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domingo, 10 de março de 2024

cotidianas #823 - A Volta do Anjo Exterminador

 



"Tá gravando?
...
Hm, hm...
Estamos aqui na casa onde foi rodado o filme "O Anjo Exterminador", em 1962.
No clássico de Luis Buñuel, um grupo de pessoas, convidadas para uma festa de aristocracia, depois de ingressar na casa onde acontece a recepção, não consegue sair dela. Nada os impede, não há portas trancadas, nada fechando-lhes a passagem, mas, simplesmente, não conseguem deixar a casa. É como se uma força invisível, algo inexplicável os mantivesse dentro. E é exatamente aqui que estamos hoje para vocês, no nosso "O Fabuloso Mundo de Amélia Bolaños", o canal dos cinéfilos loucos por relíquias, raridades e curiosidades do mundo do cinema.
Olha só..., vem aqui, vem comigo... Aqui é a sala onde ficavam os convidados, aqui, um pouco adiante é aquele cantinho onde alguns se acomodaram pra dormir, aqui é... O que que foi?
Por que parou de gravar?
Polícia?
Guarda tudo, guarda tudo. Desliga a câmera, guarda isso, vai.
Guarda logo, Julito.
Vamos sair logo daqui.
Por ali, por ali...
Ali, a porta, vai.
Anda, Julito, vai.
Como assim, acha melhor a gente ficar? Vão nos prender! Vai logo.
...
Anda, sai.
Ah, sai da frente, Julito, deixa que eu vou na frente.
...
Sei lá. Talvez seja melhor a gente esperar um pouco mais. Quem sabe a polícia nem percebe que a gente tá aqui e vai embora.
Ah, agora você quer sair?
Então por que não sai?
Como assim não consegue?
Sai logo, Julito. Sai logo.
Será que...?
Não é possível!!!
Ai, meu Deus!
Julito, faz alguma coisa.

Ali, ali, a polícia chegou. Graças a Deus.
Policial, policial, nos ajuda! Nos tira daqui.
...
É, é o que nós queremos, sair. Não conseguimos.
...
Eu já disse, a gente sairia se pudesse mas não conseguimos.
Não, não entra aqui. Não entra."


*************


"Central, câmbio...
Pode repetir, 65?
...
Um bando de jovens invadiu um imóvel abandonado?... É isso? Câmbio.

...

A orientação é para que os retire do imóvel e retorne para a Central. Câmbio.

Não conseguem sair? Você também não consegue? Câmbio.

Eles estão lhe impedindo de alguma maneira, 65? Estão armados? Obstruíram os acessos, as aberturas? Câmbio.

...

Qual a sua localização, 65?

...

Rua da Providência..., sim, sei.
Ok. Aguarde reforços. Estamos enviando uma unidade para o local. Câmbio e desligo."


*************

Dez horas já haviam se passado desde que a unidade de reforço chegara. Agora já eram sete pessoas dentro da casa.
Os sinos da catedral da Cidade do México badalavam para a missa das seis.




conto de Cly Reis
inspirado no filme "O Anjo Extermandor"
de Luis Buñuel

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (última parte)

 

Coutinho dirige e atua em seu "Cabra...", um dos 10
maiores e um dos 5 filmes do diretor na lista
Chegamos, enfim, ao momento mais aguardado: o final do nosso especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. Ou melhor, o início, já que seguimos uma ordem numeral inversa, partindo dos últimos da lista para, agora, os primeiros. Chegou a hora de dar fim a um dos conteúdos especiais alusivos aos 15 anos do Clyblog em 2023, iniciada em abril e publicado em cinco partes ano longo dos meses. Nossa proposta foi trazer aqui, de forma criteriosa e misturando noções de crítica e história do cinema com preferências pessoais, títulos que representassem o cinema brasileiro neste corte temporal. E justamente num ano em que o cinema brasileiro completou 125 de nascimento segundo a efeméride oficial. O que não invalida a nossa intenção, a qual teve como referência, se não a gênese da produção cinematográfica nacional, em 1898, outro marco inconteste para a história da cultura audiovisual sul-americana, que é a exibição do mais antigo filme brasileiro preservado: “Os Óculos do Vovô”, de 1913.

Embora as corriqueiras e até salutares ausências (afinal, listas servem muito para que outras também sejam compostas), o que se viu aqui ao longo da extensa classificação foram títulos da maior importância e qualidade daquilo que foi produzido no cinema do Brasil neste mais de um século. De produções clássicas, passando pela fase muda, os alternativos, o cinema da atualidade aos sucessos de bilheteria. Num país de dimensão continental, houve trabalhos do Norte ao Sul, com representantes de seis estados da nação: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. Entre as décadas, leva pequena vantagem os anos 60 sobre os 80 e 2000, com 25, 24 e 23 títulos respectivamente, dando uma boa ideia dos períodos de maior incentivo à produção 

Diretores consagrados e filmes marcantes para a cinematografia brasileira e mundial também percorreram a listagem de cabo a rabo. Nomes como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Hector Babenco, Kléber Mendonça Filho, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho e Joaquim Pedro de Andrade se fizeram presentes de forma consistente e todos com mais de um título, provando sua importância basal para a concepção formativa do cinema brasileiro. Glauber, maior cineasta brasileiro, encabeça, com seis filmes, seguido de Coutinho, com cinco, e Nelson, Leon e Babenco, com quatro cada. Porém, os novatos, nem por isso deixaram de também demarcarem seus espaços, feito talvez ainda mais louvável uma vez que, com pouco tempo de realização, já figuram entre os grandes. Caio Sóh, com “Canastra Suja”, de 2018, (107º colocado), Gustavo Pizzi, de “Benzinho” (2018), e Gabriel Martins, com “Marte Um”, de 2022 (79º) estão aí para provar.

