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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Iggy Pop - "Brick by Brick" (1990)


 

"Trabalhar com David Bowie é um prazer, mas uma tortura também. Ele é um músico incrível e um grande produtor, tem ideias excelentes, mas os álbuns acabam soando 50% Bowie e 50% Iggy. Eu queria um disco apenas com ideias minhas."
Iggy Pop

"Esta canção tem a melhor letra que já ouvi."
Butt-Head, da série Beavis & Butt-Head, sobre “Butt Town”

O camaleão é um réptil capaz de fazer com que sua pele mude de aspecto. Não à toa, este era o apelido de David Bowie pela incrível capacidade que este teve de se transformar com total desenvoltura em diversos personagens, como Ziggy Stardust, Major Tom e Alladin Sane. Porém, outra espécie também é mestre em camuflagem e disfarces: a iguana. Muito próximo de Bowie desde os anos 70, Iggy Pop merece, com certeza, esta alcunha. Não somente pela derivação nominal, afinal, quem surfou pela garage band, pelo punk, hard rock, industrial, pós-punk, new wave, heavy metal e por aí vai, só pode mesmo ser considerado um ser de várias aparências. O eterno líder da Stooges e dono de uma obra que perpassa tudo o que foi produzido no rock desde os anos 60 tem estofo para isso. Em 1990, após pouco mais de 20 anos de carreira, o junkie provocativo tornava-se um homem maduro (humm... talvez, nem tanto) e realiza o disco que melhor resume a sua extensa e variante trajetória: “Brick by Brick”, que completa 30 anos de lançamento em 2020.

No entanto, dúvidas quanto ao talento de Iggy Pop pairavam àquela época. Ele vinha de um novo sucesso em anos após alguns de ostracismo com “Blah Blah Blah”, de 1986, coescrito e produzido por Bowie. Sua gravadora de então, A&M, queria repetir a fórmula, mas o que o rebelde Iggy fez, ao lado do sex pistol Steve Jones, foi, sim, um álbum que pode ser classificado como “Cold Metal”, o representativo título da faixa inicial de “Instintic”, de 1988. O preço por seguir os próprios instintos custou caro a Iggy, que foi dispensado do selo. Foi então que o veterano roqueiro olhou para si e percebeu que algo estava errado. No espelho, James Osterberg viu, na verdade, um artista prestes a completar duas décadas de carreira sem ter, de fato, uma obra inteiramente sua com respeito de crítica e público. Iggy deu-se conta que todos os seus êxitos até então haviam sido divididos com outros: na Stooges, com o restante do grupo; nos discos de Berlim dos anos 70 e em “Blah...”, com Bowie; em “Kill City”, de 1977, com James Williamson, fora outros exemplos. Por incrível que parecesse, o cara inventou o punk, que liderou uma das bandas mais revolucionárias do rock, que colaborou para o engendro da música pop dos anos 80 era ainda olhado de soslaio. Foi com este ímpeto, então, que, desejoso de virar uma importante página, ele assina com a Virgin para realizar um trabalho essencialmente seu.

Produzido pelo experiente Don Was (Bob Dylan, Rolling Stones, George Clinton e outros papas da música pop), “Brick...” é rock ‘n’ roll em sua melhor acepção: jovem, pulsante e melodioso. A começar, tem na sua sonoridade forte e impactante, a exemplo de grandes discos do rock como “Album” da PIL e os clássicos da Led Zeppelin, um de seus trunfos. Igualmente, parte da banda que acompanha o cantor é formada por Slash, na guitarra, de Duffy McKagan, no baixo, nada mais, nada menos do que a “cozinha” da então mais celebrada banda da época, a Guns n’ Roses, além de outros ótimos músicos como o baterista Kenny Aronoff, o guitarrista Waddy Wachtel e o tecladista Jamie Muhoberac. Isso, aliado ao apuro da mesa de som, potencializava a intensidade do que se ouvia. Garantida a parte técnica, vinha, então, o principal: a qualidade das criações. Nunca Iggy Pop compusera tão bem, nunca estivera tão afiado em suas melodias e no canto, capaz de variar da mais rascante vociferação ao elegante barítono.

Com o parceiro de várias jornadas Bowie: Iggy busca a emancipação artística

Se em discos anteriores Iggy às vezes se ressentia de coesão na obra, como os bons mas inconstantes “Party” (1981) e “New Values” (1979), em “Brick...” ele mantém o alto nível do início ao fim. E olha que se trata de um disco extenso! Mas Mr. Osterberg estava realmente em grande fase e imbuído de pretensões maiores, o que prova na canção de abertura: a clássica “Home”. Rock puro: riff simples e inteligente; refrão que gruda no ouvido; pegada de hard rock de acompanhar o ritmo batendo a cabeça; vocal matador; guitarras enérgicas; bateria pesada. Não poderia começar melhor. Já na virada da primeira faixa para a segunda, a grandiosa balada “Main Street Eyes” – das melhores não só do disco como do cancioneiro de Iggy –, percebe-se outra sacada da produção: interligadas – tal os álbuns de Stevie Wonder ou o mitológico “Sgt. Peppers”, dos Beatles –, as músicas se colam umas às outras, dando ainda mais inteireza à obra. 

Assim é com I Won't Crap Out”, na sequência (noutra ótima performance dele e da banda), e aquele que é certamente o maior hit da carreira de Iggy Pop: “Candy”. Dividindo os vocais com Kate Pearson (B52’s), a música estourou à época com seu videoclipe (28ª posição na Billboard e quinta na parada de rock) e ajudou o disco a vender de 500 mil de cópias. Como classifica o jornalista Fábio Massari, trata-se de um “perfect pop”. Tudo no lugar: melodia envolvente, refrão perfeito, conjugação de voz masculina e feminina e construção harmônica irretocável. Um clássico do rock, reconhecível até por quem não sabe quem é Iggy Pop e que, ao chamar Kate para contrapor a voz, “deu a morta” para a R.E.M. um ano depois fazer o mesmo na divertida e de semelhante sucesso “Shiny Happy People”.

Unindo a experiência de um já dinossauro do rock com um poder de sintetizar suas melhores referências, Iggy revela joias, como as pesadas "Butt Town", com sua letra desbocada e crítica, e "Neon Forest", onde faz as vezes de Neil Young. Também, as melodiosas "Moonlight Lady" e a faixa-título, puxadas no violão e na sua bela voz grave, bem como a animada “Stary Night”. Don Was, que manja da coisa, intercala-as, dando à evolução do disco equilíbrio e garantindo que o ouvinte experimente todas as sensações: da intensidade à leveza, da agressividade à doçura. Por falar em intensidade, o que dizer, então, do heavy “Pussy Power”, em que, resgatando o peso do seu disco imediatamente anterior, faz uma provocativa ovação ao “poder da buceta”. Iggy Pop sendo Iggy Pop.

Mas não é apenas isso que Iggy tinha para rechaçar de vez a desconfiança dos críticos. O Iguana revela outras facetas, sempre pautado no melhor rock que poucos como ele são capazes de fazer. Novas aulas de como compor um bom rock ‘n’ roll: "The Undefeated" – daquelas que viram clássicos instantâneos, emocionante no coro final entoando: “Nós somos os invictos/ Sempre invictos/ Agora!” –; "Something Wild" e a parceria com Slash "My Baby Wants To Rock And Roll". Não precisa dizer que esta última saiu um exemplar à altura de dois músicos que escreveram hinos rockers como “No Fun” e “Sweet Child O’Mine”. 

