"Você não sente, não vê mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer"
da letra de "Velha Roupa Colorida"
Acho que ninguém em perfeito juízo discorda de que Elis Regina foi uma das melhores, senão a maior cantora brasileira de todos os tempos. Logicamente, em pleno gozo de minha sanidade, me junto a esse coro quase unânime entre os apreciadores de música neste país. Embora admire seu repertório, é uma artista da qual não domino informações sobre sua obra. Talvez pelo fato de que alguns de seus clássicos apareçam em maus de um formato, em mais de um álbum, com parceiros diferentes, etc. Tem "Águas de Março", com Tom, sem Tom, ao vivo, no estúdio, alegre, emburrada..; tem "Tiro ao Álvaro", com Adoniram, sem Adoniram, no disco solo, dando risada no do programa de TV; tem "Bêbado e a Equilibrista", bêbada, sóbria, equilibrada, caindo... e nisso, ainda que idolatrando a cada uma dessas versões, cada interpretação, eu sempre tão interessado em datas, set-lists, álbuns, etc., nunca me esforcei em saber onde se localizavam essas músicas na discografia de Elis Regina.
Só que de uns tempos pra cá, vinha observando a constante referência a um álbum específico e ele, então, passou a me chamar atenção. "Falso Brilhante" era destacado em sites como um dos melhores discos de Elis, aparecia em listas de melhores discos brasileiros, era mencionado como influência por algum músico da minha preferência, era amplamente reverenciado aqui e acolá, e aí que fui atrás de mais informações sobre o tal disco.
Era o disco de "Fascinação", um dos maiores clássicos do repertório da cantora, numa interpretação inesquecível de uma delicadeza precisa e emocionante. Mas também era o disco de "Como Nossos Pais", o rock de Belchior que tentava dar uma sacudida numa juventude estagnada, e que Elis interpretava com uma força e uma intensidade absurdas. Inigualáveis! Sim era Elis cantando rock! E não era o único: "Velha Roupa Colorida", também de Belchior, e também sobre atitude, era outra canção carregada de rock'roll e que, igualmente Elis depositava garra, potência, vibração, chegando a rasgar a voz, dando tudo de si, num dos melhores momentos do álbum. Mas há outros pontos altos: "Gracias a la Vida", de Violeta Parra parece carregar a força da resistência da mulher latina contra os regimes autoritários que prevaleciam aqui e no Chile, terra da autora. Bem como "Los Hermanos", do argentino Atahualpa Yupanqui, uma espécie de convocação à união em nome da mais bela "irmã", a liberdade.
E tem ainda três de João Bosco com Aldir Blanc, "Um por todos", "Jardins de Infância" e "O Cavaleiro e os Moinhos", sempre com a sonoridade rica e aquele tom ácido característico da dupla; e pra fechar ainda, uma versão de arrepiar de "Tatuagem" de Chico Buarque, numa releitura ímpar, na interpretação de Elis.
Alguns afirmam que "Falso Brilhante" seria o disco em Elis que cantava rock, e se formos parar para analisar, não está muito longe da verdade: as duas de Belchior, logo de saída; "Quero", muito Beatles; a releituras de Bosco e Blanc, pungentes e carregadas nas guitarras; e mesmo as duas versões dos hermanos, andinos e platenses, que exploram, combinam e incorporam as alternativas e possibilidades de outros ritmos e nacionalidades, como tão bem costuma fazer o rock'n roll.
Se "Falso Brilhante" é o disco rock de Elis, acho que, possivelmente, deva ser por isso que gosto tanto dele. O brilho verdadeiro de uma estrela. Um diamante cuidadosamente lapidado. Uma verdadeira joia musical.
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FAIXAS:
1. Como Nossos Pais (Belchior) 2. Velha Roupa Colorida (Belchior) 3. Los Hermanos (Atahualpa Yupanqui) 4. Um Por Todos (João Bosco/Aldir Blanc) 5. Fascinação (Fermo Dante Marchetti, Maurice de Féraudy. Versão: Armando Louzada) 6. Jardins De Infância (João Bosco/Aldir Blanc) 7. Quero (Thomas Roth) 8. Gracias A La Vida (Violeta Parra) 9. O Cavaleiro E Os Moinhos (João Bosco/Aldir Blanc) 10. Tatuagem (Chico Buarque)
“Não
é o sucesso, é o contrário: é o sufoco mesmo,
é a vontade de
cantar e de falar.
Só que de repente isso não foi possível de
acontecer a nível popular,
porque a cada dia as pessoas têm mais
medo, não têm defesa,
cada vez sabem menos o que está acontecendo.
Aí você vem e começa a cantar umas coisas
que elas gostariam de
dizer e cantar.
A razão do sucesso, então, não é bem ele mesmo.
Talvez a razão dele seja o fracasso de todo mundo.”
João
Bosco,
em entrevista de 1976
sobre o disco “Galos de Briga”
Este
mês de abril de 2014 não ficará marcado apenas pelas vésperas de
Copa do Mundo no Brasil (quando se espera dos cidadãos, sem querer
pedir muito, civilidade) ou pelas celebrações de 222 anos pela
memória do “patrono cívico” brasileiro, Tiradentes, mas,
também, por outra data de importância patriótica menos feliz,
porém necessariamente rememorável: os 50 anos do começo da
Ditadura Militar, em 1º de abril de 1964. Diante de tantas
manifestações contra a realização da Copa, de mais um feriado que
não se acessa o verdadeiro motivo da paralisação nacional e de
tantas controvérsias em razão dos arquivos ainda velados dos porões
da ditadura, o que seria capaz de unir de alguma forma futebol,
liberdade civil e política, representando essas três datas
distantes cronologicamente, mas próximas em simbologia?
Um
disco que une esses três polos como nenhum outro é “Galos de
Briga”, terceiro da carreira de João Bosco. Gravado em 1976 pela
RCA Victor, este sucesso de público e crítica à época é fruto,
curiosamente, de um momento de alta ebulição no Brasil: enquanto
Geisel iniciava seu governo anunciando uma “abertura lenta e
gradual”, o AI-5 inda vigorava e barbaridades aos direitos humanos
ainda ocorriam em todos os cantos do País. A Lei Falcão punha uma
mordaça na oposição política; a estilista e mãe de guerrilheiro
Zuzu Angel, pedra no sapato dos militares, morria num ainda
inexplicado acidente de carro no mesmo fatídico abril; meses antes,
o jornalista Vladmir Herzog era assassinado dentro
doDOI-CODI.
