero, Jimmy Ringo, um temível pistoleiro que quer largar as armas para viver pacificamente para a esposa e seu filho, que ainda não o conhece. Contudo, sua fama de rápido no gatilho não só atemoriza as pessoas mais pacatas, mas atrai aventureiros desocupados que o querem por à prova, o que faz com que Ringo não consiga a paz que almeja. Um estudo acurado do mito do pistoleiro, que tão logo seja afamado (ou mal afamado), outros estão dispostos a temê-lo ou a desafiá-lo.
4 - DA TERRA NASCEM OS HOMENS/The Big Country (1958) – Direção: William Wyler
Um dos melhores Westerns americanos que já assisti e por muitos, e também pudera, não tinha nada para dar errado tendo na direção um dos maiores cineastas de todos os tempos, William Wyler, que assinou grandes obras primas da Sétima Arte, como “Jezebel”, “A Princesa e o Plebeu”, “Chagas de Fogo”, e “Ben-Hur”, como também não podia dar errado tendo um elenco de primeira categoria como Gregory Peck, Jean Simmons, e Charlton Heston. Outro destaque é sua produção, com uma fotografia impecável e formato de tela panorâmica que nenhum televisor poderia enquadrar, isto é, um dos primeiros faroestes americanos em superprodução para afastar o público dos televisores, que então esvaziavam as salas de exibição. Vale lembrar também de sua mensagem pacifista, coisa rara nos filmes do gênero, já que o personagem de Peck, um almofadinha do leste, se envolve na briga de duas famílias por causa da divisão de água, mas ele acredita que poderá agradar a gregos e troianos. Muito interessante! Destaque para a briga entre Peck e Heston, que viram a noite lutando, e também para eletrizante trilha sonora de Jerome Moross.
5 - OS BRUTOS TAMBÉM AMAM/Shane (1953)- Direção: George Stevens
Era o filme preferido do crítico brasileiro Paulo Perdigão, já falecido, entretanto a meu ver ele é um conto moral sobre a redenção e a ótica de uma criança ao idealizar o perfil do herói do Oeste. O baixinho Alan Ladd é perfeito como o pistoleiro Shane, que busca a paz e quer largar as armas, mas ele não consegue quando se vê obrigado a empunha-las para defender um casal e o filho deles, que o idolatra como um verdadeiro mito. Shane chega a uma cidade como um típico “anjo purificador” ao tentar distribuir dignidade e autoconfiança para os fazendeiros amedrontados. A fábula sobre o bem e o mal e disputa entre dois é bem caracterizada no duelo final entre Ladd (Shane) e o pistoleiro Wilson, vivido pelo brilhante Jack Palance. Outro clássico do gênero recomendado para todos os amantes do Western, ou simplesmente, quem ama cinema.
6 - DUELO AO SOL/Duel in The Sun (1946) – Direção: King Vidor
Verdadeiramente um Super-Western de tirar o fôlego!!! Uma nova forma bem adulta de atrair o público igualmente adulto as salas de cinema, e produzido por David O’ Selznick, o megaprodutor responsável por outra obra prima (E O Vento Levou) e estrelando a sensual Jennifer Jones e o galante Gregory Peck, que não esta nada galante nesse filme (risos). Foi o maior êxito comercial de Selznick e que foi o apogeu do Western romanesco, no entanto, acabou criando problemas com ligas puritanas americanas pelo teor de sexualidade bem apimentada e exagerada, ao introduzir o chamado “beijo francês” no cinema americano. Além disso, a trama é basicamente uma tragédia grega, onde a mestiça vivida por Jennifer Jones tem o pai condenado à morte por ter matado sua mãe e o amante dela, e daí passará a viver com uma tia, vivida por uma dama do cinema, Lilian Gish, que é esposa de um senador, vivido pelo lendário Lionel Barrymore. Mas os dois filhos do casal se interessam pela mestiça, mas ela acaba optando pelo mais sedutor e amoral, que é Gregory Peck, que não quer nenhum compromisso, em vez do decente Joseph Cotten. De resto, é uma tragédia grega a se seguir em grandes proporções, mas no grande estilo do Western Clássico Americano.