O disco termina com outra balada, "Livin' On The Edge Of The Night", do premiado músico Jay Rifkin, que figura na trilha de “Chuva Negra”, filme de sucesso de Ridley Scott e estrelado por Michael Douglas e Andy Garcia, das poucas que não têm autoria do próprio Iggy entre as 14 faixas de um disco irreparável. Iggy Pop, finalmente, consegue ser ele mesmo sendo os vários Iggy Pop que há dentro de sua alma versátil e liberta. E se havia alguma dúvida de que tinha competência de produzir uma obra autoral sem a ajuda dos parceiros, “Brick...” é a prova cabal. Literalmente, não deixa “pedra sobre pedra” e nem muito menos “tijolo por tijolo”.

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Clipe de "Candy" - Iggy Pop e Kate Pierson


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FAIXAS:
1. "Home" – 4:00
2. "Main Street Eyes" – 3:41
3. "I Won't Crap Out" – 4:02
4. "Candy"(partic.: Kate Pierson) – 4:13
5. "Butt Town" – 3:34
6. "The Undefeated" – 5:05
7. "Moonlight Lady" – 3:30
8. "Something Wild" (John Hiatt) – 4:01
9. "Neon Forest" – 7:05
10. "Starry Night" – 4:05
11. "Pussy Power" – 2:47
12. "My Baby Wants To Rock And Roll" (Iggy Pop/Slash) – 4:46
13. "Brick By Brick" – 3:30
14. "Livin' On The Edge Of The Night" (Jay Rifkin) – 3:07
Todas as músicas de autoria de Iggy Pop, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 12 ANOS DO CLYBLOG - Pink Floyd - "The Wall" (1979)


"Vera! Vera!
O que aconteceu com você?
Alguém por aqui
Sente o mesmo que eu?"
trecho da música "Vera", 
que faz referência a Vera Lynn,
recentemente falecida.



"The Wall" definitivamente não é melhor trabalho do Pink Floyd, não é melhor que "Wish You Were Here" ou "The Dark Side of the Moon", mas é tão icônico quanto. É um álbum fundamental pela qualidade musical aliada a temática existencialista e, também, pela enorme capacidade  de adaptação as novas mídias, adaptação para cinema, shows e novas versões, que cativam o público fiel da banda e atraem novos admiradores para Pink Floyd.

Pink Floyd foi uma banda inglesa formada em Londres no ano de 1965, liderada por Syd Barret (1946-2006),  cujo período marcado pelo psicodelismo durou até o ano de 1968, quando foi substituído por David Gilmour (1946) nos vocais e guitarra. Roger Waters (1943) nos vocais e guitarra baixo, Richard Wright (1943-2008) nos vocais e teclados e Nick Mason (1944) na bateria completam a formação clássica que imprimiu uma linha de som progressiva, período que lançou o álbum The Wall.

"The Wall", álbum duplo produzido e lançado em 1979, é uma “ópera rock” que rivaliza com outros sucessos do gênero, como "Tommy" (1969) do The Who"...Ziggy Stardust" (1972) de David Bowie. São exatamente 26 músicas compostas na sua maioria por Roger Waters, que apresentou a proposta temática a banda, assumiu as letras, a maioria das músicas, a coprodução, e o design do álbum. A personalidade de Waters se agigantou ao longo da produção de "The Wall", tomando o controle da banda para si, quando os componentes do Pink Floyd já demonstravam a incapacidade de administrar seu egos e anseios artísticos.

O tema elaborado por Waters de The Wall, em tom autobiográfico,  trata da perda do pai (Eric Fletcher Walter morto na Batalha de Anzio na Itália durante a 2ª Guerra Mundial), a imagem da mãe protetora, a repressão do sistema educacional inglês, a sexualidade reprimida na adolescência e a traição, que vão compondo partes de um muro protetor ao redor do solitário personagem do trama, que em meio ao medo e ao ódio, renasce na pele de um líder fascista.

Musicalmente, "The Wall" segue a linha criativa dos trabalhos anteriores do Pink Floyd, com uma base instrumental irrepreensível, marcada pela pegada firme do baixo de Waters em sintonia com o peso da bateria de Mason, os voos solos da guitarra de Gilmour, mas pouca coisa de Wright (em processo de saída da banda). Mixagens e efeitos sonoros estabelecem um diálogo que alterna velocidade e ritmo, com Waters em uma vocalização esquizofrênica contrapondo o tom vocal mais contido de Gilmour.

No meio de tantas faixas, destacam-se "Another Brick in the Wall", música em três partes, a conhecida música do helicóptero foi faixa de trabalho nas rádios por ocasião do lançamento do álbum, sendo considerada um hino contra a repressão escolar.  "Mother", trata da superproteção e castração materna, e "Hey You" um pedido desesperado de ajuda. Mas é "Comfortably Numb", considerada por muitos como a melhor composição do grupo, criação original de Gilmour para seu trabalho solo, mas que apresentado a Walters, este deu letra à música, e incorporou ao álbum, com o destaque do virtuoso solo da guitarra de Gilmour.

"The Wall", o filme, foi adaptado para o cinema em 1982, conduzido pelo ótimo diretor Alan Parker (cuja filmografia também é fundamental), cineasta recentemente falecido, com Roger Walters de roteirista. O filme narra a vida de Pink, astro de rock interpretado por Bob Geldof, cuja estória é ancorada pelas músicas do álbum. O filme obteve boas críticas em geral, considerado por alguns como uma das melhores obras do gênero musical e do rock. "The Wall" custou US$12 milhões e arrecadou $22 milhões só nos Estados Unidos. Em Porto Alegre as exibições ocorreram no antigo e saudoso cinema Baltimore, onde a sala de exibição tinha uma atmosfera própria, um névoa londrina tomava conta do local, provocada pelo consumo cigarros proibidos e embalada pela poderosa trilha sonora. Terminado a exibição os expectadores se misturavam com a horda que habitava o bairro Bonfim, reduto boêmio da cidade da época.

Filme "The Wall", de Alan Parker

"The Wall", o show, originalmente apresentado entre 1981 e 1982 na Europa e EUA, passou pelo Brasil em turnê de Roger Waters, por três cidades brasileiras (Porto Alegre, São Paulo e Rio) em março de 2012, sendo um dos maiores espetáculos musicais apresentados no país. O palco era constituído de um muro de 137 metros de largura, onde eram projetadas imagens originais de Gerald Scarfe do álbum, e incluía o famoso avião cruzando o estádio do Beira-Rio (estádio do Sport Club Internacional, que estava em obras na época) e explodindo junto ao muro. Segundo a revista Billboard, a turnê arrecadou mais de 450 milhões de dólares, o que faz dela a terceira de maior sucesso na história.

Passados 40 anos do lançamento de "The Wall", e 75 anos do fim da 2ª guerra mundial, com o fim da vida daqueles que testemunharam e lutaram contra a escalada do fascismo na Europa, assistimos o renascimento da cultura do ódio e do medo em vários cantos do mundo. Sim, "The Wall" continua atual, o que o eleva a categoria de Álbum Fundamental.


