Acabei de ler agora, por esses dias, o bom livro "Um Time De Primeira", uma coletânea de textos de onze autores de épocas diferentes, praticamente desde os tempos da chegada do futebol ao Brasil até os contemporâneos. Com um time que conta com nomes como Vinicius de Moraes, Mário de Andrade, Luís Fernando Veríssimo, Lima Barreto, Rubem Fonseca, João do Rio, Antônio de Alcântara Machado, Mário Filho, Coelho Neto, Nelson Rodrigues e João Cabral de Melo Neto não dá pra esperar nada senão textos altamente qualificados. E são, efetivamente! Tem a beleza lírica dos textos de Coelho Neto, o ufanismo apaixonado de Nelson Rodrigues, o habitual bom-humor de Luís Fernando Veríssimo, a ficção envolvente de Rubem Fonseca e a incrível atualidade da crítica de Lima Barreto ao esporte e seu papel social. Textos e estilos para todos os gostos: crônica, poema, conto, matéria para jornal, resenha para revista, poema inédito, fragmento de livro. Tudo da melhor qualidade. Como o título do livro sugere, com um time como esse só poderíamos mesmo ter um livro de primeira.
Livro daqueles pra provar que futebol vai além das quatro linhas e que também é jogado assim, linha por linha.
Golaço.
A galera na noite recifense em meio aos sons, cheiros e sabores da cidade
Esta publicação pode-se dizer a primeira sobre Recife, mesmo
que eu ainda não tenha a data de quando saem as próximas. Que serão quando
voltar à cidade como turista. Viajando a trabalho, em menos de 24 horas que
estive na terra de Chico Science, posso dizer que meu encantamento extrapola o
simples agrado de se conhecer uma nova cidade. É, sim, identificação. Uma
identificação que já supunha, haja vista conhecer pernambucanos queridos e por
minha admiração de muito ao que a capital pernambucana e o estado como um todo
sempre trouxeram – de Mangue Beat a Clarice Lispector, de João Cabral de Melo Neto a Frei Caneca, de Miguel Arraes a Naná Vasconcelos.
O que deu pra ver nas parcas horas livre que tive,
basicamente, a noite de um domingo, foi um pouco da noite no Recife Antigo.
Onde tudo começou. Mas quando digo tudo, é tudo MESMO, pois lá está, à beira da
Baía do Pina, o Marco Zero, ou seja: onde essa “bagaça” chamada Brasil foi
descoberta pelos portugueses. Não que não tivessem os índios aqui já, por
direito mais brasileiros que qualquer um, mas é fato que, a partir dali,
daquele ponto, em 1500, que se desencadeou a nossa sinuosa e alegórica história
enquanto nação.
Para um domingo, achei bastante movimentado, tanto no largo
da Praça, com famílias, turistas, casais e gurizada, quanto, principalmente, na
agradabilíssima Rua da Moeda, uma das mais célebres e antigas vias da cidade.
Nela, o público que encontrei era bem novo, adolescente, diria. Imagino que os
mangueboys e manguegirls, jovens e jovens adultos, devam dar as caras mais às
sextas e sábados à noite... Enfim, a Rua da Moeda é um misto de Lapa carioca
com Cidade Baixa porto-alegrense com Pelourinho soteropolitano e Cidade Velha de Belém. Um rock anos 80
rolando num bar e um forró no do lado, ambos a plenas caixas, gente falando,
bebendo, namorando, pedintes, policiamento ostensivo, cachorros vira-latas. Um
barato.
Como disse, a passagem foi rápida e não deu para registrar
muita coisa. Fica aqui, entretanto, um pouco das fachadas, da arquitetura, da
atmosfera que une história e contemporaneidade. Mistura que, ao que deu pra
notar mesmo com poucas horas de convivência, é a cara de Recife.
Podes deixar, que eu volto logo.
Galera concentrada na Rua da Moeda: estátua do malungo, tal qual Chico Science
Um dos bares clássicos do local, o Novo Pina
A Rua da Moeda com seus casarios estilo português
Pelas ruas do Recife Antigo
As ruelas históricas, esta, entre o Shopping da Alfândega e a Igreja da Madre de Deus
Mais do clima noturno do bairro
Prédios históricos conhecidos do cartão-postal da cidade
Quem nunca prestou atenção nesses prédios de estilos diferentes nas transmissões do Carnaval?
