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quinta-feira, 2 de junho de 2022

Milton, enfim, voou

 

Seu Chico, personagem de Milton em "Carandiru", de 2003
Dia desses conversava com um colega sobre a grandeza de alguns atores brasileiros que, não fosse o entrave cultural à língua portuguesa no mundo do entretenimento (ou a qualquer outro idioma que não o inglês), estariam voando alto mundo afora. Vários grandes ficaram apenas para “consumo interno” do brasileiro na tevê, no cinema ou no teatro. Alguns, tiveram em produções internacionais, como José Wilker, José Lewgoy e Grande Otelo, mas não despontaram internacionalmente. A exceção são Carmen Miranda, ícone, e Sônia Braga e Rodrigo Santoro, que se adaptaram ao idioma de fora. Fernanda Montenegro é também um caso que não foge à regra: vencedora de Globo de Ouro e concorrente ao Oscar falando português há 25 anos, nunca mais concorreu a algo deste vulto mesmo com excelentes trabalhos posteriores a “Central do Brasil”. Por quê? Seguiu falando somente (e suficientemente) o português.

Semelhante ocorreu com Milton Gonçalves, que faleceu no último dia 30, aos 88 anos. Lembro do policial que ele viveu em “O Beijo da Mulher Aranha”, de Hector Babenco, em 1986, filme que deu o Oscar de Melhor Ator para o norte-americano John Hurt, com quem Milton contracena, contudo, sem dever em nada. Milton foi, sim, da altura de Hurt, Freeman, Hopkins, Lancaster, Hanks, Lee Jones. A diferença? O português.

Se no cenário internacional Milton foi um dos que quase alçou, em seu terreiro, contudo, voou alto. Foi uma das vozes negras mais importantes da dramaturgia brasileira em mais de 60 anos de carreira. Por esse protagonismo preto, para além de outros grandes atores brasileiros como ele, deixou uma marca insubstituível no teatro, na TV e no cinema. Este mineiro de Monte Santo teve importante atuação no Teatro de Arena de São Paulo, no Teatro Experimental do Negro de São Paulo, no Grupo Opinião, no Teatro dos Quatro e em outras companhias. Como ator de novelas e seriados, nem se fala! Embora pouco lembrado por isso, foi também foi o primeiro negro a dirigir uma novela na Globo – e não qualquer novela, mas sim o sucesso internacional da primeira versão de “A Escrava Isaura”, de 1976. Mas não só isso: esteve decisivamente em todos os momentos demarcatórios do cinema brasileiro: no neorrealismo dos anos 50 (“O Grande Momento”), no Cinema Novo (“Macunaíma”), no udigrudi (“O Anjo Nasceu”), na fase Embrafilme (“Eles Não Usam Black-Tie”), na primeira internacionalização (“O Beijo da Mulher Aranha”), na retomada (“Carandiru”) e na produção atual (“Pixinguinha: Um Homem Carinhoso”).

Dotado de espontaneidade e carisma, dominava a arte dramática com maestria, indo do pastelão ao melodrama com a naturalidade dos grandes. Interpretou textos dos maiores, de Guarnieri a Dias Gomes, de Steinbeck a Millôr. Sabia como tratar um texto. De todos os personagens que fez, de Zelão das Asas a Bráulio e Seu Chico, no entanto, um se destaca especialmente para mim: “A Rainha Diaba”, filme de Antonio Carlos Fontoura, de 1974. Espécie de blackexplotation à brasileira, o longa, centrado na atuação de Milton, nasceu do desejo do diretor de mostrar o submundo das drogas e da prostituição no Rio de Janeiro dos anos 70, com influências decisivas do teatrólogo Plinio Marcos – responsável pelo argumento – e do artista plástico Helio Oiticica. Como lembra o jornalista Márcio Pinheiro, trata-se de um filme livremente inspirado na vida de Madame Satã, porém com mais violência e menos romantismo. “’A Rainha Diaba’ é, em muitos aspectos, mais autêntico e biográfico do que o próprio filme que leva o nome do mitológico travesti da Lapa”, diz em uma postagem nas redes sociais. Milton dá vida a este personagem andrógeno, que põe pela primeira vez um negro LGBTQIA+ como protagonista de um filme no Brasil. E isso é muito.


Até o primeiro brasileiro num Emmy Internacional (prêmio ao qual concorreu como Melhor Ator Internacional, em 2006) ele foi quando entregou a estatueta de Melhor Programa Infantojuvenil ao lado da atriz norte-americana Susan Sarandon. Predileção pela estreia, como um ator que sobe ao palco renovado a cada noite de espetáculo.

Também tive, aliás, uma primeira – e única – vez com Milton. Uma ocasião em que o vi pessoalmente, a poucos metros. Estava no Rio de Janeiro, nos arredores da emblemática Cinelândia, acompanhado de minha esposa e de meu irmão numa tarde de agosto de 2018. Nós saímos de uma livraria e ele, provavelmente, de algum dos teatros daquele quadrante em busca de um dos infindáveis taxis do Rio. Durante os segundos de espera dele na calçada, pintou-me a dúvida: “Falo com ele?” Mas para dizer-lhe o quê? pensei. “Parabéns”? “Obrigado”? Minha hesitação momentânea impediu que achasse algo mais válido que isso e o taxi, obviamente, chegou. Ele embarcou e foi-se embora com toda sua importância e grandeza. Voou. Aliás, como há muito se ensaiava, seja como Zelão, que sobrevoou Sucupira, seja como o velho Chico, aprendiz das pipas no Carandiru. Eu fiquei na calçada, pés plantados, olhando para cima e sabendo que havia deixado escapar a oportunidade. Não agarrei suas asas. Depois vi que fiz o certo: deixei-o subir. Quantas asas ele já havia me dado sem saber para que eu, negro homem, um dia voasse também.


MILTON GONÇALVES
(1933-2022)



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

"O Diabo de Cada Dia", de Antonio Campos (2020)

 


Um pastor profano (Robert Pattinson), um casal perverso (Jason Clarke e Riley Keough) e um xerife corrupto (Sebastian Stan) são alguns dos habitantes sinistros de Knockemstiff, uma região remota de Ohio onde o jovem Arvin Russell (Tom Holland) enfrenta as forças externas que ameaçam sua família.

Como diria o pensador moderno, Paulo Ricardo do grupo RPM: “Até onde vai à sua fé?”. "O Diabo de Cada Dia" consegue criar algo muito interessante colocando no liquidificador violência, religião, vingança e sexo, nos entregando, ainda, no final, um prato saboroso, de comer rezando de joelhos (Está bem, não é para tanto é pecado de minha parte dizer isso).

É um ótimo estudo de personagens pois “O Diabo de Cada Dia” consegue nos mostrar a psique de alguns deles, nos atraindo para dentro da história. Para alguns, o longa pode ser arrastado e monótono, para outros, contemplativo, e confesso que, para mim, ele fica no meio termo. Alguns momentos ele acerta em diminuir o ritmo, e apostar no silêncio, em outras, dá até sono.

Muito interessante a forma como a religião liga os personagens e suas vidas, tanto seus passados e presente quanto o futuro, e essa ligação acaba sendo o diferencial do filme. A fé é usada como ferramenta e justificativa para quase todos os atos dos personagens principais, e quando ela não é utilizada diretamente, ela serve como “gatilho” para ações. 

