Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por data para a consulta caetano veloso. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta caetano veloso. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Edu Lobo & Chico Buarque - "O Grande Circo Místico” (1983)



 

Acima, capa do vinil original de 1983; a outra,
capa da versão em CD
"O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa."
Versos de abertura do poema "O Grande Circo Místico", de Jorge de Lima, 1938

"Uma enciclopédia da música brasileira."
Antônio Carlos Miguel, jornalista e escritor

Não é incomum ouvir de admiradores da música brasileira que “O Grande Circo Místico” é o melhor disco já produzido no Brasil. Mesmo que nessa seara naturalmente venha à mente obras como “Elis & Tom”, “Acabou Chorare” ou “Getz-Gilberto”, não é descabida a consideração atribuída a esta obra. Afinal, em que projeto se reuniu para cantar boa parte do primeiro escalão da MPB, leia-se Gilberto Gil, Tim Maia, Gal Costa, Milton Nascimento, Simone, Jane Duboc e Zizi Possi? E quando que esse time de estrelas estaria junto para interpretar temas de uma peça infanto-juvenil feita para o curitibano Teatro Ballet Guaíra sobre um poema clássico da língua portuguesa? Mais: quando contariam com o reforço de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes, Cristóvão Bastos, Marcio Montarroyos, Antonio Adolfo, Leo Gandelman, Hélio Delmiro, entre outros? E, mais ainda: em que ocasião tudo isso gravitou em torno de um repertório inédito e tão qualificado, que é o sumo de uma então recente parceria de dois gênios da música do século XX?

Pois este disco adorado pelos fãs e cheio de significados chega a 40 anos de lançamento no mesmo ano em que um de seus artífices, Edu Lobo, completa o dobro de idade. Na linha do que foi produzido nos anos 70 e 80 para o público infantil, ”O Grande...” traz o espírito de especiais clássicos como “Plunct Plact Zum”, “A Arca de Noé” e “Pirilimpimpim”, a começar pelo primor musical e estético que não subestima o bom gosto da criança. Porém, neste caso, tal atmosfera vem encapsulada por um diferencial: o encontro de Edu com seu melhor parceiro: Chico Buarque. A dupla cria 11 temas novinhos em folha com o mais alto nível não apenas para aquilo que pode ser classificado como “música infanto-juvenil”, mas em toda a história da música popular brasileira. 

Se hoje esta dobradinha dourada se tornou uma das mais celebradas da MPB, muito se deve a ”O Grande...”. Até então, os caminhos de Edu e Chico haviam se cruzado apenas duas vezes: na orquestração que Edu fizera para a peça “Calabar”, de Chico e Ruy Guerra, em 1973, e numa única e frutífera composição, a música “Moto-Contínuo”, que o segundo gravara em seu disco “Almanaque”, de 1981. Pronto: estava dada a magia! Edu, que já havia produzido a excelente trilha para o balé Guaíra “Jogos de Dança”, sem letras e usando apenas as vozes dentro do arranjo instrumental, foi novamente convidado pelo cenógrafo, dramaturgo e figurinista Naum para um novo projeto da companhia. Porém, tratava-se de uma adaptação do singular poema surrealista de mesmo nome de 1938, de autoria do poeta modernista Jorge de Lima, composto de uma estrofe e 45 versos. O texto conta a trajetória de Knieps, que abandona a corte e a medicina, apaixonando-se pela equilibrista Agnes, começando a dinastia do Grande Circo Místico. Algo que Edu, desde os anos 60 envolvido com teatro, normalmente delegava a parceiros, como a Gianfrancesco Guarnieri em “Arena Canta Zumbi” (1965) e a Vinícius de Moraes em “Deus lhe Pague” (1975). 

Edu e Chico no início dos anos 80: encontro que não
os separaria jamais
Para aquela nova empreitada, a bola da vez era o mais recente parceiro. Afeito ao texto para palco, haja vista que já havia escrito, além de “Calabar”, ”Roda Viva”, em 1968, Chico também era mestre nas adaptações para teatro. Escreveu sozinho todas as composições sobre o poema de João Cabral de Melo Neto para “Morte e Vida Severina”, em 1966, adaptou, com Paulo Pontes, “Medeia” de Eurípides em “Gota D’Água” para a voz de Bibi Ferreira, em 1975, e trouxe Bertold Brecht e John Gay para a realidade brasileira noutro musical, “Ópera do Malandro”, de 1978. Porém, mais do que todos estes exemplos – que já seriam suficientes para justificar um convite –, Chico sabia lidar com o universo infantil. Além do livro “Chapeuzinho Amarelo”, que lançara em 1979, o pai de Sílvia, Luísa e Helena já tinha realizado, dois anos antes, a deliciosa peça musical “Os Saltimbancos”, inspirada no conto "Os Músicos de Bremen", dos irmãos Grimm, junto a Sergio Bardotti e Luis Bacalov, amigos italianos dos tempos de autoexílio na terra de Michelangelo. Ali se revelava mais uma faceta do Chico plural: afora o malandro, o militante político, o cronista, o amante, a voz feminina e vários outros, via-se agora o autor para os pequenos. Edu, que enfileirara parceiros da categoria de Joyce, Cacaso, Dori Caymmi, Ferreira Gullar, Paulo César Pinheiro e outros, sabia ter achado a pessoa ideal para letrar suas músicas.

O resultado é um desbunde capaz de encantar crianças e adultos há quatro décadas. Começando pela instrumental “Abertura do Circo”, com fantástico arranjo escrito por Edu e orquestração do maestro Chiquinho de Moraes, um tema circense tão marcante, que dá a impressão de se tratar daquelas melodias folclóricas antigas e de autor desconhecido. Mas tem autor, sim, e é Edu Lobo. Na sequência, uma pausa na rotação do planeta, pois é Milton Nascimento cantando a balada “Beatriz”. “Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é o contrário/ Será que é pintura/ O rosto da atriz...” Considerada por oito entre 10 uma das maiores canções da música brasileira de todos os tempos, este clássico não pode ser classificado de outra coisa, que não de perfeito. Em melodia, em arranjo, em letra e, principalmente, na interpretação de Milton. A voz do gênio de Três Pontas é de uma afinação tão precisa e atinge registros tão improváveis, que fica impossível imaginar outro ser capaz de cantá-la. Além, claro, da emoção transcendente que Milton transmite. Uma obra-prima, que apenas Zizi, numa permissão para o Songbook de Chico, ousou regravar. Também, pudera.