"The child is grown
The dream is gone"
versos finais da música "Confortably Numb"



por  Á L V A R O   S T E I W


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FAIXAS:

  • Lado 1 (primeiro vinil)

1. "In the Flesh?"  
2. "The Thin Ice"  
3. "Another Brick in the Wall (Part I)"  
4. "The Happiest Days of Our Lives"  
5. "Another Brick in the Wall (Part II)"  
6. "Mother"  

  • Lado 2 (primeiro vinil)

1. "Goodbye Blue Sky"  
2. "Empty Spaces"  
3. "Young Lust"  
4. "One of My Turns"  
5. "Don't Leave Me Now"  
6. "Another Brick in the Wall (Part III)"  
7. "Goodbye Cruel World"  

  • Lado 3 (segundo vinil)

1. "Hey You" 
2. "Is There Anybody Out There?" 
3. "Nobody Home" 
4. "Vera" 
5. "Bring the Boys Back Home" 
6. "Comfortably Numb" 

  • Lado 4 (segundo vinil)

1. "The Show Must Go On" 
2. "In the Flesh" 
3. "Run Like Hell" 
4. "Waiting for the Worms" 
5. "Stop" 
6. "The Trial" 
7. "Outside the Wall"  

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OUÇA O DISCO:
Pink Floyd - The Wall



Álvaro Steiw é arquiteto e mestre em Sensoriamento Remoto, trabalha na área ambiental.
Gosta de filmes, fotos e músicas antigas.
Seu álbum preferido do Pink Floyd é "Ummagumma".

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

T-Rex - "The Slider" (1972)




A capa e seu verso,
concebidas por Ringo Starr
"Aí veio “The Slider”
e nele tinha "Metal Guru".
Foi uma música
que mudou a minha vida.
Eu nunca tinha ouvido
nada tão bonito e tão estranho,
e ainda assim tão cativante.“
Johnny Marr,
Ex-guitarrista do The Smiths




Marco do glam-rock, “The Slider”, álbum da banda britânica T-Rex confirmava uma recente idolatria em torno de seu líder, o carismático e sagaz Marc Bolan. O Tyrannossaur Rex,  nome original da banda que ficou mesmo conhecida por sua simplificação abreviada, contava, entre tantos fãs com a admiração de ninguém menos que David Bowie, fã declarado, que, de certa forma, se inspiraria em toda a proposta estético-sonora de Bolan e sua turma para construir seu ícone Ziggy Stardust.  Enquanto a produção ficava a cargo de Tony Visconti, parceiro de Bowie no álbum "Space Oddity", a arte do álbum, marcante, com Bolan usando uma cartola, foi concebida por ninguém menos que o Beatle Ringo Starr, também admirador confesso do trabalho do T-Rex. Estava mal de fãs o T-Rex? Bowie e Ringo?
A gostosa “Metal Guru” e a envolvente “Telegram Sam”, que posteriormente viria a ganhar uma versão bem interessante pela banda Bauhaus, foram os grandes sucessos do disco mas o ótimo “The Slider” não se limitava a estas duas. A faixa título é contidamente pesada, “Rock On” e “ Buick Mackane” são rocks venenosos e contagiantes, enquanto a adorável “Mystic Lady” e a balada acústica “Ballroom of Mars” são momentos mais suaves nos quais Bolan desfilava todo o potencial de seu vocal ácido e elegante.
“The Slider” é um dos discos mais importantes e um dos mais influentes da história do rock, tendo inspirado um grande número de artistas a partir de seu lançamento, tanto estética quanto musicalmente.  Que o digam Morrissey, Green Day, Bauhaus, Siouxsie, My Chemical Romance, R.E.M., só para ficar em alguns.
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FAIXAS:
1. "Metal Guru" (2:25)
2. "Mystic Lady" (3:09)
3. "Rock On" (3:26)
4. "The Slider" (3:22)
5. "Baby Boomerang" (2:17)
6. "Spaceball Ricochet" (3:37)
7. "Buick Mackane" (3:31)
8. "Telegram Sam" (3:42)
9. "Rabbit Fighter" (3:55)
10. "Baby Strange" (3:03)
11. "Ballrooms of Mars" (4:09)
12. "Chariot Choogle" (2:45)
13. "Main Man" (4:14)

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Ouça:



por Cly Reis

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Morrissey - "Your Arsenal" (1992)





"['I Know It's Gonna Happen Someday' é]
Morrissey imitando Bowie."
David Bowie



Não, aquele topete não é por acaso. Fã de nomes como Elvis e James Dean, e apreciador da cultura dos anos 50 e 60, Morrissey sempre deixou transparecer essa predileção, desde a época dos Smiths com capas de discos como a de "The World Won't Listen" na qual um grupo de jovens ao estilo rockabilly aparece meio de costas na capa, nas de singles como o de "Bigmouth Strikes Again" na qual James Dean aparece montado em uma lambreta, ou do single "Shoplifters of the World Unite"  com Elvis Presley, e em músicas  como "Rusholme Ruffians", pra citar um bom exemplo, uma vez que esta , diretamente inspirada no Rei do Rock, ganhou inclusive na versão ao vivo do disco "Rank", um medley de introdução com "(Marie's the Name) His Latest Fame", tal a semelhança entre as duas. 
Embora seus discos solo tivessem trabalhos de produção bem variados, de certa forma o espírito rock'roll sessentista sempre esteve intrínsecamente presente nos trabalhos, fosse em seus astros decadentes, nas brigas de gangues ou nos garotos rebeldes. Era o universo, os personagens, "o mundo de Morrissey".
E essa veia rock'roll aparece com força mesmo é no terceiro disco do cantor. Em "Your Arsenal", Moz convocava uma gangue de jovens topetudos e carregando no rockabilly revitalizava seu som e reoxigenava sua trajetória naquele momento.
Pra não deixar dúvida das intenções, já sai chamando de cara com a espetacular  "You're Gonna Need Someone on Your Side" um rockabilly invocado, distorcido e acelerado de riff minimalista que destila todo o habitual rancor de Morrissey, "Day or night/ There's no diference/ You're gonna need  someone on your side" ("Dia ou noite, não faz diferença/ Você vai precisar de alguém a seu lado").
"Glamorous Glue" é  um típico glam-rock em uma das tantas referências, diretas ou indiretas a David Bowie no disco. Não  por acaso, uma vez que "Your Arsenal" fora produzido por Mick Ronson, guitarrista do Camaleão na época  do clássico ht"Ziggy Stardust". "We Let You Know" surge como uma balada acústica e, entre ruídos  de multidão, vai crescendo até explodir num final grandioso, numa das grandes interpretações  de Morrissey no disco.
A polêmica "The National Front of Disco", salvo sua, talvez, infeliz referência à Frente Nacional, que custou a Morrissey acusações  de racismo e xenofobia, é  uma baita duma música! Um pop rock tão delicioso e empolgante que faz perdoar qualquer equívoco involuntário deste grande letrista.
Não  menos deliciosa é  "Certain People I Know", outro rock com cara de anos 60, desta vez com uma pegada um pouco mais country.
"We Hate When Our Friends Become Successfull", o grande hit do disco e um dos maiores da carreira do cantor, talvez tenha um dos melhores refrões que eu já  tenha escutado na vida, apenas com a risada de Morrissey soando mais sarcástica  do que nunca, no que muitos dizem ser um deboche ao, até então, fracasso da carreira solo do ex-parceiro de Smiths, Johnny Marr.
Moz banca um Roberto Carlos e homenageia os gordinhos na adorável "You're The One For Me, Fatty", que, brincadeiras à  parte só  faz repetir a atenção que o artista sempre  dedicou aos menos lembrados.
As duas baladas que se seguem, "Seasick, Yet Still  Docked" e "I Know It's Gonna Happen Someday" são bastante parecidas embora esta última seja bastante superior com uma carga emotiva impressionante numa interpretação extremamente intensa de Morrissey, assumidamente  muito inspirada nas baladas de David Bowie, terminando inclusive aos acordes de "Rock'n Roll Suicide".
Mais uma peça  carregada de rock, "Tomorrow", se encarrega de botar ponto final em tudo com destaque para o baixo de Boz Boorer, de certa forma, grande impulsionador da tendência roqueira daquele momento da carreira de Morrissey.
Morrissey com "Your Arsenal" honrava o topete e fazia a alegria dos fãs mais afeitos ao seu lado rock. Com uma discografia  idolatrada, embora nem sempre muito inspirada, "Your Arsenal" era e continua sendo um dos trabalhos  mais coesos de sua carreia e para muitos, o melhor disco de sua história sem o parceiro Johnny Marr. Morrissey abria seu arsenal e mostrava armas que não vinham sendo usadas com a devida ênfase. O resultado foi um balaço.