Supernormal construir um santuário para
obrigar seu filho a rezar todos os dias...

Um elenco cheio de estrelas onde todos acabam tendo um bom tempo de tela, sendo que o destaque vai para Robert Pattinson que faz um pastor que, de longe, é um dos personagens mais odiosos; e para Tom Holland, que vive afetado pelo fantasma de seu pai, um extremista religioso, aliás um típico extremista.

Mesmo com seu ritmo uma tanto vagaroso, “O Diabo de Cada Dia” consegue nos prender com seu roteiro bastante envolvente. O longa traz um bom debate sobre a influência da religião na vida das pessoas, mostrando como ela pode ser usada para manipulá-las e, ao invés de incentivá-las a fazer o bem, pelo contrário, tirar delas o que estas têm de pior. Mostra como muitos acabam seguindo cegamente a um líder religioso e aceitando toda e qualquer interpretação que esse líder tem das “palavras de Deus”, a utilizando da forma que mais lhe convém. 

Um filme em que pode-se dizer que não tem mocinho, nem vilão. É cada um fazendo as coisas para o seu próprio bem e, até mesmo você, espectador, vendo a mesma atitude de diferentes personagens, pode julgar uma forma como correta a outra não. Bem fechadinho, ótimo estudo de personagem e cenário, “O Diabo para Cada Dia” é uma ótima pedida para os adoradores da Netflix, Amem!!!

Dois homens que seguem a palvra de Deus.
Pelo menos aos olhos deles mesmos.



por Vagner Rodrigues


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Toquinho & Maria Creuza – Teatro Bourbon Country – Porto Alegre/RS (20/08/2015)



A dupla homenageando Vinícius de Moraes
foto: Dulce Helfer
Como venho ressaltado aqui no blog, a temporada de show está ótima. Mais um destes belos espetáculos, que vi ao lado de Leocádia Costa e de minha querida Martha Becker, ocorreu no Teatro Bourbon Country, quando o cantor, compositor e violonista Toquinho e a cantora Maria Creuza se reuniram para homenagear Vinícius de Moraes. A ocasião – comemorativa aos 15 anos do escritório jurídico TozziniFreire de Porto Alegre, que patrocinou o show – foi especial. Isso porque a dupla havia se apresentado junto apenas em um espetáculo, justo no histórico show de 1970 que os reuniu com Vinicius e que deu origem a um dos mais celebrados discos ao vivo da MPB, “Vinicius de Moraes en La Fusa”, gravado em Buenos Aires. Depois, nunca mais pisaram num palco juntos.
Porém, felizmente, ambos estão ativos para poderem repetir o feito. O show, na verdade, não se restringia apenas ao repertório de Vinicius de Moraes, pois é mesmo comandado por Toquinho, este virtuose do seu instrumento que, como João Bosco e seu mestre Baden Powell, aprendeu não apenas a tocar mas também a cantar e, principalmente, compor (alinhando-se a uma seleta estirpe de compositores que vai de Liszt e Rachmaninoff a Jimi Hendrix e Louis Armstrong). Assim, “Toco” – como é carinhosamente chamado por Maria Creuza –, teve a “sorte”, segundo o próprio, de cocriar com outros grandes mestres da música brasileira, como Chico BuarquePaulo César PinheiroJorge Ben e o próprio Baden, autores que também aparecem no set-list.
 Maria Creuza, ainda com seu belo timbre mas de voz já um pouco cansada, faz boas participações no meio e no final. Foi ela quem comandou clássicos como “Você abusou”, “Se Todos no Mundo Fossem Iguais a Você” e “Eu Sei que Vou te Amar”, este, seu melhor momento. Juntos, cantaram outras pérolas: “A Felicidade”, “Tomara” e “Samba em Prelúdio”, de Baden (que promove na segunda parte um lindo contracanto com as vozes de ambos), autor este do qual Toquinho ainda tocou uma impressionante versão de “Berimbau”, do memorável "Os Afro-Sambas" (1966), em que o violão, de tão bem tocado, parecia realmente soar como o típico instrumento afro.
Toquinho, um mestre com seu violão
foto: Dulce Helfer
De resto, o show é todo de Toquinho. Simpático e conversador, ele contou histórias e comentou praticamente todos os números, fosse antes ou depois. Afinal, histórias dele, dos tempos de bossa nova e, principalmente, do “vivido” amigo Vinicius, não faltam. Uma destas foi a que deu origem a um de seus maiores sucessos, “Tarde em Itapuã”. Ele, na época adolescente, vira o poeta escrevê-la em sua casa em Salvador e se encantara com os versos. Só que a mesma estava prometida para outro gênio da música brasileira musicar: Dorival Caymmi. No entanto, Toquinho, ousado, roubou o papel e aproveito que voltava uns dias para São Paulo para criar a melodia. Na volta a Bahia, encontrou Vinicius desesperado atrás do seu escrito e, para aplacar sua fúria quando soube que tal havia sido surrupiado, Toquinho tocou-a ao violão para o mestre. Meia hora depois, mais calmo, Vinicius aceitou não repassá-la a Caymmi e assim nasceu um dos maiores clássicos da MPB.
 O show teve ainda momentos de bastante emoção, como nas interpretações de “A Casa” e “O Pum”, do infantil "A Arca de Noé", último projeto de Vinicius com Toquinho antes de morrer, em 1980, obra que permeia a infância de muita gente que estava ali – a começar pela minha e de Leocádia, que, inclusive, já escreveu sobre sua ligação com “A Arca...” aqui no blog. Na mesma linha, as tocantes “O Caderno” (preferida do próprio Toquinho, dele com Mutinho) e “Aquarela”, com sua letra lúdica e realista (“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá.”), foram de levar às lágrimas. Como ele mesmo disse, o desafio de fazer música para os pequenos é se despir das complexidades harmônicas do adulto e se comunicar com as crianças sem subestimá-las.
 No seu tributo ao “poetínha” couberam ainda “Samba pra Vinicius” (“Poeta, poetinha vagabundo/ Quem dera todo mundo fosse assim feito você/ Que a vida não gosta de esperar/ A vida é pra valer/ A vida é pra levar/ Vinícius, velho, sarava”), dele e de Chico, “Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova em que deram vivas a João Gilberto, e, claro, as tão famosas parcerias com Vinicius: “Cotidianas n° 2”, "Como Dizia o Poeta” e a atualíssima “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: “Você que lê e não sabe/ Você que reza e não crê/ Você que entra e não cabe/ Você vai ter que viver...”. Nem parece ter sido escrita nos anos 70... Pra terminar, “Regra três”, bis que fechou a noite.
 É muito bonito ver na ativa um verdadeiro representante de um período tão fértil da música brasileira, um cara que faz com propriedade a ligação entre os compositores dos anos 50 (Tom Jobim, Antonio Maria, Dolores Duran, Carlos Lyra, entre outros) com o período pós-bossa nova dos anos 60 e 70 (Chico, Baden, Elis Regina, festivais, tropicalistas) e, ainda assim, resgata a tradição dos violeiros e do choro, um dos estilos seminais do samba moderno. E mais digno ainda assistir eles homenageando Vinicius de Moraes, que revelou Maria Creuza e que, com Toquinho, principalmente, escreveu nada menos do que cerca de 130 canções, hoje eternizadas geração após geração. Toquinho teve sorte? Sim, mas, muita competência. Parafraseando o poeta: que nos desculpem os inaptos, mas talento é fundamental. E Toquinho tem de sobra.





quinta-feira, 23 de setembro de 2021

4º Curta Caicó - Os Premiados


 
Rio Grande do Norte do Sul, ou do Sul do Norte, tanto faz. Essa foi a ponte que se ergueu através do generoso convite que a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) fez à Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), a qual sou membro, para, como entidade irmã, integrar conjuntamente o júri da crítica das nove mostras do 4º Curta Caicó, festival de curtas-metragens realizado na cidade de Caicó, na região do Seridó Norte-rio-grandense. Juntamente com outros quatro integrantes gaúchos (Carlos André Moreira, Conrado Oliveira, Roberto Cotta e Rubens Anzolin), topei. Mesmo tendo recentemente participado da maratona de filmes para o júri da crítica do Festival de Cinema de Gramado, valia a pena achar um espacinho na agenda do dia e participar.