Seguindo adiante, Jane Duboc entra no picadeiro e usa de toda sua brandura e sentimento na linda “Valsa dos Clowns”, cuja letra fala da famosa dicotomia da tristeza do palhaço, escondida por detrás da figura sempre engraçada: “Em toda canção/ O palhaço é um charlatão/ Esparrama tanta gargalhada da boca pra fora/ Dizem que seu coração pintado/ Toda tarde de domingo chora”. Cantada em coro, na sequência, "Opereta do Casamento”, como uma breve e alegre história popularesca, antecede outra história: a de Lily Brown. Personagem criada no poema de Jorge de Lima, mas cuja saga é totalmente inventada pela mente de Chico. Ele dá vida à “deslocadora” Lily Brown, a que “tinha um santo tatuado no ventre”, atribuindo-lhe contornos de uma moça sonhadora, que acredita ter encontrado o “homem de seus sonhos”. Ao fim, entretanto, não concordando com sua vida mambembe, ele a abandona. Num estonteante jazz bluesy, a melodia e o primoroso arranjo de Edu acompanham os versos de Chico, que deita e rola na poética. Por exemplo: o raro uso de rimas “preciosas”, que combina a fonética de palavras de idiomas distintos, é largamente usada. Caso de “cheese” com “feliz”, “dancing” com “romance” e “azul” com “flou”. Outro elemento-chave para a canção é, novamente, a adequação da interpretação, que não poderia ser mais exata, pois toda a sensualidade que a música exige está devidamente contida na voz de Gal e seu timbre de cristal.

Outra linda balada: a sentimental “Meu Namorado”, interpretada por Simone, é das mais perfeitas do repertório. Os teclados de Cristóvão Bastos comandam o toque da arpa, da gaita e das cordas, fazendo cama para os versos potentes e líricos emitidos pela voz da baiana: “Meu namorado/ Minha morada é onde for morar você”. De arranjo bem mais enxuto, mas não menos brilhante, "Sobre Todas as Coisas” tem no violão de Gil a única do álbum apenas com um instrumento acompanhando o vocal. De fato, não precisa mais, pois a genialidade do autor de “Aquele Abraço” é tão inata, que desta rara interpretação de Gil a uma canção de Chico e Edu sai o tema mais contemplativo e filosófico do disco. Gil dá ares de um spiritual à canção, tal uma canção-prece dos trabalhadores negros escravizados dos Estados Unidos, clamando pelo entendimento da existência e de um amor não correspondido. “Ao Nosso Senhor/ Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor/ Criado pra adorar o Criador”. Caetano Veloso bem captou tamanha profusão de significados ao mencionar na sua música “Pra Ninguém”, de 1997, em que enumera músicas de autores da MPB cantados por outros autores/cantores da música brasileira, justamente esta entre tantas que poderia escolher do vasto repertório de versões de Gil a outros compositores. 

Contracapa do álbum com desenhos de Naum,
que reproduzem a ideia da cenografia da pela

Congele-se o firmamento mais uma vez, pois é hora de Tim Maia soltar seu vozeirão para a incrível "A Bela e a Fera”. Jazz-soul surpreendente de Edu – ainda mais após um número tão melancólico como o anterior – com seu arrojado arranjo de metais a la Quincy Jones, a bateria suingada de Paulinho Braga e o baixo vivo e inconfundível do “Black Rio” Jamil Joanes. Toda esta qualidade a serviço do “Síndico” em uma de suas melhores performances. Tim escalando as notas para cantar versos como: “Ouve a declaração, ó bela/ De um sonhador titã/ Um que da nó em paralela/ E almoça rolimã” é simplesmente histórico! Chico, também em uma de suas melhores letras, repete a dose em uma nova rima “preciosa” ainda mais improvável: “rolimã” com “Superman”! Musicando a saga do bruto boxeur Rudolf, da história original, Chico recria o personagem sob a perspectiva da famosa fábula do século 16, produzindo versos de admirável beleza como: “Não brilharia a estrela, ó bela/ Sem noite por detrás/ Sua beleza de gazela/ Sobre o meu corpo é mais/ Uma centelha num graveto/ Queima canaviais/ Queima canaviais/ Quase que eu fiz um soneto”. Para terminar arrebatando e elevando a emoção, Tim promove um dos lances mais sublimes da música brasileira, aumentando cirurgicamente o registro vocal para dizer: “Abre o teu coração/ Ou eu arrombo a janela”. De arrombar o coração, sim. O de quem escuta!

Quebrando mais uma vez a sequência rítmica, aquela que certamente é a mais infantil de todo o repertório. Se “Opereta...” contava com coro adulto, "Ciranda da Bailarina” traz agora vozes de crianças sobre uma lúdica ciranda de tons medievais, ainda mais pela sonoridade marcante de cravo e flauta doce forjados no sintetizador. E quem são as crianças? Os filhos de Chico e Edu, mais a pequena Bebel Gilberto (desde sempre envolvida com a música) e outros dois meninos. A sessão com a criançada é tal como recentemente a turma experimentava na trilha sonora do filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, que Chico versara de sua peça para o famoso quarteto humorístico um ano antes. E que versos! Semelhantemente aos “Saltimbancos”, a letra de “Ciranda...” era, ironicamente, a mais política de todo o disco. Mesmo se tratando da aparentemente mais ingênua faixa, “Ciranda...” foi a única afetada pela ainda ativa censura. A palavra “pentelho”, ridiculamente, foi cortada na execução, provocando um hiato bizarro na audição. Se nos Anos de Chumbo uma música como esta seria sumariamente vetada pelo simples fato do autor se chamar Chico Buarque, ao menos os ventos da Abertura Política não a subtraíram totalmente. E ainda bem que, anos depois, com a democracia conquistada e consolidada, foi possível regravá-la e reencená-la diversas vezes, incluindo as belas versõesde Adriana Partimpim, em 2009, e a do próprio Edu, em 2013.