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FAIXAS:
  1. "You're Gonna Need Someone on Your Side"
  2. "Glamorous Glue"
  3. "We'll Let You Know"
  4. "The National Front Disco"
  5. "Certain People I Know"
  6. "We Hate It When Our Friends Become Successful"
  7. "You're the One for Me, Fatty"
  8. "Seasick, Yet Still Docked"
  9. "I Know It's Gonna Happen Someday"
  10. "Tomorrow"

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Ouça:
Morrissey - Your Arsenal



Cly Reis

quarta-feira, 22 de junho de 2016

cotidianas #443 - A Loja de Discos




Encravada num canto da Galeria Nossa Senhora da Pátria, entre lojas de artigos hospitalares, cosméticos e sex shops, a Magic Bus uma pequena loja, predominantemente de vinis, era um redutos dos amantes do velho bolachão. Por conta de seu famoso acervo extremamente numeroso mesmo em um espaço físico tão reduzido como o que dispunha e por sua reputação de possuir exemplares raríssimos a Magic Bus conseguiu vingar mesma naquele buraco escondido no meio do centro da cidade. Muito da boa referência do lugar podia também ser creditada à simpatia de seu proprietário, o sr. Mário, um apaixonado por rock e por discos, colecionador de longa data, que frustrado como músico na juventude com sua banda a Pêra Psicodélica, resolvera, de modo a ficar pelo menos perto de seus ídolos e sempre cercado de música, abrir uma loja de discos. A Magic Bus viu muita coisa acontecer, presenciou muitas mudanças, viveu muitas crises, no início ganhou a concorrência de outras lojas que surgiram a seu redor na galeria, decaiu com o advento do CD, viu as outras lojas fecharem as portas mas sobreviveu a muito custo e amor pela música, ao longo do tempo viu mudar a característica de sua vizinhança dentro do centro comercial tendo que dividir os corredores com assistências técnicas de eletrônicos, consultórios dentários e salas de atividades um tanto suspeitas, mas heroicamente, num mundo onde todo mundo passava a ter a possibilidade de obter a música que quisesse em computadores, sobreviveu , transformando-se numa espécie de símbolo de resistência do vinil.
Entre todas essas transformações, Mário casou com Isabel que, embora não tão apaixonada como ele por aquele universo, também apreciava música, especialmente rock e, mais organizada e metódica como era, ajudava-o a gerenciar a Magic Bus Discos.
A maior parte do público da loja era de "dinossauros", roqueiros das antigas muitos deles amigos de longa data do dono que, se não fosse pela intervenção da esposa, gozariam sempre dos generosos descontos ou infinitos prazos para pagamento concedidos pelo marido que era conhecido não apenas pela simpatia, bom papo, conhecimento musical mas também por sua bondade e coração mole, ao que Dona Isabel muitas vezes tinha que compensar sendo durona, passando até pela "chata da loja". Mas fazer o que? Alguém tinha que tomar conta daquele negócio senão aquela loja não iria pra frente.
A redescoberta do vinil levava agora à loja agora novamente gente mais jovem, curiosos, DJ's, e uma garotada que Mário, particularmente desprezava. "Uma cambada de idiotas que acham que Slipknot é melhor que Black Sabbath", dizia. Fez uma cara de enfado quando o garoto, de uns 20 anos no máximo entrou na sua loja. Pelo menos esse usava uma camiseta dos Stones. "Vai ver nem sabe o que é aquilo. Só usa porque gosta do desenho da língua", pensou. Mas o moleque dirigiu-se à seção de "anos 60", já era algum bom sinal. Passava rapidamente cada disco não sem deixar de dar a devida atenção a cada um dos deles até que deteve-se em um. Levantou-o da fileira, olhou a capa com atenção e levou ao balcão de onde Seu Mário o observava apoiado nos cotovelos.
- Quanto é este, por favor?
- Esse é cem pratas.
- Cem?!?! - espantou-se o garoto.
- É coisa rara. Difícil pra caramba de encontrar. Não dá pra fazer por menos que isso. - explicou o dono.
O garoto frustrado mas aceitando o argumento levou o LP tristemente, ainda olhando para a capa, de volta à fileira, deixando-o no mesmo lugar de onde o tirara.
Mário já começava a simpatizar com ele. "Não é qualquer guri que gosta dessas coisas. O moleque saca alguma coisa de som".
Meio que conformado com o fato que não poderia levar aquele disco e, com a grana que tinha, quase nada dali, o rapaz continuou dedilhando as fileiras só pelo prazer e pela admiração dos álbuns. Cada coisa mais maravilhosa! O "Revolver" original da época, a edição japonesa do "Live in Japan", um picture-disc do single "Ziggy Stardust", o vinil branco do "Freshfruit"... Continuava passando as fileiras até que, de repente, estancou. Pareceu paralisado por um momento até que puxou lentamente um disco do meio dos outros. Olhava para aquilo estarrecido. Não podia ser.
Mário percebeu o que o garoto havia descoberto no meio das caixas e não conseguiu disfarçar um leve sorriso no canto da boca. O garoto então virou-se lentamente na direção do balcão e só então tirando os olhos do disco em suas mãos fitou o dono da loja com a pergunta tão estampada em seus olhos que Seu Mário nem precisou dela pra responder:
- É ele mesmo.
- Mas eu pensei que esse disco nem existisse de verdade. Que fosse lenda...
- Pois é. Existe.
- Mas como...? - não conseguindo completar a pergunta ainda encarando a capa ainda não acreditando no que tinha em mãos.
- Eu tava em Londres em 1966.- começou a explicar- As coisas tavam quentes por aqui aí resolvi dar um pulo lá. Encontrei o cara por acaso num pub, reconheci ele, a gente conversou, eu falei pra ele que era fã do trabalho dele, da banda e tal. Ele por acaso tava com uma cópia desse disco exatamente porque tinha acabado de sair da gravadora e tinham feito uma prensagem de teste. Aí ele me deu esse porque não era a definitiva e coisa e tal. No fim das contas a gravadora engavetou o projeto e o disco não saiu. Só foram prensados uns 3 ou 4 e um deles é esse aí. - parou o relato com um sorriso de satisfação e concluiu - Existe.
O garoto que ouvira estupefato agora voltava a encarar o disco como se fosse um objeto alienígena ou algo do tipo. Assim que saiu do transe em que se encontrava, resignado declarou:
- Bom, se eu não consegui nem comprar aquele outro, imagina esse...
E foi se dirigindo conformado para a prateleira de onde tirara a peça rara. A voz do Seu Mário, no entanto, interrompeu sua desanimada marcha:
- Pode levar, garoto.
- O que?
- Pode levar. Leva pra ti.
- Mas... - tentou argumentar alguma coisa, visivelmente emocionado.
- E sai daqui antes que eu me mude de ideia.
Sem saber exatamente o que fazer, o garoto agradeceu com os olhos marejados e então decidido saiu apressadamente da loja com o disco colado ao peito.
Dona Isabel só então abandonou a mesa baixa no fundo da sala e dirigiu-se a passos lentos em direção ao marido.
- Tu não tem jeito mesmo, né, Mário? - repreendeu.
- Deixa o garoto, deixa o garoto.- rebateu sorrindo.
- "Deixa o garoto!"- fez em voz jocosa imitando o marido - O problema não é o "garoto", é você.
E voltando à mesa, no fundo da sala, Dona Isabel completou:
- É por isso que essa loja não vai pra frente, Mário. É por isso.
- Deixa o garoto. Ele gosta de rock. Deixa o garoto.