Torturas tomavam os porões do DOPS e pessoas desapareciam sem
praticamente ninguém saber. Porém, a resistência se mostrava
forte: o rabino Henry Sobel e Dom Evaristo Arns comandam a missa
ecumênica em nome de Vlado na Praça da Sé, reunindo milhares de
pessoas que, sob o olhar e a mira dos policiais, rezam
silenciosamente; Ulysses Guimarães fundava a OPB, Ordem dos
Parlamentares do Brasil, associação sem vínculos partidários,
religiosos ou sociais que representava a luta pela abertura política;
o PCdoB, esfacelado na Guerrilha do Araguaia, voltava a se
reorganizar através das lideranças estudantis. O Brasil estava
pegando fogo, e a classe artística, obviamente, ansiava por se
manifestar, por resistir de alguma forma.
Eis
então que, no início dos anos 70, através do meio universitário,
se dá o encontro de João Bosco com Aldir Blanc. João, um mineiro
que virou carioca, mas que nunca perdeu a vastidão poética de Minas
Gerais dentro de si. Aldir Blanc, típico poeta maldito da Rio de
Janeiro carnavalesca e vadia, do fervor pelo futebol e pela
militância política. A fusão dessas duas forças artísticas foi
explosiva, e eles criam com “Galos de Briga” uma obra que é tapa
contundente na cara do regime em mensagens inteligentes aos milicos e
aos mantenedores do sistema. Com crítica social, combatividade e um
posicionamento de esquerda visível, o álbum só podia ter este
título, uma vez que, como animais de rinha, eles vão para o
enfrentamento com as armas que têm: os sons e a palavra.
Exímio
violonista e compositor, amante de Clementina de Jesus, dos mitos da
Rádio Nacional, de sambas antigos, de João Gilberto e do populacho
das rádios AM, João consegue criar desde boleros emanados dos
puteiros do baixo meretrício da Lapa até sambas gingados, passando
por ritmos portugueses e marchas da antiga. Isso, aliado à poesia
afiada de Aldir. É esse arsenal rítmico e melódico que “Galos de
Briga” traz, como uma dupla de atacantes habilidosos que tiram da
cartola jogadas inesperadas. O clássico samba "Incompatibilidade de Gênios" dá o pontapé inicial com seu humor ácido, já
pontuando a crítica social de um país que persegue e mata seus
filhos enquanto, dentro dos lares, a violência e a incompreensão
reinam. A referência ao futebol, tanto como paixão do brasileiro
como fuga da realidade, já aparece no primeiro verso na rusga entre
marido e mulher: “Dotô, jogava o Flamengo, eu queria escutar/
Chegou, mudou de estação, começou a cantá...” Na mesma
linha, porém ainda mais aguda, “Gol Anulado” usa o futebol de
forma metafórica para expressar a mesma incompatibilidade entre amor
e o momento político de dureza e opressão, o que, numa sociedade
ignorante, machista e inculta, desemboca na válvula de escape, o
futebol. É o caso do marido que espanca a mulher por que ela mentia
ser vascaína como ele, mas, na verdade, torcia pelo rival Flamengo.
“Quando você gritou Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem
pensar o cinto/ E bati até cansar...” E desfecha, reforçando
esse simbolismo maléfico que o entretenimento futebol
desgraçadamente pode ter: “Eu aprendi que a alegria/ De quem
está apaixonado/ É como a falsa euforia/ De um gol anulado”.
De
igual potência crítica, “O Cavaleiro e os Moinhos”, das canções
imortalizadas na voz de Elis Regina (lançadora de João e Aldir em
1972, ao gravar-lhes o hit “Bala com Bala”), inicia com um
provocador ritmo de marcha militar sob os versos: “Arrebentar/ a
corrente que envolve o amanhã/ Despertar as espadas/ Varrer as
esfinges das encruzilhadas...”. De repente, o clima marcial se
transforma numa debochada rumba! E a letra, pontuda como um bico de
galo, continua atacando: “Todo esse tempo/ foi igual a dormir
num navio/ sem fazer movimento/ mas tecendo o fio da água e do
vento/ Eu, baderneiro/ me tornei cavaleiro/ malandramente/ pelos
caminhos”. E, exaltando os diversos grupos da guerrilha armada,
finaliza referenciando Cervantes: “Meu companheiro/ tá armado
até os dentes/ já não há mais moinhos/ como os de antigamente”.
Afinal, numa época como aquela, quem era o “louco Quixote” e
quem era o “moinho”?
O
suingue caribenho reaparece na gostosa “Rumbando”, assim como o
bolero nas não menos deliciosas “Latin Lover” (já gravada por
Simone um ano antes) e “Miss Suéter”, o antigo certame
que destacava as jovens que apresentavam os bustos, digamos, mais
avantajados. Aldir penetra no universo brega de forma
engraçada e crônica (“Eu conheço uma assim/ Uma dessas
mulheres/ Que um homem não esquece/ Ex-atriz de TV/ Hoje é
escriturária do INPS/ E que, dia atrás/ Venceu lá no concurso de
Miss Suéter...”) e João realiza o sonho de fazer duo com uma
de suas divas, Ângela Maria, que executa uma impressionante
progressão tonal no riff com sua treinada voz de contralto.
Embora
ainda tenha o divertido partido-alto “Feminismo no Estácio“ e o
samba-canção “Vida Noturna”, típica fossa-boemia-carioca,
o negócio naquele momento era mesmo partir para a briga. Aí é que
o jogo engrossa! “Transversal do Tempo”, outra eternizada por
Elis (foi título de disco e espetáculo dela, em 1978), que fala
sobre pobreza (“As coisas que eu sei de mim/ São pivetes da
cidade/ Pedem, insistem e eu/ Me sinto pouco à vontade/ Fechada
dentro de um táxi/ Numa transversal do tempo”), exílio (“As
coisas que eu sei de mim/ Tentam vencer a distância/ E é como se
aguardassem feridas/ Numa ambulância”) e desesperança (“Acho
que o amor/ É a ausência de engarrafamento”). Pungente.
Igualmente, o fado lusitano que dá título ao álbum, de poesia
rebuscada e caráter combativo: “Não o rubrancor da vergonha/
mas os rubros de ataduras/ o rubro das brigas duras/ dos galos de
fogo puro/ rubro gengivas de ódio/ antes das manchas do muro”.
(Sim, não é coincidência que a imagem das pichações com
palavras de ordem contra a ditadura venha à cabeça.)