Em dupla com o simpático e competente Jonathan DeAssis, da ACCiRN, crítico de cinema de Natal que escreve o interessante Forma Fílmica no Instagram, coube a mim a análise da Sessão Especial, composto por filmes que dialogam com o fazer audiovisual e com a metalinguagem. Dos 10 títulos que avaliamos, todos bem pertinentes à proposta, dois nos saltaram mais à vista e nos motivaram a uma saudável troca de percepções: “Lua” e “Cabeça de Luz”, este segundo, o qual escolhemos como vencedor da mostra.
Imagens do universo plástico
e onírico da artista Lua

“Lua”, de Fábio Salvador (SP), embora não tenha me encantado numa primeira assistida, em razão de observações de Jonathan fez-me rever com outros olhos e apreciar suas qualidades. Trata-se de um documentário sensível e humano de uma jovem fotógrafa cujo nome astral dá título ao filme. Isso, através de uma montagem eficiente e uma fotografia bem condizente com o universo hiper-realista da paulistana Lua Morales. Em especial, a relação com a obra de Vincent Van Gogh e a perturbação mental que lhe era característica é bem interessante para a narrativa, visto que abre o curta com isso, quando ela está em uma plantação de girassóis fotografando um rapaz muito parecido com o pintor holandês. A ansiedade de Lua para captar a luz certa e tudo o que isso simboliza em termos psicológicos de certa forma conduz o filme através das inquietações artísticas e filosóficas dela.

Porém, o que nos pareceu melhor traduzir as intenções de um cinema autorreferenciado ao propor uma discussão instigante entre audiovisual e a forma como o espectador o recebe e o assimila foi, de fato, “Cabeça de Luz”. O filme potiguar de Carito Cavalcanti consegue, em pouco tempo de duração (8 min apenas) o feito que nem longas e nem curtas têm conseguido desde que a pandemia se instaurou, que é saber aproveitar a seu favor o cenário de confinamento de milhões de pessoas e a estética do “novo normal”. Privadas do mundo exterior e do convívio social, a arte – em especial o cinema – é uma das formas de transcender esse limite que se impõe aos corpos físicos. “Cabeça...” arranja um mosaico sensitivo em que vários depoimentos gravados e enviados via celular num ensaio que articula imagens de arquivo e de outras obras, trazendo-as para si e propondo-lhes novos significados, produzindo um fluxo de pensamento onírico cujo poder da imagem, dos sons e das palavras convidam o espectador ao sentir.

O impactante e poético "Cabeça de Luz": proveito da pandemia como linguagem

Ao contrário de todos os outros filmes ou produções televisivas que assisti feitos do ano passado para cá, quando o distanciamento social se impôs e impactou diretamente os processos de gravação, o filme de Cavalcanti não se vale disso como muleta, mas, sim, como proposta narrativa, assimilando os elementos visuais e psicológicos advindos deste período. Se noutras produções havia a tentativa de compensar esse gap realizando filmes com poucos atores e em espaços confinados (não raro, a casa do próprio realizador/protagonista) ou valendo-se dos recursos multitelas da vida cada vez mais virtual em que o mundo se viu obrigado a imergir – deixando, assim, evidentes as deficiências inerentes do momento a uma produção audiovisual minimamente ambiciosa – “Cabeça...” prova o quanto a sétima arte está, na verdade, na mente e nos corações das pessoas.

O festival ocorreu entre os dias 6 e 12 de setembro, então, não tem como se assistirem mais os filmes no momento. Mas quem quiser saber como foi a cerimônia de premiações desta categoria e das outras, dá pra acessar aqui.

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Mostra Nacional
Filme: Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho (PE)
Direção: Matheus Farias e Enock Carvalho, por inabitável (PE)
Roteiro: Matheus Farias e Enock Carvalho, por Inabitável (PE)
Fotografia: Gustavo Pessoa, por Inabitável (PE)
Som: Guilherme Cássio, por Tom (RS)
Interpretação masculina: César Ferrario, por Joana (PB)
Interpretação feminina: Luciana Souza, por Inabitável (PE)
Menção honrosa: Elemento Suspeito, de Gustavo Paixão (SP)
Menção Honrosa: Reexisto, de Lethicia Galo e Rodrigo Campos (SP)

Mostra Seridó:
Filme: Fole, de Lourival Andrade (RN)
Direção: Lourival Andrade, por Fole (RN)
Roteiro: Jailson Valentim dos Santos, por Corpos (In)visíveis – Entre o Lixão e o Frei Damião (RN)
Fotografia: Fernando Leão e Zezinho Vídeo, por Fole (RN); e Damião Paz, Henrique José e Meysa Medeiros, por O Photógrafo Zézelino (RN)
Som: Fernando Leão e Pedro Andrade, por Fole (RN)
Interpretação masculina: Mané do Fole, por Fole (RN); e Damião Paz, por O Photógrafo Zézelino. (RN)
Interpretação feminina: Maria das Graças (Gracinha), por Propósito (RN)
Menção Honrosa: Cores da Resistência, de Hylka Rachel (RN)

Mostra Potiguar
Filme: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Direção: Pedro Fiúza, por Vai Melhorar (RN)
Roteiro: Pedro Fiúza, por Vai Melhorar (RN)
Fotografia: Pedro Medeiros, por A Terra me disse (RN)
Som: Herisson Pedro, por Nocaute (RN)
Interpretação masculina: Enio Cavalcante por Mais um João e pelo conjunto da obra (RN)
Interpretação feminina: Cássia Damasceno, por Vai Melhorar (RN)

Mostra Nordeste
Filme: Remoinho, de Tiago A. Neves (PB)
Direção: Élcio Verçosa Filho, por Vaudeville (AL)
Roteiro: Tiago A. Neves, por Remoinho (PB)
Fotografia: Diego Garcia, por Vaudeville (AL)
Som: Richard Soares, por Memórias Submersas (PE)
Interpretação masculina: Alexandre Guimarães, por Vaudeville (AL)
Interpretação feminina: Cely Farias, por Remoinho (PB)
Menção Honrosa: A Beleza de Rose, de Natal Portela (CE)
Menção Honrosa: Nossas Mãos São Sagradas, de Júlia Morim (PE)