Cly Reis





sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

“BOULEZBOWIE”: Esse (esquizo)frênico mundo que une (ou separa) a vanguarda do pop

Tá sempre morrendo gente pública por aí, sei. Mas nem sempre tenho o que lamentar. Morre gente conhecida toda semana, o que não quer dizer, necessariamente, que embora conhecidas de um relativo número de pessoas (às vezes, milhares delas), sejam de fato importantes. Essa dialética é típica desses tempos descriterizados e esquizofrênicos que vivemos. Lágrimas demais ou de menos sem se saber o porquê. Mas não deixa de ser, no mínimo, questionável, ainda mais quando, em menos de uma semana, morrem duas pessoas de extrema importância e ocupantes cada um de uma dessas esferas: o quase ignoto e o altamente popular. O quase ignoto por conta do mesmo descritério e esquizofrenia que empurra as massas a rechaçarem qualquer profundidade; o outro, altamente popular e cuja comoção pela morte foi gigantesca, é às vezes reduzido a um percentual mínimo daquilo que ele mesmo representa.
De minha parte como jornalista, crítico e diletante, lamento de verdade ambas as perdas. Falo de Pierre Boulez e David Bowie.


O rocker de batuta
Boulez, o compositor, maestro, professor e ensaísta francês, desconhecido totalmente de um relativo número de pessoas, era o último representante dos compositores da vanguarda erudita da primeira metade do século XX. Junto com os contemporâneos John Cage, Kerlheinz StockhausenLuciano Berio, Edgard Varèse, Benjamim Britten e Luigi Nono, ele, seguindo a sina aberta pela tríade de Viena nos anos 10 (Schöenberg, Berg e Webern), pôs de ponta-cabeça toda a tradição musical, subvertendo todos os conceitos: tom, harmonia, métrica, instrumentalização, timbrística. Raivoso e aferrado, Boulez foi um roqueiro punk com 40 anos de antecedência ao movimento. De modos elegantes e clássicos, por dentro era um punk total, combativo até no seu meio. A mesma agressividade expressiva, a violência como método e estilo. À imbecilidade ele respondia com doses desmedidas de cerebralismo. Era sua adaga perfurante. “Acredito que a música deve ser uma histeria coletiva de palavras violentas sobre o tempo presente”, disse em 1948.
Anos atrás, quando de seu aniversário de 80 anos (morreu dia 5 de janeiro, aos 90), li um artigo que, pertinente e conscientemente, colocava “Pli selon Pli”, uma de suas mais concisas e importantes obras, ao lado de outras duas significativas revoluções na música do século XX: o nascimento da bossa-nova com “Chega de Saudade”, com João Gilberto (1958), e a não menos vanguardista “Gesang der Junglinge” (1956), obra referencial do alemão Stockhausen.
Dessa vez, Boulez foi notícia novamente, mas muita gente que passou por esta não deu bola, o que é normal. Um compositor e maestro ligado a antipopulares termos como dodecafonia, atonalismo, eletroacústica, serialismo ou música aleatória só pode mesmo não ser popular. Ser desconhecido de um grande número de pessoas era, certamente, um elogio para Boulez. O desconhecido, afinal, nunca o assustou. Pelo contrário: era-lhe combustível. De língua afiada e criatividade idem, o jovem que estudara com Messiaen, logo o mandou às favas e o confrontou ideologicamente. Fez o mesmo com outro professor, Leibowitz, sem resquício de culpa. Jamais lhe existiam mestres. Não são poucos seus manifestos ferinos e altamente intelectualizados escritos ao longo da vida onde expunha suas ideias, o que o colocaram como um importante ensaísta da arte do seu tempo.
Boulez é responsável, na longa carreira que teve, por promover pelo menos três revoluções na música mundial.  Afora as marcantes obras da juventude, as cantatas "Le visage nuptial" (revista por ele quase quatro décadas depois), "Le soleil des eaux", onde explorava os ensinamentos do dodecafonismo aprendidos com Messiaen, e da primeira obra totalmente serializada, “Polyphonie X”, para 18 instrumentos, é entre 1953 e 1957 que lança a que é considerada sua primeira obra-prima: “Le marteau sans maître” para conjunto e voz, de relativo sucesso e uma síntese surpreendente das várias correntes na música moderna, englobando os mundos sonoros do jazz be-bop, o gamelão balinês, músicas tradicionais africanas e melodias tradicionais japonesas. Até o por ele satanizado Igor Stravinsky deixou de fora as críticas que recebia e aplaudiu de pé.
Outra radical criação: a já mencionada “Pli selon Pli”, cuja “original” data do final dos anos 50. Trata-se de um concerto inspirado em poemas do poeta francês Mallarmé onde passa a explorar com veemência a ideia de “obra em movimento”. Revisto em sua estrutura e métodos nas décadas seguintes, foi ganhando novas versões à medida que o irrequieto compositor reavaliava sua linguagem, fazendo com que, por conceito, sua concepção final estivesse sempre por vir. Tal como o já mencionado João Gilberto, que reelabora incessantemente os clássicos sambas da música brasileira em seu filarmônico violão, cunhando ao longo do tempo sempre versões únicas da mesma melodia, “Pli selon Pli” “nunca” acaba. Entendimento que só poderia brotar de alguém que representou tão firmemente a geração pós-Guerra, cujas marcas ainda são sentidas mais de 100 anos de eclodida a primeira delas.
Na maturidade, quando poucos compositores eruditos de sua geração não mais se arriscavam depois de tanto inovarem nas décadas anteriores, Boulez manteve-se na ponta da vanguarda, propondo novas experimentações. Se a música eletrônica o havia decepcionado nos anos 50 por sentir-se insatisfeito com o resultado das fitas magnéticas e seu processo “inorgânico” de realização, nos 70 volta à carga para dar-lhe nova identidade. Os meticulosos resultados dessa “velha descoberta” seriam sentidos em 1980, quando compõe “Répons” (para dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica). Ali, dá luz a uma obra em que a ressonância e a espacialização dos sons criados pelo conjunto se processam todos em tempo real, inclusive os elementos eletrônicos, normalmente criada penosamente em situações controladas. Nova síntese, nova profusão de ideias.
O fato é que, como um punk, amoral e dono da sua razão, Boulez jogou-se no labirinto do desconhecido e dali tirou o magma que brotaria dos vulcões de sua criatividade pronto para queimar todas as concepções preestabelecidas. Da tensão secular, criou uma linguagem densa e lírica. Sua partida deixa uma lacuna insubstituível. Um pilar que cede. O planeta Terra não tem mais nenhum representante da original vanguarda do século XX, a geração pós-Wagner, que passa por Strauss, Mahler e Debussy. A geração que aprendeu com – ou aprendeu a contrariar – Stravinsky, Eric Satie, Bela Bártok e Maurice Ravel. O longevo Boulez ainda resistia, e agora leva consigo uma herança que, a ver por esses tempos de descritério e esquizofrenia (e desmemoriados, consequentemente), um dia possa se apagar da memória do homem. Quiçá, cheguemos ao triste dia em que serão desmentidas oficialmente as barbaridades do Holocausto que Boulez presenciou e da sua forma combateu. Quem sabe, foi bom mesmo ele não viver tanto mais para ter de presenciar isso.