Katia, uma das 7 cineastas
mulheres: pouca representatividade
Embora em menor número, as diretoras não deixam de contribuir com seu talento ímpar. Kátia Lund (com duas co-direções, junto a Fernando Meirelles e a João Moreira Salles), Anna Muylaert, Daniela Thomas (“Terra Estrangeira”, com Walter Salles Jr.), Sandra Kogut, Laís Bodanzky, Tatiana Issa e Suzana Amaral formam o time de sete cineastas mulheres, que dão um pouco de diversidade à lista. Muito a se evoluir? Sim. Representatividades negras, LGBTQIAPN+ e indígenas aparecem de maneira periférica, até superficial, consequência natural participação de tais minorias na economia cultural brasileira ao longo da história. Quem sabe, daqui a mais uns anos não se precise demorar tanto mais para que se incluam definitivamente entre os essenciais do cinema brasileiro?

Outro recorte que vale ser frisado são os documentários, que se estendem por todas as postagens dessa série. Além de contarem com um dos dois mais representativos realizadores, Coutinho, rivalizam muito bem com as ficções, totalizando nada mais nada menos que 13 títulos neste formato, 11,8% do geral. Enfim, análises que podem se deduzir a uma coleção de filmes tão interessantes e simbólicos de uma nação, aqui representados por aqueles mais bem colocados e, de certa forma, mais significativos. Por isso, diferentemente do que vínhamos procedendo até então, ao invés de comentarmos apenas de 5 e 5, todos desta vez merecem algumas palavras. Afinal, eles podem se vangloriar de serem os 10 melhores filmes brasileiros de todos tempos. Ao menos, nesta singela e propositiva seleção. 

************

10.
“Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (1980) 

Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassistência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.




09. “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (1981)
Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.


08. ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984) 
Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.


07“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Kátia Lund (2002)
Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



06. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (1965)
Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima pouco lembrada.


05. 
"O Cangaceiro”, Lima Barreto (1953)
No nível do que Nelson Pereira faria com Jorge Amado e Ruy com Chico Buarque anos mais tarde, Lima Barreto teve a o privilégio de contar com diálogos escritos por Raquel de Queiroz. O que já seria suficiente ainda é completado por um filme de narrativa e condução perfeitas, com uma trilha magnífica, figurinos de Carybé, uma fotografia impecável e enquadramentos referenciados no Neo-Realismo de Vittorio De Sica e no western norte-americano de John Ford. O precursor do faroeste brasileiro ao recriar sua atmosfera e signos à realidade do nordeste. Se "Bacurau" foi aplaudido de pé em Cannes 66 anos depois, muitas dessas palmas devem-se a "O Cangaceiro", onde o filme de Barreto já havia emplacado o prêmio de Melhor Filme de Aventura e uma menção honrosa pela trilha sonora. Primeiro filme nacional a ganhar prestígio internacional, também levou os prêmios de Melhor filme no Festival de Edimburgo, na Escócia, Prêmio Saci de Melhor Filme (O Estado de S. Paulo) e Prêmio Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos.




04. “Limite”, Mário Peixoto (1930)
Scorsese apontou-o como um dos mais importantes filmes do séc. XX, tanto que o restaurou e para a posteridade pela sua World Cinema Foundation. David Bowie escolheu-o como o único filme brasileiro entre seus dez favoritos da América Latina. Influenciado pelas vanguardas europeias dos anos 20, Peixoto, que rodou apenas esta obra, traz-lhe, contudo, elementos muito subjetivos, que potencializam sua atmosfera experimental. Impressionantes pelo arrojo da fotografia, da montagem, da concepção cênica. Considerado por muitos o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Um cult.


03. “Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (1963)
Genial. Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia, atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes do cinema mundial, a do sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.




02. “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Glauber Rocha (1963)
A obra-prima do Cinema Novo, um dos maiores filmes do século XX. De tirar o fôlego. Sobre este, reserva-se o direito de  um post inteiro, escrito no blog de cinema O Estado das Coisas em 2010. Mais recentemente, este marcante filme de Glauber mereceu outra resenha, esta no Clyblog.



1º.
 
"O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (1960) 

Com absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito do início ao fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição, cenografia. Obra de Dias Gomes transposta para a tela com o cuidado do bom cinema clássico. Brasilidade na alma, das mazelas às qualidades. Cenas inesquecíveis, final arrepiante. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que venceu Antonioni, Pasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.





Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de julho de 2023

cotidianas #804 - "Alexia"



mural do artista urbano TVBoy, em Barcelona,
dedicado à jogadora espanhola Alexia Putellas,
melhor jogadora de futebol do mundo, na atualidade.