Mas
não para por aí. A raiva de toda a sociedade civil oprimida e sem
voz parecia não caber em apenas poucas músicas para João e Aldir.
Tinham que falar, exatamente, desta raiva, deste inconformismo. Pois
então, toma!: “O Ronco da Cuíca”. Tal samba-enredo,
literalmente, enredou a censura que, burra e limitada, embaralhou-se
com seus versos circulares e envolventes, que a denunciavam como que
dizendo: “vocês até podem parar nossa reação através das
força, mas jamais serão capazes de conter nosso desejo pela
liberdade”. Uma “Opinião”, de Zé Keti, revisitada. Letra
e música geniais, que expande os sentidos e simbologias das palavras
(como na personificação do instrumento “cuíca”, dando-lhe vida
e politizando-o), uma vez que o próprio termo “fome” tanto pode
significar a crítica econômico-social da falta de comida ao povo
(talvez tenha sido isso que induzira os milicos ao erro) quanto, num
espectro maior, a urgência da democracia.
Pra
terminar, o “tiro de misericórdia” (não à toa, título do LP
seguinte de João Bosco, de 1977): “O Rancho da Goiabada”, uma
marcha-rancho aparentemente festiva mas que, como em poucas obras do
cancioneiro brasileiro, denunciam algo que se falava somente nas
esquinas e a boca pequena: a situação desumana dos boias-frias –
trabalhadores rurais escravos apelidados assim por causa das
refeições que levavam em recipientes sem isolamento térmico desde
que saíam de casa, de manhã cedo, o que faz com que estas já
estejam frias na hora do almoço. Os versos pintam um quadro
sócio-profissional perturbador, que contrasta com o ritmo de
carnaval da melodia: “Os boias-frias quando tomam umas biritas/
Espantando a tristeza/ Sonham, com bife a cavalo, batata frita/ E a
sobremesa/ É goiabada cascão/ com muito queijo...”. E
finaliza condenando sem meias-palavras os latifundiários criminosos
em suas fantasias de homens poderosos comparando-os aos soberanos
egípcios cujo tempo já passou dizendo que, bravamente, os
boias-frias: “São pais de santos, paus de arara, são
passistas/ São flagelados, são pingentes, balconistas/ Palhaços,
marcianos, canibais, lírios pirados/ Dançando, dormindo de olhos
abertos/ À sombra da alegoria/ Dos faraós embalsamados”.
João
e Aldir criaram um disco que é o retrato de um país em período de
mudanças, as quais só se concretizaram por que artistas corajosos
como eles, junto a centenas de opositores ativos – entre estes,
vários desaparecidos –, ofereceram resistência, seja em armas ou
em ideias. Estes são grandes responsáveis pela democracia que se
vive hoje num País capaz de receber, inclusive, uma Copa do Mundo
sem a sombra da vigília militar como ocorrera na Argentina em 1978.
Afinal, naquele tempo, quem se opunha sabia claramente o porquê de
estar fazendo. Não era por 20 centavos: era para viver num país
livre.
.........................................
Certamente,
foi por uma causa nobre como esta que, naquele mesmo 1976, João Bosco e Aldir Blanc recusaram o prêmio Golfinho de Ouro, conferido
pelo Governo do Rio de Janeiro, pois queriam que o premiado fosse
Cartola, uma vez que consideravam, sem modéstia burra, o trabalho do
compositor daquele ano, o histórico LP com “As Rosas não Falam”
e “O Mundo é um Moinho”, melhor do que o seu. A dupla recebeu,
então, o troféu de Compositores do Ano pela Associação Brasileira
dos Produtores de Disco.
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FAIXAS
1 -
Incompatibilidade de Gênios
2 -
Gol Anulado
3 - O
Cavaleiro e os Moinhos
4 -
Rumbando
5 -
Vida Noturna
6 - O
Ronco da Cuíca
7 -
Miss Suéter
8 -
Latin Lover
9 -
Galos de Briga
10 -
Feminismo no Estácio
11 -
Transversal do Tempo
12 - O
Rancho da Goiabada
todas
as músicas são de autoria de João Bosco e Aldir Blanc
“Embora ele defina grande parte de seu estilo através do chamativo 'pop' dos Estados Unidos, sua música mantém raízes nas correntes cruzadas dos ritmos africanos, ritmos extraídos de maneira incomum e com efeitos de acordes assombrosos, que são tão autenticamente brasileiros quanto os sons suaves e oscilantes que muitos fãs do gênero tradicional esperam”.
George W. Goodman, para o New York Times, em 1984
“Djavan é foda!”
Caetano Veloso
Brasileiro é, definitivamente, um bicho torto. A subserviência
ao que vem de fora e a famigerada “síndrome de vira-latas” prejudicam sobremaneira
a aceitação de uma identidade brasileira. Isso, é claro, recai sobre a cultura.
Na música, por exemplo, quantas vezes já seu viu um músico brasileiro ser
ignorado no próprio país e só passar a ser valorizado quando os gringos, livres
dessas amarras psicológicas, dão o seu aval? Outro fator determinante vem também
se aglutinar a isso: a abundância de talentos. São tantos, mas tantos talentos,
que o brasileiro, mal-aceito consigo mesmo, nem acredita. Não acredita que seus
pares são capazes, então prefere achar que o bom mesmo vem de fora. É mais
fácil. Talvez por isso artistas incríveis como Djavan, um monstro sagrado em
qualquer país em que tivesse nascido, não recebam a idolatria que mereçam
dentro de casa. Se Djavan fosse, digamos, natural da Dinamarca, ele viveria num
trono. Não precisa nem ir ao Velho Mundo, haja vista que deuses da música
como Quincy Jones e Stevie Wonder são dois dos que se renderam a Djavan
imediatamente ao escutá-lo.
Este alagoano, aliás, tem musicalidade já no nome: apenas uma
vogal, a letra “A”, a mais latina de todas, repetida duas vezes, que se
entremeia a quatro consoantes, formando uma marca altamente artística, forte e
de fácil assimilação: Djavan. Mas a sua originalidade não é só na teoria. Dono de uma
alma que transpira suingue e hábil em criar inusitadas divisões rítmicas,
carrega igualmente a precisão e a complexidade dos acordes certos da linhagem
jobiniana. Músico completo desde sempre, veio a público pelas mãos do midas da
MPB Aloysio de Oliveira, que lhe produziu o primeiro disco, em 1976, “A Voz, o
Violão, a Música de Djavan”. O canto de timbre macio e anasalado denota
profundo trabalho vocal, o qual se alia à assombrosa capacidade compositiva.