Júri da Crítica: ACCIRN e ACCIRS
Mostra Nacional: Fragmentos ao Vento: 1945, de Ulisses da Mota (RS)
Mostra Nordeste: Vaudeville, de Elcio Verçosa Filho (AL)
Mostra Potiguar: Hashtag, de Kell Allen (RN)
Mostra Seridó: Propósito, de Adriano Dantas (RN)
Mostra Cine Alvorada: Sobre nossas cabeças, de Suzan Kalik e Thiago Gomes (BA)
Mostra Cine Pax: Rio das Almas e Negras Memórias, de Taize Inácia e Thaynara Rezende (GO)
Mostra Cine São Francisco: Atordoado, eu permaneço atento, de Henrique Amud e Lucas Rossi (RJ)
Mostra Cine Rio Branco: Mãtãnãg, A Encantada, de Shawara Maxakali e Charles Bicalho (MG)
Mostra Sessão Especial: Cabeça de Luz, de Carito Cavalcanti e Fernando Suassuna (RN)

Júri Popular
Mostra Nacional: De mim para você, de Rodrigo Peres (DF)
Mostra Nordeste: Distopia, de Lilih Curi (BA)
Mostra Potiguar: Hashtag, de Kell Allen (RN)
Mostra Seridó: Propósito, de Adriano Dantas (RN)
Mostra Cine Alvorada: 4 Bilhões de Infinitos, de Marco Antonio Pereira (MG)
Mostra Cine Pax: Rio das Almas e Negras Memórias, de Taize Inácia e Thaynara Rezende (GO)
Mostra Cine São Francisco: Elos Positivos, de Eduardo Oliveira (SP)
Mostra Cine Rio Branco: Como um peixe fora d´água, de Arthur Lombriga (BA)
Mostra Sessão Especial: Cine Aurélio, de Kennel Rogis (PE)

Prêmios Especiais
Prêmio de Aquisição Elo Company: Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho (PE)
Prêmio Cardume: Ser Feliz no vão, de Lucas Hossi (RJ); e O Homem das Gavetas, de Duda Rodrigues (SP)
Prêmio Místika de Pós-Produção: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Prêmio CTAV de Mixagem de som: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Prêmio Referência de Contribuição Artística: Zezita Matos e Biró Modesto.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Aquisições porto-alegrenses

Quem me acompanha nas redes sociais vê que vira e mexe estou escutando alguma coisa “na vitrola”. Embora tenha uma boa coleção, sabe como é, né? Colecionador de discos está sempre de olho em outros para comprar. Não é comum eu ir aos sebos de Porto Alegre (ainda mais agora na pandemia), até por causa dos horários comerciais, durante os quais geralmente estou ocupado, e porque, afinal, acaba sendo mais um gasto. Mas quando surgem boas oportunidades, é impossível resistir. Pois dias atrás, vi uma postagem do antenado e generoso amigo Juarez Fonseca sobre um amigo seu que estaria, em suas palavras, “se desfazendo de sua coleção de discos de vinil. Tem Chico, Caetano, Gil, Milton, Elis, Mercedes Sosa, Jaime Roos, Jimi Hendrix, muita coisa de jazz e raridades da música gaúcha. Uma mina de ouro.” E Juarez arremata o post alertando: “todas as capas estão reproduzidas no Facebook.”

Não deu outra: com tamanha propaganda, fui conferir. O amigo era Raul Boeira, músico, compositor e violonista de Porto Alegre com mais de 50 anos de estrada. E realmente: centenas de ótimos títulos em LPs e todos visivelmente bem cuidados por Raul, que me confessou posteriormente em troca de mensagens fazer cerca de 10 anos que não mais tinha toca-discos e que não havia “razão para esse som todo ficar aprisionado aqui no armário”. Não demorou muito para eu saber que outros dois colecionadores como eu, os também amigos Marcello Campos e Lucio Brancato, já estavam empenhados em alforriar tamanha qualidade musical. Diante do desprendimento e simpatia de Raul – e, claro, do meu desejo – adquiri sete unidades da encarcerada discoteca, os quais descrevo aqui brevemente um a um. Alguns já foram parar direto na vitrola:


“Do Romance ao Galope Nordestino”,
 Quinteto Armorial (1974)

Um dos fenômenos mais originais da história da moderna música brasileira, o Quinteto Armorial representa mais do que música, mas um conceito de brasilidade. Com a benção de Ariano Suassuna, líder intelectual do movimento Armorial, que buscava criar bases brasileiras para todas as formas de arte - entra as quais, a música - a banda que lançou o hoje famoso Antonio Nóbrega, em seu primeiro disco, traz sua sonoridade sui generis que alia clássico medieval e barroco aos sons formativos do Nordeste. E o que é essa capa de Gilvan Samico?! Uma obra-prima por dentro e por fora.



“Nice Guys”,
Art Ensemble of Chicago (1979)
A banda de Lester Bowie, Malachi Favors Maghostut, Joseph Jarman, Roscoe Mitchell e Don Moye num de seus mais celebrados discos. Os inventores do pós-jazz passeiam pelo bop, avant garde, blues, fusion, reggae e art music em sua musicalidade intergaláctica. “É possivelmente o mais representativo álbum da banda, uma vitrine variada que ilustra muito do que eles fazem de melhor”. Isso não sou eu quem digo, mas a Down Beat. Destaque para “Já”, "Folkus" e "Dreaming of the Master" . E a arte caprichada da capa e contra! Impecável como qualquer produto ECM. 



“Lilás”,
Djavan (1984)
Já totalmente inserido no mercado norte-americano, Djavan lançava em grande estilo, com produção gringa caprichada, um de seus discos de maior sucesso lá e aqui no Brasil. Embora tenha recebido certas críticas pelo excesso de elementos eletrônicos à época, o disco, sexto do artista, praticamente repete o antecessor “Luz”, pois é daqueles álbuns de carreira que parecem coletânea: a faixa-título, “Íris”, “Esquinas” e “Infinito” integram o repertório, por exemplo. Suingue, complexidade harmônica, arranjos ricos, vocais grandiosos. Um luxo.




“Jogos de Dança”,
Edu Lobo (1983)
Imagino que quando convidaram Edu Lobo - que já havia coescrito com Chico Buarque para o Balé Guaíra o clássico "O Grande Circo Místico" dois anos antes - uma nova trilha para dança somente instrumental ele, afeito muito mais à música do que ao canto, vibrou com a oportunidade. O resultado é um dos melhores discos da discografia do autor de "Disparada", que antecipa em pelo menos 10 anos o conceito de trilhas que o Grupo Corpo adotaria: artistas nobres da MPB compondo para balé trabalhos especiais e que vão além dos palcos: são música para se ouvir dançando ou parado.




“Tempo Presente”,
 Edu Lobo (1880)
Outro lindo disco de Edu Lobo que consagra sua década mais produtiva, os anos 70. Junto com “Missa Breve”, “Limite das Águas” e “Camaleão”, forma a quadra de álbuns em que o legítimo filho musical de Tom Jobim passeia pelos variados estilos, da bossa nova ao baião, do jazz ao clássico. Parcerias principalmente com Cacaso e Joyce, primor de arranjos, produção caprichada de Sérgio de Carvalho. Edu, assim, em plena fase criativa é ouro em pó.





“Bandalhismo”,
João Bosco (1980)
Dos discos de Boscão da fase com Aldir Blanc que não tinha. Além da arte sempre magistral de Elifas Andreato, que aproveita cortes e dobraduras diferentes, “Bandalhismo” é mais um documento da resistência à ditadura militar e a opressão social que o Brasil vivia como os vários que a dupla compôs nessa época. Abre com a sarcástica “Profissionalismo é Isso Aí”, mas também guarda joias como “Siri Recheado e o Cacete” e “Sai Azar”, que também são deste repertório.