Pela rambla o estandarte das cores
Catalunya, Barceloneta, Blaugrana
A mirar-lhe o olhar de mil homens
Bailarina dança na roda sardana

Chove chuva, molha o chão
Nuvem, samba do avião
Ela vai jogar

Hendrix, Elvis, Messi e hoje
Brilha nova estrela dessa galáxia
Flashes, lights, likes, closes
Compartilha agora a beleza de Alexia

Vai começar mais um jogo

Menina mulher da pele branca
Com a classe de quem sabe a arte de jogar bem futebol
A bela da tarde com charme encanta
Filme de Buñuel, obra de Gaudi ou tela de Miró

Hendrix, Elvis, Messi e hoje
Brilha nova estrela dessa galáxia
Inverte os pés, caem os cones
Dribla as zagueiras e a guarda-metas

Pra fazer um golaço

*******************
"Alexia"
Skank
(Samuel Roda e Nando Reis)


"Alexia" - Skank



terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

¿Por que te vás, Carlos Saura?

 


Saura e sua musa/minha deusa
Geraldine
Saura foi um dos cineastas que me formaram. Na infância/pré-adolescência, "Carmen", "El Amor Brujo" e "Bodas de Sangre" me impactaram. Logo depois, a Trilogia de Ana ("Ana y los Lobos", "Cría Cuervos..." e "Mamá Cumple 100 Años"), paixões. Mais tarde, descobri os mais antigos "La prima Angélica" e "La Caza". Ele me fez ficar uma semana chocado com a morte da protagonista de "Ay, Carmela!"., aquilo que só os diretores que sabem envolver o espectador a tal ponto conseguem. 

Foi Saura quem me apresentou a uma das minhas deusas do cinema, Geraldine Chaplin, que além de ser linda e ter um nome lindo, foi sua esposa e é filha de Charlie Chaplin! Mais recentemente, como se não bastasse ter ajudado a fundar o novo cinema espanhol pós-Buñuel, o já idoso Saura faz um daqueles filmes sem erros, "El Séptimo Día", sua última ficção, lá de 2004, além de ricos documentários unitemáticos como "Tango", "Fados" e "Flamenco", os que assisti. 

No último dia 10, a lente se fechou. Levou consigo seu cinema misto de poesia, crítica político-social e força imagética. Pegando emprestado os versos da memorável música da trilha de "Cría Cuervos...": "Por que te vás?". R.I.P. e obrigado, mestre aragonês. 


CARLOS SAURA
(1932-2023)




Daniel Rodrigues


terça-feira, 8 de março de 2022

"Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar (2021)

 

Já houve a quem surpreendi com essa afirmação: Pedro Almodóvar não me é uma unanimidade. Pelo menos, por certo tempo em sua filmografia, seu cinema, mesmo inequivocamente admirável, desagradava-me em algum grau, como se algo oculto, mas grave, estivesse fora do lugar. Desde sempre sei claramente de sua excelência nos vários aspectos fílmicos: roteiro, enquadramento, fotografia, direção cênica, arte, sensibilidade musical. Sei de tudo isso, mas era como se algo me incomodasse que eu não soubesse exatamente como explicar. Recapitulando melhor: minha relação com os filmes do cineasta espanhol vem desde praticamente o início de sua carreira, mais precisamente a partir de “Matador”, de 1986. Claro que me assombrei com aquele cinema potente, repleto de erotismo, crítica social e política, sarcasmo e lirismo, o que se confirmou nos seguintes “A Lei do Desejo” (1987) e “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos” (1988). Porém, já a partir de “Ata-me!” (1989), seguindo de “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1994) e “Carne Trêmula” (1997) esse desconforto passou a aparecer. O que seria?

Assistindo a seu novo filme, no entanto, o candidato a Oscar de Melhor Filme Internacional “Mães Paralelas”, foi que finalmente compreendi o que me perturbava em Almodóvar. Mas vamos ao filme primeiro: na história, duas mulheres, Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), dão a luz no mesmo dia e no mesmo hospital. Janis, de meia idade, teve a gravidez planejada e já se sente preparada e eufórica para ser mãe. Ana, adolescente, engravidou por acidente e sente medo do que está por vir, além de estar assustada, arrependida e traumatizada. As duas enfrentam essa jornada como mães solos e estreitam o vínculo entre si. Porém, o destino lhes guarda acontecimentos inesperados, que vão mudar profundamente suas vidas e remexer em questões originárias de ambas.

A abordagem realista de “Mães…” trouxe-me à luz que minha antiga questão com Almodóvar era nada estética e totalmente filosófica. Já nos primeiros minutos do filme o cineasta deixa claro que a trama encadeia com a mesma força os espectros existencial e sociopolítico ao evidenciar a situação das duas mães e da sua desafiadora condição feminina e, paralelamente, do resgate da memória de perseguidos políticos pela ditadura de Franco e cujos laços familiares são essenciais ao autorreconhecimento das personagens. Essa visão bastante autobiográfica, seja íntima ou coletivamente, não poderia ser abordada de outra forma que não a realista, contrariamente ao que por muito tempo prevaleceu como discurso nos filmes de Almodóvar, que era uma visagem reiteradamente excêntrica, quando não bizarra ou surreal. Essa linha de raciocínio transmitiu a mim por muito tempo que não havia outra visão de mundo para o diretor que não o decadentismo. Não que um autor, assim como muitos o fazem desde que a arte pensa o mundo, não possa – ou deva – expressar seu pessimismo. Não fosse assim, desconsideraria, por exemplo, o cinema de Angelopolus, Von Trier ou Bergman, quase sempre amargos. Mas a impressão que dava na filmografia de Almodóvar, mais precisamente até “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), marco desta quebra para uma incursão mais realista e biográfica, resultava em algo um tanto simplista, como se tudo se resolvesse pelo bizarro. Desde pequenos detalhes do roteiro até “soluções” ou comportamentos inesperados dos personagens, havia como que uma inquietação que não permitia que as verdades se despissem: careciam sempre estarem vestidas de ironia, choque, de arroubos. 