7 - A LEI DO BRAVO/White Feather (1955) – Direção: Robert D. Webb
É um dos meus prediletos por tratar-se de um tema antirracista, e um dos faroestes mais respeitados sobre a temática indígena, cujo argumento foi redigido pelo cineasta Delmer Daves, mas dirigido por Robert D. Webb (um cineasta de menor renome, mas nem por isso menos admirado). No roteiro, Daves repetiu os mesmos ingredientes de Flechas de fogo, realizado cinco anos antes, versando a trajetória de jovem guerreiro cheyenne Cão Pequeno (vivido espetacularmente por Jeffrey Hunter) e um engenheiro bem intencionado Josh Tenner (vivido por Robert Wagner). Este tenta persuadir os índios a mudar-se para uma reserva, mas o projeto acaba prejudicado pela ganância de garimpeiros. A obra caminha para uma sequência final que eu mais admiro - o confronto do solitário de Cão Pequeno, que se recusa a mudar de sua reserva, contra as tropas da União. Destaque para a bela Debra Paget, praticamente a repetir seu papel em Flechas de Fogo, como a irmã de Cão Pequeno e interesse romântico do herói vivido por Wagner. Recomendo.
Poster de "A Face Oculta, de Brando
8 - A FACE OCULTA/One-Eyed Jacks (1961) – Direção: Marlon Brando 
Outro Western em superprodução que está em minha apreciação onde se tem o registro da única experiência de Marlon Brando como diretor. Muitos apreciam "O Poderoso Chefão" como o melhor filme de Brando, mas contesto um pouco isso, tendo em vista este excêntrico trabalho do gênero onde o ator investiu cinco milhões de dólares, em dois anos de trabalho. Foi uma produção tumultuada (era para Stanley Kubrick dirigir), e das 35 horas de filme impresso, Brando selecionou material para cinco horas de filme, que acabou sendo reduzido para 2h e 21 minutos de filme. Era para ter sido o Western de maior duração da história se Brando não fosse obrigado a reeditar sua duração. Além disso, tramas ligadas sobre a vingança me fascinam, assim como a dualidade do caráter do ser humano quando se aplica no personagem vivido por Karl Malden. Malden é bandido assaltante de bancos como Brando, e acaba traindo este, seu melhor amigo, que passa cinco anos na prisão e jura vingança por todos os anos que ficou no presídio, e quando finalmente o reencontra, ele é um homem mudado, xerife de uma cidade, e respeitado pelo povo. A questão fica se ele mudou moralmente ou isso não passa de uma fachada. Brando sempre alegou que seu Western era um “assalto frontal ao tempo dos clichês”.
9 - OS PROFISSIONAIS/The Professionals (1966) – Direção: Richard Brooks
Revisitado por mim faz pouco tempo, não há a menor dúvida que esta obra de Brooks foi uma resposta americana (uma das primeiras) para o Western italiano que já invadia as salas de exibição, e também não foi pra menos, pois importaram até a beleza italiana dos deuses Claudia Cardinale para se juntar as feras do cinema americano, como Burt Lancaster, Lee Marvin, Robert Ryan, e o ator negro Woody Strode, este excelente, mas infelizmente pouco valorizado. Um ótimo exemplar de tenacidade e tensão, cuja trama vai adquirindo colorações políticas e éticas inesperadas, mas com extraordinário espírito de aventura como jamais vista no gênero americano. Destaque para a fotografia e para sua trilha sonora, de Maurice Jarre.
10 - MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA/The Wild Bunch (1969) – Direção: Sam Peckinpah
O “clímax dos clímax” do gênero, como eu defino. Para os amantes de cinema, e, sobretudo, do gênero que estamos debatendo, é a obra clímax da estilização da violência, coreografada de forma ritualística em câmera lenta, evocando um Oeste sujo e selvagem, sem qualquer idealismo romântico e lenda áurea dos mitos, com personagens decadentes, anacrônicos, e desglamourizados. Causou polêmica de fato, o que retardou o reconhecimento de Sam Peckinpah como um dos grandes cineastas do gênero, pois acabou sendo cortados 56 minutos de sua metragem original, o que provocou protestos do diretor e até mesmo por parte da crítica, que não estava ainda acostumada com este excesso da violência nos filmes. Outrora os ídolos do cinema americano, William Holden, Ernest Borgnine, e Robert Ryan, três fantásticos atores (principalmente o terceiro, que atuou em Hollywood sempre com muita competência e profissionalismo, sendo um dos meus atores preferidos) estão soberbos e maravilhosos em seus papéis, arquétipos do declínio e de toda decadência, que de uma maneira ou outra, desgraçadamente se empenham em aventurar num último golpe de suas malditas vidas. Vale também destacar a bela fotografia de Lucien Ballard.



  • ITALIANOS/EUROPEUS
1 - TRÊS HOMENS EM CONFLITO/Il buono, il brutto, il cattivo (1966) – Direção: Sergio Leone
Foi o primeiro faroeste italiano a me chamar a atenção justamente devido a falta de romancismo, idealismo, lirismo, e todo tipo de folclore tão comumente acostumado nos faroestes americanos. Propositalmente, o grande Sergio Leone soube o que fez ao retratar o Velho Oeste do jeito que fosse condizer com os fatos, e descartando mitos. A ganância e o individualismo exacerbado, pessoas querendo se dar bem à custa de outras, são características bem acentuadas nas obras deste grande cineasta, como vemos neste exemplar, revelando ao mundo um novo tipo de cowboy, o mais distante possível de John Wayne, Gary Cooper, ou Randolph Scott, e seu nome é um mito vivo – o americano Clint Eastwood. Junto a Lee Van Cleef e Eli Wallach (maravilhoso como Tuco, o feio), formam um triunvirato de trapaças e aventuras desmedidas, onde ao fim, o duelo a três é inevitável.
2 -  DJANGO/Django (1966) – Direção: Sergio Corbucci
Outra obra prima que ajudou a consolidar o faroeste italiano na minha preferência. O mundo se rendeu a um novo ídolo do Western europeu, e desta vez um genuíno italiano chamado Franco Nero, um dos meus atores favoritos do gênero. Não há como não se impressionar com uma figura calada e de toda de negro chegando a uma pequena cidade carregando um caixão. Uma cidade dominada pelo terror da famigerada Ku Klux Klan que para dominar o poder enfrenta bandidos mexicanos, e o estranho Django está no meio de tudo isso para salvar a vida de uma estranha mulher, por quem se apaixona ao seu modo. Corbucci dá a esta obra uma carga explosiva acentuada, realçada pela antológica trilha sonora de Luis Bacalov.
3 - O DIA DA DESFORRA/La Resa dei Conti (1967) – Direção: Sergio Sollima
Outro exemplar à italiana do gênero que é um exercício psicológico de tensão, mas mantendo as características do legítimo padrão do western italiano, trazendo o americano Lee Van Cleef como um caçador de bandidos da elite que persegue um mexicano (vivido pelo italiano Thomas Millan) acusado de violentar e matar uma menina. Contudo após vários reveses, em que o caçador tem o seu orgulho ferido devido à esperteza do mexicano, ele descobre que na verdade ele é inocente, vitima de inescrupulosos da alta roda em que o caçador vivido por Cleef faz parte, e por isso ele resolve ajudar o mexicano. Um dos melhores e mais expressivos filmes do Western europeu, dirigido por um Sergio, mas que não é o Leone.

O "O Dólar Furado",
dos favoritos
do faroeste spaghetti
4 - O DÓLAR FURADO/Uno Dollaro Bucato (1965) – Direção: Giorgio Ferroni
Giuliano Gemma é outro dos meus heróis do gênero à italiana, e este filme, ainda que embora tenha alguns clichês do Western americano, ainda assim vale o espetáculo, que como “Django”, de Corbucci, ajudou a impulsionar a moda do bang bang a italiana. Impressionante como uma moeda de um dólar no bolso acaba salvando a sua vida após ser abatido pelos inimigos, e como se fosse Ullysses da “Odisseia” de Homero, volta para se vingar dos homens que tentaram matá-lo, tiraram a vida de seu irmão, e raptaram sua mulher. “O Dólar Furado” é outra obra prima do gênero que ajudou no impulso do faroeste italiano.
5 - OS QUATRO MALDITOS/Los Cuetro Implacables (1965) – Direção: Primo Zeglio
Não chega a ser um clássico do gênero italiano, mas meus motivos para listá-lo são mais puramente afetivos, pois foi um dos primeiros assistidos por mim ainda na infância, e em ter como herói aqui Adam West, que no ano seguinte emplacaria como o mais famoso Batman da TV. O cowboy aqui vivido por West é quase limpinho, briga adoidado, mas a trama sobre um agente da lei (vivido por West) que tentar impedir que quatro bandoleiros (daí o título de “Quatro Malditos”, ou no original, “Os Quatro Implacáveis”) recebam a recompensa por terem capturado e matado um fugitivo da justiça que era inocente não deixa de ser de toda interessante e é uma história bem ritmada. Como não deixarão barato, os “quatro malditos” emboscam o agente da lei, e este, terá que lutar por sua vida.
6 - POR UNS DÓLARES A MAIS/Per un pugno di dollar (1964) – Direção: Sergio Leone
Leone parte com tudo nesta obra desmistificadora dos mitos laureados do Velho Oeste. A ganância, o individualismo, o dinheiro, surgindo a figura do 'caçador de recompensas', tão enormemente explorado em outros filmes, contudo sem tanta convicção e realidade como expõe Leone. Embora sem muitas afinidades, os personagens de Clint Eastwood e Lee Van Cleef, por motivos diferentes, acabam esquecendo suas diferenças e se unindo para enfrentar a quadrilha de Gian Maria Volonté, com a intenção de dividir a recompensa por eles oferecida pela Lei. Outra obra merecedora de destaque entre os grandes clássicos do gênero spaghetti de se fazer Western.
7 - ERA UMA VEZ NO OESTE/C'era una volta il West (1968) – Direção: Sergio Leone
Outro exemplar, talvez o mais popular, onde se seguiu toda a Trilogia de Leone (“Por um punhado de Dólares”, “Por uns Dólares a Mais” e “Três Homens em Conflito”). Vale destacar que o roteiro foi escrito por Leone com colaboração de Bernardo Bertolucci, com leves reminiscências do clássico americano “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray (1954). Foi uma febre ao ser lançado nos nossos cinemas em 1971, mas infelizmente com cópias de 144 minutos devido à censura (a metragem original aos propósitos do cineasta foi de 229, sendo reduzidas umas para 137, e outras com 165 minutos, a versão apresentada no mercado de vídeo hoje). Uma trama com muito sangue e sem qualquer moral, uma verdadeira crítica à mitologia do Oeste em vez do antigo glamour dos faroestes americanos, retratando a passagem de pioneiros para os tempos da civilização com a chegada dos trilhos das ferrovias. Parece um paradoxo ao vermos Henry Fonda, outrora um representante da mitologia clássica do Western Americano, o típico mocinho das telas, na pele de um malfeitor sujo e cínico como Frank. Não foi a toa que Leone escolheu Fonda, pois era um assíduo admirador deste ator. Charles Bronson na pele de um pistoleiro, Harmônica (porque sempre toca esta gaita quando esta prestes a matar), que busca vingança contra Frank, que matou seu irmão, se destaca pelo caráter lacônico, de quase poucas falas, e de muito suspense de seu personagem, assumindo uma atitude quase parecida com a de Sterling Hayden em “Johnny Guitar”, quando protege a viúva Jill Mcbain, vivida por Claudia Cardinale. Mais do que uma superprodução, é um Super-Western, acabando por se consagrar como um dos exercícios mais ousados do cineasta Sérgio Leone.


"Era Uma Vez no Oeste", sequencia inicial

9 - CAÇADA AO PISTOLEIRO/Un minuto per pregare, un instante per morire (1968) – Direção: Franco Giraldi
Um Western italiano cheio de tensão, com argumento freudiano à dimensão de tragédia grega, mas não deixando de ser extremamente violento e desmistificador. Trata-se da história do pistoleiro Clay McCord (vivido por Alex Cord), temido e odiado por muitos, que tem sua cabeça a prêmio oferecido por um delegado corrupto de uma cidade (vivido pelo ótimo Arthur Kennedy). Contudo, o delegado age fora da lei e vem a intervir Lem Carter (o sempre brilhante Robert Ryan), governador do Novo México, que oferece uma anistia ao pistoleiro, contudo alguns aventureiros não querem saber e tentam emboscar McCord, que ainda enfrenta outro problema – ele tem momentos de ataque epilético, e carrega o trauma pelo pai também ter tido esse mesmo problema. Embora os atores principais sejam americanos, o filme ainda conta com as presenças italianas de Nicoletta Machiavelli, e do ator Mario Brega. Está entre meus colecionáveis.
10 - ADIOS SABATA/Indio Black, sai che ti dico: Sei un gran figlio di... (1970) – Direção: Gianfranco Parolini
Como não podia deixar de serem ao estilo italiano, trapaças, aventureiros sujos, e todo mundo querendo se dar bem. É assim que funciona esta obra de Parolini, tendo como anti-herói o aventureiro Sabata (na verdade, Indio Black no original), vivido pelo excelente Yul Brynner, aqui ainda um tanto limpinho e barbeado como foi em Sete Homens e Um Destino, em 1960. Sabata é um caçador de bandidos que se junta a um vigarista, Ballantine (vivido por Dean Reed) e ao engraçado e cínico revolucionário, o gordo Escudo (vivido por Ignazio Spalla) para combater as forças do Imperador do México Maximiliano, e se apoderar de um carregamento de ouro. Contudo, esta união de forças tem objetivos diversos. O destaque fica em algumas situações engraçadas, quando o ladrão Ballantine tenta enganar seus associados. Vale também a pena assistir “Sabata, O Homem que Veio Para Matar” (que não tem a ver com o filme estrelado por Brynner, apesar do mesmo nome do protagonista), estrelado por Lee Van Cleef, onde se apresentam as mesmas situações humorísticas quando se trata de bandido enganar o outro, afinal, quem disse que existe honra entre ladrões?

B: Quais você acha que são os western mais subestimados de todos os tempos?
PT: Acentuo uma obra fordiana intitulada “Audazes e Malditos”, de 1960, que trata da questão do racismo. Pela primeira vez, o Mestre John Ford desenvolveu uma mensagem antirracista em um tom bem eloquente que chega a ser comovedor, tendo como pano de fundo o ano de 1866, quando negros recém-libertados passam a integrar regimentos de cavalarias comandados por oficiais brancos. Um deles, um notável sargento vivido pelo brilhante Woody Strode, é acusado de um crime que ele não cometeu, sendo levado à corte marcial por preconceito racial. Mas ele é defendido por seu superior, vivido por Jeffrey Hunter. O relato do filme (sempre reconstituindo os fatos em flashbacks) é tenso, épico, e de uma solene dramática indescritível, que só um brilhante cineasta como Ford poderia conceber, mas eu pessoalmente considero um de seus melhores trabalhos junto às outras obras de requinte maior do diretor. Também “A Árvore dos Enforcados”, dirigido por outro grande artesão dos westerns, Delmer Daves em 1959, acredito um tanto subestimada por alguns críticos, entretanto não poderia ter um protagonista mais humano em todos os aspectos do que o médico Joe Frail, vivido por Gary Cooper em uma de suas últimas atuações. Amargo, malquisto, cínico, mas ao mesmo tempo, não isento inteiramente de altruísmo, procura esquecer um trauma do passado e tenta continuar a vida. Mas ele percebe que nem tudo esta perdido, pois se renderá ao amor de uma imigrante suíça que acaba salvando sua vida, vivida pela Maria Schell. Vale destacar a bela canção interpretada por Marty Robbins. Outro western, desta vez europeu, que acho muito subestimado é “Os bravos não se rendem”, dirigido por Robert Siodmak e Irving Lerner, que conta a trajetória do General Custer de maneira realista e desmistificadora (nada a ver com o herói pintado por Raoul Walsh no clássico “O Intrépido General Custer”, com Errol Flynn, em 1945). Robert Shaw esta perfeito como o famigerado militar em sua sede de glória, e a famosa batalha de Little Big Horn. Contudo é um dos trabalhos menos badalados (mesmo com uma bela trilha sonora), visto a índole verdadeira e descaracterizante do personagem, o que pode não agradar a todos.

B: Sam Peckinpah e Robert Altman foram meio que marginalizados por Hollywood. Mesmo com poucos filmes sobre o tema western eles impactaram a estética do gênero para sempre. Wild Bunch e Quando os Homens são Homens, são exemplos claros disso. Que grande contribuição foi essa? E que outros diretores após essa geração conseguiram essa façanha?
O genial Altman, um dos diretores que mudaram o western
PT: Conheço pouco o trabalho de Altman no gênero, com exceção do “Oeste Selvagem”, estrelado por Paul Newman, em 1976. Entretanto, posso adiantar que ambos os cineastas são oriundos da televisão e dirigiram trabalhos gratificantes no gênero para a telinha. Peckinpah chegou a dirigir episódios de “O Homem do Rifle” (com Chuck Connors) e “Paladino do Oeste” (com Richard Boone), e Altman episódios da série “Bonanza” e “Lawman. Acredito que a questão da marginalização destes cineastas é que ambos foram sinceros demais em suas obras, sem rodeios. Peckinpah recorreu à violência em “Meu ódio Será Sua Herança”, de 1969, e a partir daí, não foi só no gênero western que se viu esta apelação do diretor que é consagrado como o “Poeta da Violência”. Basta acessarmos seus outros ótimos trabalhos como "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia" (1974) e "Sob o Domínio do Medo" (1972), que poderemos ver também esta exaltação. Quanto a Altman, como vi “Oeste Selvagem”, senti a desmistificação de uma lenda, no caso Buffalo Bill, e grande parte dos produtores embora saibam que as lendas e mitos não correspondem à verdade, ainda assim preferem que as lendas sejam impressas. Hollywood durante anos promoveu isso em seus westerns, e mesmo com o desenrolar das mudanças graças aos faroestes italianos, a indústria de cinema não parecia apoiar esta descaracterização dos mitos tão amados pelo folclore americano. Contudo, a grande contribuição destes dois mestres foi tentarem fazer um novo estilo de western, sem exaltação de mitos ou heróis, sem áura romântica, propondo para as plateias mundiais que o Velho Oeste também pode ser interessante se analisarmos seus personagens e o meio social em que viveram. Acredito que Lawrence Kasdam (que realizou em 1985 o ótimo “Silverado”), que também realizou pouquíssimos trabalhos no gênero (o último, “Wyatt Earp”, de 1994, com Kevin Costner, que foi um fracasso), e atualmente Tarantino, vem conseguindo esta proeza de impactar a estética, e por que não dizer, imortalizar o gênero.

B: Sabemos que ainda existem produções western tanto nos EUA quanto na Europa. Mesmo com Tarantino e outros diretores fazendo western a sua maneira e em forma de homenagem, podemos afirmar que esse gênero morreu ou ainda vai ressuscitar em uma grande e genial produção?
PT: Acredito que, na verdade, o western nunca morreu. Naturalmente as produções de hoje são em menor escala, e não como era a mais de 50 ou 60 anos atrás, época rica em criatividade e em franca produção, onde tínhamos cineastas brilhantes como John Ford, Raoul Walsh, Howard Hawks, Anthony Mann, Delmer Daves e claro, incluindo Peckinpah, Leone e outros mais. Mas de uma forma ou de outra, o faroeste está vivo, só esta adormecido enquanto um cineasta fera como Tarantino ou como Clint Eastwood, a lenda viva, não rodarem novos trabalhos no gênero (será que Clint pensaria em rodar um novo faroeste? Seria genial!). E enquanto isso, também, novas produções são realizadas pela TV americana ou mesmo para o cinema sem sabermos. Mas uma coisa é certa: este gênero estritamente americano também batizado pelos italianos não morreu e nem morrerá tão cedo se depender de cada fã e espectador como nós para divulgar, apreciar e assistir. Podem acreditar!

B: Quais filmes western merecem destaque a partir dos anos 80 até hoje, nos faça uma lista de alguns que são pouco conhecidos?
Willie Nelson em
"Justiça para um bravo"
PT: Não estou muito a par das novidades em matéria de western nos últimos tempos, mesmo porque sigo um esquema eclético focalizando em geral o cinema antigo e todos os seus gêneros, mas naturalmente, o western tem um espaço com todo carinho dedicado. Entretanto, posso acentuar alguns trabalhos do faroeste já tanto esquecidos na metade dos anos de 1980, como “De Volta ao Oeste” (Once Upon a Texas Train”), de 1986, para a TV, dirigido por um dos grandes especialistas do gênero, Burt Kennedy, e trazendo Richard Widmark (um notório Man Of The West de primeira), Angie Dickinson, e o cantor Willie Nelson, além de contar com presenças conhecidas como Chuck Connors, Stuart Whitman, Jack Elam, Ken Curtis, Dub Taylor. No ano seguinte, o mesmo Willie Nelson foi o protagonista de “Justiça para um Bravo” (“Red Headed Stranger”), também realizado para a TV, onde contou com as presenças da bela Katharine Ross (de “Butch Cassidy”) e do excelente Royal Dano (cujo seu melhor papel de destaque foi no western “Irmão contra Irmão”, dirigido por Robert Parrish, em 1958). Vale destacar também por esse período “O Álamo, 13 dias de Glória”, de 1987, que retrata a batalha do Álamo com mais fidelidade do que a versão patriótica apresentada por John Wayne, em 1960, onde James Arness (da série de TV Gunsmoke), interpreta Jim Bowie, Brian Keith como Davy Crockett, Lorne Greene como Sam Huston (em seu último desempenho), e o inesquecível Raul Julia como o general Santana. Em 1995, Jeff Bridges interpretou o temível Wild Bil Hickcok na produção “Uma Lenda do Oeste”, dirigida por Walter Hill, onde conta a trajetória fidedigna de uma lenda, o mais distante possível de Gary Cooper na produção “Jornadas Heroicas”, de 1936, dirigida por DeMille. Dos mais recentes que acredito que são ainda menos conhecidos, vale destacar “Inferno no Faroeste”, de 2013, sob a direção de Roel Reiné, onde estrelam Mickey Rourke e Danny Trejo. Parece-me que este western não chegou as nossas salas de exibição.