Poster original do show no Teatro Guaíra,
em Curitiba
Quase finalizando, Zizi vocaliza com brilhantismo o tema-título, o preferido do disco para o próprio Edu. Mas para finalizar mesmo, não havia de serem outros, que não os autores. Intercalando uníssonos e combinações vocais, "Na Carreira” é uma comovente marchinha circense de despedida, que deixa um sabor de pipoca e algodão-doce na boca ao final do espetáculo. Uma tradução poética da vida mambembe: “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ Arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. A arte do palhaço presente em “Piruetas”, que Chico coescrevera para “Os Saltimbancos Trapalhões” (”Salta sobre a arquibancada/ E tomba de nariz/ Que a moçada/ Vai pedir bis”) empresta inspiração para “Na Carreira” quando esta diz: “Palmas pro artista confundir/ Pernas pro artista tropeçar”. Pode-se ler, aliás, como uma metáfora de artistas brasileiros como eles, saídos da Ditadura e vislumbrando um país livre e democrático com a então nascente campanha das Diretas Já!. Artistas estes que, igual ao que as duas músicas tratam, não desistem de apresentar sua arte, independentemente das condições. “O espetáculo não pode parar”, diz uma, e a outra: “Ir deixando a pele em cada palco/ E não olhar pra trás/ E nem jamais/ Jamais dizer/ Adeus”.

Desde então, Chico e Edu nunca mais se distanciaram. Vieram, na esteira de “O Grande...”, outras três trilhas para teatro da dupla: "O Corsário do Rei" (1985), "Contos da Meia-Lua" (1988) – também para o Guaíra – e "Cambaio" (2001), além da coletânea "Álbum de Teatro", de 1997. Desses, mais joias do cancioneiro nacional saíram, a exemplo de "Choro Bandido", "A Permuta dos Santos", "Bancarrota Blues" e "Ode aos Ratos". Mas nada se compara ao que realizaram naquele efetivo encontro no início dos anos 80 tanto na excelência das músicas quanto na coesão da obra, lindamente ilustrada por Naum. Revisitado várias vezes, seja nos palcos e até no cinema, "O Grande..." guarda qualidades incontestes, que o credenciam a ser considerado um marco na música brasileira. Quiçá, o maior. Se o próprio Edu a tem como uma das suas cinco melhores obras da assertiva, longa e nobre carreira, um indício bastante forte há nisso. O exigente Ed Motta, músico e colecionador, acha o mesmo. O tempo, sem dúvidas, ajudou a formar tal reputação. Fato é que, há 40 anos, esta trilha vem sendo notícia nos principais meios e consta não raro em listas de melhores discos da música no Brasil. “O Grande...” consolidou-se neste patamar e no imaginário do público. Um feito tão maravilhoso "de que tanto se tem ocupado a imprensa" há quatro décadas.

*********

clipe de "O Circo Místico", com Zizi Possi, no programa Bar Academia (1983)


*********
FAIXAS:
1. "Abertura do Circo (Instrumental)" (Edu Lobo) - 2:30
2. "Beatriz” (Milton Nascimento) - 5:01
3. "Valsa dos Clowns” (Jane Duboc) - 3:39
4. "Opereta do Casamento” (Coro) - 3:55
5. "A História de Lily Braun” (Gal Costa) - 3:51
6. "Meu Namorado” (Simone) - 2:44
7. "Sobre Todas as Coisas” (Gilberto Gil) - 5:00
8. "A Bela e a Fera” (Tim Maia) - 2:55 
9. "Ciranda da Bailarina” (Coro Infantil) - 2:22
10. "O Circo Místico” (Zizi Possi) - 3:41
11. "Na Carreira” (Chico Buarque & Edu Lobo) - 4:06
Faixas-bônus da versão em CD:
"Oremus - Coro (Instrumental)" (Edu Lobo) - 1:57
"O Tatuador (Instrumental)" (Edu Lobo) - 3:26
Todas as composições de autoria de Edu Lobo e Chico Buarque, exceto indicadas

*********
OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Música da Cabeça - Programa #338

 

Abaixo o Marco Temporal! Exaltando o que se deve, demarcamos o nosso tempo com que há de melhor neste MDC, a se ver por Stevie Wonder, Caetano Veloso, Duran Duran, Smashing Pumpkins, Paulo Zdan e um Cabeça dos Outros.Sem PL 203, o programa está marcado para as 21h na atemporal Rádio Elétrica. Produção, apresentação e dignidade aos povos originários: Daniel Rodrigues


www.radioeletrica.com

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Música da Cabeça - Programa #336

 

Se você é dos que jamais confundiria o "Pequeno Príncipe" de Saint-Exupéry com "O Príncipe" de Maquiavel, sinta-se em casa. O MDC não só não comete crimes como este, como ainda ajuda a expandir as mentes. Pra nos ajudar nessa missão pedagógica, estão conosco Banda Black Rio, Patife Band, Caetano Veloso, The Glove e mais. No Sete-List, outra aula, mas essa de musicalidade, com o oitentão Marcos Valle. Com responsabilidade naquilo que está dizendo, o programa abre a boca às 21h na maquiavélica Rádio Elétrica. Produção, apresentação e alto-falantes até no B612: Daniel Rodrigues.


www.radioeletrica.com

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

************

50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


quinta-feira, 10 de agosto de 2023

João Gilberto - “Amoroso” (1977)

 

"Esse disco tem um pouco esses negócios que a gente precisava. Tem a música da orquestra, eu tinha tanta vontade de ouvir um samba tocado por orquestra. A coisa é por todos os lados, música por todos os lados, enquanto estou cantando. Toda vestida, toda redonda. Tinha tanta vontade de ver a música do Brasil mais diretamente, o samba daquele jeito, que não fosse só o delicado, que fosse redondo, ligado, assim como o Claus [Ogerman] fez." 
João Gilberto, em telefonema a Zuza Homem de Mello, em 1977