trailer de "Mães Paralelas"

Seria simplista, aí sim, de minha parte, no entanto, atribuir isso à homossexualidade, sempre tão presente em suas temáticas, embora propositadamente geradora de perturbação, um possível indicativo. Mas não era só isso. Havia no ar – assim como a sensação de suspensão obtida pela câmera de Resnais ou a de sonho que Buñuel magicamente atribuía a seus filmes surrealistas – um sentimento de deslocamento constante, uma revolta inquietante.  Tudo, claro, com o invólucro extremamente bem acabado, que lhe é marca registrada, o que me confundia até certo ponto – além, claro, da própria qualidade de filmes como “Ata-me!” e “Kika”, por exemplo. Porém, tudo formava, por fim, algo inevitavelmente um tanto repetitivo, para mim insuficiente a um autor tão capaz de vislumbrar um paradigma mais amplo. O bastantemente autobiográfico “Dor e Glória” (2019), seu longa imediatamente anterior a “Mães…”, parece com este último mostrar um Almodóvar maduro, por mais estranho que essa afirmação possa parecer quando se refere a um dos mais talentosos cineastas da atualidade. Nada de rompantes dos personagens, falas chocantes, ações excêntricas como se a alma do ser ibérico fosse necessariamente sempre assim. Até mesmo o thriller “A Pele que Habito” (2011), filme que marcou uma recente virada de prestígio na carreira de Almodóvar, o elemento bizarro funciona a favor da narrativa fantástica por natureza.

Penélope noutra ótima atuação
com Almodóvar, concorre ao
Oscar de Melhor Atriz 
Este pisar no chão de Almodóvar em “Dor...” e agora em “Mães...” acaba por repercutir principalmente no roteiro, precioso no entendimento das complexidades humanas e, consequentemente, na direção de atores – o que põe Penélope, vencedora do Oscar de Atriz Coadjuvante em 2009 por "Vicky, Cristina, Barcelona" a concorrer pela segunda vez na carreira ao de Melhor Atriz (a outra, também com Almodóvar, por "Volver", em 2007). Afinal, quer algo mais inesperado do que as reações do ser humano diante do medo? Não precisa de exagero para expressar isso com contundência.

O resultado é um filme preciso, em que Almodóvar deixa aquela sensação que somente os grandes conseguem, que é a de ter se superado. E isso é ainda mais louvável considerando que, assim como Allen, o espanhol é daqueles cineastas que sempre produziram muito e há muito tempo, o que, naturalmente, leva a maior probabilidade de erros e acertos. Decerto, o Oscar de Filme Internacional fique com o acachapante “Drive My Car”, o qual, assim como “Roma” em 2018, e “Parasita”, em 2020, concorre também ao de Melhor Filme, mas que dificilmente repetirá o feito deste último ao arrebatar as duas estatuetas. Independentemente de premiação ou não, como obra “Mães...” vem com pertinência discutir questões femininas com tamanha sensibilidade, ineditismo, beleza e verdade. Um filme que diz, a rigor, tudo sobre todas as mães do mundo.


Daniel Rodrigues

terça-feira, 5 de outubro de 2021

"O Segundo Rosto", de John Frankenheimer (1966)


Eu dilacerado

Sondar as profundezas da natureza humana é uma das mais recorrentes propostas do cinema de autor. Neste universo, há inúmeros títulos que abordam o tema sob enfoques dos mais diversos. Determinados cineastas, no entanto, tomam este tipo de temática quase como uma obsessão – o que lhes faz soar formalmente ainda mais freudianos. O cinema europeu, mais dado a estes instigantes “intrincamentos psicologizantes”, tem em Bergman uma referência indissociável, mas ainda há Antonioni, Wenders, Resnais, Buñuel, Fassbinder e alguns outros. No cinema americano a prática de levar a câmera ao divã é mais incomum, porém, por sorte, não inexistente. Inspirado no cinema marginal americano dos anos 40-50 (Penn, Aldrich, Ray), no expressionismo alemão e pelas vanguardas dos anos 60 e 70 – que tomavam os corações de jovens cineastas pelo mundo todo àquela época –, o norte-americano John Frankenheimer (1930-2002) muito perseguiu em seus filmes a temática psicanalítica. Seu mais assertivo feito é, entretanto, “O Segundo Rosto” (Seconds, EUA, 1966), uma brilhante metáfora sobre a perda de identidade e a dilaceração do indivíduo na sociedade moderna.

Um dos livros mais importantes do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “Modernidade e Holocausto”, traz, através da visão crítica e ampla peculiar do autor, a ideia de que os sintomas da Solução Final da Segunda Guerra Mundial ultrapassam o castigo aplicado ao povo judeu (o que já seria, contudo, suficientemente trágico). Para ele, as implicações do massacre praticado pelo regime nazista se estendem às esferas política, sociológica e psicológica com tal força que se torna, ainda hoje, problema não só de judeus, mas de não-judeus, de ocidente e oriente; da sociedade moderna como um todo. Trata-se, obviamente, de um fenômeno maligno, mas cujos fatores psicossociais formadores não são necessariamente perversos, visto que pautado no tripé da burocracia moderna, da eficiência racional-tecnológica e da mistificação – aspectos que, convenhamos, isoladamente, não inspiram essencialmente maldade. 