“Atlantis”,
Wayne Shorter (1985)
Único da leva de compras que não tenho conhecimento de como é. Disco dos anos 80 de um dos imortais do jazz, que nunca decepciona. O que se sabe de antemão é que traz ritmos brasileiros e funk em várias faixas em arranjos muito bem elaborados. São 11 músicos em estúdio contando com Shorter revezando numa instrumentação entre o elétrico e o acústico. Boas expectativas.







**********

+ 2

Além dos LPs que adquiri, generosamente ganhei do próprio Raul Boeira em CD dois de seus discos: “Raul Boeira: Volume 1”, de 2009, e “Cada Qual com Seu Espanto”, dele e de Márcia Barbosa, de 2016. Assim como o Shorter, ainda não tive tempo de soltá-los na vitrola, mas não demorará.



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Velha Guarda da Portela – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (28/11/2014)




A Velha Guarda no palco da Redenção
(foto; Tita Strapazzon)
Corri pra ver, pra ver quem era/
Chegando lá era a Portela”.

Como são essas coisas da vida, né? Leocádia e eu não pudemos comparecer ao show do guitarrista Stanley Jordan, no Canoas Jazz Festival, o qual eu mesmo havia anunciado aqui no Clyblog como me sendo imperdível. Porém, um dia antes, tivemos a oportunidade de assistir a outro show de total arrebatamento. Pois mesmo sabendo em cima do laço, fomos. Coincidentemente antecipando a semana em que se comemora o Dia Nacional do Samba (2/12), o mais autêntico dos ritmos brasileiros pôs os dois pés em Porto Alegre. Em celebração aos 80 anos de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Velha Guarda da Portela foi convidada para uma apresentação gratuita no Parque da Redenção. Um verdadeiro espetáculo, histórico na cidade, que me fez lembrar outro memorável ocorrido de 1996, quando o nobre portelense Paulinho da Viola tocou no mesmo local.

Mestre Monarco, aos 80 anos,
comandando o samba
(foto: Tita Strapazzon)
 Comandada pelo mestre Monarco (que também completou indizíveis 80 primaveras em 2014), a Velha Guarda da Portela agitou e emocionou, pondo pra sambar e cantar o grande público que esteve presente naquela noite ao ar livre. Sou apaixonado pelo conjunto desde os anos 90 quando, assistindo a um programa Ensaio, da TV Cultura, os descobri cantando junto com um de seus vários integrantes que já foram, Manacéa (o qual estava presente não só em sons como na pessoa de sua filha, Áurea Maria, uma das três pastoras do grupo). Fiquei tão maravilhado com o que vi que, guri afoito por registrar aquilo que gostava, pus um VHS para gravar o restinho de programa, que já havia começado. Bem fiz. Pude, com isso, conhecer, dentre algumas outras, pérolas como a tocante “Quantas lágrimas” (“Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado/ Só em saber que não posso mais/ Reviver o meu passado...”) e o poup-pourriMau Procedimento/ Mulher ingrata/ Nega Danada”, ambas tocadas no show.

Mas foram muito mais que estas. Muito mais. Empolgados com a receptividade do público gaúcho, mandaram ver um show de quase 2 horas e meia, quando executaram não apenas sambas da escola que pertencem, mas de vários outros autores e agremiações, como o Império Serrano Silas de Oliveira, homenageado com “Senhora Tentação” e seu grande sucesso, o samba-enredo “Aquarela Brasileira” (considerada por Monarco como o mais bonito samba já escrito). Todo o público cantou junto de ponta a ponta a canção, que começa com os inconfundíveis versos: “Vejam essa maravilha de cenário/ É um episódio relicário...” Igualmente, a empolgante “É Hoje”, de Didi e Mestrinho, samba-enredo da União da Ilha de 1982, um dos mais célebres da história dos carnavais. Pra arrebatar os amantes do samba, Monarco, com sua voz de barítono e modos elegantes típicos de um monarca do morro, presenteou-nos com “O Sol Nascerá” (“A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois chorando eu via mocidade perdida...”), emblemático samba do gênio mangueirense Cartola. As emoções, no entanto, ainda não terminariam por aí.

Obras da Portela mesmo foi o que não faltou. Paulo da Portela, Chatim, Ventura, Antonio Caetano, Alvaíde, Mijinha, Chico Santana. Os nomes dos poetas e músicos desconhecidos do morro vêm à tona quando a Velha Guarda toca. A começar pelo “abre-alas” “Esta Melodia”, de Jamelão e Babu da Portela, composição híbrida das duas mais tradicionais escolas de samba do Rio, que ficou conhecida na voz de Marisa Monte. Paulo da Portela, fundador, principal compositor e exemplo para toda a geração de sambistas portelenses, foi, obviamente, lembrado mais de uma vez. “Hino Da Velha Guarda Da Portela” dele, foi executada, mas seu nome é mencionado seguidamente, como nas letras de “Corri pra ver” (“Foi mestre Paulo seu fundador/ Nosso poeta e professor”), “Passado de Glória” (“Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”) e “De Paulo a Paulinho”, que Monarco (autor também das duas anteriores) fez para homenagear o mestre e seu discípulo, unindo passado e presente: “Antigamente era Paulo da Portela/ Agora é Paulinho da Viola...”
As pastoras Áurea, Neide e Tia Surica, divinas.
(foto: Tita Strapazzon)
Paulinho, aliás, foi igualmente lembrado. “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” foi entoada com gosto pela plateia. Candeia, outro dos grandes, também não faltou à festa, num samba cantado por Sérgio Procópio, que comandava o cavaquinho. Ele – atual presidente da Portela e parecido com Candeia, inclusive – relembrou “Dia de Graça”, dos clássicos do compositor, muito bem selecionada no set-list, pois soou extremamente adequada àquele público ligado à universidade e pela ocasião comemorativa à UFRGS. Contando a história de um filho de sambista do morro que consegue chegar à faculdade, a poética letra desfecha assim: “E cante o samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de verdade/ Aí então jamais tu voltarás ao barracão”. Dele, também teve a parceria com Casquinha “Falsas Juras”, com aquela impressionante escalada vocal das pastoras no refrão: “Não adianta aos meus pés se ajoelhar/ Pode chorar, pode chorar”.

Em meio a tanta beleza, ainda tiveram a filosófica “O Mundo é Assim” (“O mundo passa por mim todos os dias/ Enquanto eu passo pelo mundo uma vez...”), de Alvaíde; “Tudo azul”, de Ventura; a linda “Lenço”, de Chico Santana e Monarco; e “Você me abandonou”, de letra extremamente feminista (“Você me abandonou/ Ô ô, eu não vou chorar/... O castigo que eu vou te dar é o desprezo/ Eu te mato devagar”), mas composta por um homem, Alberto Lonato. De Monarco, simpático e feliz pela ocasião, não faltaram igualmente suas numerosas composições importantes para o repertório do grupo. Além das já citadas, teve dele também “Portela desde que eu nasci” – seu primeiro sucesso, na voz de Martinho da Vila, quando ele, Monarco, ainda era um mero guardador de carros, nos anos 70 –, sua primeira composição, escrita quando tinha 13 anos, e os hits na boca de Zeca Pagodinho: a gostosa “Vai Vadiar” e a iluminada “Coração em Desalinho”, dos mais lindos sambas jê escritos: “Agora uma enorme paixão me devora/ Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho curto a minha dor”.