Igualmente, seu toque do violão supera a tradição do samba e o dedilhado da
bossa nova para lhe adicionar o jazz, o blues e a soul norte-americanas, além dos
ritmos latinos. E, claro, um punhado de tonalidades brasileiras: o baião, o
samba de roda, a toada, o batuque.
Em seu terceiro álbum, “Alumbramento”, que completa 40 anos
de lançamento, Djavan está mais aperfeiçoado musical e mercadologicamente,
visto que incrementa parcerias que se tornariam algumas das mais celebradas da
história da música braseira. Produzido por Mariozinho Rocha, o disco tem a
participação ainda de mestres como Aldir Blanc, Cacaso e Chico Buarque, três
dos mais importantes letristas da música brasileira, que se rendem às quebradas
rítmicas do autor de “Meu bem querer”. Esta, aliás, letra e música dele que, se
hoje é um clássico, à época foi o grande sucesso do álbum, entrando
imediatamente para o rol de clássicos do cancioneiro brasileiro.
Quanto às parcerias, Djavan se vale da saborosa pegada carioca
de Aldir em “Tem Boi Na Linha”, que abre o disco num samba suingado
irresistível e com a linguagem barroco-suburbana típica de Aldir (“Café com pão
no Vera Cruz/ Jejum limão em Japeri/ A bolsa e a vida dançam nesse trem/ Te
cuida!/ Sacola, cabaço, futuro, tutu/ Tem boi na linha, seu Honório Gurgel”).
Das ruas do Rio de Janeiro para o coração de Minas Gerais. Assim é “Lambada De
Serpente”, esta, escrita com Cacaso. Reflexiva, interiorana, muito mineira: “Cuidar do pé de milho/ Que demora na semente/
Meu pai disse: ‘meu filho/ Noite fria, tempo quente’/ Lambada de serpente/ A
traição me enfeitiçou/ Quem tem amor ausente/ Já viveu a minha dor”.
É com Chico, no entanto, que o diálogo entre músicos parece
ir ainda mais fundo. Primeiro, pela coautoria da faixa que dá título ao disco e
na qual o autor de “Olhos nos Olhos” parece querer mergulhar no universo de
Djavan. “Curioso é como a canção conta a história do alumbramento do próprio
Djavan: a descoberta da verdadeira relação de amor, que é a parceria de
trabalho, e a descoberta de uma relação mais aberta com a música brasileira,
para além do seu próprio universo poético musical”, escreveu o crítico musical
e autor da biografia de Djavan Hugo Sukman. É, de fato, uma canção especial
onde cada um dispõe um pouco de si, numa verdadeira comunhão. Djavan tira do
violão uma bossa nova vagarosa, sensual, que se esgueira em acordes de uma preguiça
satisfeita. Chico, por sua vez, lança as palavras exatas para esse universo
onírico e amoroso do tema: ”Deve ser bem morna/ Deve ser maternal/ Sentar num
colchão e sorrir e zangar/ Tapear tua mão/ Isso sim, isso não/ Deve ser bem
louca/ Deve ser animal”.
Tamanha conexão não poderia ficar em apenas uma faixa, e é
aí que entra o delicioso samba “A Rosa”. Tradução da nova e empodeirada figura
feminina a qual Chico já percebia àquela época, ambos cantam em versos hilários
(mas não menos cronistas) o encantamento incondicional de um homem por sua
musa, esta, por sua vez, totalmente independizada e emancipada das amarras
sociais que recaem sobre as mulheres. Rosa é amoral, não deve satisfação pra ninguém e comprometida consigo
mesma antes de mais nada: carinhosa, mas muda de humor e de opinião sem
constrangimento e explicação;gosta de
sexo, mas não necessariamente só com o parceiro; é “do lar” quando quer, mas
não titubeia em pegar as coisas e sair de casa sem aviso prévio. O homem, por
seu turno, totalmente desarmado, é incapaz de enxergar defeitos nela e a admira
cada vez mais. Os engraçados versos iniciais comprovam: “Arrasa o meu projeto
de vida/ Querida, estrela do meu caminho/ Espinho cravado em minha garganta/
Garganta/ A santa às vezes troca meu nome/ E some/ E some/ Nas altas da
madrugada”. Somente de Chico, a música tem tanta cara de Djavan, que é normal
confundirem se tratar de uma coautoria.
Mas quem é mestre como Djavan sabe se virar muito bem
sozinho. Sé dele são o delicado samba-canção “Sim e Não” e a lúdica “Dor e Prata”, assim como o samba sincopado de
alta maturidade melódica “Sururu de Capote”, esta última, tão
emblemática do estilo de Djavan que se tornou, a partir de então, o nome da
banda que o acompanharia nos palcos. Haveria lugar ainda para mais um samba em parceria com Aldir,“Aquele Um”, e para a influência do Clube da Esquina com "Triste Baía de Guanabara", de Casaso e Novelli.
Já no trabalho seguinte a “Alumbramento”, “Seduzir”, de um
ano adiante, Djavan seria gravado por Roberto Carlos, o que o tornaria,
definitivamente, popular em terras brasileiras. Dois anos depois, em “Luz”,
gravado em Los Angeles, Quincy Jones o produz e o mundo do jazz norte-americano
se rende a seu talento. Mas parece pouco. Mesmo com o sucesso internacional e empilhando
hits anos 80 afora, como “Samurai”, “Açaí”, “Flor de Lis”, “Lilás”, “Capim”, “Oceano”
e outros, até hoje parece haver um descompasso. É tão normal no Brasil uma obra
gigantesca em qualidade como a de Djavan considerando a
existência de vários monstros sagrados da MPB como Chico, Caetano, Gil,
Tom Jobim, Milton Nascimento e outros, que ocorre uma espécie de amortecimento.
Sabe-se da qualidade, mas não se tem condições para se admirar suficientemente.
Pelo contrário: parte do público brasileiro, incapaz de apreciar com um pouco
de profundidade, ainda imputa-lhe a pecha de inventor de letras “sem sentido”. Para
piorar a situação, o próprio Djavan recentemente veio a público manifestar-se a
favor do atual Governo, desgostando muitos fãs e contrariando toda uma
ideologia de respeito aos direitos humanos que alguém que escreveu músicas como
“Soweto” e popularizou as tranças rastafari no Brasil parecia acreditar. Mesmo assim,
nada atinge a excelência de sua música. Se fosse na Dinamarca, seu trono
estaria garantido.