vídeo "Pli Selon Pli", Pierre Boulez



A batuta do rocker
Assim como para Pierre Boulez, o desconhecido também sempre foi combustível a David Bowie. Se o maestro buscava esse estado incessantemente, de modo a não repetir-se e recriar sua obra ao longo dos tempos, Bowie, no meio do mainstream, não só fazia isso como transformava essa busca em produto “vendável”. Ninguém como ele se valeu do universo de referências estilísticas da sociedade moderna e os reelaborou como Bowie, forjando um trabalho próximo do público mas sem deixar de infundir-lhe “dificultações”. Boulez, inventor de muitas dessas complexidades formais quase sempre desconhecidas do grande público, até por isso era quase um completo desconhecido do próprio. Bowie, na outra ponta, era popular mas impunha-se uma tarefa provocativa e rara: a de propor essas “dificultações desconhecidas” e torná-las, se não conhecidas, pop e assimiláveis.
Poderia falar longamente sobre vários dos períodos que Bowie orquestrou. De Ziggy Stardust ao vilão mutante Nathan Adler de “Outside”, passando pelo “Pin Up” à fase “limpa” de artifícios de Berlim. Mas em meio à enxurrada de coisas a seu respeito escritas e ditas nos últimos dias creio que o melhor recorte para esse momento é essa contribuição da desacomodação que o artista britânico sempre trouxera. “Sou uma prateleira de frascos vazios”, disse o poeta Fernando Pessoa em seu “Livro do Desassossego”. Bowie foi esse frasco vazio, onde fazia caberem todas as possíveis referências e mitos.
Escrevi sobre Bowie em meu livro, "Anarquia na Passarela", algo que se baseia bastante na questão da moda e comportamento dos punks, mas que vale tranquilamente para tal argumentação. Reproduzo dois:
“Vindo da cultura mod londrina dos anos 60, logo foi formando um estilo próprio de dândi ultrasofisticado e exagerado que desembocaria no seu ‘cameleônico’ individualismo cênico. Bowie era uma estrela do rock que nunca é ele próprio como pessoa: ele ‘interpreta’ papéis num enorme ‘palco’ chamado show-business. Por causa deste distanciamento bretchniano que tem da cultura de massa logrou influências vitais à cena [punk].”
“Tudo em Bowie era estilo, o que se percebia na sua indumentária ultradandi, barroca e ‘camp’. Seu passado mod, os anos 50, o cinema expressionista, a Berlim ‘decadente’ e suburbana, os anos pré-nazismo, o dandismo de Brummell, a androginia, a estética dos cabarés. Tudo lhe era alimento para a formação de um estilo pessimistamente decadente, cerebral e imaginário. Criava uma mitologia na qual nada era em vão; em cada ‘máscara’ sua vinha um efeito estético e fantasioso.“
Por tudo isso, Bowie mostrou facilmente que fazer música pop simplesmente é simplório e vago. Há de se adicionar personalidade e conceito para que se produza algo significativo. Bowie entendeu isso cedo, catalisando música, estilo, comportamento e equilibrando “alta” e “baixa” cultura – ou melhor, quebrando as barreiras entre uma e outra. Entendeu que a vanguarda das artes não existe apenas para impor a “alta cultura” de modo estanque e autobajulador. É, sim, célula orgânica, viva, que, compreendida em seus símbolos e elementos, podem e devem ser assimiladas, reelaboradas e deglutidas em outros e diferentes níveis de cultura e conhecimento.
A carreira de Bowie, muito mais profunda do que apenas os (ótimos) sucessos, é sabiamente contaminada pela vanguarda. "V-2 Schneider" contém claros traços de Boulez, Stockhausen e Varèse; o solo atonal de piano de "Aladdin Sane" contém Cage e Ligeti; a trilogia berlinense (inclua-se "The Idiot", de Iggy Pop, da mesma leva), contém em sua sonoridade pós-industrial os experimentos eletroacústicos fruto de ceticismo racional do pós-Guerra; o recente “Blackstar” contém a sonoridade pós-jazz assimilada tanto por maestros quanto músicos sem formação teórica como DJ’s, roqueiros e rappers"Low" e “Heroes”, com Brian Eno, são tão estruturalmente minimalistas que o próprio “pai” do estilo, Philip Glass, homenageou a Bowie e Eno com o duo “Symphony” sobre ambos os álbuns. O jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, para quem Bowie foi um roqueiro refinado, observa que, “em meados dos anos 70, Bowie abandonou a forma ternária da estrutura pop em favor de formas semiminimalistas, caracterizadas por ataques secos e pulsações rápidas”.
É por isso que se torna tão penosa e simbólica a perda de Bowie: quem mais fará isso? É alarmante, se não desolador, que este papel nunca mais seja cumprido. Quem assumirá (compreenderá ou dará a devida importância) ao papel de unir e mimetizar essa ponte vanguarda-pop? Numa época em que streamings e mp3 circulam descontextualizados de suas obras de origem (quando esta, de fato, existe, se é que já não fora criada sem contexto algum), é salutar que um artista de quase 70 anos e 50 de carreira assombre o universo do entretenimento com o lançamento de um disco, uma obra que se constitui em si própria. Uma obra.
Walter Benjamin provavelmente ficaria instigado com esse episódio emblemático da morte de Bowie, e mais possivelmente ainda o ligaria com a já historicamente simultânea perda do pilar oposto a ele, a de Pierre Boulez. A vanguarda e o pop perderam seus calços, deixando um questionamento de dupla interpretação: a obra-de-arte na música morreu também junto com os dois? Findaram-se duas eras basais para a história da música através dos tempos? Todas as releituras de “Pli selon Pli” e o obscuro “Blackstar” darão ainda muito a se desvelar se se quiser, a depender do grau de (des)critério dos tempos (esquizo)frênicos que vierem adiante neste século XXI recém iniciado. O que se sucedeu, com a morte dos dois, talvez tenha sido um lampejo de que a arte musical esteja mais viva do que nunca. Ou, se não, é porque se enterrou de vez junto com Bowie e Boulez. Aí, será quando o desconhecido se tornará definitivamente desimportante.