A comoção não parou por aí. Vieram outros clássicos como “O Amanhã” (“Como será o amanhã/ Responda quem puder...”), clássico samba-enredo, e “Portela na Avenida” (Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro), imortalizada por Clara Nunes, que pôs tudo mundo pra sambar e cantar, acendendo a galera, num verdadeiro êxtase: “Salve o samba, salve a santa, salve ela/ Salve o manto azul e branco da Portela/ Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”. Simplistamente um espetáculo.

A delicadeza, a simplicidade, a pureza da poesia destes sambas, unida às engenhosas e límpidas melodias que se situam entre o partido-alto, o sambe-enredo, o samba-de-roda, o batuque, o maxixe. Assim são os sambas que a Velha Guarda da Portela, com o perdão do trocadilho, guarda. Já escrevi sobre isso no meu blog: a Velha Guarda abre um real espaço documental de registro de obras que, não fosse a valorização de apreciadores ilustres – como Paulinho e Marisa, que, em épocas diferentes, motivaram sua existência e manutenção –, perder-se-iam no terreiro de Madureira num pagode qualquer e, talvez, caíssem no esquecimento dos tempos. Ainda bem que não, para o bem de amantes desses sambas como nós que podem, ainda hoje, ser arrebatados como fomos naquela histórica noite na (ou “de”) Redenção.




quinta-feira, 10 de agosto de 2023

João Gilberto - “Amoroso” (1977)

 

"Esse disco tem um pouco esses negócios que a gente precisava. Tem a música da orquestra, eu tinha tanta vontade de ouvir um samba tocado por orquestra. A coisa é por todos os lados, música por todos os lados, enquanto estou cantando. Toda vestida, toda redonda. Tinha tanta vontade de ver a música do Brasil mais diretamente, o samba daquele jeito, que não fosse só o delicado, que fosse redondo, ligado, assim como o Claus [Ogerman] fez." 
João Gilberto, em telefonema a Zuza Homem de Mello, em 1977


Poucas coisas em música são mais sofisticadas que a bossa-nova. Na segunda metade do século 20, nada supera. A sintaxe harmônica, fruto de séculos de assimilação histórico-sociológica que forjam o ser brasileiro, deram à bossa-nova o status de estilo musical mais arrojado depois da invenção do jazz. Exemplos desta sublimação não faltam. O encontro de perfeições entre Tom Jobim e Frank Sinatra; a insuspeita ponte entre clássico e moderno de Elizeth Cardoso em “Canção do Amor Demais”; a junção direta de cool jazz e samba de “Getz-Gilberto”; a brandura potente de Nara Leão em sua estreia no acetato.

Mas talvez todos estes exemplos tenham servido de embasamento para um produto ainda mais bem acabado: “Amoroso”, de João Gilberto. O disco, lançado pelo mestre baiano em 1977 e considerado por muitos sua obra-prima, consegue aglutinar os melhores elementos legados por todos os artistas da bossa-nova – inclusive o próprio João – tanto em arranjo, repertório quanto em, claro, execução. A começar pela química improvável cunhada e aperfeiçoada por ele próprio desde que “inventou” a bossa-nova. A genial síntese harmônica e rítmica, a simbiose entre violão e voz, a emissão do canto sutil e sem vibratos, a exatidão da dicção e dos timbres, a redefinição da métrica musical. João foi, num tempo, arquiteto e bruxo. 

Porém, “Amoroso” guarda peculiaridades que justificam ainda mais estas características joãogilbertianas que por si já seriam (eram, são) suficientes. Gravado no aparelhado Rosebud Recording Studio, no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, o disco tem participações que o engrandecem e favorecem o produto final. A começar pela produção de Helen Keane e Tommy LiPuma, este último, o premiado e lendário produtor de artistas como George Benson, Al Jarreau, Paul McCartney, Barbra Streisand e outros. Na banda de apoio, três gringos: Jim Hughart, no baixo; Joe Correro, bateria; e Ralph Grierson, teclados. O mínimo e o suficiente para João desfilar seu violão. Mas isso se junta a outro fator importantíssimo: a orquestra, arranjada e conduzida pelo brilhante alemão Claus Ogerman. Compositor de mão cheia, requintado e arrojado, Ogerman foi o responsável, dentre outros feitos, pelos arranjos dos memoráveis discos de Tom Jobim pela A&M Records, “Wave” e “Tide”, outros dois marcos da saga de sofisticação da bossa-nova na música mundial. Até a capa de “Amoroso”, algo externo às gravações, acompanha tal elegância: uma pintura de uma figura feminina em tons modernistas do artista trinitino Geoffrey Holder.

Cenário montado para João entrar com sua arte. No repertório, sagazmente escolhido a dedo por ele, de standarts do folclore norte-americano, passando por canções em italiano e espanhol até samba antigo e, claro, o cancioneiro bossanovista. Uma releitura de Gershwin abre o disco. Dois acordes dissonantes da orquestra: é “'S Wonderful”, escrita em 1927 para o musical “Funny Face”, que aqui ganha a pronúncia do inglês deliberadamente abrasileirada, que dá a este cartão-de-visitas um toque ainda mais próprio. É como se a letra funcionasse e suas palavras para a intrincada construção harmônica proposta ao se verter o popular song para o gingado do samba. Quanta sabedoria de João ao estender o corpo do perfil sonoro desde seu ataque até sua queda justa e sem ondulações. É a Broodway subindo o morro. 

A orquestra de Ogerman vem intensa e abre caminho para a voz e violão de João em “Estate”, num lindo arranjo que conta, além das cordas, madeiras e metais, com frases do teclado de Grierson. Levantando o astral – afinal, para ser “amoroso”, não precisa sempre sofrer chorando –, João resgata o saboroso samba da década de 40 do multiartista carioca Haroldo Barbosa, autor invariavelmente valorizado pelo criador da bossa-nova. “Tin Tin Por Tin Tin”, com seus marotos versos iniciais, fala de um rompimento de relação (“Você tem que dar, tem que dar/ O que prometeu meu bem/ Mande o meu anel que de volta/ Eu lhe mando o seu também”), mas de uma forma tão graciosa (e malemolente), que até dá a impressão de tratar-se de um amor feliz. O canto de João, que agrega sutis síncopes e vocalises, integra-se de tal forma ao toque do pinho, que parecem provir da mesma natureza. E quem há de dizer que não?

João Gilberto tocando "Tin Tin por Tin Tin", em vídeo do "Fantástico", à época do lançamento do "Amoroso"

Melancólico, o popular bolero “Besame Mucho”, de 1940, remonta ao México sentimental e apaixonado onde João viveu anos antes – país onde, inclusive, ele gravou o excelente disco “João Gilberto en Mexico” ou “Farolito”, de 1970. Mais uma vez, a orquestra carrega na intensidade mas, na sequência, engendra uma delicada transição para Joãozinho brilhar. Isso sem contar com a parte da orquestra no meio da música, nada menos do que deslumbrante. Não é exagero dizer que, a se considerar a inteligência melódica de João neste número, está-se diante de uma das cinco melhores interpretações deste tema incontáveis vezes regravado em todo o mundo.