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FAIXAS: 1. "Tem Boi Na Linha" (Djavan/Aldir Blanc/Paulo Emílio) - 2:39 2. "Sim ou Não" - 3:16 3. "Lambada de Serpente" (Djavan/Cacaso) - 3:27 4. "A Rosa" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:24 5. "Dor e Prata" - 2:54 6. "Meu Bem Querer" - 3:26 7. "Aquele Um" (Djavan/Aldir Blanc) - 3:07 8. "Alumbramento" (Djavan/Chico Buarque) - 3:32 9. "Triste Baía de Guanabara" - (Novelli/Cacaso) - 2:59 10. "Sururu de Capote" - 2:54 Música de autoria de Djavan, exceto indicadas
e a direção do programa ficou a cargo do
Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o
repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em
1990.
Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal
acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira
pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada
emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de
então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu,
trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas
alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas
novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e
do Jornalismo ou mesmo pela programação.
Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto
também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras
do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em
especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país
em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical
tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com
dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro
escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal
jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”,
se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”. Virtuose do violão e dono de estilos de tocar
e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um
apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele
que é talvez o melhor unplugged
realizado nesses pagos tropicais.
O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos,
por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no
qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no
palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta
percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há
nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos
dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do
lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já
acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com
parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após
uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde
dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas
tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo
e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz,
engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de
Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado
álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre
serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/
Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.
Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no
formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e
sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base
sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui
navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E
selvas, portos, places/ Línguas,
sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem
no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números
bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade
daquele público então presente.
Este papel de resgate cabe ao medley
com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha”
(1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele
com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança
da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito
por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa,
repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual
conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta
da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de
Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e
imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças
não-terrenas (“Òrun”). Os versos
dizem: “Exus na capa da noite soltara a
gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como
puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata
no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas
sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas
pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por
exemplo), alteram seu estado (“A doideira
da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que
admirável.
Outro medley traz as “líticas”
“Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças
essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a
do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo
tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E
que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência”
são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos
lindos e profundos esses: “Eu já esqueci
você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre,
busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.
“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos
anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que
são várias a disputar!). “Meu coração
tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e
a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o
tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes
as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de
pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e
estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre
acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência
melódico-harmônica sui generis, algo que
somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.
Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima
rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60)
em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e
Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações,
representadas ali pela jovem plateia: “A
blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se
as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que
partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo
tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras
com a voz a la Clementina de Jesus
típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o
que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial
ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock,
pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é
simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.
O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez
mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura
venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo
acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara
na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para
(mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram
a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando
totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi
a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda
uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos
principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que
enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma
contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música
brasileira.
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FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
“’D’ é um instantâneo de uma banda lidando com uma recém-conquistada consagração em plena forma. O disco não encerra um ciclo artístico, pelo contrário, coloca possibilidades sobre a mesa, exala total frescor e antecipa as direções que o grupo seguiria, profundamente transformado por este aceno ao Brasil. Jamais eles seriam os mesmos.”Carlos Eduardo Lima, jornalista e historiador
Desde muito cedo tive uma ligação especial com Os Paralamas do Sucesso. Quando comecei a gostar de música, nos anos 80, ali pelos 7, 8 anos, era o Paralamas, entre os grupos surgidos no rock brazuca da época, que mais me faziam a cabeça. Gostava, claro, da Legião Urbana, dos Titãs, do RPM, do Capital Inicial e de outras. Mas o power trio formado por Herbert Vianna (guitarra e vocais), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria) me transmitia algo a mais. Talvez já antevisse o meu gosto – que mais crescido passaria a tomar lugar igualmente especial em meu imaginário musical – pelos ritmos latinos e brasileiros, aos quais cedo souberam mesclar a seu rock potente e melódico. Tanto é fato essa ligação forte com a banda que o meu primeiro disco que ganhei, no Natal de 1986, foi um cassete de “Selvagem?”, daquele ano, disco no qual o Paralamas consolidava o discurso social e seu estilo de rock tomado de reggae e ska jamaicanos, mas também conectado com os ritmos Brasil e a América Latina.
Sucesso nas rádios, uma apresentação histórica no primeiro Rock in Rio e três discos lançados deram ao grupo a maturidade suficiente para os levar ao Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Acompanhada do hoje “quarto Paralama”, o não à toa chamado João Fera, que estreava com eles nos teclados, a banda desembarcava no festival mais democrático e amplo do jazz mundial, repetindo o feito de outros brasileiros que marcaram época por lá, como Elis Regina, Gilberto Gil e João Gilberto. Se no passado estes foram os responsáveis por difundir a MPB na Europa, agora era a vez da mais completa banda do rock brasileiro dos anos 80 mostrar o que esta geração tinha de melhor. O resultado disso é o brilhante disco “D”, registro ao vivo que está completando 30 anos.
Com os quatro tocando tudo e mais um pouco sobre o palco, “D” tem repertório muito bem escolhido, valorizando, obviamente, a safra do último trabalho em estúdio, mas também incluindo hits, material novo e até surpresas. De “Selvagem?”, há as versões irrepreensíveis da filosófica “O Homem” (“O homem traz em si a santidade e o pecado/ Lutando no seu íntimo/ Sem que nenhum dos dois prevaleça...”) e do reggae-punk “Selvagem”, tão político e cru que poderia muito bem ser uma canção dos Titãs – tanto tem semelhança, que Herbert canta incidentalmente durante a execução "Polícia", clássico deles.
Ainda referentes à turnê do recente álbum, outras duas: "A Novidade", que reproduz o reggae suingado da original, imbatível diante das outras duas versões ao vivo que a música ganhou anos depois: uma, com o coautor, Gil, em 1994, num reggae arrastado, e a meio ragga, que os Paralamas gravariam em “Vâmo Batè Lata”, de 1995. Além disso, o primor da letra de Gil - com quem a parceria já denotava a intencionalidade de maior diversidade sonora da banda - merece sempre destaque: lírica, reflexiva, surrealista: “A novidade era o máximo/ Do paradoxo estendido na areia/ Alguns a desejar seus beijos de deusa/ Outros a desejar seu rabo pra ceia”. A segunda é a salsa pop "Alagados", um dos hits da época que, na esteira da MPB de protesto dos anos 70, denunciava as condições indignas de vida dos miseráveis, seja da vila dos Alagados, em Salvador, das favelas cariocas ("a cidade que tem braços abertos num cartão-postal") ou de Trenchtown, na Jamaica, tão próxima do Brasil em cultura e miséria. Não por acaso, neste número, Herbert cita versos de "De Frente Pro Crime", um dos sambas-denúncia de João Bosco e Aldir Blanc escritos nos anos 70.