Nesta linha, “O Segundo Rosto” traz à tona, num enredo envolto em mistério, ficção-científica e surrealismo, um dos resultados psicossociais dos efeitos devastadores que o genocídio impregnou no inconsciente coletivo: a divisão do “eu”. Afinal, a Crise dos Mísseis havia ocorrido há apenas 4 anos, a cisão entre as “Alemanhas” estava no auge e a Guerra Fria era “compensada” pelos Estados Unidos num conflito injustificável no Vietnã. Tal tensão fica explícita na construção do personagem-protagonista (s?). Na história, um homem de meia idade, John Hamilton (maravilhosamente interpretado por John Randolph), vice-presidente de um banco, vive com a esposa numa confortável casa de subúrbio. Angustiado e insatisfeito com sua vida burocrática e repetitiva, contrata uma empresa especializada em "renascimentos". A organização forja sua morte e, após avançados procedimentos cirúrgicos, faz com que ele renasça na figura de Anthiocus Wilson (Rock Hudson), um pintor de sucesso cuja história toda pré-programada ele, agora renovado por fora, terá de se incubar “por dentro”. Claro, não sem enormes desafios psicológicos.

Cena de "Seconds":  modernidade e Holocausto

Frankenheimer concebeu um filme revolucionário, inspirador de grandes realizadores como David Cronenberg e Roman Polanski, de quem se vê em vários trabalhos elementos pescados de “O Segundo Rosto”. A relação carne/alma, recorrente discussão na obra de Cronenberg – “A Mosca” (1986) e “Crash” (1996), por exemplo –, é explorada numa brilhante metáfora no filme: a “companhia de renascimentos” usa como fachada um frigorífico. A utilização das perturbações mentais como elemento narrativo é também típica do cinema tanto de Cronenberg quanto de Polanski, que de “O Segundo Rosto” se valeu bastantemente para compor os roteiros e a atmosfera sombria de suspenses psicológicos como “O Bebê de Rosemary” (1968) e “O Inquilino” (1976).

De fato, “O Segundo Rosto” inova e surpreende. Começa com a hipnótica abertura do mestre Saul Bass, designer alemão que revolucionou o modo de apresentar os filmes ao adicionar, com técnica e criatividade, o conceito do filme já nos subtítulos, e cujos créditos iniciais de obras-primas como “Um Corpo que Cai”, “O Homem do Braço de Ouro” e “Cabo do Medo”, assinadas por ele, são um espetáculo à parte. Em “O Segundo Rosto”, Bass se vale de imagens em hipercloses distorcidas de um rosto casadas com a tensa música de outro mestre, Jerry Goldsmith, dando a tônica do que virá no decorrer da trama. 

A marcante abertura assinada por Saul Bass


As interpretações são outro destaque, principalmente a de Rock Hudson, cuja mente perturbada consegue-se penetrar pelo espectador a ponto de causar uma quase náusea. Perversão, culpa, alucinação, medo, inocência; está tudo ali, embaraçado. As figuras que, por paranoia ou não, aterrorizam o mundo de Anthiocus parecem saídas de um tenebroso sonho, lembrando as caracterizações feitas por Orson Welles em “O Processo” (1962). 

Afora o roteiro, eficiente e preciso, equilibrando densidade e didática, a direção e a fotografia merecem aplausos. O olhar de Frankenheimer é cirúrgico, usando os elementos fílmicos com precisão e clareza de objetivos. A câmera, por exemplo, é um artifício para, independente da forma como é empregada, transmitir desequilíbrio, seja em movimentos bruscos – como na fascinante cena inicial na estação (presa à altura da cabeça do ator, esta técnica de hiperrealismo ainda é muito usada hoje, na publicidade, por exemplo, para fortalecer a proximidade física do espectador com o “objeto” filmado) –, seja em enquadramentos fixos, ora em angulações distorcidas e inclinadas, ora aproveitando-se da profundidade de campo proporcionada pela lente objetiva.

O "eu" dividido: simbologia
do espelho como terror
A propósito disso, a fotografia expressionista em P&B assinada pelo chinês James Wong Howe, outro craque de Hollywood que modificou a forma de fotografar em audiovisual, é um dos pontos mais marcantes do filme, tendo concorrido, inclusive, ao Oscar daquele ano. Não só o uso da perspectiva funciona como ressignificação da complexidade psicológica do protagonista como, igualmente, os closes nas texturas rugosas das peles, nas gotículas de suor que escorrem do rosto, no brilho artificial da íris dos olhos. Foco e desfoco andam juntos o tempo todo, e a composição dos cenários, às vezes propositadamente poluída de elementos visuais, reforçam o deslocamento psicológico de Hamilton-Anthiocus no mundo em que vive – embora o termo “viver” não seja propriamente o mais adequado nesta situação.