Para finalizar a segunda parte ou o correspondente ao lado B do vinil original, João escolhe reverenciar aquele que é indiscutivelmente o mais importante compositor da bossa-nova: o amigo Tom Jobim. São de autoria dele as últimas quatro faixas, a metade do álbum, como a marcante versão do clássico “Wave” e a igualmente classuda “Triste”. Em ambas nada está fora do lugar. Tudo é perfeitamente exato. A voz calma, quase silenciosa, mas firme e inteira, se entrelaça às cordas e a banda numa combinação cristalina.

Além destas, outras duas parcerias do Maestro Soberano em que João destila sua personalidade ao mesmo tempo forte e sutil. Primeiro, uma emocionante “Caminhos Cruzados”, coescrita com Newton Mendonça, em que João arrasta o compasso, dando alto grau de sensibilidade para o romântico tema que fala de encontros e desencontros da vida amorosa. O filho musical Caetano Veloso, em seu “Verdade Tropical’, considera esta música uma das mais emblemáticas da bossa-nova, dizendo que “é uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizada; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba”.  

A outra, que fecha o disco, é “Zingaro”, escrita em 1965 originalmente instrumental e que ganhou letra de Chico Buarque anos depois para virar “Retrato em Branco e Preto”. Nesta, João empresta dramaticidade à dolorida carta de despedida de um relacionamento: “Novos dias tristes, noites claras/ Versos, cartas, minha cara/ Ainda volto a lhe escrever/ Pra lhe dizer que isso é pecado/ Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado e você sabe a razão”. E desfecha: “Vou colecionar mais um soneto/ Outro retrato em branco e preto/ A maltratar meu coração”.

Compêndio de canções românticas de diversas vertentes, “Amoroso” é, acima de tudo, o refinamento daquilo que já era refinado. O “crème de la crème” da bossa-nova, esta corruptela do samba que já nasceu apurada. João, autor da batida-motriz do gênero, algo mecanicamente simples, mas musicalmente complexo visto que capaz de sugerir uma infinidade de fruições melódicas e harmônicas, avançou ainda mais com este disco. Se seu violão já era capaz de condensar o novo e o antigo, com a adição da orquestra esse poder simbólico da bossa-nova se redimensionou. Não se trata do pastiche americanizante do arranjo dos “samboleros” dos tempos da Rádio Nacional, descaracterizadores muitas vezes da raiz africana da cultura brasileira pela vergonha de si próprio, mas, sim, a modernidade em prol do estilo musical que abraçou a essência nacional e a propagou mundo afora. Consciente de seu papel policarpiano, João devolve ao samba a dimensão eloquente (aventada por Francisco Alves e Pixinguinha) que lhe foi negada. Assim como a bossa-nova, símbolo de um Brasil possível, João, como um Robin Hood, resgata o que é de direito desde que o samba é samba. Quem mais poderia supor a ligação de uma ponte assim, tão mágica e intrincada de se realizar? Somente um arquiteto ou um bruxo. João era os dois.

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“Amoroso” saiu conjuntamente com o disco “Brasil”, de 1981, já resenhado nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. em edição em CD em 1993, porém, mantendo-se como capa a sua arte e alterando-se apenas o enunciado do título para “Amoroso/Brasil”. As mesmas gravações de "Amoroso" aparecem também na íntegra, porém em ordem diferente e intercaladas com parte das faixas de "Brasil", na coletânea da série "Mestres da MPB - João Gilberto", editada em 1992.

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FAIXAS:
1. “'S Wonderful” (George Gershwin/Ira Gershwin) - 4:07
2. “Estate” (Bruno Brighetti/Bruno Martino) - 6:30
3. “Tin Tin Por Tin Tin” (Geraldo Jaques/Haroldo Barbosa) - 3:37
4. “Besame Mucho” (Consuelo Velaquez) - 8:43
5. “Wave” (Antonio Carlos Jobim) - 4:35
6. “Caminhos Cruzados” (Jobim/Newton Mendonça) - 6:12
7. “Triste” (Jobim) - 3:35
8. “Zingaro (Retrato em Branco e Preto)” (Jobim/Chico Buarque) - 6:23


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de março de 2017

Dom Um Romão – “Dom Um Romão” ou “Braun-Blek-Blu” (1973)




As duas capas: edição original e
da reedição de 1974
“Agora as mesas foram viradas. 
Os brasileiros estão contratando músicos 
de jazz para tocar sua música. 
É ainda um casamento da música
 brasileira e do jazz, mas o corte 
está sendo feito do ponto de vista brasileiro.” 
Gary Giddins,
no texto original 
da contracapa do LP



Quando o jazz fusion, no final dos anos 60 e início dos 70, escancarou as portas do jazz tradicional, mesclando-o ao gênero mais pop do século XX, o rock, um novo paradigma se abriu. Até então fortemente ligado ao ritmo dançante do swing, ao virtuosismo do be-bop e à sofisticação do cool, o jazz passava a ser, na prática, tudo: rock, funk, vanguarda, clássico, ritmos latinos, música indiana, oriental, etc.. Para bem ou para mal, qualquer coisa que minimamente se valesse de elaboração musical passou a também poder ser considerado jazz. Houve quem se favorecesse com tal releitura, caso da música brasileira. Principalmente pós-bossa nova, o Brasil e seus músicos entraram de vez no mapa da música moderna e passaram a ditar, Tetê a Tetê com norte-americanos e europeus, os rumos da arte musical “culta”. Tom Jobim, João Donato, Moacir Santos, Eumir Deodato e Sérgio Mendes, nos Estados Unidos desde os anos 60, desbravaram essa trilha. Agora uma nova e ainda mais arejada geração de brazucas desembarcava nos “states”. Os percussionistas, em especial, considerando as características da música brasileira, tiraram vantagem. Caso dos rapidamente reconhecidos Naná Vasconcelos e Airto Moreira e de outro craque das baquetas, que ganhou os corações e mentes dos exigentes jazzistas: Dom Um Romão.

Dono de um estilo único e muito natural que une a versatilidade adquirida nas orquestras da noite carioca à alta técnica da sincopa e das divisões rítmicas, Romão tem uma história peculiar. Filho de um também baterista, literalmente herdou-lhe o dom, pondo-o em prática, nos anos 50, nos bares boêmios do Beco das Garrafas. Cedo, já havia realizado feitos invejáveis para qualquer músico de sua geração: no Brasil, participara, em 1958, da gravação do marco inicial da bossa nova “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, e, alguns anos mais tarde, do memorável “O Som”, da Meirelles e os Copa 5, de 1964, o “A Love Supreme” brasileiro. Já nos Estados Unidos, integrou a “cozinha” do clássico “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”, em 1967, e substituíra o amigo Airto na mitológica banda Weather Report, a maior referência do jazz fusion, tocando, de 1972 a 1976, ao lado de feras como Wayne Shorter, Josef Zawinul, Alphonso Johnson e Eric Gravatt. Mas faltava-lhe o trabalho solo no exterior (já tinha um LP homônimo, de 1964, gravado no Brasil), aquele que ratificasse não apenas suas qualidades como instrumentista, mas também como compositor e band leader. A oportunidade veio em 1973, quando o cultuado selo Muse o chama para realizar um projeto à altura de seu merecimento.