“D”, porém, guarda também surpresas. Uma delas é a que abre o disco: o arrasador reggae "Será Que Vai Chover?” em sua primeira execução pública e cuja inspiração em Jorge Benjor é inequívoca, seja em “Chove Chuva” ou “Que Maravilha”. A presença espiritual do Babulina se confirma mais adiante durante o show, quando o trio manda uma interpretação histórica de "Charles, Anjo 45", comprovando o que a banda já sabia muito bem fazer desde seu primeiro disco: versar outros artistas.
Não faltaram, igualmente, os sucessos, como uma matadora "Ska" (com a participação do “abóbora selvagem” e amigo George Israel no sax), "Óculos" e "Meu Erro", esta última, que fecha este memorável show d'Os Paralamas do Sucesso em solo suíço. A banda lançaria ainda mais sete álbuns ao vivo ao logo da carreira. Porém, mesmo três décadas decorridas, nenhum se equipara à qualidade, pegada e espírito de “D”. Com os rapazes no auge, esta apresentação simbolizou o merecido reconhecimento à geração do rock brasileiro dos anos 80 no mundo. Em uma época de alta efervescência no universo do pop-rock, com gente do calibre de U2, The Cure, Sting, Madonna, Duran Duran, Bon Jovi, Prince, entre outros, em plena forma, o BRock mostrava que também merecia atenção pela originalidade inimitável da música feita no Brasil.
Os Paralamas do Sucesso - "Ska" (ao vivo em Montreux, 1987)
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FAIXAS:
1. "Será Que Vai Chover?" (Herbert Vianna)
2. "Alagados" (Música incidental "De Frente Pro Crime" - João Bosco, Aldir Blanc) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
3. "Ska" (Herbert Vianna)
4. "Óculos" (Herbert Vianna)
5. "O Homem" (Bi Ribeiro, Herbert Vianna)
6. "Selvagem" (Música incidental: "Polícia" - Toni Bellotto) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
7. "Charles, Anjo 45" (Jorge Ben)
8. "A Novidade" (Bi Ribeiro, João Barone, Gilberto Gil, Herbert Vianna)
"Tranquilamente, uma das maiores vozes de sua geração”.
Arrigo Barnabé, sobre Lívia Nestrovski
A arte, como a vida, é ao mesmo tempo simples e complexa. Poderia enumerar diversas obras-de-arte ao longo da história que transitam entre estes dois polos, seja na literatura, nas artes visuais, no cinema, na dança ou na música. Fato é que, quando a gente se depara com esse aparente inconciliável e o presencia sendo realizado, sendo possível, sentimos que estamos diante de uma rara sublimação. De que estamos vivendo.
Numa aconchegante Bona Casa de Música, um improvável porão encravado numa zona residencial de São Paulo, não é exagero dizer que o show “Ramo de Delírios”, de Guinga e Lívia Nestrovski, aparentemente simples (violão e duas vozes, quando não apenas uma), palco com iluminação básica, sem aparatos de efeitos, foi, sim, um momento de encontro com a verdadeira arte. Assim como não é exagero nenhum dizer também que foi um dos melhores shows que já assisti, dessas belas surpresas que a arte (a vida) nos guarda.
Montado a partir de um repertório especialmente selecionado pela própria Lívia no cancioneiro de Guinga, a dupla não executou apenas: eles entregaram (como está na moda dizer) um espetáculo ao mesmo tempo vindo do coração de cada um, mas também do altíssimo nível profissional de ambos. Guinga dispensa apresentações: um dos gênios da MPB, violonista virtuoso, compositor raro, harmonista como poucos na música mundial. E ainda um excelente intérprete/cantor de suas músicas, assim como um letrista, que não deixa a dever em nada para seus clássicos parceiros Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro que, claro, foram invocados durante o show.
Lívia e Guinga: simplicidade e grandiosidade no elegante palco do Bona
Já Lívia é daquelas cantoras completas. Sem medo de repetir o que Guinga falou durante o show: Lívia está na prateleira das grandes cantoras do Brasil, assim como Elis Regina. A comparação, que num primeiro momento pode parecer exagerada, vai se confirmando à medida que cada música é executada pelos dois: ele, ao violão e/ou voz de apoio; ela, em interpretações arrasadoras, de tirar o fôlego de qualquer um que a escute. Afinação exímia, timbre bonito, trânsito entre estilos, alcance de alturas pouco comuns e, o principal: ela é integrada à música assim como a música é integrada a ela. São, ambas, música e cantora, a mesma coisa. Como Elis.
Provas disso? O set-list inteiro. O começo não poderia ser mais emblemático com “Delírio Carioca”, parceria Guinga/Aldir que dá nome ao primeiro e temporão disco do compositor, dentista por mais de 30 anos e que somente no início dos anos 90 fez-nos o favor de voltar-se somente para a música. “No Rio: mar/ Ouço Newton assoviar/ Um Gershwin Clara Nunes/ Que faz vibrar feito flauta/ Os túneis”, dizem os versos iniciais da canção. O delírio é todo nosso no duo Guinga/Lívia, que transmitem ao público uma sintonia musical e espiritual, que só mesmo a arte maior pode proporcionar.
“Paulistana Sabiá”, que na versão original Guinga divide vocais com Mônica Salmaso, não perde em nada com Lívia. Ela, como diz Zé Miguel Wisnik, “que dá triplos saltos carpados na voz sem perder a naturalidade entoativa”. Mas o próprio Guinga impressiona com seu vocal marcadamente rouco numa melodia complexa, dessas difíceis de cantar. Aliás, essa característica, embora seja uma constante na obra de Guinga, não é problema nenhum para Lívia, como ficou claro noutras duas incríveis, misteriosas, dramáticas, delirantes: “Tangará”, em que os dois criam um verdadeiro encanto/canto em duo, e “Suçuarana”, parceria com PC Pinheiro (“Ela se enrodilha ao pé da cama/ Até parece a taturana/ Que quando se toca, queima e dana a arder/ Morde minha pele com a gana/ Que nem abelha africana”).
Trechinho da incrível "Tangará",
letra e música de Guinga
“Neblinas e Flâmulas”, de Guinga e Aldir e originalmente feita para Leila Pinheiro, em 1996, ganha ainda mais intensidade na voz de Lívia. Que lindos versos! “Vivemos de olhares em todos os lugares/ e a gentileza em nós nos faz heróis covardes”. Deles também, outro destaque do repertório e da performance de Lívia, que usa toda a sensualidade/sexualidade feminina para interpretar a saborosamente abusada “O Coco do Coco”, rara canção sobre o prazer (e o direito ao prazer) sexual da mulher: “Moça donzela não arrenega um bom coco/ Nem a mãe dela, nem as tia, nem a madrinha/ Num coco tô com quem faz muito e acha pouco/ Em rala-rala é que se educa a molhadinha”. Ainda dos dois parceiros de composição, mais uma preciosidade: “Nem Cais Nem Barco” (“O meu amor não é o cais/ Não é o barco/ É o arco da espuma/ Que, desfeito, eu sou”), que Leny Andrade canta para Guinga em 1991. Lívia, no entanto, não deixa nada a desejar nessa melodia de estrutura inventiva e densa, que exige da intérprete.
Mas o que é o desafio de cantar Leny ou Leila para quem não teme encarar Elis? É o que Lívia faz ao trazer “Bolero de Satã” com o acompanhamento do próprio autor, canção que a Pimentinha gravou em 1979, no disco “Elis, Essa Mulher”, em duo com Cauby Peixoto. Lívia, com segurança, pega sozinha e sem precisar do apoio vocal do parceiro de palco. Única nova canção no repertório, a tocante “Rua do Pecado” – que Guinga escreveu para a mãe já falecida, uma mulher sofrida que teve que frustrar o desejo de ser cantora por causa da família e da sociedade machista – emocionou o público, principalmente após o próprio Guinga, conversador e descomplicado, revelar os sentimentos muito pessoais que motivaram a canção.
A emocionante "Rua do Pecado",
confissão de Guinga sobre sua mãe
No encerramento, duas parcerias de Guinga com o jovem compositor carioca Thiago Amud, em especial a estonteante “Contenda”, uma “capoeira”, como definiu Guinga, que faz os sons dançaram ao gingado místico e bravio dos escravos. “Sou a dobra de mim sobre mim mesmo/ Nesse afã de ganhar de quem me ganha/ Tento andar no meu passo e vou a esmo/ Tento pegar meu pulso e ele me apanha”. Muita, mas muita poesia em forma de melodia e canto!
A sensação de sublimação, quando há esse misterioso encontro da simplicidade com a grandiosidade, ainda perdura nos ouvidos. Ouvir Guinga pela primeira vez, e justamente ao lado desta jovem cantora tão talentosa que é Lívia, foi um dos acontecimentos mais especiais que poderiam acontecer na nossa curta temporada paulistana. Vê-los no palco nos faz acreditar que existe arte, que existe beleza, que é possível viver, mas viver MESMO, sendo artista. Ouvir Lívia cantando faz com que, facilmente, se relativize cantoras celebradas da MPB atual como Céu, Roberta da Matta ou Marina Sena, muito mais midiáticas e MUITO menos íntegras como artistas. E Guinga... bom: Guinga, como falei de início, dispensa superlativos. Ele já o é. Como diz o título de outra música dele próprio com Aldir (aliás, mais uma especial do show), a arte, como a vida, é feita de “Simples e Absurdo”. Foi, sim, absurdo o que vimos. Simples – e complexo – assim.
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A dupla começando o show
Lívia e Guinga em total sintonia musical e espiritual
"Simples e Absurdo". Guinga e Aldir. Guinga e Lívia
"Monteiro Lobato e aquele mundo louco da minha infância, minha avó na cozinha e a gente lendo aquilo. Dori, esbocei alguma coisa. Fala de cada um, mas é o sítio, aquele lugar mítico, aquela música saltitante". Gilberto Gil, na ligação que fez a Dori Caymmi logo após compor a música-tema da série
"Indo dali a pouco ao rio com a trouxa de roupa suja, ao passar pela jabuticabeira parou para ouvir a música de sempre — tloc! pluf! nhoc..." - Trecho de "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato
Parece mentira de adulto pra valorizar a própria infância, mas foi a 40 anos que a música feita para crianças mudou completamente o rumo da música popular feita no Brasil. A Rede Globo, percebendo um filão pouco explorado, o público televisivo infantil, resolveu investir em teledramaturgia para este e, na esteira, numa “ferramenta” que atingia as mentes e corações dos baixinhos: a música. Da cabeça de Guto Graça Melo, diretor musical da emissora à época, e do talentosíssimo compositor e arranjador Dori Caymmi, veio a missão de musicar um especial baseado no universo de Monteiro Lobato que começaria a ser rodado. Mas não apenas dar sonoridade ao vídeo como, principalmente, criar uma atmosfera que transmitisse aquilo que a mágica obra literária oferecia. Assim, surgiu a trilha sonora de “Sítio do Picapau Amarelo”, um sucesso nas telas e nas vitrolas que inspiraria artistas de todas as gerações seguintes.
A fórmula parecia óbvia: chamar os talentos da MPB da época para ilustrarem musicalmente os elementos narrativos. Entre estes, João Bosco, Jards Macalé, Ivan Lins, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, entre outros. Entretanto, muitas vezes o resultado saía – saudavelmente – complexo e até intrincado. E assim ficava. Afinal, Guto e Dori partiam do pressuposto de não subestimar a inteligência do público, mesmo sendo o infantil, postura que, por si, foi uma revolução de linguagem. Caso claro da dissonante “Peixe”, dos Doces Bárbaros, e da mística e intensa “Tio Barnabé”, em que Jards divide autoria e microfones com a talentosíssima Marlui Miranda (“Oi, nessa mata tem flores/ Os olhos do Saci/ Pula com suas dores/ Gentis com seus amores/ Os cantos da caapora/ Os orixás que nos acudam e nos valham nessa hora”). Ambas as faixas aparentemente jamais poderiam integrar uma seleção de músicas para crianças. Mas, aqui, entraram e fizeram muito significado.
O desbunde, contudo, já se dá na faixa que intitula a série. Mais do que isso: o tema passou a representar a já antiga obra de Lobato (datada dos anos 20) não só através das letras e ilustrações das páginas dos livros, mas também pelos sons. A canção que Gil cria sobre a simples sinopse dada a ele por Dori para se inspirar se transforma numa lúdica e colorida canção – e com referência a Beatles, como Caetano bem identificou no livro “Verdade Tropical”. Leitor dos contos fantasiosos de Lobato na infância, Gil resgata sua memória afetiva e praticamente a sintetiza em poucos versos, demonstrando uma familiaridade ímpar com o mundo lobatiano. “Marmelada de banana, bananada de goiaba/ Goiabada de marmelo [...]/ Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente/ O sol nascente é tão belo [...]/ Rios de prata, pirata, voo sideral na mata/ Universo paralelo [...]/ No país da fantasia, num estado de euforia/ Cidade polichinelo”. A estrutura melódica faz com que tudo termine rimando com aquilo que lhe é originário e inequívoco: “Sítio do Picapau Amarelo”. Genial.
Mesmo as canções mais palatáveis são de uma complexidade harmônica invejável – muito pela mão de Dori nos arranjos e orquestrações. “Narizinho”, doce canção de Ivan Lins cantada por sua então esposa, Lucinha, mostra bem isso. Outro mestre da MPB chamado para dar sua contribuição é Paulo César Pinheiro. Ele não economiza na carga poética e brasilianismo, o que faz em duas faixas, ambas parcerias com Dori: a divertida “Ploquet Pluft Nhoque" (“Jaboticaba”), cantada pelo grupo vocal Papo de Anjo (“Olha o bando/ que acode com o baque/ que bate no galho/ que faz pinque ploque...”), e “Pedrinho”, tema do corajoso personagem Pedro Encerrabodes de Oliveira, lindamente interpretada pelo grupo Aquarius.
O capricho desta trilha passa também por excelentes instrumentais, caso de “Saci”, autoria de Guto e brilhantemente arranjada por Dori e com as vozes da Aquarius fazendo vocalizes. Tema denso como a mitologia que tematiza, porém muito bem equilibrado harmonicamente pela instrumentalização utilizada, que dá “alívios” à tensão. É a primeira canção dedicada à lenda do Saci-Pererê de um especial infantil. Depois desta, vieram outras semelhantes cujo tema central é a alegoria de origens indígenas e africanas que representa o folclore brasileiro: duas diferentes assinadas por Jorge Ben (uma delas para o também especial infantil “Pirilimpimpim”, de 1982), e uma de Gil para a Black Rio (de 1980).
O elenco da série da Globo estreada em 1977: um marco na tevê brasileira
Ivan Lins, em ótima fase, vem com outra, agora para a querida “Dona Benta” (vivida pela atriz Zilka Salaberry), cantada por Zé Luiz Mazziotti. Melodia jobiniana e jazzística comandada no Fender Rhodes. Ronaldo Malta interpreta outra bela composição, “Arraial dos Tucanos”, de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando. O início melodioso dá lugar, logo em seguida, a um baião de notas abertas, expansivo como os pássaros cantados na letra: “Arraial dos tucanos/ Até quando o homem/ Que da terra vive/ E que da vida arranca/ O pão diário/ Vai ter tua paz/ Paz/ Aparentemente paz”. Igual questionamento faz a também “ecológica” (termo que ainda não era moda naqueles idos) “Passaredo”, de Chico Buarque e Francis Hime. Entoada com absoluta perfeição pela MPB-4, a clássica canção, após enumerar diversos nomes da abundante variedade de espécies da fauna brasileira, avisa: “Bico calado/Toma cuidado/ O homem vem aí” – seja este o caçador sem escrúpulos ou o soldado daquele Brasil de Ditadura Militar. Duas faixas lúdicas, mas altamente reflexivas, que chamavam os baixinhos a pensar.
Cabe ao inventivo Sérgio Ricardo o tema de uma das personagens mais queridas da história, a boneca de pano “Emília”. Habilidoso, ele elabora uma melodia que remete aos violeiros do sertão e que em alguns momentos lembra a musicalidade e o fraseado de Geraldo Vandré, Dorival Caymmi e Alceu Valença. Igualmente hábeis são João Bosco e Aldir Blanc, a parceria clássica de tantos hinos da MPB daquela época. Aqui, os autores de “O Bêbado e a Equilibrista” e “O Cavaleiro e os Moinhos” valem-se de suas mentes privilegiadas para dar mote a Visconde de Sabugosa, o fascinante boneco feito de sabugo de milho, cuja sabedoria obteve através dos livros da estante de Dona Benta. Samba sincopado típico da dupla e com as características tiradas vocais de Bosco a la Clementina de Jesus. Na letra, Aldir dá um show: “Sábio sabugo/ Filho de ninguém/ Espiga de milho/ Bobo sabido/ Doido varrido/ Nobre de vintém”.
Como se não bastasse, para arrematar, Dori, com o acesso que somente ele podia ter, chama ninguém menos que o pai, o gênio Dorival Caymmi. Este, por sua vez, escreve uma joia para “Tia Nastácia”. E não podia ser para outra personagem, haja vista a identificação do velho Caymmi com a cultura afro-brasileira: ela, uma preta velha bondosa e sábia, típica negra filha recente da abolição da escravatura. Traduzida em versos pelo mestre baiano, Tia Nastácia, interpretada pela atriz Jacyra Sampaio na série, sai assim: “Na hora em que o sol se esconde/ E o sono chega/ O sinhôzinho vai procurar/ A velha de colo quente/ Que canta quadras e conta histórias/ Para ninar”.
Esta histórica trilha sonora abriu portas para uma série de outras semelhantes de especiais infantis da tevê nos anos seguintes, como “A Arca de Noé I e II”, “Pirilimpimpim”, “Plunct-Plact Zum”, "Casa de Brinquedos" e “O Grande Circo Místico”, todas bastante baseadas na questão musical. Havia dado certo a fórmula. Juntamente com a peça “Os Saltimbancos”, que Chico Buarque escrevera junto com Sergio Bardotti e Luis Bacalov também em 1977, “Sítio...”, assim, inaugura a entrada dos grandes talentos da música brasileira no universo sonoro e afetivo das crianças. Em tempos de pré-abertura, impossibilidade de diálogo e de esgotamento das ideologias, os artistas pensaram: “Já que os adultos estão tão saturados, por que não produzirmos para os pequenos?”. Pensaram certo e o fizeram muito bem, abrindo um paradigma na cultura de massas no Brasil sem precedente no mundo da música.
Aí, quando os pais de hoje dizem que o conteúdo do que eles tinham nas suas infâncias era muito melhor do que o de hoje, não se trata de mentira e nem de saudosismo. É a mais pura verdade.
Vídeo de abertura de"Sítio do Picapau Amarelo" (1977)