B: Há um tempo eu soube que Clint Eastwood escreveu uma carta a John Wayne pedindo a ele para fazerem um filme juntos. Isso não aconteceu é claro. Caso acontecesse essa produção seria ímpar e juntaria definitivamente os dois maiores ícones do western. Um de cada estilo. E se no final do filme houvesse um duelo entre a dupla, quem venceria?
Wayne e Clint,
o tão esperado duelo que nunca aconteceu
PT: Vixe, nem ouso te responder com segurança a esta pergunta sem levar uma bala perdida (risos). Uma parada dura já que ambos são dois gigantes do mesmo gênero, mas com estilos diferentes e épocas diferentes. O mais engraçado é que, em 1989, dez anos após a morte de Wayne, uma pesquisa realizada por uma revista de cinema apontou Clint Eastwood como o novo sucessor de John Wayne. No entanto, Clint, apesar de admirar o bom e velho Duke, jamais quis se comparar a ele ou sequer substituir John Wayne. Clint tinha como modelo para o gênero o ator Gregory Peck, do qual considera sua melhor atuação em “O Matador (“The Gunfighter”). As performances vindas de Clint para compor seus durões nos westerns, segundo ele, se inspiravam em Gregory nesta obra dirigida por Henry King em 1951. É fato (e não fita) que Clint enviou uma carta para o veterano Duke, propondo que fizessem um filme juntos. Já pensou, Bino? Dois gigantes do gênero que talvez pudesse precisar de duas telas do formato VistaVision para compor tamanho encontro! (risos). Entretanto, Wayne, que vira “O Estranho Sem Nome”, a obra de Clint dirigida em 1973, não gostou nem um pouco do estilo revisionista e violento deste western. Para Wayne, já foi difícil filmar "Bravura Indômita", em 1969, tendo que se reinventar um pouco e quase recusou o papel que deu a ele seu único Oscar como ator. Mas o gênero estava se desenvolvendo bem rápido, e os faroestes estrelados por Wayne em épocas anteriores já ficavam obsoletos para os novos padrões. Entretanto, Duke não só recusou o convite como também aproveitou para criticar o trabalho de Clint Eastwood, que não lhe deu ouvidos. A parceria não aconteceu e o maior prejudicado foi o público, ou, quem sabe, o próprio Wayne. Portanto, por mais que eu adore John Wayne, acho que Clint sacaria primeiro, ou quem sabe, por alguma "providência", um empate técnico? (risos)

B: Para finalizar, uma pergunta que será símbolo de todos os "Duelos" com entrevistados: descreva você num grande filme?
PT:Meu Ódio Será Sua Herança”. Não que eu seja o “arquétipo da decadência” como os protagonistas da obra de Peckinpah, que queriam realizar o último trabalho de suas vidas antes de se “aposentarem”, mas eu sempre procuro investir nos negócios ou em qualquer situação da minha vida como se fosse dar também o meu “último golpe”, ou concretizar meu “último trabalho”. Isso não quer dizer, literalmente, que seja o último, mas quando desejamos alcançar certos objetivos na vida com sucesso fica a lição que devemos fazer o melhor do nosso melhor em todos os nossos empreendimentos como se fosse o último. Os homens de Pike Bishop (William Holden) não desistiram, e mesmo com o resultado que obtiveram no final, eles foram determinados, e nós também não devemos desistir, mesmo que nos sintamos decaídos em algum momento de nossas vidas. Assim, me descrevo em “The Wild Bunch”!


"Meu Ódio Será Sua Herança"