Muita gente na noite de domingo no Marco Zero
No Marco Zero em direção à Baía do Pina
Os movimentados bares ao lado da Praça
Como em todo Centro antigo, os cuscos têm que estar presentes
O beijo - um dos
Pela luz e pela cena, dá pra dizer que é um momento Edward Hooper recifense
Acima, capa do vinil original de 1983; a outra, capa da versão em CD
"O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa."
Versos de abertura do poema "O Grande Circo Místico", de Jorge de Lima, 1938
"Uma enciclopédia da música brasileira."
Antônio Carlos Miguel, jornalista e escritor
Não é incomum ouvir de admiradores da música brasileira que “O Grande Circo Místico” é o melhor disco já produzido no Brasil. Mesmo que nessa seara naturalmente venha à mente obras como “Elis & Tom”, “Acabou Chorare” ou “Getz-Gilberto”, não é descabida a consideração atribuída a esta obra. Afinal, em que projeto se reuniu para cantar boa parte do primeiro escalão da MPB, leia-se Gilberto Gil, Tim Maia, Gal Costa, Milton Nascimento, Simone, Jane Duboc e Zizi Possi? E quando que esse time de estrelas estaria junto para interpretar temas de uma peça infanto-juvenil feita para o curitibano Teatro Ballet Guaíra sobre um poema clássico da língua portuguesa? Mais: quando contariam com o reforço de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes, Cristóvão Bastos, Marcio Montarroyos, Antonio Adolfo, Leo Gandelman, Hélio Delmiro, entre outros? E, mais ainda: em que ocasião tudo isso gravitou em torno de um repertório inédito e tão qualificado, que é o sumo de uma então recente parceria de dois gênios da música do século XX?
Pois este disco adorado pelos fãs e cheio de significados chega a 40 anos de lançamento no mesmo ano em que um de seus artífices, Edu Lobo, completa o dobro de idade. Na linha do que foi produzido nos anos 70 e 80 para o público infantil, ”O Grande...” traz o espírito de especiais clássicos como “Plunct Plact Zum”, “A Arca de Noé” e “Pirilimpimpim”, a começar pelo primor musical e estético que não subestima o bom gosto da criança. Porém, neste caso, tal atmosfera vem encapsulada por um diferencial: o encontro de Edu com seu melhor parceiro: Chico Buarque. A dupla cria 11 temas novinhos em folha com o mais alto nível não apenas para aquilo que pode ser classificado como “música infanto-juvenil”, mas em toda a história da música popular brasileira.
Se hoje esta dobradinha dourada se tornou uma das mais celebradas da MPB, muito se deve a ”O Grande...”. Até então, os caminhos de Edu e Chico haviam se cruzado apenas duas vezes: na orquestração que Edu fizera para a peça “Calabar”, de Chico e Ruy Guerra, em 1973, e numa única e frutífera composição, a música “Moto-Contínuo”, que o segundo gravara em seu disco “Almanaque”, de 1981. Pronto: estava dada a magia! Edu, que já havia produzido a excelente trilha para o balé Guaíra “Jogos de Dança”, sem letras e usando apenas as vozes dentro do arranjo instrumental, foi novamente convidado pelo cenógrafo, dramaturgo e figurinista Naum para um novo projeto da companhia. Porém, tratava-se de uma adaptação do singular poema surrealista de mesmo nome de 1938, de autoria do poeta modernista Jorge de Lima, composto de uma estrofe e 45 versos. O texto conta a trajetória de Knieps, que abandona a corte e a medicina, apaixonando-se pela equilibrista Agnes, começando a dinastia do Grande Circo Místico. Algo que Edu, desde os anos 60 envolvido com teatro, normalmente delegava a parceiros, como a Gianfrancesco Guarnieri em “Arena Canta Zumbi” (1965) e a Vinícius de Moraes em “Deus lhe Pague” (1975).
Edu e Chico no início dos anos 80: encontro que não os separaria jamais
Para aquela nova empreitada, a bola da vez era o mais recente parceiro. Afeito ao texto para palco, haja vista que já havia escrito, além de “Calabar”, ”Roda Viva”, em 1968, Chico também era mestre nas adaptações para teatro. Escreveu sozinho todas as composições sobre o poema de João Cabral de Melo Neto para “Morte e Vida Severina”, em 1966, adaptou, com Paulo Pontes, “Medeia” de Eurípides em “Gota D’Água” para a voz de Bibi Ferreira, em 1975, e trouxe Bertold Brecht e John Gay para a realidade brasileira noutro musical, “Ópera do Malandro”, de 1978. Porém, mais do que todos estes exemplos – que já seriam suficientes para justificar um convite –, Chico sabia lidar com o universo infantil. Além do livro “Chapeuzinho Amarelo”, que lançara em 1979, o pai de Sílvia, Luísa e Helena já tinha realizado, dois anos antes, a deliciosa peça musical “Os Saltimbancos”, inspirada no conto "Os Músicos de Bremen", dos irmãos Grimm, junto a Sergio Bardotti e Luis Bacalov, amigos italianos dos tempos de autoexílio na terra de Michelangelo. Ali se revelava mais uma faceta do Chico plural: afora o malandro, o militante político, o cronista, o amante, a voz feminina e vários outros, via-se agora o autor para os pequenos. Edu, que enfileirara parceiros da categoria de Joyce, Cacaso, Dori Caymmi, Ferreira Gullar, Paulo César Pinheiro e outros, sabia ter achado a pessoa ideal para letrar suas músicas.
O resultado é um desbunde capaz de encantar crianças e adultos há quatro décadas. Começando pela instrumental “Abertura do Circo”, com fantástico arranjo escrito por Edu e orquestração do maestro Chiquinho de Moraes, um tema circense tão marcante, que dá a impressão de se tratar daquelas melodias folclóricas antigas e de autor desconhecido. Mas tem autor, sim, e é Edu Lobo. Na sequência, uma pausa na rotação do planeta, pois é Milton Nascimento cantando a balada “Beatriz”. “Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é o contrário/ Será que é pintura/ O rosto da atriz...” Considerada por oito entre 10 uma das maiores canções da música brasileira de todos os tempos, este clássico não pode ser classificado de outra coisa, que não de perfeito. Em melodia, em arranjo, em letra e, principalmente, na interpretação de Milton. A voz do gênio de Três Pontas é de uma afinação tão precisa e atinge registros tão improváveis, que fica impossível imaginar outro ser capaz de cantá-la. Além, claro, da emoção transcendente que Milton transmite. Uma obra-prima, que apenas Zizi, numa permissão para o Songbook de Chico, ousou regravar. Também, pudera.
Seguindo adiante, Jane Duboc entra no picadeiro e usa de toda sua brandura e sentimento na linda “Valsa dos Clowns”, cuja letra fala da famosa dicotomia da tristeza do palhaço, escondida por detrás da figura sempre engraçada: “Em toda canção/ O palhaço é um charlatão/ Esparrama tanta gargalhada da boca pra fora/ Dizem que seu coração pintado/ Toda tarde de domingo chora”. Cantada em coro, na sequência, "Opereta do Casamento”, como uma breve e alegre história popularesca, antecede outra história: a de Lily Brown. Personagem criada no poema de Jorge de Lima, mas cuja saga é totalmente inventada pela mente de Chico. Ele dá vida à “deslocadora” Lily Brown, a que “tinha um santo tatuado no ventre”, atribuindo-lhe contornos de uma moça sonhadora, que acredita ter encontrado o “homem de seus sonhos”. Ao fim, entretanto, não concordando com sua vida mambembe, ele a abandona. Num estonteante jazz bluesy, a melodia e o primoroso arranjo de Edu acompanham os versos de Chico, que deita e rola na poética. Por exemplo: o raro uso de rimas “preciosas”, que combina a fonética de palavras de idiomas distintos, é largamente usada. Caso de “cheese” com “feliz”, “dancing” com “romance” e “azul” com “flou”. Outro elemento-chave para a canção é, novamente, a adequação da interpretação, que não poderia ser mais exata, pois toda a sensualidade que a música exige está devidamente contida na voz de Gal e seu timbre de cristal.
Outra linda balada: a sentimental “Meu Namorado”, interpretada por Simone, é das mais perfeitas do repertório. Os teclados de Cristóvão Bastos comandam o toque da arpa, da gaita e das cordas, fazendo cama para os versos potentes e líricos emitidos pela voz da baiana: “Meu namorado/ Minha morada é onde for morar você”. De arranjo bem mais enxuto, mas não menos brilhante, "Sobre Todas as Coisas” tem no violão de Gil a única do álbum apenas com um instrumento acompanhando o vocal. De fato, não precisa mais, pois a genialidade do autor de “Aquele Abraço” é tão inata, que desta rara interpretação de Gil a uma canção de Chico e Edu sai o tema mais contemplativo e filosófico do disco. Gil dá ares de um spiritual à canção, tal uma canção-prece dos trabalhadores negros escravizados dos Estados Unidos, clamando pelo entendimento da existência e de um amor não correspondido. “Ao Nosso Senhor/ Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor/ Criado pra adorar o Criador”.Caetano Veloso bem captou tamanha profusão de significados ao mencionar na sua música “Pra Ninguém”, de 1997, em que enumera músicas de autores da MPB cantados por outros autores/cantores da música brasileira, justamente esta entre tantas que poderia escolher do vasto repertório de versões de Gil a outros compositores.
Contracapa do álbum com desenhos de Naum, que reproduzem a ideia da cenografia da pela
Congele-se o firmamento mais uma vez, pois é hora de Tim Maia soltar seu vozeirão para a incrível "A Bela e a Fera”. Jazz-soul surpreendente de Edu – ainda mais após um número tão melancólico como o anterior – com seu arrojado arranjo de metais a la Quincy Jones, a bateria suingada de Paulinho Braga e o baixo vivo e inconfundível do “Black Rio” Jamil Joanes. Toda esta qualidade a serviço do “Síndico” em uma de suas melhores performances. Tim escalando as notas para cantar versos como: “Ouve a declaração, ó bela/ De um sonhador titã/ Um que da nó em paralela/ E almoça rolimã” é simplesmente histórico! Chico, também em uma de suas melhores letras, repete a dose em uma nova rima “preciosa” ainda mais improvável: “rolimã” com “Superman”! Musicando a saga do bruto boxeur Rudolf, da história original, Chico recria o personagem sob a perspectiva da famosa fábula do século 16, produzindo versos de admirável beleza como: “Não brilharia a estrela, ó bela/ Sem noite por detrás/ Sua beleza de gazela/ Sobre o meu corpo é mais/ Uma centelha num graveto/ Queima canaviais/ Queima canaviais/ Quase que eu fiz um soneto”. Para terminar arrebatando e elevando a emoção, Tim promove um dos lances mais sublimes da música brasileira, aumentando cirurgicamente o registro vocal para dizer: “Abre o teu coração/ Ou eu arrombo a janela”. De arrombar o coração, sim. O de quem escuta!
Quebrando mais uma vez a sequência rítmica, aquela que certamente é a mais infantil de todo o repertório. Se “Opereta...” contava com coro adulto, "Ciranda da Bailarina” traz agora vozes de crianças sobre uma lúdica ciranda de tons medievais, ainda mais pela sonoridade marcante de cravo e flauta doce forjados no sintetizador. E quem são as crianças? Os filhos de Chico e Edu, mais a pequena Bebel Gilberto (desde sempre envolvida com a música) e outros dois meninos. A sessão com a criançada é tal como recentemente a turma experimentava na trilha sonora do filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, que Chico versara de sua peça para o famoso quarteto humorístico um ano antes. E que versos! Semelhantemente aos “Saltimbancos”, a letra de “Ciranda...” era, ironicamente, a mais política de todo o disco. Mesmo se tratando da aparentemente mais ingênua faixa, “Ciranda...” foi a única afetada pela ainda ativa censura. A palavra “pentelho”, ridiculamente, foi cortada na execução, provocando um hiato bizarro na audição. Se nos Anos de Chumbo uma música como esta seria sumariamente vetada pelo simples fato do autor se chamar Chico Buarque, ao menos os ventos da Abertura Política não a subtraíram totalmente. E ainda bem que, anos depois, com a democracia conquistada e consolidada, foi possível regravá-la e reencená-la diversas vezes, incluindo as belas versõesde Adriana Partimpim, em 2009, e a do próprio Edu, em 2013.
Poster original do show no Teatro Guaíra, em Curitiba
Quase finalizando, Zizi vocaliza com brilhantismo o tema-título, o preferido do disco para o próprio Edu. Mas para finalizar mesmo, não havia de serem outros, que não os autores. Intercalando uníssonos e combinações vocais, "Na Carreira” é uma comovente marchinha circense de despedida, que deixa um sabor de pipoca e algodão-doce na boca ao final do espetáculo. Uma tradução poética da vida mambembe: “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ Arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. A arte do palhaço presente em “Piruetas”, que Chico coescrevera para “Os Saltimbancos Trapalhões” (”Salta sobre a arquibancada/ E tomba de nariz/ Que a moçada/ Vai pedir bis”) empresta inspiração para “Na Carreira” quando esta diz: “Palmas pro artista confundir/ Pernas pro artista tropeçar”. Pode-se ler, aliás, como uma metáfora de artistas brasileiros como eles, saídos da Ditadura e vislumbrando um país livre e democrático com a então nascente campanha das Diretas Já!. Artistas estes que, igual ao que as duas músicas tratam, não desistem de apresentar sua arte, independentemente das condições. “O espetáculo não pode parar”, diz uma, e a outra: “Ir deixando a pele em cada palco/ E não olhar pra trás/ E nem jamais/ Jamais dizer/ Adeus”.
Desde então, Chico e Edu nunca mais se distanciaram. Vieram, na esteira de “O Grande...”, outras três trilhas para teatro da dupla: "O Corsário do Rei" (1985), "Contos da Meia-Lua" (1988) – também para o Guaíra – e "Cambaio" (2001), além da coletânea "Álbum de Teatro", de 1997. Desses, mais joias do cancioneiro nacional saíram, a exemplo de "Choro Bandido", "A Permuta dos Santos", "Bancarrota Blues" e "Ode aos Ratos". Mas nada se compara ao que realizaram naquele efetivo encontro no início dos anos 80 tanto na excelência das músicas quanto na coesão da obra, lindamente ilustrada por Naum. Revisitado várias vezes, seja nos palcos e até no cinema, "O Grande..." guarda qualidades incontestes, que o credenciam a ser considerado um marco na música brasileira. Quiçá, o maior. Se o próprio Edu a tem como uma das suas cinco melhores obras da assertiva, longa e nobre carreira, um indício bastante forte há nisso. O exigente Ed Motta, músico e colecionador, acha o mesmo. O tempo, sem dúvidas, ajudou a formar tal reputação. Fato é que, há 40 anos, esta trilha vem sendo notícia nos principais meios e consta não raro em listas de melhores discos da música no Brasil. “O Grande...” consolidou-se neste patamar e no imaginário do público. Um feito tão maravilhoso "de que tanto se tem ocupado a imprensa" há quatro décadas.
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clipe de"O Circo Místico", comZizi Possi, no programa Bar Academia (1983)
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FAIXAS:
1. "Abertura do Circo (Instrumental)" (Edu Lobo) - 2:30
2. "Beatriz” (Milton Nascimento) - 5:01
3. "Valsa dos Clowns” (Jane Duboc) - 3:39
4. "Opereta do Casamento” (Coro) - 3:55
5. "A História de Lily Braun” (Gal Costa) - 3:51
6. "Meu Namorado” (Simone) - 2:44
7. "Sobre Todas as Coisas” (Gilberto Gil) - 5:00
8. "A Bela e a Fera” (Tim Maia) - 2:55
9. "Ciranda da Bailarina” (Coro Infantil) - 2:22
10. "O Circo Místico” (Zizi Possi) - 3:41
11. "Na Carreira” (Chico Buarque & Edu Lobo) - 4:06
Faixas-bônus da versão em CD:
"Oremus - Coro (Instrumental)" (Edu Lobo) - 1:57
"O Tatuador (Instrumental)" (Edu Lobo) - 3:26
Todas as composições de autoria de Edu Lobo e Chico Buarque, exceto indicadas
Nesta época de final de ano, o cinema, essa representação encenada e
diegética da realidade, reforça sua função, seja ela de ajudar a refletir ou
simplesmente entreter (ou os dois juntos, por que não?). Como n’"O Poderoso Chefão - Parte 2", em que os acontecimentos da máfia e da política estão fervilhando
em plena virada de 1959 para 1960 em Cuba, ou em “Boogie Nights”, quando todos
interrompem a chegada da década de 80 por causa de um suicídio em plena festa
de Réveillon, o dia de Natal também (ou a passagem de 24 para 25) aparece em
alguns filmes não necessariamente como tema central, mas como um pano de fundo
essencial àquilo que se quer contar. Às vezes é um detalhe, mas extremamente
simbólico para determinada obra de cinema. Um nexo narrativo que contribui para
a história de forma a lhe trazer os ícones que a data representa (o nascimento
e o significado simbólico de Cristo, a figura pop do Papai Noel, a valorização
dos sentimentos de fraternidade e compaixão, a representação do consumismo, o
pertencimento à sociedade capitalista ocidental, etc.).
Por isso, o Clyblog registra aqui algo nessa linha: não aquelas
comédias natalinas típicas que, embora divertidas, são óbvias. Aqui, fugimos da
obviedade. Listamos, sim, filmes que se nutrem dos elementos natalinos mais
profundos por assim dizer, ainda que apenas como instrumento para dar um toque
à trama, para gerar contraste entre a aparência e real ou apenas para contar
melhor uma história. Se você está cansado de assistir as franquias “Esqueceram
de Mim” ou “Meu Papai é Noel”, aqui vão alguns títulos que não esquecem da
data, mas vão além da mesmice – e que, justo por isso, merecem ser vistos mesmo
em outras épocas do ano. Mesmo que, porventura, apenas passem pelo tema, o
Natal, com seus significados, está lá.
“Duro de Matar” (“Die Hard”, John
McTiernan, EUA, 1988)
Provavelmente o melhor filme de ação dos anos 80 junto com “Um Tira da
Pesada”, “48 Horas” e alguns outros poucos, tem o Natal como pano de fundo para
uma trama inteligente que mescla policial, comédia e realismo (sim, realismo)
na medida certa. O policial nova-iorquino John McClane (Bruce Willis) vai
visitar a esposa em Los Angeles, que está numa festa de Natal da empresa onde
trabalha, no edifício Nakatomi Plaza. Durante a festa, terroristas alemães,
liderados por Hans Gruber (Alan Rickman) invadem o prédio e sequestram todos os
convidados com a intenção de roubar milhões em ações da companhia. McClane
escapa de ser aprisionado pelo grupo de Gruber e, com grande dificuldade, mas
com perícia e astúcia, passa a combatê-los.
A fórmula é muito parecida com o que Hollywood fazia de muito tempo no
gênero ação/policial – as sequências com o gancho da tensão e as explosivas
cenas de ação, entremeadas por tiradas engraçadas que aliviam a seriedade e a periculosidade
– mas adiciona-lhe algo que passaria a servir de exemplo para trocentas
produções posteriores: a pegada realista. McClane derrota os terroristas neste
dia de Natal atípico, mas o consegue a custas de muito esfolamento. O conceito
de anti-herói, humano e mortal, é uma quebra de paradigma no cinema norte-americano
do gênero. Se há estilhaços de vidro no chão e McClane está descalço, ele vai
cortar o pé, ora essa! É exatamente isso que acontece, numa ressignificação do
tipo James Bond, perfeito e inatingível. Tanto é que, por tudo que passa, McClane
sai um trapo no final do filme, o qual finaliza emblematicamente com o jazz
natalino “Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!” na voz de Vaughn Monroe.
Igualmente, o contraste dos elementos visuais e alegóricos da data com a
violência (o vermelho da roupa do Papai Noel com o sangue dos ferimentos)
funciona muito bem. Daqueles que sempre que estão passando na TV se assiste,
inevitável.
"Duro de Matar" - "Ho-Ho-Ho!"
“Morte e Vida Severina” (Walter
Avancini, BRA, 1981)
Uma obra-prima da teledramaturgia mundial (vencedora do Emmy daquele
ano), é a encenação do poema de João Cabral de Melo Neto, o qual se chama
também “Auto de Natal Pernambucano”. Com músicas primorosas de Chico Buarque e
aproveitando parte do elenco que Zelito Viana usara na filmagem da história quatro
anos antes para o cinema, esta é, sem dúvida, a mais bela versão do texto
clássico do poeta pernambucano.
De forte cunho social e denunciador, narra a trajetória do retirante
nordestino Severino (José Dumond, impecável) do sertão árido à capital Recife
através de versos musicados ou recitados em busca de respostas à vida miserável
que leva. O que encontra em muitas das etapas dessa cruzada é apenas morte
através do descaso e da desassistência do povo, de “Severinos iguais em tudo na
vida”, o que o faz pensar em “saltar fora da ponte e da vida”. Mas o nascimento
de mais um “Severino”, filho de um carpinteiro pobre mas sábio, vem trazer
cores à desesperança. É a “boa nova” que o Natal ensina, o Cristo incutido
naquela pequena e franzina vida que se rebenta. “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida?”.
“A Felicidade não se Compra”
(“It's a Wonderful Life”, Frank Capra, EUA, 1946)
Capra é um dos mestres do primeiro cinemão norte-americano. Era capaz
de criar filmes de marcantes conceitos estético e narrativo a um espírito
fortemente nacionalista, seja na valorização dos símbolos de seu país, seja no
recorrente tom moral típico daquele povo, o qual vai da puerilidade à
arrogância. No caso, mais para onírico, “A Felicidade...” conta a história de
um espírito candidato a anjo que, para ganhar suas asas, recebeu a missão de
ajudar um empresário (James Stewart) que, em virtude de grave problema
financeiro, tinha a intenção de se suicidar. O aspirante a anjo aparece-lhe na
véspera do Natal quando este está prestes a saltar de uma ponte. Ele fala de
sua missão e comentou que seria um desperdício matar-se, pois ele era
importante para muita gente. Ante o ceticismo de seu protegido, que se sentia
um fracassado, o amigo espiritual mostrou-lhe várias situações que teriam
acontecido se não fosse sua interferência: a morte do irmão, o desespero da II
Guerra (recém terminada quando o filme foi rodado), a tristeza da esposa, a
situação lastimável de sua cidade, entre outras.
Com fotografia P&B impecável – bastante forjada no cinema soviético
de Eisenstein e Vertov –, Capra amarra uma história cheia de acontecimentos com
um domínio narrativo espantoso sem deixá-la confusa ou chata. Trata-se de um
típico clássico natalino, eu sei, mas com tamanha qualidade não daria para
deixá-lo de fora – até por que, atualmente, está em desuso assistir a filmes
antigos ainda mais nessa ditatoriamente colorida época natalina. No final, a
mensagem é evidente, o que não lhe tira a emoção – até por que muito bem
escrito e realizado.
“Cortina de Fumaça” (“Smoke”,
Wayne Wang e Paul Auster, EUA/Alemanha, 1995)
Uma ode à solidariedade e ao respeito às diferenças, sejam elas
raciais, de gênero ou qualidades pessoais. Tem coisa mais a ver com Natal isso?
Pois esta pequena obra-prima com cara de Jim Jarmusch traz isso e mais um
pouco. O “isso” é a história envolvente e coral: Auggie Wren (Harvey Keitel)
tem uma tabacaria onde circulam tipos bem peculiares (olha aí as diferenças
subtextualizadas). Ele também tem um hábito próprio: o de fotografar, às oito
da manhã, a fachada de sua loja. É assim que ele conhece o escritor em crise
criativa e emocional Paul Benjamin (William Hurt), que, por um momento
fortuito, acaba conhecendo um jovem negro morador de rua a quem ajuda a
encontrar seu pai. A história é, na verdade, um reencontro das raízes pessoais
e dos laços afetivos mal resolvidos no passado.