Falando em terminologias, este é outro fator expressivo no que se refere à metalinguagem que o filme suscita. O título original pode ser traduzido tanto como “segundo” ou “outro”, pontuando o conceito de dualidade marcante da obra, quanto por “segundos”, numa referência à passagem do tempo, seja este imagético ou físico, real ou psicológico, cronológico ou anacrônico. Outro termo que merece atenção é o “renome” que o protagonista recebe: Anthiocus. Ora: se alguém que busca reinventar-se na modernização forçada de suas feições e biografia recebe um nome etimologicamente referido a “antigo”, é porque alguma coisa está errada! Na sua nova vida, o agora artista, amante de uma linda jovem, conviva da alta classe burguesa e bonito feito um Deus submerso num novo inferno, na verdade, não se desfez daquele velho Hamilton que há dentro dele e cuja casa à art nouveau sempre pareceu um museu – e dos gélidos. Sua profissão de artista plástico, como o "Pintor da vida moderna" de Baudelaire – cuja existência servia para transpor à tela o momento presente –, soa como uma irônica metalinguagem da abstração da realidade pelo cinema enquanto arte.

Duas cenas de "Seconds": influência expressionista
nas imagens distorcida e aterradoras

Este Fausto revisitado, como bem associou o crítico cinematográfico francês Jean Tulard, tem tudo a ver com as crias que o fantasma do Holocausto produziu e produz. Se pensarmos que a pós-modernidade em que vivemos hoje é fruto da modernidade e de que, embora o mundo globalizado e a era digital signifiquem um novo paradigma repleto de novas significações, a própria recentidade história do pós-Guerra intui que problemáticas advindas com este período não tenham sido ainda esgotadas. Tudo bem em se renovem os questionamentos; mas, conforme assinala Bauman, sofre-se ainda, como o personagem de “O Segundo Rosto”, do mal-estar característico da crise da modernidade, impelido pelo também recente advento da psicanálise, pela queda do materialismo histórico e pela quebra do Estado clássico. O resultado é a perda de direção e a criação de um grande “nada”, o qual se impõe à frente de tudo. Alguma semelhança com a falta de critérios e distinções morais da família, da sociedade, do Estado de Direito que se vê hoje?

Cena de "Brilho Eterno...":
poesia do inconsciente
Fugir, então: eis a solução! Este “eu” que, do século passado para cá, de tão massacrado, não está mais se achando. “Eu” que se reduziu a suas meras limitações na filosofia existencialista; “eu” de um K. de “O Processo” de Kafka, que não sabe para onde vai e nem porque; “eu” que perde-se no labirinto das veleidades e da estética, como o hedonista fotógrafo Thomas de “Blow Up” (Antonioni, 1966); ou aquele “eu” lisérgico, marginal e impulsivamente desistente do sistema de Jack Kerouac, Para onde correr, se só há o nada em qualquer direção em que se vá? O jeito é reinventar-se – mesmo que artificialmente. Mais recente, o poético “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (Michael Gondry, 2004) navega por mares bem parecidos com o de “O Segundo Rosto”. Neste lindo romance psicológico da era digital, Joel (Jim Carrey) vive um marido magoado por sua esposa Clementine tê-lo, como nos computadores, deletado de sua mente. Resolve, então, retribuir na mesma moeda. No decorrer da operação na “clínica”, Joel percebe que, na verdade, não quer excluí-la de sua vida, e sim manter em sua memória os momentos em que estiveram felizes. A partir disso, ele enfrenta uma incrível luta mental para que essas memórias continuem vivas dentro de si.

O conflito em que esses personagens se consumem e os leva a uma divisão de si mesmos está, em ambos os filmes, diretamente ligada à relação com suas mulheres. Elas lhes são o espelho de suas identidades. Analisando o filme Frankenheimer, a esposa de Hamilton-Anthiocus exerce um papel fundamental na trama, tanto no início da história, no descompasso entre eles, quanto no desfecho, quando se reafirma este desafino. Embora o objeto espelho seja recorrente no cinema para expressar duplicidade, divisão, diferenciação, afastamento, ruptura etc, a repetição deste no decorrer de “O Segundo Rosto” é ludicamente deliciosa ao mostrar a “distorção” da imagem tanto de Hamilton quanto de Anthiocus. Há, porém, na cena crucial do diálogo entre o ele e sua (ex) esposa na casa em que viviam, onde é ela quem se vê refletida e não se “reconhece”, tal como ocorre com o (ex) marido a todo instante, antes e depois da cirurgia.

"O Inquilino" de Piolanski:
dissociação do "eu"
A formação do “eu” no olhar do “outro”, de acordo com o psicanalista francês Jacques Lacan, inicia na infância na relação do ser humano com os sistemas simbólicos fora dele mesmo. O que ele chama de "fase do espelho" é quando a criança, não possuindo qualquer autoimagem como uma pessoa "inteira", vê-se ou "imagina" a si própria refletida, figurativamente, no "espelho" que é o olhar do outro. Só aí ela pode se ver como uma "pessoa inteira". Mas o que ocorre quando este “espelho” está “quebrado”? Outro famoso psicanalista, o suíço C. J. Jung, disse que “não se cura a dissociação dividindo-a, mas dilacerando-a”. No já citado “O Inquilino”, o personagem principal, num processo semelhante ao de Anthiocus, a certa altura, questiona-se: caso mutilassem partes de seu corpo, poder-se-ia, mesmo assim, ele e suas partes continuarem se chamando pelo mesmo nome? Despedaçado, sua angústia está em perder a “unidade” de sua alma, de ser um mero “inquilino” dentro de si mesmo.