Poucas coisas em música são mais sofisticadas que a bossa-nova. Na segunda metade do século 20, nada supera. A sintaxe harmônica, fruto de séculos de assimilação histórico-sociológica que forjam o ser brasileiro, deram à bossa-nova o status de estilo musical mais arrojado depois da invenção do jazz. Exemplos desta sublimação não faltam. O encontro de perfeições entre Tom Jobim e Frank Sinatra; a insuspeita ponte entre clássico e moderno de Elizeth Cardoso em “Canção do Amor Demais”; a junção direta de cool jazz e samba de “Getz-Gilberto”; a brandura potente de Nara Leão em sua estreia no acetato.

Mas talvez todos estes exemplos tenham servido de embasamento para um produto ainda mais bem acabado: “Amoroso”, de João Gilberto. O disco, lançado pelo mestre baiano em 1977 e considerado por muitos sua obra-prima, consegue aglutinar os melhores elementos legados por todos os artistas da bossa-nova – inclusive o próprio João – tanto em arranjo, repertório quanto em, claro, execução. A começar pela química improvável cunhada e aperfeiçoada por ele próprio desde que “inventou” a bossa-nova. A genial síntese harmônica e rítmica, a simbiose entre violão e voz, a emissão do canto sutil e sem vibratos, a exatidão da dicção e dos timbres, a redefinição da métrica musical. João foi, num tempo, arquiteto e bruxo. 

Porém, “Amoroso” guarda peculiaridades que justificam ainda mais estas características joãogilbertianas que por si já seriam (eram, são) suficientes. Gravado no aparelhado Rosebud Recording Studio, no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, o disco tem participações que o engrandecem e favorecem o produto final. A começar pela produção de Helen Keane e Tommy LiPuma, este último, o premiado e lendário produtor de artistas como George Benson, Al Jarreau, Paul McCartney, Barbra Streisand e outros. Na banda de apoio, três gringos: Jim Hughart, no baixo; Joe Correro, bateria; e Ralph Grierson, teclados. O mínimo e o suficiente para João desfilar seu violão. Mas isso se junta a outro fator importantíssimo: a orquestra, arranjada e conduzida pelo brilhante alemão Claus Ogerman. Compositor de mão cheia, requintado e arrojado, Ogerman foi o responsável, dentre outros feitos, pelos arranjos dos memoráveis discos de Tom Jobim pela A&M Records, “Wave” e “Tide”, outros dois marcos da saga de sofisticação da bossa-nova na música mundial. Até a capa de “Amoroso”, algo externo às gravações, acompanha tal elegância: uma pintura de uma figura feminina em tons modernistas do artista trinitino Geoffrey Holder.

Cenário montado para João entrar com sua arte. No repertório, sagazmente escolhido a dedo por ele, de standarts do folclore norte-americano, passando por canções em italiano e espanhol até samba antigo e, claro, o cancioneiro bossanovista. Uma releitura de Gershwin abre o disco. Dois acordes dissonantes da orquestra: é “'S Wonderful”, escrita em 1927 para o musical “Funny Face”, que aqui ganha a pronúncia do inglês deliberadamente abrasileirada, que dá a este cartão-de-visitas um toque ainda mais próprio. É como se a letra funcionasse e suas palavras para a intrincada construção harmônica proposta ao se verter o popular song para o gingado do samba. Quanta sabedoria de João ao estender o corpo do perfil sonoro desde seu ataque até sua queda justa e sem ondulações. É a Broodway subindo o morro. 

A orquestra de Ogerman vem intensa e abre caminho para a voz e violão de João em “Estate”, num lindo arranjo que conta, além das cordas, madeiras e metais, com frases do teclado de Grierson. Levantando o astral – afinal, para ser “amoroso”, não precisa sempre sofrer chorando –, João resgata o saboroso samba da década de 40 do multiartista carioca Haroldo Barbosa, autor invariavelmente valorizado pelo criador da bossa-nova. “Tin Tin Por Tin Tin”, com seus marotos versos iniciais, fala de um rompimento de relação (“Você tem que dar, tem que dar/ O que prometeu meu bem/ Mande o meu anel que de volta/ Eu lhe mando o seu também”), mas de uma forma tão graciosa (e malemolente), que até dá a impressão de tratar-se de um amor feliz. O canto de João, que agrega sutis síncopes e vocalises, integra-se de tal forma ao toque do pinho, que parecem provir da mesma natureza. E quem há de dizer que não?

João Gilberto tocando "Tin Tin por Tin Tin", em vídeo do "Fantástico", à época do lançamento do "Amoroso"

Melancólico, o popular bolero “Besame Mucho”, de 1940, remonta ao México sentimental e apaixonado onde João viveu anos antes – país onde, inclusive, ele gravou o excelente disco “João Gilberto en Mexico” ou “Farolito”, de 1970. Mais uma vez, a orquestra carrega na intensidade mas, na sequência, engendra uma delicada transição para Joãozinho brilhar. Isso sem contar com a parte da orquestra no meio da música, nada menos do que deslumbrante. Não é exagero dizer que, a se considerar a inteligência melódica de João neste número, está-se diante de uma das cinco melhores interpretações deste tema incontáveis vezes regravado em todo o mundo.

Para finalizar a segunda parte ou o correspondente ao lado B do vinil original, João escolhe reverenciar aquele que é indiscutivelmente o mais importante compositor da bossa-nova: o amigo Tom Jobim. São de autoria dele as últimas quatro faixas, a metade do álbum, como a marcante versão do clássico “Wave” e a igualmente classuda “Triste”. Em ambas nada está fora do lugar. Tudo é perfeitamente exato. A voz calma, quase silenciosa, mas firme e inteira, se entrelaça às cordas e a banda numa combinação cristalina.

Além destas, outras duas parcerias do Maestro Soberano em que João destila sua personalidade ao mesmo tempo forte e sutil. Primeiro, uma emocionante “Caminhos Cruzados”, coescrita com Newton Mendonça, em que João arrasta o compasso, dando alto grau de sensibilidade para o romântico tema que fala de encontros e desencontros da vida amorosa. O filho musical Caetano Veloso, em seu “Verdade Tropical’, considera esta música uma das mais emblemáticas da bossa-nova, dizendo que “é uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizada; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba”.  

A outra, que fecha o disco, é “Zingaro”, escrita em 1965 originalmente instrumental e que ganhou letra de Chico Buarque anos depois para virar “Retrato em Branco e Preto”. Nesta, João empresta dramaticidade à dolorida carta de despedida de um relacionamento: “Novos dias tristes, noites claras/ Versos, cartas, minha cara/ Ainda volto a lhe escrever/ Pra lhe dizer que isso é pecado/ Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado e você sabe a razão”. E desfecha: “Vou colecionar mais um soneto/ Outro retrato em branco e preto/ A maltratar meu coração”.

Compêndio de canções românticas de diversas vertentes, “Amoroso” é, acima de tudo, o refinamento daquilo que já era refinado. O “crème de la crème” da bossa-nova, esta corruptela do samba que já nasceu apurada. João, autor da batida-motriz do gênero, algo mecanicamente simples, mas musicalmente complexo visto que capaz de sugerir uma infinidade de fruições melódicas e harmônicas, avançou ainda mais com este disco. Se seu violão já era capaz de condensar o novo e o antigo, com a adição da orquestra esse poder simbólico da bossa-nova se redimensionou. Não se trata do pastiche americanizante do arranjo dos “samboleros” dos tempos da Rádio Nacional, descaracterizadores muitas vezes da raiz africana da cultura brasileira pela vergonha de si próprio, mas, sim, a modernidade em prol do estilo musical que abraçou a essência nacional e a propagou mundo afora. Consciente de seu papel policarpiano, João devolve ao samba a dimensão eloquente (aventada por Francisco Alves e Pixinguinha) que lhe foi negada. Assim como a bossa-nova, símbolo de um Brasil possível, João, como um Robin Hood, resgata o que é de direito desde que o samba é samba. Quem mais poderia supor a ligação de uma ponte assim, tão mágica e intrincada de se realizar? Somente um arquiteto ou um bruxo. João era os dois.

**************

“Amoroso” saiu conjuntamente com o disco “Brasil”, de 1981, já resenhado nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. em edição em CD em 1993, porém, mantendo-se como capa a sua arte e alterando-se apenas o enunciado do título para “Amoroso/Brasil”. As mesmas gravações de "Amoroso" aparecem também na íntegra, porém em ordem diferente e intercaladas com parte das faixas de "Brasil", na coletânea da série "Mestres da MPB - João Gilberto", editada em 1992.

**************
FAIXAS:
1. “'S Wonderful” (George Gershwin/Ira Gershwin) - 4:07
2. “Estate” (Bruno Brighetti/Bruno Martino) - 6:30
3. “Tin Tin Por Tin Tin” (Geraldo Jaques/Haroldo Barbosa) - 3:37
4. “Besame Mucho” (Consuelo Velaquez) - 8:43
5. “Wave” (Antonio Carlos Jobim) - 4:35
6. “Caminhos Cruzados” (Jobim/Newton Mendonça) - 6:12
7. “Triste” (Jobim) - 3:35
8. “Zingaro (Retrato em Branco e Preto)” (Jobim/Chico Buarque) - 6:23


**************
OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Emílio Santiago & João Donato - “Emílio Santiago Encontra João Donato” (2003)

 

“João Donato é o maior músico do Brasil”
Tom Jobim

"Emílio Santiago é a voz do Brasil"
Roberto Menescal 


Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.

Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007. 

O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.

“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.  

O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).

Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato. 

Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.

Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio. 

Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita. 

Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.

**********
FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
2. “E Vamos Lá” (Joyce, Donato) - 2:57
3. “E Muito Mais” (Donato, Ênio) - 2:52
4. “Nunca Mais” (Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Donato) - 3:53
5. “Então Que Tal” (Donato, Ênio) - 4:03
6. “Até Quem Sabe” (Donato, Ênio) - 3:09
7. “Sambolero” (Carmen Costa, Donato) - 3:15
8. “Everyday” (Donato, Norman Gimbel) - 3:04
9. “Os Caminhos” (Abel Silva, Donato) - 3:42
10. “Pelo Avesso” (Donato, Ênio) - 2:53
11. “Mentiras” (Donato, Ênio) - 4:00
12. “Surpresa” (Caetano Veloso, Donato) - 2:14
13. “Clorofila Do Sol (Planta)” (Antunes, Donato) - 3:10
14. “A Paz” (Gilberto Gil, Donato) - 4:11



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Brian Eno - “Another Green World” (1975)

 

“Ao discutir arte, as pessoas costumam falar sobre gênios, mas assim que você começa a observar de perto como as coisas surgem, descobre que sempre há contextos e sistemas informando esse indivíduo”.

“A ciência é uma forma de descobrir coisas sobre o mundo, mas a arte nos dá a chance de explorar, através da imaginação, lugares que não existem, bem como ferramentas para lidar com o mundo em que estamos”. 
Brian Eno

Obras-de-arte comumente vêm ao mundo fora do seu tempo cronológico. Com isso, precisam que o próprio tempo passe para serem valorizadas e, principalmente, entendidas. Quanto levou-se para se assimilar a “nova poesia” de Mallarmé, hoje naturalmente reconhecida como o começo das correntes modernistas? Ou as pinceladas "borradas" dos impressionistas, taxadas de “infantis” pelos críticos da época, mas que se configuraram num passo fundamental para a ruptura com o classicismo absorvido pela arte contemporânea? 