A reverência ao novo contratado fica evidente pelo time convidado a participar das gravações. O set reuniu uma lista extensa de músicos: dos “gringos”, figuras referenciais como Stanley Clarke e Frank Tusa, no contrabaixo; Gravatt, na percussão; Lloyd McNeill, flauta; Joe Beck, guitarra elétrica; Jerry Dodgion; sax-alto e flauta; Richard Kimball, sintetizador; Mauricio Smith, sax-soprano e flauta; Jimmy Bossey, sax-tenor; e William Campbell Jr., trompete. Ainda, como não poderia deixar de ser, o disco conta com músicos brasileiros – e não quaisquer músicos –: no órgão e no piano acústico, Sivuca; no harpischord, Donato; no piano elétrico e acústico, Dom Salvador; na percussão, Portinho; e no violão, Amauri Tristão.

“Dom Um Romão” traz seis faixas de absoluta perfeição e que representam a contribuição sui generis que o Brasil dava à nova feição do jazz: o samba, o baião, o maracatu e os ritmos folclóricos brasileiros e latinos fundidos ao hard-bop, ao jazz modal, ao cool jazz. Tudo começa na espetacular “Dom’s Tune”, um “cartão de visitas” arrasador que virou tema cult entre os músicos e admiradores tardios de Romão. Pura destreza e musicalidade, a começar pela rica percussão do próprio autor, que comunga vários instrumentos como caxixi, chocalho, pratos, chipô, tamborim e sinos. Sobre uma base modal de tempo 5/3 do piano de Dom Salvador, Beck esmerilha a guitarra, solando os mais de 8 minutos do número. Isso sem falar dos sintetizadores de Richard Kimball, das incursões percussivas de Portinho e da frase repetida dos sopros que, a partir da segunda metade, passam a dar um riff para a música. Certamente um dos melhores exemplares do jazz dos anos 70.

Segue “Cinnamon Flower”, uma versão bastante original de “Cravo e Canela”, de Milton Nascimento, evidenciando a inventividade harmônica e melódica do compositor mineiro, muito a ver com o jazz contemporâneo. Em ritmo de baião, tem Romão percutindo a trinca típica do gênero (bumbo-caixa-triângulo), além do riff executado nas flautas, os quais evocam aqueles lindos versos: “A lua morena/ A dança do vento/ O ventre da noite/ E o sol da manhã/ A chuva cigana/ A dança dos rios/ O mel do Cacau/ E o sol da manhã”. A guitarra com pedal wah-wah faz não só a levada como também o principal solo, dando ainda mais modernidade a um tema de raízes folk. O melhor do jazz fusion, mas num ritmo tão tipicamente tupiniquim, que somente um brasileiro podia estar à frente.

Romão relembra os tempos de bossa nova num tema altamente elegante: “Family Talk”. Composição sua mas que bem poderia ser de Tom Jobim nalgum de seus discos da A&M, “Tide” ou “Wave” (este último, em que o baterista participa), haja vista a parecença da sonoridade transparente e o conceito musical sofisticadíssimo: dominante em “Sol”, batida de violão ao estilo João Gilberto, baixo acústico trasteando como o de Ron Carter, a levada malemolente da bateria no aro da caixa e, principalmente, o arranjo, que privilegia a flauta como executora do riff. Perfeita. Não bastasse, o mestre Donato aparece para fazer um solo bem a seu estilo: econômico e inteligente.

Assim como a segunda faixa, “Ponteio” é mais uma releitura de clássico da MPB, esta agora, que em muito lembra Shorter e a Weather Report, talvez a versão mais inspirada que a composição de Edu Lobo e Capinam pudesse ganhar. Romão comanda um constante triângulo, enquanto seu xará Dom Salvador, o electric piano. É o pianista também quem desvela um rico solo no teclado acústico, que tem por trás as inventivas viradas e variações rítmicas de Romão na bateria, enquanto os intensos baixo de Clarke e congas de Gravatt mantém uma atmosfera caribenha. Outro solo, agora de flauta na segunda parte, incute ainda mais a complexidade jazzística ao tema, que não perde, entretanto, o teor grave da melodia original, a qual remete inevitavelmente às rodas e duelos de viola nordestinos.

“Braun-Blek-Blu”, que informalmente dá nome ao disco, é outro espetáculo à parte. Sozinho no estúdio, somente ele e seu aparato, Romão substitui uma bateria de escola de samba inteira. Ao mesmo tempo em que é um samba marchado e acelerado, exigindo alta técnica e controle dos tempos, lembra, sem erro, também o maracatu rural do Nordeste brasileiro com seus tambores, chocalhos e gonguê. Hábil, o percussionista consegue variar o compasso, acelerando e desacelerando o ritmo. Isso, enquanto executa viradas e ataques junto com os próprios vocalises, que se hegemonizam às batidas. Nada menos que impressionante.

O sertão dos trópicos retorna com a interpretação de mais um hino do cancioneiro brasileiro: “Adeus, Maria Fulô”. No entanto, Romão e Cia. dão uma pegada de latin jazz explosivo ao singelo baião. E com consentimento do próprio autor, Sivuca, que comanda o órgão e o piano, enquanto o sax soprano de Mauricio Smith anuncia, apenas em sons, o riff (“Adeus, vou-me embora, meu bem/ Chorar não ajuda ninguém/ Enxugue o seu pranto de dor/ Que a seca mal começou”). O mesmo Smith é quem manda um belo solo, desta vez improvisando com total liberdade no tenor. Romão preenche o espaço com uma rara multiplicidade de texturas e cores, ajudado pela percussão de Gravatt e Portinho. Um final digno a um disco irreparável do primeiro ao último acorde.

Como disse o jornalista Maurício Pinheiro:“No viés de reinvenção dos conceitos do jazz moderno, o álbum é um testemunho dos estímulos provocados por essa geração que marcou o início dos anos 1970”. Junto com trabalhos igualmente essenciais e revolucionários dos compatriotas Airto, (“Fingers”), Flora Purim, (“Butterfly Dreams”) e Hermeto Pascoal (“A Música Livre de Hermeto Pascoal”) – todos do mesmo ano e gravados nos Estados Unidos –, “Dom Um Romão” marca uma fase áurea do jazz moderno brasileiro no exterior, servindo de referência até os dias de hoje para músicos (brasileiros ou não) das mais diferentes vertentes. Afinal, tudo é jazz.

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Reeditado dois anos depois com nova arte, em 1990, a 32 Jazz lançou em um único CD, intitulado “The Complete Muse Recordings”, os dois trabalhos de Dom Um Romão pelo selo Muse, este e o também ótimo “Spirit of the Times”, de 1974, do qual se incluíram suas sete faixas: “Shakin' (Ginga Gingou)”, “Wait On The Corner”, “Lamento Negro”, “Highway”, “The Angels”, “The Salvation Army”, e “Kitchen (Cosinha)”.

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FAIXAS:
1, “Dom’s Tune” (Dum Um Romão) - 8:39
2. “Cinnamon Flower” (“Cravo e Canela”)(Milton Nascimento) - 3:30
3. “Family Talk” (Romão) - 5:30
4. “Ponteio” (Edu Lobo/Capinam) - 6:30
5. “Braun-Blek-Blu” (Romão) - 4:40
6. “Adeus, Maria Fulô” (Sivuca/Humberto Teixeira) - 7:59

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues