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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Elis Regina - "Falso Brilhante" (1976)

 




Ábuns Fundamentais ClyBlog - Elis Regina - Falso Brilhante
"Você não sente, não vê mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer"
da letra de "Velha Roupa Colorida"



Acho que ninguém em perfeito juízo discorda de que Elis Regina foi uma das melhores, senão a maior cantora brasileira de todos os tempos. Logicamente, em pleno gozo de minha sanidade, me junto a esse coro quase unânime entre os apreciadores de música neste país. Embora admire seu repertório, é uma artista da qual não domino informações sobre sua obra. Talvez pelo fato de que alguns de seus clássicos  apareçam em maus de um formato, em mais de um álbum, com parceiros diferentes, etc. Tem "Águas de Março", com Tom, sem Tom, ao vivo, no estúdio, alegre, emburrada..; tem "Tiro ao Álvaro", com Adoniram, sem Adoniram, no disco solo, dando risada no do programa de TV; tem "Bêbado e a Equilibrista", bêbada, sóbria, equilibrada, caindo... e nisso, ainda que idolatrando a cada uma dessas versões, cada interpretação, eu sempre tão interessado em datas, set-lists, álbuns,  etc., nunca me esforcei em saber onde se localizavam essas músicas na discografia de Elis Regina.

Só que de uns tempos pra cá, vinha observando a constante referência a um álbum específico e ele, então,  passou a me chamar atenção. "Falso Brilhante" era destacado em sites como um dos melhores discos de Elis, aparecia em listas de melhores discos brasileiros, era mencionado como influência por algum músico da minha preferência, era amplamente reverenciado aqui e acolá, e aí que fui atrás de mais informações sobre o tal disco.

Era o disco de "Fascinação", um dos maiores clássicos do repertório da cantora, numa interpretação inesquecível de uma delicadeza precisa e emocionante. Mas também era o disco de "Como Nossos Pais", o rock de Belchior que tentava dar uma sacudida numa juventude estagnada, e que Elis interpretava com uma força e uma intensidade absurdas. Inigualáveis! Sim era Elis cantando rock! E não era o único: "Velha Roupa Colorida", também  de Belchior, e também sobre atitude, era outra canção carregada de rock'roll e que, igualmente Elis depositava garra, potência, vibração, chegando a rasgar a voz, dando tudo de si, num dos melhores momentos do álbum. Mas há  outros pontos altos: "Gracias a la Vida", de Violeta Parra parece carregar a força da resistência da mulher latina contra os regimes autoritários que prevaleciam aqui e no Chile, terra da autora. Bem como "Los Hermanos", do argentino Atahualpa Yupanqui, uma espécie de convocação à união em nome da mais bela "irmã", a liberdade.

E tem ainda três de João Bosco com Aldir Blanc, "Um por todos", "Jardins de Infância" e "O Cavaleiro e os Moinhos", sempre com a sonoridade rica e aquele tom ácido característico da dupla; e pra fechar ainda, uma versão de arrepiar de "Tatuagem" de Chico Buarque, numa releitura ímpar, na interpretação de Elis.

Alguns afirmam que "Falso Brilhante" seria o disco em Elis que cantava rock, e se formos parar para analisar, não está muito longe da verdade: as duas de Belchior, logo de saída; "Quero", muito Beatles; a releituras de Bosco e Blanc, pungentes e carregadas nas guitarras; e mesmo as duas versões dos hermanos, andinos e platenses, que exploram, combinam e incorporam as alternativas e possibilidades de outros ritmos e nacionalidades, como tão bem costuma fazer o rock'n roll.

Se "Falso Brilhante" é o disco rock de Elis, acho que, possivelmente, deva ser por isso que gosto tanto dele. O brilho verdadeiro de uma estrela. Um diamante cuidadosamente lapidado. Uma verdadeira joia musical.

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FAIXAS:

1. Como Nossos Pais (Belchior)
2. Velha Roupa Colorida (Belchior)
3. Los Hermanos (Atahualpa Yupanqui)
4. Um Por Todos (João Bosco/Aldir Blanc)
5. Fascinação (Fermo Dante Marchetti, Maurice de Féraudy. Versão: Armando Louzada)
6. Jardins De Infância (João Bosco/Aldir Blanc)
7. Quero (Thomas Roth)
8. Gracias A La Vida (Violeta Parra)
9. O Cavaleiro E Os Moinhos (João Bosco/Aldir Blanc)
10. Tatuagem (Chico Buarque)

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Ouça:

Eis Regina - Falso Brilhante (1976)


por Cly Reis

terça-feira, 22 de abril de 2014

João Bosco - "Galos de Briga" (1976)




Não é o sucesso, é o contrário: é o sufoco mesmo,
é a vontade de cantar e de falar.
Só que de repente isso não foi possível de acontecer a nível popular,
porque a cada dia as pessoas têm mais medo, não têm defesa,
cada vez sabem menos o que está acontecendo.
Aí você vem e começa a cantar umas coisas
que elas gostariam de dizer e cantar.
A razão do sucesso, então, não é bem ele mesmo.
Talvez a razão dele seja o fracasso de todo mundo.”
João Bosco,
em entrevista de 1976
sobre o disco “Galos de Briga”



Este mês de abril de 2014 não ficará marcado apenas pelas vésperas de Copa do Mundo no Brasil (quando se espera dos cidadãos, sem querer pedir muito, civilidade) ou pelas celebrações de 222 anos pela memória do “patrono cívico” brasileiro, Tiradentes, mas, também, por outra data de importância patriótica menos feliz, porém necessariamente rememorável: os 50 anos do começo da Ditadura Militar, em 1º de abril de 1964. Diante de tantas manifestações contra a realização da Copa, de mais um feriado que não se acessa o verdadeiro motivo da paralisação nacional e de tantas controvérsias em razão dos arquivos ainda velados dos porões da ditadura, o que seria capaz de unir de alguma forma futebol, liberdade civil e política, representando essas três datas distantes cronologicamente, mas próximas em simbologia?

Um disco que une esses três polos como nenhum outro é “Galos de Briga”, terceiro da carreira de João Bosco. Gravado em 1976 pela RCA Victor, este sucesso de público e crítica à época é fruto, curiosamente, de um momento de alta ebulição no Brasil: enquanto Geisel iniciava seu governo anunciando uma “abertura lenta e gradual”, o AI-5 inda vigorava e barbaridades aos direitos humanos ainda ocorriam em todos os cantos do País. A Lei Falcão punha uma mordaça na oposição política; a estilista e mãe de guerrilheiro Zuzu Angel, pedra no sapato dos militares, morria num ainda inexplicado acidente de carro no mesmo fatídico abril; meses antes, o jornalista Vladmir Herzog era assassinado dentro do DOI-CODI. Torturas tomavam os porões do DOPS e pessoas desapareciam sem praticamente ninguém saber. Porém, a resistência se mostrava forte: o rabino Henry Sobel e Dom Evaristo Arns comandam a missa ecumênica em nome de Vlado na Praça da Sé, reunindo milhares de pessoas que, sob o olhar e a mira dos policiais, rezam silenciosamente; Ulysses Guimarães fundava a OPB, Ordem dos Parlamentares do Brasil, associação sem vínculos partidários, religiosos ou sociais que representava a luta pela abertura política; o PCdoB, esfacelado na Guerrilha do Araguaia, voltava a se reorganizar através das lideranças estudantis. O Brasil estava pegando fogo, e a classe artística, obviamente, ansiava por se manifestar, por resistir de alguma forma.

Eis então que, no início dos anos 70, através do meio universitário, se dá o encontro de João Bosco com Aldir Blanc. João, um mineiro que virou carioca, mas que nunca perdeu a vastidão poética de Minas Gerais dentro de si. Aldir Blanc, típico poeta maldito da Rio de Janeiro carnavalesca e vadia, do fervor pelo futebol e pela militância política. A fusão dessas duas forças artísticas foi explosiva, e eles criam com “Galos de Briga” uma obra que é tapa contundente na cara do regime em mensagens inteligentes aos milicos e aos mantenedores do sistema. Com crítica social, combatividade e um posicionamento de esquerda visível, o álbum só podia ter este título, uma vez que, como animais de rinha, eles vão para o enfrentamento com as armas que têm: os sons e a palavra.

Exímio violonista e compositor, amante de Clementina de Jesus, dos mitos da Rádio Nacional, de sambas antigos, de João Gilberto e do populacho das rádios AM, João consegue criar desde boleros emanados dos puteiros do baixo meretrício da Lapa até sambas gingados, passando por ritmos portugueses e marchas da antiga. Isso, aliado à poesia afiada de Aldir. É esse arsenal rítmico e melódico que “Galos de Briga” traz, como uma dupla de atacantes habilidosos que tiram da cartola jogadas inesperadas. O clássico samba "Incompatibilidade de Gênios" dá o pontapé inicial com seu humor ácido, já pontuando a crítica social de um país que persegue e mata seus filhos enquanto, dentro dos lares, a violência e a incompreensão reinam. A referência ao futebol, tanto como paixão do brasileiro como fuga da realidade, já aparece no primeiro verso na rusga entre marido e mulher: “Dotô, jogava o Flamengo, eu queria escutar/ Chegou, mudou de estação, começou a cantá...” Na mesma linha, porém ainda mais aguda, “Gol Anulado” usa o futebol de forma metafórica para expressar a mesma incompatibilidade entre amor e o momento político de dureza e opressão, o que, numa sociedade ignorante, machista e inculta, desemboca na válvula de escape, o futebol. É o caso do marido que espanca a mulher por que ela mentia ser vascaína como ele, mas, na verdade, torcia pelo rival Flamengo. “Quando você gritou Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar...” E desfecha, reforçando esse simbolismo maléfico que o entretenimento futebol desgraçadamente pode ter: “Eu aprendi que a alegria/ De quem está apaixonado/ É como a falsa euforia/ De um gol anulado”.

De igual potência crítica, “O Cavaleiro e os Moinhos”, das canções imortalizadas na voz de Elis Regina (lançadora de João e Aldir em 1972, ao gravar-lhes o hit “Bala com Bala”), inicia com um provocador ritmo de marcha militar sob os versos: “Arrebentar/ a corrente que envolve o amanhã/ Despertar as espadas/ Varrer as esfinges das encruzilhadas...”. De repente, o clima marcial se transforma numa debochada rumba! E a letra, pontuda como um bico de galo, continua atacando: “Todo esse tempo/ foi igual a dormir num navio/ sem fazer movimento/ mas tecendo o fio da água e do vento/ Eu, baderneiro/ me tornei cavaleiro/ malandramente/ pelos caminhos”. E, exaltando os diversos grupos da guerrilha armada, finaliza referenciando Cervantes: “Meu companheiro/ tá armado até os dentes/ já não há mais moinhos/ como os de antigamente”. Afinal, numa época como aquela, quem era o “louco Quixote” e quem era o “moinho”?

O suingue caribenho reaparece na gostosa “Rumbando”, assim como o bolero nas não menos deliciosas “Latin Lover” (já gravada por Simone um ano antes) e “Miss Suéter”, o antigo certame que destacava as jovens que apresentavam os bustos, digamos, mais avantajados. Aldir penetra no universo brega de forma engraçada e crônica (“Eu conheço uma assim/ Uma dessas mulheres/ Que um homem não esquece/ Ex-atriz de TV/ Hoje é escriturária do INPS/ E que, dia atrás/ Venceu lá no concurso de Miss Suéter...”) e João realiza o sonho de fazer duo com uma de suas divas, Ângela Maria, que executa uma impressionante progressão tonal no riff com sua treinada voz de contralto.

Embora ainda tenha o divertido partido-alto “Feminismo no Estácio“ e o samba-canção “Vida Noturna”, típica fossa-boemia-carioca, o negócio naquele momento era mesmo partir para a briga. Aí é que o jogo engrossa! “Transversal do Tempo”, outra eternizada por Elis (foi título de disco e espetáculo dela, em 1978), que fala sobre pobreza (“As coisas que eu sei de mim/ São pivetes da cidade/ Pedem, insistem e eu/ Me sinto pouco à vontade/ Fechada dentro de um táxi/ Numa transversal do tempo”), exílio (“As coisas que eu sei de mim/ Tentam vencer a distância/ E é como se aguardassem feridas/ Numa ambulância”) e desesperança (“Acho que o amor/ É a ausência de engarrafamento”). Pungente. Igualmente, o fado lusitano que dá título ao álbum, de poesia rebuscada e caráter combativo: “Não o rubrancor da vergonha/ mas os rubros de ataduras/ o rubro das brigas duras/ dos galos de fogo puro/ rubro gengivas de ódio/ antes das manchas do muro”. (Sim, não é coincidência que a imagem das pichações com palavras de ordem contra a ditadura venha à cabeça.)

Mas não para por aí. A raiva de toda a sociedade civil oprimida e sem voz parecia não caber em apenas poucas músicas para João e Aldir. Tinham que falar, exatamente, desta raiva, deste inconformismo. Pois então, toma!: “O Ronco da Cuíca”. Tal samba-enredo, literalmente, enredou a censura que, burra e limitada, embaralhou-se com seus versos circulares e envolventes, que a denunciavam como que dizendo: “vocês até podem parar nossa reação através das força, mas jamais serão capazes de conter nosso desejo pela liberdade”. Uma “Opinião”, de Zé Keti, revisitada. Letra e música geniais, que expande os sentidos e simbologias das palavras (como na personificação do instrumento “cuíca”, dando-lhe vida e politizando-o), uma vez que o próprio termo “fome” tanto pode significar a crítica econômico-social da falta de comida ao povo (talvez tenha sido isso que induzira os milicos ao erro) quanto, num espectro maior, a urgência da democracia.

Pra terminar, o “tiro de misericórdia” (não à toa, título do LP seguinte de João Bosco, de 1977): “O Rancho da Goiabada”, uma marcha-rancho aparentemente festiva mas que, como em poucas obras do cancioneiro brasileiro, denunciam algo que se falava somente nas esquinas e a boca pequena: a situação desumana dos boias-frias – trabalhadores rurais escravos apelidados assim por causa das refeições que levavam em recipientes sem isolamento térmico desde que saíam de casa, de manhã cedo, o que faz com que estas já estejam frias na hora do almoço. Os versos pintam um quadro sócio-profissional perturbador, que contrasta com o ritmo de carnaval da melodia: “Os boias-frias quando tomam umas biritas/ Espantando a tristeza/ Sonham, com bife a cavalo, batata frita/ E a sobremesa/ É goiabada cascão/ com muito queijo...”. E finaliza condenando sem meias-palavras os latifundiários criminosos em suas fantasias de homens poderosos comparando-os aos soberanos egípcios cujo tempo já passou dizendo que, bravamente, os boias-frias: “São pais de santos, paus de arara, são passistas/ São flagelados, são pingentes, balconistas/ Palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados/ Dançando, dormindo de olhos abertos/ À sombra da alegoria/ Dos faraós embalsamados”.

João e Aldir criaram um disco que é o retrato de um país em período de mudanças, as quais só se concretizaram por que artistas corajosos como eles, junto a centenas de opositores ativos – entre estes, vários desaparecidos –, ofereceram resistência, seja em armas ou em ideias. Estes são grandes responsáveis pela democracia que se vive hoje num País capaz de receber, inclusive, uma Copa do Mundo sem a sombra da vigília militar como ocorrera na Argentina em 1978. Afinal, naquele tempo, quem se opunha sabia claramente o porquê de estar fazendo. Não era por 20 centavos: era para viver num país livre.

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Certamente, foi por uma causa nobre como esta que, naquele mesmo 1976, João Bosco e Aldir Blanc recusaram o prêmio Golfinho de Ouro, conferido pelo Governo do Rio de Janeiro, pois queriam que o premiado fosse Cartola, uma vez que consideravam, sem modéstia burra, o trabalho do compositor daquele ano, o histórico LP com “As Rosas não Falam” e “O Mundo é um Moinho”, melhor do que o seu. A dupla recebeu, então, o troféu de Compositores do Ano pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco.
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FAIXAS
1 - Incompatibilidade de Gênios
2 - Gol Anulado
3 - O Cavaleiro e os Moinhos
4 - Rumbando
5 - Vida Noturna
6 - O Ronco da Cuíca
7 - Miss Suéter
8 - Latin Lover
9 - Galos de Briga
10 - Feminismo no Estácio
11 - Transversal do Tempo
12 - O Rancho da Goiabada
todas as músicas são de autoria de João Bosco e Aldir Blanc

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OUÇA O DISCO






quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Djavan - "Alumbramento" (1980)




“Embora ele defina grande parte de seu estilo através do chamativo 'pop' dos Estados Unidos, sua música mantém raízes nas correntes cruzadas dos ritmos africanos, ritmos extraídos de maneira incomum e com efeitos de acordes assombrosos, que são tão autenticamente brasileiros quanto os sons suaves e oscilantes que muitos fãs do gênero tradicional esperam”. 
George W. Goodman, para o New York Times, em 1984

“Djavan é foda!”
Caetano Veloso

Brasileiro é, definitivamente, um bicho torto. A subserviência ao que vem de fora e a famigerada “síndrome de vira-latas” prejudicam sobremaneira a aceitação de uma identidade brasileira. Isso, é claro, recai sobre a cultura. Na música, por exemplo, quantas vezes já seu viu um músico brasileiro ser ignorado no próprio país e só passar a ser valorizado quando os gringos, livres dessas amarras psicológicas, dão o seu aval? Outro fator determinante vem também se aglutinar a isso: a abundância de talentos. São tantos, mas tantos talentos, que o brasileiro, mal-aceito consigo mesmo, nem acredita. Não acredita que seus pares são capazes, então prefere achar que o bom mesmo vem de fora. É mais fácil. Talvez por isso artistas incríveis como Djavan, um monstro sagrado em qualquer país em que tivesse nascido, não recebam a idolatria que mereçam dentro de casa. Se Djavan fosse, digamos, natural da Dinamarca, ele viveria num trono. Não precisa nem ir ao Velho Mundo, haja vista que deuses da música como Quincy Jones e Stevie Wonder são dois dos que se renderam a Djavan imediatamente ao escutá-lo.

Este alagoano, aliás, tem musicalidade já no nome: apenas uma vogal, a letra “A”, a mais latina de todas, repetida duas vezes, que se entremeia a quatro consoantes, formando uma marca altamente artística, forte e de fácil assimilação: Djavan. Mas a sua originalidade não é só na teoria. Dono de uma alma que transpira suingue e hábil em criar inusitadas divisões rítmicas, carrega igualmente a precisão e a complexidade dos acordes certos da linhagem jobiniana. Músico completo desde sempre, veio a público pelas mãos do midas da MPB Aloysio de Oliveira, que lhe produziu o primeiro disco, em 1976, “A Voz, o Violão, a Música de Djavan”. O canto de timbre macio e anasalado denota profundo trabalho vocal, o qual se alia à assombrosa capacidade compositiva. Igualmente, seu toque do violão supera a tradição do samba e o dedilhado da bossa nova para lhe adicionar o jazz, o blues e a soul norte-americanas, além dos ritmos latinos. E, claro, um punhado de tonalidades brasileiras: o baião, o samba de roda, a toada, o batuque.

Em seu terceiro álbum, “Alumbramento”, que completa 40 anos de lançamento, Djavan está mais aperfeiçoado musical e mercadologicamente, visto que incrementa parcerias que se tornariam algumas das mais celebradas da história da música braseira. Produzido por Mariozinho Rocha, o disco tem a participação ainda de mestres como Aldir Blanc, Cacaso e Chico Buarque, três dos mais importantes letristas da música brasileira, que se rendem às quebradas rítmicas do autor de “Meu bem querer”. Esta, aliás, letra e música dele que, se hoje é um clássico, à época foi o grande sucesso do álbum, entrando imediatamente para o rol de clássicos do cancioneiro brasileiro.

Quanto às parcerias, Djavan se vale da saborosa pegada carioca de Aldir em “Tem Boi Na Linha”, que abre o disco num samba suingado irresistível e com a linguagem barroco-suburbana típica de Aldir (“Café com pão no Vera Cruz/ Jejum limão em Japeri/ A bolsa e a vida dançam nesse trem/ Te cuida!/ Sacola, cabaço, futuro, tutu/ Tem boi na linha, seu Honório Gurgel”). Das ruas do Rio de Janeiro para o coração de Minas Gerais. Assim é “Lambada De Serpente”, esta, escrita com Cacaso. Reflexiva, interiorana, muito mineira: “Cuidar do pé de milho/ Que demora na semente/ Meu pai disse: ‘meu filho/ Noite fria, tempo quente’/ Lambada de serpente/ A traição me enfeitiçou/ Quem tem amor ausente/ Já viveu a minha dor”.

É com Chico, no entanto, que o diálogo entre músicos parece ir ainda mais fundo. Primeiro, pela coautoria da faixa que dá título ao disco e na qual o autor de “Olhos nos Olhos” parece querer mergulhar no universo de Djavan. “Curioso é como a canção conta a história do alumbramento do próprio Djavan: a descoberta da verdadeira relação de amor, que é a parceria de trabalho, e a descoberta de uma relação mais aberta com a música brasileira, para além do seu próprio universo poético musical”, escreveu o crítico musical e autor da biografia de Djavan Hugo Sukman. É, de fato, uma canção especial onde cada um dispõe um pouco de si, numa verdadeira comunhão. Djavan tira do violão uma bossa nova vagarosa, sensual, que se esgueira em acordes de uma preguiça satisfeita. Chico, por sua vez, lança as palavras exatas para esse universo onírico e amoroso do tema: ”Deve ser bem morna/ Deve ser maternal/ Sentar num colchão e sorrir e zangar/ Tapear tua mão/ Isso sim, isso não/ Deve ser bem louca/ Deve ser animal”.

Tamanha conexão não poderia ficar em apenas uma faixa, e é aí que entra o delicioso samba “A Rosa”. Tradução da nova e empodeirada figura feminina a qual Chico já percebia àquela época, ambos cantam em versos hilários (mas não menos cronistas) o encantamento incondicional de um homem por sua musa, esta, por sua vez, totalmente independizada e emancipada das amarras sociais que recaem sobre as mulheres. Rosa é amoral, não deve satisfação pra ninguém e comprometida consigo mesma antes de mais nada: carinhosa, mas muda de humor e de opinião sem constrangimento e explicação;  gosta de sexo, mas não necessariamente só com o parceiro; é “do lar” quando quer, mas não titubeia em pegar as coisas e sair de casa sem aviso prévio. O homem, por seu turno, totalmente desarmado, é incapaz de enxergar defeitos nela e a admira cada vez mais. Os engraçados versos iniciais comprovam: “Arrasa o meu projeto de vida/ Querida, estrela do meu caminho/ Espinho cravado em minha garganta/ Garganta/ A santa às vezes troca meu nome/ E some/ E some/ Nas altas da madrugada”. Somente de Chico, a música tem tanta cara de Djavan, que é normal confundirem se tratar de uma coautoria.

Mas quem é mestre como Djavan sabe se virar muito bem sozinho. Sé dele são o delicado samba-canção “Sim e Não” e a lúdica “Dor e Prata”, assim como o samba sincopado de alta maturidade melódica “Sururu de Capote”, esta última, tão emblemática do estilo de Djavan que se tornou, a partir de então, o nome da banda que o acompanharia nos palcos. Haveria lugar ainda para mais um samba em parceria com Aldir,“Aquele Um”, e para a influência do Clube da Esquina com "Triste Baía de Guanabara", de Casaso e Novelli.

Já no trabalho seguinte a “Alumbramento”, “Seduzir”, de um ano adiante, Djavan seria gravado por Roberto Carlos, o que o tornaria, definitivamente, popular em terras brasileiras. Dois anos depois, em “Luz”, gravado em Los Angeles, Quincy Jones o produz e o mundo do jazz norte-americano se rende a seu talento. Mas parece pouco. Mesmo com o sucesso internacional e empilhando hits anos 80 afora, como “Samurai”, “Açaí”, “Flor de Lis”, “Lilás”, “Capim”, “Oceano” e outros, até hoje parece haver um descompasso. É tão normal no Brasil uma obra gigantesca em qualidade como a de Djavan considerando a existência de vários monstros sagrados da MPB como Chico, Caetano, Gil, Tom Jobim, Milton Nascimento e outros, que ocorre uma espécie de amortecimento. Sabe-se da qualidade, mas não se tem condições para se admirar suficientemente. Pelo contrário: parte do público brasileiro, incapaz de apreciar com um pouco de profundidade, ainda imputa-lhe a pecha de inventor de letras “sem sentido”. Para piorar a situação, o próprio Djavan recentemente veio a público manifestar-se a favor do atual Governo, desgostando muitos fãs e contrariando toda uma ideologia de respeito aos direitos humanos que alguém que escreveu músicas como “Soweto” e popularizou as tranças rastafari no Brasil parecia acreditar. Mesmo assim, nada atinge a excelência de sua música. Se fosse na Dinamarca, seu trono estaria garantido.


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FAIXAS:
1. "Tem Boi Na Linha" (Djavan/Aldir Blanc/Paulo Emílio) - 2:39
2. "Sim ou Não" - 3:16
3. "Lambada de Serpente" (Djavan/Cacaso) - 3:27
4. "A Rosa" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:24
5. "Dor e Prata" - 2:54
6. "Meu Bem Querer" - 3:26
7. "Aquele Um" (Djavan/Aldir Blanc) - 3:07
8. "Alumbramento" (Djavan/Chico Buarque) - 3:32
9. "Triste Baía de Guanabara" - (Novelli/Cacaso) - 2:59
10. "Sururu de Capote" - 2:54
Música de autoria de Djavan, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Djavan - "Alumbramento"


Daniel Rodrigues

terça-feira, 17 de maio de 2016

João Bosco - "Acústico" (1992)


“Na direção de programação da MTV,
participei da implantação de novos programas,
entre [estes] o Acústico.
Fiz a direção geral com Rogério Gallo
e a direção do programa ficou a cargo do Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em 1990.


Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu, trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e do Jornalismo ou mesmo pela programação.

Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”, se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”.  Virtuose do violão e dono de estilos de tocar e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele que é talvez o melhor unplugged realizado nesses pagos tropicais.

O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos, por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz, engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/ Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.

Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E selvas, portos, places/ Línguas, sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade daquele público então presente.

Este papel de resgate cabe ao medley com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha” (1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa, repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças não-terrenas (“Òrun”). Os versos dizem: “Exus na capa da noite soltara a gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por exemplo), alteram seu estado (“A doideira da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que admirável.

Outro medley traz as “líticas” “Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência” são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos lindos e profundos esses: “Eu já esqueci você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.

“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que são várias a disputar!). “Meu coração tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência melódico-harmônica sui generis, algo que somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.

Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60) em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações, representadas ali pela jovem plateia: “A blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras com a voz a la Clementina de Jesus típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock, pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.

O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para (mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música brasileira.
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FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
2. Holofotes (João Bosco, Waly Salomão, Antônio Cícero)
3. Papel machê (Capinan, João Bosco)
4.  Granito (João Bosco, Antônio Cícero)/ Jade (João Bosco)
5. Quilombo/ Tiro de misericórdia/ Escadas da Penha (João Bosco, Aldir Blanc)
6. Memória da pele (João Bosco, Waly Salomão)
7. E então que quereis...? (Maiakovsky – Versão: Emílio Guerra)/ Corsário (João Bosco, Aldir Blanc)
8. Eleanor Rigby (John Lennon, Paul McCartney)/ Fita amarela (Noel Rosa)/ Trem bala (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)

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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Os Paralamas do Sucesso - "D" (1987)



“’D’ é um instantâneo de uma banda lidando com uma recém-conquistada consagração em plena forma. O disco não encerra um ciclo artístico, pelo contrário, coloca possibilidades sobre a mesa, exala total frescor e antecipa as direções que o grupo seguiria, profundamente transformado por este aceno ao Brasil. Jamais eles seriam os mesmos.” Carlos Eduardo Lima, jornalista e historiador

Desde muito cedo tive uma ligação especial com Os Paralamas do Sucesso. Quando comecei a gostar de música, nos anos 80, ali pelos 7, 8 anos, era o Paralamas, entre os grupos surgidos no rock brazuca da época, que mais me faziam a cabeça. Gostava, claro, da Legião Urbana, dos Titãs, do RPM, do Capital Inicial e de outras. Mas o power trio formado por Herbert Vianna (guitarra e vocais), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria) me transmitia algo a mais. Talvez já antevisse o meu gosto – que mais crescido passaria a tomar lugar igualmente especial em meu imaginário musical – pelos ritmos latinos e brasileiros, aos quais cedo souberam mesclar a seu rock potente e melódico. Tanto é fato essa ligação forte com a banda que o meu primeiro disco que ganhei, no Natal de 1986, foi um cassete de “Selvagem?”, daquele ano, disco no qual o Paralamas consolidava o discurso social e seu estilo de rock tomado de reggae e ska jamaicanos, mas também conectado com os ritmos Brasil e a América Latina.

Sucesso nas rádios, uma apresentação histórica no primeiro Rock in Rio e três discos lançados deram ao grupo a maturidade suficiente para os levar ao Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Acompanhada do hoje “quarto Paralama”, o não à toa chamado João Fera, que estreava com eles nos teclados, a banda desembarcava no festival mais democrático e amplo do jazz mundial, repetindo o feito de outros brasileiros que marcaram época por lá, como Elis Regina, Gilberto Gil e João Gilberto. Se no passado estes foram os responsáveis por difundir a MPB na Europa, agora era a vez da mais completa banda do rock brasileiro dos anos 80 mostrar o que esta geração tinha de melhor. O resultado disso é o brilhante disco “D”, registro ao vivo que está completando 30 anos.

Com os quatro tocando tudo e mais um pouco sobre o palco, “D” tem repertório muito bem escolhido, valorizando, obviamente, a safra do último trabalho em estúdio, mas também incluindo hits, material novo e até surpresas. De “Selvagem?”, há as versões irrepreensíveis da filosófica “O Homem” (“O homem traz em si a santidade e o pecado/ Lutando no seu íntimo/ Sem que nenhum dos dois prevaleça...”) e do reggae-punk “Selvagem”, tão político e cru que poderia muito bem ser uma canção dos Titãs – tanto tem semelhança, que Herbert canta incidentalmente durante a execução "Polícia", clássico deles.

Ainda referentes à turnê do recente álbum, outras duas: "A Novidade", que reproduz o reggae suingado da original, imbatível diante das outras duas versões ao vivo que a música ganhou anos depois: uma, com o coautor, Gil, em 1994, num reggae arrastado, e a meio ragga, que os Paralamas gravariam em “Vâmo Batè Lata”, de 1995. Além disso, o primor da letra de Gil - com quem a parceria já denotava a intencionalidade de maior diversidade sonora da banda - merece sempre destaque: lírica, reflexiva, surrealista: “A novidade era o máximo/ Do paradoxo estendido na areia/ Alguns a desejar seus beijos de deusa/ Outros a desejar seu rabo pra ceia”. A segunda é a salsa pop "Alagados", um dos hits da época que, na esteira da MPB de protesto dos anos 70, denunciava as condições indignas de vida dos miseráveis, seja da vila dos Alagados, em Salvador, das favelas cariocas ("a cidade que tem braços abertos num cartão-postal") ou de Trenchtown, na Jamaica, tão próxima do Brasil em cultura e miséria. Não por acaso, neste número, Herbert cita versos de "De Frente Pro Crime", um dos sambas-denúncia de João Bosco e Aldir Blanc escritos nos anos 70.

“D”, porém, guarda também surpresas. Uma delas é a que abre o disco: o arrasador reggae "Será Que Vai Chover?” em sua primeira execução pública e cuja inspiração em Jorge Benjor é inequívoca, seja em “Chove Chuva” ou “Que Maravilha”. A presença espiritual do Babulina se confirma mais adiante durante o show, quando o trio manda uma interpretação histórica de "Charles, Anjo 45", comprovando o que a banda já sabia muito bem fazer desde seu primeiro disco: versar outros artistas.

Não faltaram, igualmente, os sucessos, como uma matadora "Ska" (com a participação do “abóbora selvagem” e amigo George Israel no sax), "Óculos" e "Meu Erro", esta última, que fecha este memorável show d'Os Paralamas do Sucesso em solo suíço. A banda lançaria ainda mais sete álbuns ao vivo ao logo da carreira. Porém, mesmo três décadas decorridas, nenhum se equipara à qualidade, pegada e espírito de “D”. Com os rapazes no auge, esta apresentação simbolizou o merecido reconhecimento à geração do rock brasileiro dos anos 80 no mundo. Em uma época de alta efervescência no universo do pop-rock, com gente do calibre de U2, The Cure, Sting, Madonna, Duran Duran, Bon Jovi, Prince, entre outros, em plena forma, o BRock mostrava que também merecia atenção pela originalidade inimitável da música feita no Brasil.

Os Paralamas do Sucesso - "Ska" 
(ao vivo em Montreux, 1987)



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FAIXAS:
1. "Será Que Vai Chover?" (Herbert Vianna)
2. "Alagados" (Música incidental "De Frente Pro Crime" - João Bosco, Aldir Blanc) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
3. "Ska" (Herbert Vianna)
4. "Óculos" (Herbert Vianna)
5. "O Homem" (Bi Ribeiro, Herbert Vianna)
6. "Selvagem" (Música incidental: "Polícia" - Toni Bellotto) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
7. "Charles, Anjo 45" (Jorge Ben)
8. "A Novidade" (Bi Ribeiro, João Barone, Gilberto Gil, Herbert Vianna)
9. "Meu Erro" (Herbert Vianna)


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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

“Sítio do Picapau Amarelo” - Trilha Sonora - Vários Artistas (1977)



"Monteiro Lobato e aquele mundo louco da minha infância, minha avó na cozinha e a gente lendo aquilo. Dori, esbocei alguma coisa. Fala de cada um, mas é o sítio, aquele lugar mítico, aquela música saltitante".  Gilberto Gil, na ligação que fez a Dori Caymmi logo após compor a música-tema da série

"Indo dali a pouco ao rio com a trouxa de roupa suja, ao passar pela jabuticabeira parou para ouvir a música de sempre — tloc! pluf! nhoc..." - Trecho de "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato

Parece mentira de adulto pra valorizar a própria infância, mas foi a 40 anos que a música feita para crianças mudou completamente o rumo da música popular feita no Brasil. A Rede Globo, percebendo um filão pouco explorado, o público televisivo infantil, resolveu investir em teledramaturgia para este e, na esteira, numa “ferramenta” que atingia as mentes e corações dos baixinhos: a música. Da cabeça de Guto Graça Melo, diretor musical da emissora à época, e do talentosíssimo compositor e arranjador Dori Caymmi, veio a missão de musicar um especial baseado no universo de Monteiro Lobato que começaria a ser rodado. Mas não apenas dar sonoridade ao vídeo como, principalmente, criar uma atmosfera que transmitisse aquilo que a mágica obra literária oferecia. Assim, surgiu a trilha sonora de “Sítio do Picapau Amarelo”, um sucesso nas telas e nas vitrolas que inspiraria artistas de todas as gerações seguintes.

A fórmula parecia óbvia: chamar os talentos da MPB da época para ilustrarem musicalmente os elementos narrativos. Entre estes, João Bosco, Jards Macalé, Ivan Lins, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, entre outros. Entretanto, muitas vezes o resultado saía – saudavelmente – complexo e até intrincado. E assim ficava. Afinal, Guto e Dori partiam do pressuposto de não subestimar a inteligência do público, mesmo sendo o infantil, postura que, por si, foi uma revolução de linguagem. Caso claro da dissonante “Peixe”, dos Doces Bárbaros, e da mística e intensa “Tio Barnabé”, em que Jards divide autoria e microfones com a talentosíssima Marlui Miranda (“Oi, nessa mata tem flores/ Os olhos do Saci/ Pula com suas dores/ Gentis com seus amores/ Os cantos da caapora/ Os orixás que nos acudam e nos valham nessa hora”). Ambas as faixas aparentemente jamais poderiam integrar uma seleção de músicas para crianças. Mas, aqui, entraram e fizeram muito significado.

O desbunde, contudo, já se dá na faixa que intitula a série. Mais do que isso: o tema passou a representar a já antiga obra de Lobato (datada dos anos 20) não só através das letras e ilustrações das páginas dos livros, mas também pelos sons. A canção que Gil cria sobre a simples sinopse dada a ele por Dori para se inspirar se transforma numa lúdica e colorida canção – e com referência a Beatles, como Caetano bem identificou no livro “Verdade Tropical”. Leitor dos contos fantasiosos de Lobato na infância, Gil resgata sua memória afetiva e praticamente a sintetiza em poucos versos, demonstrando uma familiaridade ímpar com o mundo lobatiano. “Marmelada de banana, bananada de goiaba/ Goiabada de marmelo [...]/ Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente/ O sol nascente é tão belo [...]/ Rios de prata, pirata, voo sideral na mata/ Universo paralelo [...]/ No país da fantasia, num estado de euforia/ Cidade polichinelo”. A estrutura melódica faz com que tudo termine rimando com aquilo que lhe é originário e inequívoco: “Sítio do Picapau Amarelo”. Genial.

Mesmo as canções mais palatáveis são de uma complexidade harmônica invejável – muito pela mão de Dori nos arranjos e orquestrações. “Narizinho”, doce canção de Ivan Lins cantada por sua então esposa, Lucinha, mostra bem isso. Outro mestre da MPB chamado para dar sua contribuição é Paulo César Pinheiro. Ele não economiza na carga poética e brasilianismo, o que faz em duas faixas, ambas parcerias com Dori: a divertida “Ploquet Pluft Nhoque" (“Jaboticaba”), cantada pelo grupo vocal Papo de Anjo (“Olha o bando/ que acode com o baque/ que bate no galho/ que faz pinque ploque...”), e “Pedrinho”, tema do corajoso personagem Pedro Encerrabodes de Oliveira, lindamente interpretada pelo grupo Aquarius.

O capricho desta trilha passa também por excelentes instrumentais, caso de “Saci”, autoria de Guto e brilhantemente arranjada por Dori e com as vozes da Aquarius fazendo vocalizes. Tema denso como a mitologia que tematiza, porém muito bem equilibrado harmonicamente pela instrumentalização utilizada, que dá “alívios” à tensão. É a primeira canção dedicada à lenda do Saci-Pererê de um especial infantil. Depois desta, vieram outras semelhantes cujo tema central é a alegoria de origens indígenas e africanas que representa o folclore brasileiro: duas diferentes assinadas por Jorge Ben (uma delas para o também especial infantil “Pirilimpimpim”, de 1982), e uma de Gil para a Black Rio (de 1980).

O elenco da série da Globo estreada em 1977: um marco
na tevê brasileira
Ivan Lins, em ótima fase, vem com outra, agora para a querida “Dona Benta” (vivida pela atriz Zilka Salaberry), cantada por Zé Luiz Mazziotti. Melodia jobiniana e jazzística comandada no Fender Rhodes. Ronaldo Malta interpreta outra bela composição, “Arraial dos Tucanos”, de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando. O início melodioso dá lugar, logo em seguida, a um baião de notas abertas, expansivo como os pássaros cantados na letra: “Arraial dos tucanos/ Até quando o homem/ Que da terra vive/ E que da vida arranca/ O pão diário/ Vai ter tua paz/ Paz/ Aparentemente paz”. Igual questionamento faz a também “ecológica” (termo que ainda não era moda naqueles idos) “Passaredo”, de Chico Buarque e Francis Hime. Entoada com absoluta perfeição pela MPB-4, a clássica canção, após enumerar diversos nomes da abundante variedade de espécies da fauna brasileira, avisa: “Bico calado/Toma cuidado/ O homem vem aí” – seja este o caçador sem escrúpulos ou o soldado daquele Brasil de Ditadura Militar. Duas faixas lúdicas, mas altamente reflexivas, que chamavam os baixinhos a pensar.

Cabe ao inventivo Sérgio Ricardo o tema de uma das personagens mais queridas da história, a boneca de pano “Emília”. Habilidoso, ele elabora uma melodia que remete aos violeiros do sertão e que em alguns momentos lembra a musicalidade e o fraseado de Geraldo Vandré, Dorival Caymmi e Alceu Valença. Igualmente hábeis são João Bosco e Aldir Blanc, a parceria clássica de tantos hinos da MPB daquela época. Aqui, os autores de “O Bêbado e a Equilibrista” e “O Cavaleiro e os Moinhos” valem-se de suas mentes privilegiadas para dar mote a Visconde de Sabugosa, o fascinante boneco feito de sabugo de milho, cuja sabedoria obteve através dos livros da estante de Dona Benta. Samba sincopado típico da dupla e com as características tiradas vocais de Bosco a la Clementina de Jesus. Na letra, Aldir dá um show: “Sábio sabugo/ Filho de ninguém/ Espiga de milho/ Bobo sabido/ Doido varrido/ Nobre de vintém”.

Como se não bastasse, para arrematar, Dori, com o acesso que somente ele podia ter, chama ninguém menos que o pai, o gênio Dorival Caymmi. Este, por sua vez, escreve uma joia para “Tia Nastácia”. E não podia ser para outra personagem, haja vista a identificação do velho Caymmi com a cultura afro-brasileira: ela, uma preta velha bondosa e sábia, típica negra filha recente da abolição da escravatura. Traduzida em versos pelo mestre baiano, Tia Nastácia, interpretada pela atriz Jacyra Sampaio na série, sai assim: “Na hora em que o sol se esconde/ E o sono chega/ O sinhôzinho vai procurar/ A velha de colo quente/ Que canta quadras e conta histórias/ Para ninar”.

Esta histórica trilha sonora abriu portas para uma série de outras semelhantes de especiais infantis da tevê nos anos seguintes, como “A Arca de Noé I e II”, “Pirilimpimpim”, “Plunct-Plact Zum”, "Casa de Brinquedos" e “O Grande Circo Místico”, todas bastante baseadas na questão musical. Havia dado certo a fórmula. Juntamente com a peça “Os Saltimbancos”, que Chico Buarque escrevera junto com Sergio Bardotti e Luis Bacalov também em 1977, “Sítio...”, assim, inaugura a entrada dos grandes talentos da música brasileira no universo sonoro e afetivo das crianças. Em tempos de pré-abertura, impossibilidade de diálogo e de esgotamento das ideologias, os artistas pensaram: “Já que os adultos estão tão saturados, por que não produzirmos para os pequenos?”. Pensaram certo e o fizeram muito bem, abrindo um paradigma na cultura de massas no Brasil sem precedente no mundo da música.

Aí, quando os pais de hoje dizem que o conteúdo do que eles tinham nas suas infâncias era muito melhor do que o de hoje, não se trata de mentira e nem de saudosismo. É a mais pura verdade.

Vídeo de abertura de "Sítio do Picapau Amarelo" (1977)




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FAIXAS

01. Narizinho (Ivan Lins – Vitor Martins) - Lucinha Lins
02. "Ploquet Pluft Nhoque" (Jaboticaba) (Dory Caymmi – Paulo César Pinheiro) - Papo de Anjo
03. Peixe (Caetano Veloso) - Doces Bárbaros
04 . Saci (Guto Graça Mello) - Papo de Anjo
05. Visconde de Sabugosa (João Bosco – Aldir Blanc) - João Bosco
06. Dona Benta (Ivan Lins – Vitor Martins) - José Luís (Zé Luiz Mazziotti)
07. Sítio do Picapau Amarelo (Gilberto Gil) - Gilberto Gil
08. Pedrinho (Dory Caymmi – Paulo César Pinheiro) - Aquarius
09. Arraial dos Tucanos (Geraldo Azevedo – Carlos Fernando) - Ronaldo Malta
10. Tia Nastácia (Dorival Caymmi) - Dorival Caymmi
11. Passaredo (Francis Hime – Chico Buarque de Hollanda) - Mpb4
12. Emília (Sergio Ricardo) - Sérgio Ricardo
13. Tio Barnabé (Marlui Miranda – Jards Macalé – Xico Chaves) - Marlui Miranda e Jards Macalé

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por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Seleção Brasileira - 11 discos nacionais que têm a cara do nosso futebol


A relação do futebol com a música, no Brasil, é algo muito especial e particular. A ginga, o ritmo, a malandragem, a criatividade, a poesia, são compartilhadas por ambos e é como se um se utilizasse das virtudes do outro. Seja pela constituição do povo, pela formação cultural, pela configuração social, por questões comportamentais, por tudo isso, o jogo de bola, popular, democrático, que se pode praticar na rua, num pátio, num terreno qualquer, com qualquer coisa que seja ligeiramente arredondado, é ligado intimamente à musicalidade do brasileiro que pode ser colocada em prática em qualquer lugar ou esfera social, numa mesa, numa lata, numa caixinha de fósforo, no morro numa roda de amigos, ou numa garagem com três caras, duas guitarras e uma bateria.

Nessa época de Copa, pensando nessa íntima ligação, selecionamos alguns discos que tem tudo a ver com esse laço. Quando artistas de música colocaram o futebol de forma significativa dentro de suas obras.

É lógico que teríamos muitos, inúmeros exemplos e possibilidades, aqui, mas ilustramos esse caso de amor futebol & música com 11 discos que têm a cara do futebol. Onze!!! Um para cada posição.

Uma verdadeira Seleção Brasileira.

Dá uma olhada aí:

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"A perfeição é uma meta
defendida pelo goleiro"
da música "Meio de Campo"

Gilberto Gil - "Cidade de Salvador" (1973): Embora tenha feito o tema brasileiro para a Copa do Mundo de 1998, Gilberto Gil não é exatamente um cara de referências tão constantes ao futebol em sua discografia. Tem, lá, o Hino do Bahia, em 1969, no disco ao vivo com Caetano, tem "Abra o Olho", do disco Ao Vivo de 1974, que faz menções a Pelé e Zagallo, mas, em sua obra, o álbum mais relevante nesse sentido e que mais traz referências ao esporte das massas do Brasil, é "Cidade de Salvador", de 1984. Nele temos a faixa "Meio de Campo", que reverenciava o, então jogador, Afonsinho, do Botafogo, jogador atuante, engajado, um dos pioneiros na luta pelo direito ao passe-livre, além da luta própria liberdade pessoal, uma vez que seu clube, na época, o Botafogo, exigia que ele tirasse a barba e cortasse o cabelo comprido, ao que o mesmo resistiu, exigindo a rescisão de contrato.

Como se não bastasse uma música tão relevante sobre um personagem tão simbólico do futebol brasileiro, o álbum ainda trazia a faixa "Tradição", belíssima crônica cotidiana, que, embora não fosse uma música sobre futebol, também citava o jogo, mencionando Lessa, um lendário goleiro do Bahia nos anos 50, segundo a letra, "um goleiro, uma garantia".






João Bosco - "Galos de Briga" (1976): A dupla João Bosco e Aldir Blanc, quando se trata de música com futebol, é que nem Pelé e Garrincha, Romário e Bebeto, Careca e Maradona. Eram craques! Sintonia perfeita. Embora muitas vezes na discografia de Bosco possamos encontrar referências ao futebol, como nas clássicas "Linha de Passse" e "De Frente pro Crime", em "Galos de Briga"; disco combativo, lançado em 1976, meio à ditadura militar, podemos encontrar dois exemplares dessa tabelinha entrosada: "Incompatibilidade de Gênios" e "Gol Anulado", duas brigas de casal repletas de elementos futebolísticos (e duplas interpretações a respeito da ditadura). Na primeira, o homem reclama que a mulher, zangada, ranzinza, sequer quer permitir que ele escute no rádio o jogo do Flamengo ("Dotô/ Jogava o Flamengo, eu queria escutar / Chegou / Mudou de estação, começou a cantar ..."); na outra, um marido descobre por um grito de gol que a esposa, que julgava tão perfeita e exemplar em tudo, não torcia, na verdade, pelo seu mesmo time, o Vasco da Gama ("Quando você gritou mengo /No segundo gol do Zico / Tirei sem pensar o cinto / E bati até cansar / Três anos vivendo juntos / E eu sempre disse contente / Minha preta é uma rainha / Porque não teme o batente / Se garante na cozinha / E ainda é Vasco doente (...)", e compara a sensação da frustração à de um gol anulado ("Eu aprendi que a alegria /De quem está apaixonado / É como a falsa euforia / De um gol anulado").

Blanc e Bosco tem mais um monte de futebolices em sua discografia, mas "Galos de Briga", é um dos trabalhos que melhor simboliza bem esse entrosamento.





Neguinho da Beija-Flor - "É melhor sorrir" (1982): Quando uma música tem o poder de ser adaptada para todos os grandes times de uma cidade e ser cantada por cada uma de suas torcidas num estádio lotado, essa música tem lugar garantido entre as mais significativas do futebol. "O Campeão", conhecida também por "Meu Time", de Neguinho da Beija-Flor, integrante do álbum "É Melhor Sorrir", celebra um dia de futebol, desde a preparação, a espera, a ansiedade, até o momento mágico de torcer e vibrar pelo time do coração dentro do estádio. "Domingo, eu vou ao Maracanã / Vou torcer pro time que sou fã / Vou levar foguetes e bandeira / Não vai ser de brincadeira / Ele vai ser campeão / Não quero cadeira numerada / Vou ficar na arquibancada / Prá sentir mais emoção / Porque meu time bota pra ferver / E o nome dele são vocês que vão dizer / Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô..........", e aí completa com o nome do seu time. Quem já ouviu isso no Maracanã, só trocando o nome do time no refrão, não tem como não se arrepiar.

O restante das faixas do disco não tem ligação com futebol, mas com uma dessas, que foi oficializada como hino do estádio, que serve para quatro dos maiores clubes do país, normalmente é entoado por milhares de vozes no maior templo do futebol mundial, há motivos mais que suficientes para incluir "É Melhor Sorrir" entre os álbuns importantes na relação música-futebol.





"A defesa é segura
e tem rojão"
da música "Um a Um"

Jackson do Pandeiro - "Jackson do Pandeiro" (1955): Uma das músicas mais marcantes na qual o futebol figura com protagonismo é a clássica "Um a Um", de Jackson do Pandeiro. A letra discorre sobre todas as posições de um time, setores do campo, situações de jogo, xinga o juiz, e exalta entusiasticamente as qualidades e virtudes do time do coração ("O meu clube tem time de primeira / Sua linha atacante é artilheira / A linha média é tal qual uma barreira / O center-forward corre bem na dianteira / A defesa é segura e tem rojão / E o goleiro é igual um paredão (...)  / Mas rapaz uma coisa dessa também tá demais / O juiz ladrão, rapaz! / Eu vi com esses dois olhos que a terra há de comer / Quando ele pegou o rapaz pelo calção / O rapaz ficou sem calção!..."). E, mais atual do que nunca, não aceitando derrota ou empate em hipótese alguma, ainda adverte:  "Se o meu time perder vai ter zum zum zum". E não é assim sempre ainda hoje?





Chico Buarque - Chico Buarque (1984): Chico Buarque, apaixonado por futebol, volta e meio tem alguma coisa relacionada ao esporte mais popular do mundo em seus discos. Um detalhezinho aqui outro ali, um verso, uma metáfora, uma referência... Poderia citar um monte delas aqui, mas escolhemos a música "Pelas Tabelas", do álbum "Chico Buarque", de 1984, por reunir uma série de elementos interessantes como o Maracanã, a torcida, a tabelinha e uma multidão na rua de verde e amarelo que naquele momento, poderia ser pela Seleção ou pelas manifestações pró-diretas, mas que nos últimos tempos se transformou numa imagem de terror de fanáticos conservadores fascistas. Saudades do tempo em que sair na rua de verde e amarelo era só para comemorar vitórias da Seleção ou reivindicar direitos democráticos.

"(...) Quando vi um bocado de gente descendo as favelas/ Achei que era o povo que vinha pedir / A cabeça do homem que olhava as favelas / Minha cabeça rolando no Maracanã / Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas /Jurei que era ela que vinha chegando / Com minha cabeça já numa baixela / Claro que ninguém se toca com minha aflição / Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela / Pensei que era ela puxando um cordão".





Engenheiros do Hawaii - "Várias Variáveis" (1991): Os Engenheiros do Hawaii, banda da capital gaúcha, sempre demonstrou estreita ligação com o futebol. Volta e meia usavam em suas letras expressões referentes ao jogo ("jogam bombas em Nova Iorque / jogam bombas em Moscou / como se jogassem beijos pra torcida / depois de marcar um gol" - "Beijos Pra Torcida" 1986); subiam ao palco, não raro, com camisetas de seus clubes do coração, Gessinger, gremista fanático, coma do Tricolor, é claro; e tinham, até mesmo, em uma de suas músicas, "Anoiteceu em Porto Alegre", uma narração de rádio do gol do título mundial do Grêmio, de 1983. No entanto "Várias Variáveis", de 1991, que não continha especificamente nenhuma música com qualquer menção ao esporte, destaca-se pela capa, que o justifica em estar nessa lista. Nela, entre várias engrenagens, símbolo adotado pelo grupo como marca, preenchidas com ícones pop, símbolos, imagens geográficas, históricas, comerciais, encontramos os escudos dos dois grandes clubes do Rio Grande do Sul, InternacionalGrêmio. Uma capa que dimensiona bem a importância do futebol e a paixão dos gaúchos por seus clubes situando-os entre as coisas mais importantes entre tantos elementos como ideologias, religiões, comportamento, economia, coisas que fazem mexer as engrenagens do mundo. Afinal, como dizem, o futebol é a coisa desimportante mais importante do mundo. Não é mesmo?





Novos Baianos - "Novos Baianos F.C. (1973): O que era aquilo? Uma banda? Uma família? Uma comunidade? Um time de futebol? Tudo isso! Os Novos Baianos meio que inauguraram um novo conceito de grupo musical: moravam juntos, todos colaboravam em tarefas, faziam música e, apaixonados por futebol, batiam uma bolinha. Para isso, montaram dois campos de futebol no sítio onde a banda vivia, na zona leste do Rio, onde, entre uma gravação e outra, jogavam aquela pelada, ou ao contrário, entre uma partidinha e outra, rolava algum som. Um desses momentos de descontração e atividade paralela é captado na capa do disco "Novos Baianos F.C.", de 1973, com a banda "rolando um caroço" no seu campinho em Jacarepaguá. Além do registro da foto, e da extensão (Futebol Clube) não deixa dúvidas quanto à paixão daquela turma pelo jogo de bola, o disco ainda traz a faixa "Só se não for brasileiro nessa hora", que exalta a pelada, o jeito moleque, o gosto por correr atrás da bola: "Que a vida que há no menino atrás da bola / Pára carro, para tudo / Quando já não há tempo / Para apito, para grito / E o menino deixa a vida pela bola / Só se não for brasileiro nessa hora".

"Novos Baianos F.C", de certa forma, resume o espírito do grupo. Um time. Uma equipe entrosada, quase um Carrossel Holandês onde todos se revezavam e executavam mais de uma tarefa dentro de campo. Futebol total. Ou seria música total? 





Pixinguinha - "Som Pixinguinha" (1971) - Uma das primeiras composições alusivas ao futebol foi "1x0" do mestre Pixinguinha. Gravada no final dos anos 1920, a canção instrumental, homenageava o grande feito da conquista do Campeonato Sul-Americano de 1919, numa partida contra o Uruguai, vencida arduamente, depois de duas prorrogações, pelo placar mínimo, 1x0, gol do ídolo da época, Arthur Friedenreich. 

A música até ganhou letra nos anos 1990, do músico Nelson Ângelo, que a regravou então, cantada, em parceria com Chico Buarque, mas nem precisava: instrumentalmente ela, com seu ritmo, fluidez, construção, já consegue transmitir a dinâmica de um jogo, a ginga, a expectativa do torcedor, a movimentação dentro de campo..., tudo!

A canção foi gravada, originalmente, nos anos 1920, saiu em compactos posteriores, em algumas coletâneas, mas o registro que destacamos aqui é o álbum "Som Pixinguinha", de 1971, o último disco gravado pelo mestre do choro, que viria a ser reeditado, anos depois, no Projeto Pixinguinha, rebatizado como "São Pixinguinha". Nada mais justo. Só coisas divinas. Amém, Pixinguinha! Amém!






"O centroavante, o mais importante
Que emocionante, é uma partida de futebol"
da música "Uma partida de futebol"

Skank - "Samba Poconé" (1996): Logo depois que o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1994, o futebol voltou a virar mania nacional. Literalmente, virou moda. As camisetas de clubes, antes restritas às peladas e aos estádios, naquele momento tomavam as ruas. Embora vários artistas manifestassem esse momento, nenhuma banda soube traduzir tão bem esse momento como o Skank. Além dos integrantes se apresentarem, não raro, com camisetas de seus clubes do coração, os grandes de Minas Gerais, Cruzeiro e Atlético, talvez tenham feito a mais empolgante e entusiástica música daquele período e uma das mais marcantes da história da música braseira, sobre futebol. "É Uma Partida de Futebol" transmitia, com rara felicidade às emoções de dentro e fora de campo, com expectativa do jogo, lances de perigo, reação da torcida, tudo com muita alegria e ritmo ("Bola na trave não altera o placar / Bola na área sem ninguém pra cabecear / Bola na rede pra fazer o gol / Quem não sonhou em ser um jogador de futebol? / A bandeira no estádio é um estandarte / A flâmula pendurada na parede do quarto / O distintivo na camisa do uniforme / Que coisa linda é uma partida de futebol (...)"). Sem dúvida, um marco na histórica relação bola-microfone, tão estreita na música brasileira.





"É camisa dez da Seleção
laiá, laiá, laiá!"
da música "Camisa 10

Luiz Américo - "Camisa 10" (1974): É o típico exemplo de artista de uma música só. Luiz Américo gravou a música "Camisa 10" para a Copa do Mundo de 1974, lamentando a ausência de Pelé, que se despedira da Seleção depois da Copa do México em 1970, e questionando as escolhas do técnico Zagallo, campeão na Copa anterior, mas de escolhas bastante duvidosas para o Mundial seguinte. A letra, inteligente, cheia de boas sacadas e trocadilhos com os nomes dos jogadores ("Desculpe seu Zagalo/ Puseram uma palhinha na sua fogueira / E se não fosse a força desse tal Pereira / Comiam um frango assado lá na jaula do leão / Mas não tem nada não!"), acabaria por confirmar os temores dos autores, Hélio Matheus e Luís Vagner, de um time confuso, mal convocado e mal escalado que não convenceu em nenhum momento e acabou eliminado de maneira impiedosa pela Laranja Mecânica de Johan Cruyff.

Lançada em um álbum sem outras alusões a futebol, "Camisa 10", além de ser, com certeza, a maior cornetada musical da discografia nacional, talvez seja a canção mais marcante da tabelinha música-futebol no Brasil.





Jorge Ben - "Ben" (1972)Jorge Benjor, talvez seja o músico com mais referências ao futebol em sua obra. Volta e meia tem! Tem menção a clube, exaltação a craque de verdade, para craque inventado, música por posição, para infração dentro de campo, pra negociação entre clubes... Tem de tudo. "África Brasil" , disco já destacado aqui no ClyBlog, nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, provavelmente seja o álbum que mais contém referências ao esporte, com uma música cuja letra conta o desejo de um de seus filhos em querer ser jogador de futebol ("Meus filhos, meu tesouro"), uma para o craque Zico ("Camisa 10 da Gávea), e uma para um fictício meia-atacante africano de futebol encantador, "Umbabaraúma, Ponta de Lança Africano". No entanto, a canção de Jorge Benjor mais marcante sobre futebol, é, sem dúvida, uma das mais lembradas no quesito em toda a música brasileira, está no disco "Ben", de 1972. "Fio Maravilha" descreve, quase com a precisão de um locutor esportivo, o lance mágico do atacante Fio, do Flamengo, dos anos 70, em que ele faz, segundo o autor "uma jogada celestial". Jorge Benjor, exímio construtor de imagens musicais, soma à narração do lance, a reação da torcida e o grito de reverencia e agradecimento da massa para o craque, num dos refrões mais populares da música brasileira, "Fio Maravilha / Nós gostamos de você /Fio Maravilha / Fazmais um pr'a gente ver".

Curiosamente, anos depois, Fio acabou processando Jorge Benjor pela utilização de seu nome sem autorização. O próprio Fio desistiu do processo sem sentido até porque, antes da música ele não era ninguém e, pelo contrário, era conhecido, exatamente, por perder muitos gols. Simplesmente, um hino do futebol brasileiro!



por Cly Reis