Na música moderna, isso seguidamente ocorre. “The Velvet Underground & Nico”, primeiro disco da banda de Lou Reed e John Cale, vendeu ridículas 10 mil cópias à época de seu lançamento, em 1967, mas influenciou o mundo quase tanto quanto os Beatles. O hoje cult “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, chegou a ter devoluções nas lojas em 1972 de tão mal recebido pelo público e hoje um vinil original não custa menos do que uma pequena fortuna. Pode-se dizer que “Another Green World”, de Brian Eno, de 1975, se enquadra neste perfil de grandes discos além de seu tempo. Não por terem lhe fechado os olhos, mas por não ter sido observado como deveria. E, diferentemente de outras obras marcadamente incompreendidas, o disco do cantor, compositor e produtor inglês carrega algumas qualidades que lhe tornam quase profético. Eno intuiu elementos que só se conflagrariam tempo depois, redimensionando aquele trabalho do passado que anteviu o que pode se chamar de “era da pós-música”.

Havia sinais de que Eno estivesse sintonizado com algo de tamanha visão do futuro, mas nem por isso assim tão fáceis de se ler. Saído da glitter Roxy Music, no início dos anos 70, banda que já antecipava uma série de movimentos da música pop, Eno, que além de músico é também artista visual e professor de arte, sempre equilibrou a carreira entre essas várias vertentes. Tal versatilidade lhe fez iniciar a carreira solo com dois discos de glam rock bastante inovadores: “Here Comes the Warm Jets” e “Taking Tiger Mountain (By Strategy”), de 1973 e 74, respectivamente. Em seguida, uma guinada: Eno inventa a ambient music com “Discreet Music”, abrindo caminhos para a new age e o neo classical. Anos antes, ele já havia feito duo com Robert Fripp no experimental “No Pussyfooting” e trabalhado ao lado de Cale, Nico e Kevin Ayers, um dos fundadores do jazz-rock. Ou seja: diversas frentes, que embaralhavam ainda mais o cenário em que “Another...” foi gestado.

Por todos estes antecedentes e exemplos subsequentes – visto que Eno seguiu variando entre art rock, punk, minimalismo, afrobeat, trilhas de cinema, new age, world music e outros gêneros – a audição de “Another...” é absolutamente enigmática. E mais do que isso: o enigma não se dá em razão de uma música complexa, intrincada, mas, sim, por uma sonoridade totalmente “palatável”. Eno certamente queria dizer algo importante com isso... Quem escuta os primeiros acordes da faixa inicial, “Sky Saw”, não raro surpreende-se com o som processado e dissonante do fretless bass de Percy Jones tocando um acorde de quatro notas que visivelmente não se completa. Não se completa, mas volta a se repetir em sua incompletude, deixando claro que é mesmo aquele o “riff” da canção, se é que dá para classificar assim. Nem o show de execução do restante da banda formada por Eno com os amigos Paul Rudolph, no baixo, Phil Collins, na bateria, Rod Melvin, no piano elétrico, e Cale, na viola, faz esvair a sensação de que algo diferente contém ali. Uma abertura fascinante, mas estranha.

Se o disco larga com cargas de peculiaridade, a partir de então os enigmas começam a ficar ainda mais evidentes. À exceção de “Sky Saw” e mais outras quatro, todas as músicas das 13 que compõem o disco são como vinhetas, de poucos minutos. Nenhuma passa de 4 minutos, tempo de duração padrão de uma canção pop vendável. “Over Fire Island”, noutra performance brilhante do ainda apenas baterista Collins, traz um baixo igualmente destacado de Jones numa base meio jazzística enquanto Eno comanda sintetizadores, guitarra e colagens de fita magnética. Pura vanguarda instrumental, assim como outras duas seguintes, “In Dark Trees” e “The Big Ship”, ambas protagonizadas apenas pelo próprio Eno, que ainda toca percussão elétrica e sintetizada e um gerador de ritmo tratado, tecnologia bem avançada para a época, algo como a uma bateria eletrônica rústica. Todas instrumentais, curtas, de poucos acordes, quase sem riff. Não fosse pelas breves frases cantadas da primeira faixa e da pequena letra de outra excelente, “St. Elmo's Fire” – em que Eno comanda os instrumentos acompanhado somente da guitarra do parceiro Fripp –, poderia se dizer que se trata de um disco de música instrumental. Mas claramente diferente de “Discreet...” ou de qualquer outra peça de trabalhos anteriores. Onde Eno queria chegar com essa proposta, no mínimo, diferente?

O álbum prossegue e as respostas vão sendo colhidas aos poucos. É possível perceber, por exemplo, o embrião da generative music, outra novidade a qual Eno lançaria as bases em 1978 em “Ambient 1: Music for Airports”, termo baseados nas ideias do linguista Noam Chomsky e que descreve uma música sempre diferente, mutável e gerada por sistemas eletrônicos. A sexta faixa, “I'll Come Running”, em que conta outra vez com Melvin ao piano, Rudolph ao baixo e Fripp nas guitarras, começa a deixar mais claro o que Eno pretendia. A alternância entre músicas com uma formação um pouco maior, mas enxuta, e outras quase que totalmente artesanais – caso da seguinte, a dissonante faixa-título – denota o quanto o autor entendia que caminhos a música pop iria tomar não dali a poucos anos, mas três, quatro, cinco décadas à frente! E mais: não apenas a música popular, mas o conceito de sonoridade, a ideia de música da sociedade contemporânea.

Fica até difícil perceber o quanto o homem moderno está soterrado em mensagens sonoras, visto que estas proveem de todas as fontes e plataformas. Pelos celulares, pela TV, pela publicidade, pelos aparelhos constantemente conectados do mundo atual. Na era digital de infinitas possibilidades e constante avanço, a música, assim como qualquer outro enlatado de supermercado, vem numa esteira de ultraprocessamento à medida em que a sociedade capitalista também avança. A propaganda, com suas pesquisas e indicadores, é a nova ciência. Com isso, passa-se a utilizar a lógica de produção, inclusive para a democrática e facilmente penetrável arte. As discussões postas na mesa pela geração da pop art e do kitsch a qual Eno pertence captava a subjetivação do fazer artístico diante das possibilidades (e permissividades) do capitalismo. O que Eno sacou em “Another...”, antes de qualquer outro músico pop, era que, com a música, esse efeito de desconexão seria não somente contínuo quanto, quiçá, irreversível. Os sons aos quais todos são bombardeados ao navegar pela internet ou num simples passeio na rua ou num shopping nada mais são, hoje, que fragmentos sonoros cientificamente provocados. Pequenas células de emissão físico-acústica de onde se extrai apenas o que é necessário para a absorção funcional, superficial e fragmentada do homem atual.