Embora  este sujeito complexo e problemático esteja sempre partido, ele passa a vivenciar sua própria identidade como se ela estivesse reunida e "resolvida", como resultado da fantasia de si mesmo que ele formou naquele espelho em cacos. Aspectos tão profundos da psique humana e do inconsciente coletivo encontram, por sorte, leito na obra de autores do cinema americano como Frankenheimer (e aí se podem citar também Allen, Scorsese, Eastwood e Altman), coisa que o cinema de outras partes do mundo, infelizmente, muitas vezes não tem tanto poder em atingir um público maior valendo-se de recursos semelhantes. Apesar de pessimista, a visão de Frankenheimer supõe um alarme, um apontamento do erro de nossa pós-modernidade de que fugir de si esvazia e dilacera.

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trailer de "O Segundo Rosto"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Jesus e o Diabo na Terra do Pop

 

Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.

Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.

Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.

filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha


O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).

Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção. 

Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com
"Barton Fink": referências diretas

Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.

Miklos: atuação que
enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.

Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.

Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.

teaser de "Jesus Kid"



Daniel Rodrigues

sábado, 26 de junho de 2021

“Pink Flamingos”, de John Waters (1971)

 

Divina Escatologia

Afora os vários anos de paixão pelo cinema, de batimentos acelerados por causa de um final emocionante, um plano-sequência bem realizado ou mesmo um início de filme de tirar da poltrona, um dos grandes prazeres é deparar-se com surpresas que te motivam a comentar a respeito. “Pink Flamingos”, de 1971, clássico do cinema underground norte-americano, é um desses motivadores. O longa de John Waters, que completa 50 anos de seu lançamento, é tão escatológico, tão surrealista e ao mesmo tempo tão bem realizado e mordaz em sua capacidade crítica que é impossível passar incólume à obra. Mais do que isso: o quanto os símbolos da contracultura se transmutaram em um quadro muito mais perverso ao qual os Estados Unidos e o mundo se transformaram nestas últimas cinco décadas desde que o filme foi realizado.

Cineasta, ator, escritor, jornalista, artista visual e colecionador de arte, Waters é uma figura ímpar de quem só poderia ter saído algo como “Pink Flamingos”. Expulso do dormitório da Universidade de Nova York por fumar maconha e comparecer em uma única aula, Waters aprendeu sobre cinema com o dono de um laboratório de filmes da cidade natal, Baltimore, e um conhecido, que fornecida equipamentos de emissoras de televisão. Em 1964, o jovem aspirante a diretor lançou a primeira produção da carreira, o provocador curta-metragem “Hag in a Black Leather Jacket”, filme foi feito com apenas 30 dólares e que retrata um casamento entre um homem negro e uma mulher branca realizado por membros da Ku Klux Klan.

Ainda nos anos 60, Waters começou a formar o Dreamland, um grupo de artistas e performers atípicos interessados em dar vida às narrativas nada convencionais do diretor. Entre as figuras do seleto elenco, estava Harris Milstead, mais conhecido como intérprete de Divine, personagem a qual criaram juntos e que redefiniu o visual da drag queen. Sobrancelha arqueadas, delineados grossos e sombras coloridas que se estendem até o topo da cabeça quase careca, cabelos loiros e compridos que preenchem a outra metade, brincos brilhantes e um vestido vermelho ajustado ao corpo acima do peso considerado padrão pela sociedade. Sim: fora do padrão vigente e uma quebra, inclusive, da imagem Miss América que as drags ansiavam. Waters dizia, assim, que na sociedade moderna, nada é perfeito. Longe disso.

Deboche anti-cênico

“Pink Flamingos” tem muito de Luis Buñuel. Sem o charme do cinema do espanhol, já que a intenção não é essa mesmo. Mas noutras coisas, sim. Quando se fala em surrealismo no cinema a referência óbvia é Buñuel. Desde os pioneiros “Um Cão Andaluz” e “A Era do Ouro” (1928 e 1930, respectivamente), passando por alguns dos seus títulos mexicanos (“O Anjo Exterminador”, “Simão do Deserto”, “O Alucinado”) até os maduros da última fase na França (leia-se “A Via Láctea”, “O Fantasma da Liberdade”), toda sua obra é fortemente impregnada desta visão de mundo tão fora do real, que, por meio da exposição do absurdo, nos traz racionalmente para a realidade.

A turminha trash do subversivo filme de Waters

Um fator que contribui para esse universo é, além dos roteiros de cuidado literário, do refinamento da fotografia e do enquadramento e do olhar crítico e cruel de Buñuel sobre a sociedade moderna, a forma anti-cênica na qual dirigia os atores. Há em quase todos os seus filmes, um artificialismo dos atores em cena que reforça a carga de abstração do conteúdo e, por consequência, do não-realismo do discurso. 

Essa proposital falsidade, sentida nas falas, nos gestos e nos diversos elementos físicos da cena, chega ao tom de deboche, algo que inspira “Pink Flamingos”, dominando todo seu elenco. O “sarro surreal” já começa pelo enredo: o filme conta a história de Divine, um travesti que orgulhosamente ostenta o título de ser mais pervertido do mundo. Um invejoso casal, porém, concatena um plano para tirar-lhe essa coroa. A monstruosa fêmea descobre o plano e faz de tudo para manter seu posto, sem, para isso, poupar nenhum tipo de escatologia ou repugnância.

Saco cheio

Existem obras que não poderiam ser geradas não fosse na época em que surgiram. Caso contrário, corriam o risco de não ser compreendida, o que acontece bastante com as visionárias, ou de ser tachada de tardia, quando lançada depois de já existir um marco anterior sobre aquele tema. Mas tem aquelas que, bum! Acertam na mosca. “Pink Flamingos” se enquadra nessa estirpe. 