video de "Blackstar", David Bowie



quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

David Bowie Eternamente

Bowie, imenso caleidoscópio

É difícil mensurar a real dimensão de um artista como David Bowie. E são vários os motivos desta dificuldade: 1. o fato de que ele se encontra em plena atividade criativa, tendo retornado à vida pública com o ótimo álbum "The Next Day", em 2013, após um silêncio voluntário de dez anos; 2. o fato de que se encontra inserido no coração mesmo da cultura do espetáculo e do entretenimento de massas, dispensando certas reservas e certa imunidade crítica das quais poderia lançar mão caso fosse associado às“belas artes”e ao campo mais tradicional das artes instituídas – Bowie, ao contrário, é um legítimo artista pop e, como tal, é um típico produto de consumo –; 3. o fato de que se constituiu artisticamente em função de sua permanente mutabilidade e reinvenção – Bowie, o andrógino; Bowie, o camaleão; Bowie, esperada surpresa, incógnita e esfinge –; 4. o fato de que atravessou, ao longo dos anos, ao longo de cinco décadas de intensa vida artística, praticamente todos os formatos, as modalidades e os nichos midiáticos de nossa contemporaneidade – além da música, o cinema, o teatro, a moda, a dança, a performance e as artes do vídeo. Nem mesmo as artes plásticas lhe escaparam.
Mas, acima de tudo, é muito difícil dimensionar-lhe o real valor, sua real importância, simplesmente porque o amamos. Amamos Bowie e envelhecemos com ele. Não há, portanto, a menor capacidade de avaliá-lo sem que estejamos contaminados por esta paixão, impregnados pela memória afetiva que tecemos juntos. Assim, é muito difícil distanciar-se. Diante dele, é difícil ser comedido e justo.
Em síntese, foi esta a sensação que tive, recentemente, ao visitar a Mostra David Bowie, realizada no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Opulência e variedade, encanto e maravilhamento são palavras óbvias demais para descrevê-la. Aliás, são termos recorrentes na própria fortuna crítica do cantor inglês, no curso quase completo de sua biografia. Bowie, de fato, parece fadado a nos inebriar e seduzir. Inventividade, delicadeza e elegância não lhe faltam, de modo nenhum. A Mostra dá sólidas evidências disto.
Particularmente, interessei-me por aspectos relativos a seu processo criativo, pelos recursos técnicos empregados em certos álbuns e/ou canções, tais como o Verbasizer, um aplicativo concebido para o embaralhamento randômico de manchetes de jornal, derivando daí a produção dos versos a serem cantados, e o Stylophone, uma espécie de proto-sintetizador empregado em "Space Oditty", por exemplo. Além disso, há um fascínio estranho em observar de perto os rascunhos das canções, as partituras originais, as letras escritas e reescritas à mão, os rabiscos nas margens comuns de uma folha de papel. E o que dizer dos figurinos exatos, vestidos em tantas performances memoráveis? E quanto às botas de salto, os sapatos efetivamente calçados? É como se o corpo do artista estivesse ali presente, imobilizado e oferecido à vista, à visitação. É como se o corpo da obra estivesse sendo examinado por dentro, vasculhado e dissecado.
Enquanto observava, uma questão insistente me vinha à mente: “a quem está endereçada esta exposição”? Ao público leigo ou ao fã incondicional, conhecedor altamente especializado? Estaria dedicada ao admirador médio (como eu)? De início, suspeitei que estivesse dirigida aos dois primeiros. Depois, me convenci de que está direcionada a todos aqueles que se disponham a montar um quebra-cabeças e a encontrarem-se refletidos no imenso caleidoscópio que é a obra de David Bowie.



Vai em Paz, David Bowie
por Paulo Moreira


Quando eu era um adolescente de 12, 13 anos, surgiu nas páginas da revista POP (a única na época) uma figura andrógina, com cabelo, olho pintado e francamente gay. Como todo mundo, fiquei curioso com aquele cara que se colocava como uma figura andrógina naquele mundo pop altamente macho. Aí, começaram a aparecer os discos no Brasil, as músicas no rádio ("Rebel, Rebel", "Ziggy Stardust" e "Life on Mars", que o Cascalho rolava o clipe no Portovisão). Quando lançou o "Young Americans", comprei o LP e quase furei de tanto ouvir. A partir daí, fiquei acompanhando a carreira dele à distância (confesso que com 17 anos, não consegui entender "Low" e "Lodger", apesar de achar o "Heroes" interessante. "Ashes to Ashes" ganhou todo mundo com aquele clipe maluco.
Só voltei a mergulhar no Bowie em 1983 com o incrível "Let's Dance", onde ele pegava o som do Nile Rodgers e subvertia totalmente. Era como se o Chic tivesse enlouquecido e misturado com altas doses de DB e saiu um disco que era pop e experimental ao mesmo tempo. Ouçam "Ricochet" com sua levada "My Favourite Things" do John Coltrane (influência normal para um cara que era saxofonista). Ou "China Girl" que tem toda a cara de Bowie com o Tony Thompson destruindo a bateria e o Carmine Rojas dando um banho no baixo. Ou talvez "Cat People". Todas elas com o Steve Ray Vaughan comendo a guitarra com farofa. Aliás, descoberta para o mundo do sr.David Jones.
Daí pra frente, foram momentos esporádicos ("Loving the Alien" e a versão de "God Only Knows", que eu adoro), mas ele sempre surpreendendo aqui e ali. Há três anos atrás, comprei o "The Next Day" e confesso que achei mais do mesmo. Mas este "Blackstar" é um clássico. Vai em paz, David Bowie.



Alma de Influência Infinita
por Tatiana Viana
(convidada)

Há poucos dias atrás, no dia do aniversário (8 de janeiro) de David Bowie estava eu a comentar sobre a importância de alguns músicos e de suas obras na história de nossas vidas e com certeza muitas pessoas compreendem o que quero dizer.
Cresci ouvindo, assistindo e colecionando o que podia de David Bowie, sempre contemplei de forma apaixonada sua forma camaleônica de ser. Suas músicas habitaram muitos de meus dias e noites e foram fundamentais para instigar em mim o desejo de conhecer e buscar mais sobre a mutabilidade e a constante evolução do som através deste grande mestre que a cada canção e aparição se reinventava me causando sempre a surpresa de a cada vez gostar mais de suas composições, sem entender como suas músicas nunca me cansavam.
Lembro das vezes que fui assisti-lo no cinema mais de uma vez seguida o mesmo filme, minha primeira fita cassete que foi "Ziggy Stardust", depois vieram as VHS e a cada play parecia ver ou ouvir algo novo que surgia através do seu magnetismo impresso em sua marca pessoal.
Um cara tão complexo e genial que sua transcendência não coube nesse mundo.
Bela alma de influência infinita!