Canções pop sem centro tonal, inversão dos efeitos sinestésicos, ruptura radical com o cromatismo. Aqui, faz-se necessário um parêntese temporal, e chega-se ao século XXI e seus novos gêneros: left-field, trap, wonky, vaporwave, lowwecase... Não é nem o que Chico Buarque entende como “fim da canção”, mas, mais do que isso: é a era da “não-música”. Os tempos líquidos teorizados por Baumann foram perscrutados na música em diversos momentos na modernidade. Em conceito, a The Residents não só lançou “Commercial Album”, apenas composto de músicas de 1 minuto de duração para supostos jingles publicitários, como, anos antes, fez o “não-lançamento” de “Not Avaliable”, disco que, ironizando a lógica de mercado, “não devia ser ouvido”. Sonoramente, além da eletrônica, da vanguarda, do jazz ou da new age, dissolvedores do cromatismo clássico, um artista como William Basinski, literalmente diluiu a música em sua “Watermusic”. Mas todos até então buscavam dialogar com o tom, seja pela referência, pela alusão ou pela proposital abstenção. Impreterivelmente. O que Tricky ou MFDoom desmembraram, hoje, Billie Elish faz revelar um novo estado psíquico a que a civilização se levou: a total alienação da tonalidade – menos por conhecimento do que por intenção. Seria, ao invés da música "generativa", a "degenerativa"?

Voltando a "Another...", na arábica “Sombre Reptiles”, Eno traz a alusão ao abstratismo tão presentes nas artes visuais a qual ele mesmo se alinha. Mas, para além disso, reforça a ideia de uma deformação do real. "Little Fishes" ainda mais: frases soltas, quase que apenas para sentir e não ouvir. Gostar torna-se, assim, subjetivo, pois está associado à mimese e não à assimilação por um viés artístico. Absorve-se cognitivamente e não sensorialmente. Qualquer semelhança com os estímulos sonoros de um app de smartphone ou de um vídeo do Tik Tok não é mera coincidência. Nem curtas demais, que não transmitam o efeito pretendido, nem longas demais, que acabem dispersando a atenção da geração do imediatismo.

Diminuta em construção melódica, mas gigante em qualidade é "Golden Hours", outra cantada do álbum, música que, certamente, serviria de inspiração (para não falar de “espelhamento”) a U2 quase 20 anos depois na canção “The Wonderer", que encerra o disco “Zooropa” - nada coincidentemente produzido pelo próprio Eno. É ele que volta a agir sozinho em “Becalmed” (Piano Leslie e sintetizador), talvez a mais ambient de “Another...” e de cujos traços tornaria a valer-se tanto em trabalhos solo seguintes (“Before and After Science”, “Music for Airports”) quanto na de parceiros, como no "lado B” de “Low”, do amigo David Bowie, em 1977. “Zawinul/Lava”, igualmente, remete a este Eno experimental e com o olhar para o Oriente, que aproveita um pequeno motivo sonoro provocador de sensações de contemplação e meditação. 

A bela "Everything Merges with the Night" é uma quase-canção, com a voz bonita de Eno acompanhada do baixo e pianos de Brian Turrington e de sua própria guitarra, não fosse o riff que, mais uma vez, situa-se no limiar da melodia, haja visto que sua predominante dissonância não deixa completar o ciclo sonoro natural ao ouvido. Há sempre algum "problema", seja na duração, na altura, na intensidade ou no timbre, elementos constituidores do tom. Uma provocação à biologia humana. Há um fio melódico, mas Eno deixa-o escapar deliberadamente. Magnífica, "Spirits Drifting" é a conclusão perfeita para um disco que começa esfíngico e termina agravando as próprias interrogações: instrumental, mínima, atonal. Uma combinação de acordes bonita, mas que não desfecha naturalmente, como que deixando um proposital ponto de interrogação.

A música da era da pós-verdade – num planeta das multidões de refugiados, da avançada ciência que favorece as classes dominantes, das persistentes fome e guerras, do mundo capitalista que caminha para a autodestruição ambiental – não é (não pode ser) mais música. Decreta-se a “não-música”. Talvez por isso tudo o disco de 1975 de Eno seja tão precursor e contenha um título tão utópico quanto propositivo. O tom, na concepção dele, nada mais é do que o símbolo de uma ética. Musical, em primeira observância, mas ecológica amplamente falando. Ao fincar suas bases na tradição – porém, problematizando-a –, o artista remonta a séculos de uma construção formal e estética a qual acredita fortemente que jamais deve se perder, mesmo que em um “outro mundo verde” muito disso tenha ficado para trás. Esperançoso, no entanto, o próprio Eno sustenta a ideia lançada em “Another...”: “O esforço ambiental é o maior movimento da história da humanidade; nunca houve uma única causa que uniu tantos bilhões de pessoas com um objetivo. Pode haver contradições dentro da causa; haverá emoções e derramamentos, mas esperamos que haja alguns resultados positivos para esta ação mundial”. Tomara ele tenha razão.