Waters: gênio do lixo
O cenário é a mesma Baltimore natal de Waters, nordeste dos Estados Unidos, início dos anos 70. Desde fim da Segunda Guerra, a sociedade norte-americana enriquecera, financiara o reerguimento da Europa, estabelecera seu cinema como maior espetáculo do mundo, gerara alguns dos maiores gênios da música com seu jazz. Mas, em contrapartida, passara por uma Crise dos Mísseis, vira um presidente ser assassinado em praça pública, perdera uma guerra para os coreanos e estava levando uma saraivada dos descalçados vietnamitas naquele momento. A “América” era um deboche.

O jovem americano urbano da época, de saco cheio com o establishment e com o mentiroso american way of life, passou a externar o desgosto com isso tudo através de manifestações artísticas, fosse em música, literatura, teatro ou cinema – às vezes, tudo ao mesmo tempo. Nascia o punk. Um desses talentos revoltosos era o cínico e picante John Waters, senhor de uma elegância quase lordesca e de uma mente tão perversa quanto criativa. “Pink Flamingos”, seu sétimo longa, insere-se no contexto do punk, movimento que, àquelas alturas, se engendrava na Big Apple e estava prestes a atravessar o Atlântico em direção a Londres, onde explodiria em 1975.

Embora não pertencente a este grupo, é estreita a relação de Waters com o punk. Sua abordagem sarcástica – a qual se viria inclusive em musicais, como o (off)Off-Brodway “Hairspray”, seu filme de maior sucesso, e “Cry Baby”, com o astro Johnny Depp – já nos anos 60 influenciaria cabeças como Paul Morrissey e John Vaccaro, estes dois ligados ao teatro e ao cinema e bastante atuantes na cena punk nova-iorquina. 

A divina nojenta

Tanto “Pink Flamingos” quanto os outros longas no qual o ator Harris Milstead encarnara o travesti Divine expressam uma profunda crítica à sociedade americana. Personagem-símbolo da obra de Waters, Divine serve como corpo (e que corpo: 150 kg) para a denúncia à moral yankee. Porém, ao contrário da visão moralista de “O Sol é Para Todos”, de Robert Mulligan, ou mesmo do olhar realista das classes baixas dos dramas de Elia Kazan dos anos 50, o cinema americano nunca tinha visto um caldeirão de agressões e acusações tão intenso. E, bem ao estilo punk, cínico e descrente, como se soubesse da importância do que está falando, mas achando que não vai servir para nada.

“Pink Flamingos” é um festival de bizarrice. A saber: venda de bebês, seqüestro, inseminação e cárcere de mulheres férteis (para depois, claro, vender os bebês), sexo com galinhas (não, não é um homem transando com a galinha: é um casal transando com a galinha no meio...) e mais contorcionismo anal, canibalismo, exibicionismo hermafrodita e por aí vai. Uma das cenas mais célebres, no entanto, recebeu, assim como a da Batalha da Escadaria de Odessa (de “O Encouraçado Potemkin”) ou a Cena do Chuveiro (de “Psicose”), até um título: Sorriso de Merda. Nesta, Divine come, na frente do espectador, as fezes de um cachorro – e ainda solta um até divertido sorriso para a câmera. 

"Eat shit": Divine em uma das cenas mais grotescas da história do cinema

Porém, se comparado com a loucura da sociedade americana, nada é pesado. Waters e os punks da época pareciam pressentir que aquele sistema nuclear da família, que a Igreja e o Estado estavam indo para o ralo, e que o final do século XX só guardava pioras. A violência da sociedade, vestida no filme de escárnio, parecem ter antevisto esse desregulamento do povo norte-americano, que quase todas as semanas enchem os noticiários com assassinatos em série em escolas e que elegem presidentes genocidas como Trump e Bush. No entanto, um dos elementos que condensam todas as ideias de ataque social que “Pink Flamingos” expõe com tamanha ironia é o do canibalismo. A cena em que Divine e sua família, ao invés de fugir de policiais que os atacavam, os comeram, é sintomática e metaforicamente profética.

O fato é que, passadas cinco décadas da realização de “Pink...”, sua atualidade se muta. O cenário político e social dos Estados Unidos transformou-se muito de lá para cá... ou nem tanto. Se àquela época a Guerra do Vietnã ainda atormentava a consciência norte-americana, a natureza bélica dos compatriotas de Waters manteve-se, menor ou maiormente, em todos - sem exceção - os governos que se sucederam ao traumático Nixon de então. Biden, no começo de caminhada, parece claramente optar pelo diálogo, mas nada impedirá que a máquina de guerra ianque haja se necessário à sua revelia - ou, pior, "por força maior" literalmente. No fim das contas, o povo mais rico do mundo, o exemplo para outras nações, o líder das ações políticas globais, aquele que se autoproclama afetivamente capaz e forte é, justamente, o que mais contraria tudo isso. Quão surreal é o cenário pós-Torres Gêmeas de multidões de refugiados. De crescimento abissal da pobreza extrema e de novos bilionários. De ascensão da extrema-direita e namoro com o fascismo. Nem uma mente subversiva e criativa com a de Waters imaginaria que as coisas fosse se configurar desse jeito. Acostumamo-nos com o surrealismo da vida.

trailer de "Pink Flamingos"


Daniel Rodrigues