A Morte
por Cly Reis


Poucas vezes lamentei tanto a morte de uma figura pública quanto a que ocorreu no último domingo. David Bowie, um dos artistas mais influentes de todos os tempos, que vinha lutando contra um câncer descoberto não há muito tempo, deixou nosso mundo e foi juntar-se a outras lendas que habitam um lugar especial no céu ou seja lá onde for. Sou um tanto pragmático quanto à morte, entendendo-a como parte inevitável da vida e, normalmente, não me sensibilizo excessivamente com os desencarnes, até mesmo de pessoas próximas ou familiares, passando às vezes até por insensível. Se essa 'insensibilidade' é usual até mesmo em familiares, quem dirá a um estranho, uma pessoa que não  tem nada a ver comigo, que vive a milhares de quilômetros de mim, que nunca me deu nada. Assim, minha comoção com artistas costuma ser ainda menor, ainda mais com os de idade mais avançada, cujo ciclo da vida de certa forma já se completou, e mais ainda com os que é sabido que não colaboraram muito em suas vidas para que sua estada neste planeta não fosse mais longa.
Mas não sou uma pedra de gelo!
Lamento muito por artistas novos, muito jovens, de evidente talento que, depois de amostragens iniciais, um ou dois álbuns gravados, um filme apenas, um livro publicado, etc., indicavam que teriam coisas incríveis a fazer, apresentar, nos surpreender e foram levados precocemente. Imagine o que Kurt Cobain estaria fazendo hoje? Chico Science, Amy Winehouse? Também há aqueles que estabelecem uma relação tão próxima conosco que parecemos sentir como se uma parte nossa tivesse sido arrancada. Lembro quando da morte de Renato Russo que preferi, simplesmente, não pensar no assunto. Se eu '"tivesse consciência" que ele estava morto, minha tristeza naquele momento seria incomensurável. E acho que, no fundo, continuo agindo assim sobre Renato Russo até hoje.
Houve exceções destes já mais velhos e que colaboraram para seu fim: Miles Davis já beirava os 70, tinha quase se matado um zilhão de vezes, mas os projetos que vinha realizando nos anos anteriores à sua morte me faziam imaginar onde poderia chegar ainda aquele cara. Esse era daqueles que não poderia ter ido.
Ontem com David Bowie foi um misto das duas sensações, da emocional, que costumo ter poucas vezes, com a egoísta de não querer prescindir da obra daquela criatura no planeta Terra. O motivo que faz com que sua partida seja tão dificilmente aceita se confunde e funde. Sua obra, seu talento, sua capacidade artística, sua imprevisibilidade que o tornam tão imprescindível para mim no cenário musical e das ideias no mundo de hoje, são os mesmos motivos que me moldaram meu apego a esse gênio. Diferentemente de um Renato Russo, quase um amigo conselheiro, meu carinho por David Bowie edificou-se a partir da admiração o que, por mais que também admire muitos outros artistas, não toma essa forma com facilidade. E na segunda pela manhã, quando topei com a notícia na internet eu percebi isso. Não era só mais um astro pop que havia morrido. Eu realmente estava triste por aquilo.
Mas como triste? Que que ele tinha a ver comigo, tava lá do outro lado do oceano, nunca fez nada por mim... Engano! Esse é o tipo do cara que a gente lamenta ter ido embora exatamente porque tem tudo a ver com você. Pode viver no outro lado do mundo mas está sempre pertinho da gente. E pode ter certeza que, com sua música, já fez mais por mim do que muita gente poderia ter feito.
De qualquer forma, se era hora de ir, então vá, David. Vá em paz. Eu, egoísta queria mais. Queria mais de você. Queria que você virasse o mundo de cabeça pra baixo de novo como já fez tantas vezes e como, acho, só você poderia fazer novamente. Outras atitudes revolucionárias, outros discos fundamentais, outras auto-reinvenções, outros sucessos. Mas vá, eu entendo. Você já deixou o suficiente aqui para que nos deleitemos ainda por muito e muito tempo. É justo. Você estava mesmo precisando descansar. Descanse em paz. Você merece. Já nos deu muito.




autorretrato capa álbum "Outside"


David Robert Jones
(David Bowie)
08/01/1947 - 10/01/2016

terça-feira, 4 de agosto de 2015

"David Bowie: Five Years", de Francis Whately (2013)


"Acho que fui um dos primeiros a dizer:
'Eu realmente estou usando o rock'n roll.' "



Assisti há pouco tempo e gostei muito do documentário produzido pela rede britânica BBC, "David Bowie: Five Years" que, como o nome sugere, foca em 5 anos da carreira do artista com entrevistas, imagens inéditas, impressões e informações sobre cada um destes momentos em particular, nesta que é uma das trajetórias artísticas mais notáveis e significativas no universo pop-rock. Ao contrário do que pode-se imaginar num primeiro instante, o filme não corre por um período de meia década corrida e sim pinça períodos cruciais para a carreira e obra do cantor. Primeiro, o período de 1971 a 1972 com a criação de um personagem, Ziggy Stardust, o visual andrógino, a ênfase nas guitarras e a 'criação' do glam-rock, período da música que dá nome ao filme, "Five Years", e que abre o álbum "The Rise and The Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars"; depois o intervalo entre 1973 e 74 com a reviravolta sonora, a influência da soul-music e a parceria com John Lennon em "Young Americans", pegando ainda a transição para "Station to Station"; indo para outra transformação sonora, na época de 76 a 77 com a mente confusa, as drogas, a inspiração no kraut-rock, no eletrônico, em Kraftwerk, na ambient-music, a parceria com Brian Eno, a mudança para Berlin e o brilhante "Low" como resultado, e, na sequência, ainda na Alemanha Oriental, o lendário " 'Heroes' "; continuando com "Scary Monsters " no período de 1979 a 1980, com a cabeça mais limpa, colhendo os frutos tanto da imersão na música negra quanto no experimentalismo, num trabalho conceitual porém acessível; e chegando ao auge da linguagem pop ali entre 1982 e 1983 com a mudança de gravadora, a grande turnê e o álbum "Let's Dance" com seu inegável apelo comercial.
Muito interessantes as curiosidades, as parcerias, a imprevisibilidade genial de Bowie, as particularidades que envolvem canções, as motivações de cada álbum e os detalhes de produção. Muito legal, por exemplo, o guitarrista Carlos Alomar contando da dificuldade inicial dos músicos em entenderem o 'quase-músico' Brian Eno, co-mentor de "Low", tentando explicar o que pretendia das músicas com uma lousa, gestos e gráficos e não com os instrumentos; Robert Fripp falando de sua participação e ousadia em "Scary Monsters"; e o produtor Nile Rodgers, recrutado para dar uma cor mais pop ao som do artista no início dos anos 80, contando como levou a demo de "China Girl" para casa e como apresentou sua nova introdução no dia seguinte louco de medo que Bowie fosse odiar.
Para os fãs que não viram mas que conhecem cada fase, cada disco, é extremamente recomendável e para quem não é ou não conhece muito da obra deste grande artista, vale para perceber o valor de sua obra e entender todo seu mérito artístico em cada trabalho. 
É lógico que dá pra sentir falta de coisas como o ótimo "Space Oditty", que particularmente adoro, ou do não menos clássico "Aladdin Sane", mas é compreensível que dentro da proposta do filme, até pela sugestão do nome da canção do próprio Bowie, eles ficassem de fora, embora, de alguma forma, estejam presentes nas fases apresentadas. Mas está de bom tamanho, pouco mais de uma hora contendo cinco grandes anos da história do rock. Na verdade, uma vida inteira  passando diante de nossos olhos.


Cly Reis