***********

FAIXAS:
1. "Sky Saw" - 3:25
2. "Over Fire Island" - 1:49
3. "St. Elmo's Fire" - 3:02
4. "In Dark Trees" - 2:29
5. "The Big Ship" - 3:01
6. "I'll Come Running" - 3:48
7. "Another Green World" - 1:38
8. "Sombre Reptiles" - 2:26
9.  "Little Fishes" - 1:30
10.  "Golden Hours" - 4:01
11. "Becalmed" - 3:56
12. "Zawinul/Lava" - 3:00
13. "Everything Merges with the Night" - 3:59
14. "Spirits Drifting" – 2:37
Todas as composições de autoria de Brian Eno

***********

OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

domingo, 11 de junho de 2023

Exposição “ÀMÌ: Signos Ancestrais” - Espaço Cultural Arte Sesc - Rio de Janeiro/RJ (16/05/2023)

 

Foram poucos dias de visita à minha família naquela que é minha segunda cidade, Rio de Janeiro, mas de uma programação cultural significativa. Teve show, feira, bares, passeios, flâneur e, claro, exposições de arte. Dentre elas, uma que juntou mais de um desses atrativos: após uma caminhada pelas ruas entre o Cosme Velho, a Laranjeiras e o Flamengo, minha mãe e eu fomos parar no charmoso Espaço Cultural Arte Sesc, novo espaço cultural do Rio ao qual já saí de Porto Alegre com intenção de conhecer. Minha mãe, já tinha ido ao bistrô tempo antes, mas não às salas expositivas, que guardavam uma rica surpresa para nós: um encontro com as nossas raízes pretas na bela mostra tripla “ÀMÌ: Signos Ancestrais”.

Antes de mais nada, vale, contudo, conhecer o próprio espaço em si, mesmo que não se almeje ver alguma exposição. Instalado num belo casarão em estilo Eclético construído em 1912, o Espaço Cultural Arte Sesc foi a moradia do empreendedor tcheco Frederico Figner, pioneiro da indústria fonográfica no Brasil e fundador da Casa Edison e da Odeon, a primeira gravadora musical do país (olhe só esses reencontros com aquilo que a gente gosta). Originalmente denominada Mansão Figner, a edificação representa ideais da época em que o Rio de Janeiro era a capital do país, sendo uma das mais relevantes e significativas casas de natureza residencial que integram o patrimônio arquitetônico da cidade.

A bela casa estilo
Eclético do novo espaço
cultural do Rio
Mas voltando à exposição. Ou melhor: tripla exposição. A partir da palavra “ÀMÌ”, que designa “signo” e “símbolo” na língua yorubá, os jovens artistas Guilhermina Augusti e Raphael Cruz valem-se da brilhante e referencial obra do baiano Emanoel Araújo, um ícone da arte brasileira e negra no Brasil, para traçar um diálogo revelador e propositivo. Trazidos da África para o Brasil no século XIX, o povo de origem nagô, antes residente abaixo do deserto do Saara, possuía uma riqueza de ritos, cultos, pensamento matemático que acabaram sendo incorporados ao Brasil como partícipes da cultura nacional. É desta riqueza ancestral que Araújo sempre desvelou raízes e signos afrodescendentes.

As divindades do Candomblé estão identificadas seja na figuração quanto na abstração, em que os artistas assumem um lugar de representação e representatividade. Instigante, a obra de Guilhermina coopta essa divindade para uma realidade mais urbana e moderna, colocando neste panteão personagens pretos como Madame Satã, Yêdamaria e Arthur Bispo do Rosário na sequência de serigrafias. Ela também instiga a reflexão no díptico “Noite Eterna”, em que o machado de Xangô sustenta seu povo, seja no dia ou na noite, quer dizer, na eternidade. Interessante também o painel de Cruz, transversalizando a arte urbana do seu bairro, Irajá, família, ancestralidades e musicalidades afrorreferenciadas.

Mas, evidentemente, o grande impacto fica por conta da seção destinada a Emanoel Araújo. Falecido precocemente no ano passado, este intelectual nascido na terra de Caetano Veloso e Maria Bethânia, Santo Amaro da Purificação, foi escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, gravador, cenógrafo, pintor, curador e museólogo. Suas obras tensionam tridimensionalidades que dialogam com construções totêmicas africanas num conjunto de dogmas retrabalhados e reinscritos em um novo lugar: na diáspora afro-brasileira. É o que se vê na assombrosa capacidade de síntese que suas peças deflagram, caso da impactante “Exu”, montada a partir de elementos não apenas artísticos mas, antes de tudo, totêmico: espelhos, miçangas, cabaças, conchas, pregos e ferro. Em sua concepção que amalgama pesquisa em profundidade e sentimento de identidade, a técnica se reveste de simbologia.

O curador da mostra se refere à Araújo dizendo que este “observa e reflete a África em dimensões contemporâneas, pensa a travessia dos signos, registra o povo negro com amabilidade e doçura, raras nas interpretações violentas e caricatas de então, direcionando-se, também, à percepção de si como um homem negro afrodiaspórico”. “Relevo” (madeira e tinta automotiva), “Xangô” (madeira, tinta automotiva, vidro, machado, máscara e miçangas) e “Sem título” (madeira policromada) trazem isso com absoluta coesão. Neste aspecto, a arte de Araújo remete às composições geométricas de um de seus mestres, o conterrâneo Rubem Valentim – com quem há paralelo, inclusive, em outra exposição que visitei, no Casa Roberto Marinho. Os símbolos e emblemas afro-brasileiros de Valentim reaparecem revisitados e ressignificados em Araújo.

Confiram, então, algumas fotos e vídeos da exposição e do espaço:

*********

Entrando na sala expositiva


Arte urbana de Raphael Cruz no Arte Sesc

Guilhermina Augusti e suas novas divindades

A eternidade do machado de Xangô 

A fascinante obra de 1985, mais antiga da mostra

A densa "Exú", de Emanoel Araújo

Outra obra divina de Araújo

Detalhe da madeira policromada

Os dois flâneurs do Rio encerrando o passeio na exposição

E este blogueiro em frente ao mural do Arte Sesc


*********

Exposição "ÀMÌ: Signos Ancestrais"
local: Espaço Cultural Arte Sesc
Av. Marquês de Abrantes, 99 - Flamengo (Rio de Janeiro)
período: até 31 de outubro de 2023
horário: de segunda a sábado, das 12h às 19h
ingressos: Gratuito


Daniel Rodrigues