O “um pouco mais” a que me referi é, além desse instigante subtexto, há
a célebre cena em que Auggie vai parar na casa de uma senhora cega cujo neto
furtara-lhe a loja. Ela, amorosa e sem os pré-conceitos de quem enxerga apenas
com os olhos, o recebe e o convida para cear com ela naquela véspera de Natal.
Tudo ao som da belíssima canção “Innocent When You Dream”, de Tom Waits. Cena emocionante. Uma história tão linda que, renovadas as emoções de todos na
trama, motiva o até então travado escritor Paul em seu novo romance, chamado: “Auggie
When’s a Christmas Story”.
"Cortina de Fumaça" - História de Natal de Auggie Wren
“O Natal do Charlie Brown” ou “Feliz
Natal, Charlie Brown” (“A Charlie Brown Christmas”, Bill Melendez, EUA, 1965)
Já havia me referido ao filme indiretamente aqui no blog no Natal de
2013 quando escrevi sobre a magnífica trilha sonora de Vince Guaraldi nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Pois além da preciosidade que musica o episódio, a própria
animação merece destaque. Com os elementos característicos da série de Charles
Schulz, o curta “O Natal do Charlie Brown” é o primeiro desenho animado da
turma dos Peanuts. Quando o questionador Charlie Brown reclama sobre o sentido
materialista que as pessoas dão à data, Lucy sugere que ele se torne o diretor
de uma peça teatral no colégio. Charlie Brown aceita, mas, claro, sua
insegurança e os ingovernáveis fatores externos fazem com que ele perca o
controle, frustrando-se. “Que puxa!” O
amigo de todas as horas Linus, entretanto, lhe consola relembrando o verdadeiro
sentido natalino.
Tem um Charlie Brown e Snoopy novo por estrear no Brasil que aproveita
o Natal (comercialmente, inclusive) como pano de fundo, mas este aqui é
insuperável, não só pela trilha original de Guaraldi mas pela precisão de
Melendez na direção, que sempre imprimiu à série de TV a dose certa de doçura,
comédia, entretenimento e ludicidade. Atração – e ensinamento – para crianças e
adultos.
Sou um tanto suspeito em falar desse filme, pois trata-se de meu
preferido da longa, profícua e expressiva filmografia do gênio Bergman.
Entretanto, como deixar de fora essa obra-prima que, além de alinhar-se
bastante com o recorte que proponho, é o amadurecimento total de um artista que
já nascera maduro para o cinema. Superprodução que encerra a carreira do
cineasta na grande tela, transcorre-se em dois anos da primeira década do
século XX na família Ekdahl. Após um alegre Natal, o pai de um casal de
crianças morre. Deste momento em diante Alexander (Bertil Guve), o menino, passa
a ver o fantasma do pai frequentemente. Tempos depois, sua mãe casa-se com um
extremamente rígido religioso e as crianças são obrigadas a deixar a casa da
avó paterna para viverem com a família do padrasto de hábitos severos, onde são
tratados como prisioneiros. Na casa do padrasto o sensível e inventivo
Alexander passa a ver o fantasma da primeira esposa dele e suas filhas, que
haviam morrido tentando escapar dele. Decorrido algum tempo, a mãe se
conscientiza da real personalidade do marido e de quanto seus filhos sofrem
naquela casa e planeja um modo de tirá-los daquele lugar e levá-los de volta para
casa.
O proposital clima espiritualista de toda a história faz cama para a
impactante sequência da fuga, em que as forças divinas operam um milagre de
Natal e os três conseguem escapar da prisão domiciliar. Haveria muito a se
falar sobre “Fanny e Alexander” (a relação entre pais e filhos, a
espiritualidade imanente, a percepção afinada da criança, a metáfora da vida
como palco – e vice-versa –, os limites entre vida e morte, etc.) mas destaco
aqui um fator primordial: o fato de o Natal estar presente no início e no final
do filme. A data do nascimento de Jesus demarca dois momentos psicológicos e
emocionais dos personagens, numa significação das possibilidades de mudança e
desenvolvimento da vida e das pessoas. Cada um com suas qualidades e
dificuldades, com suas personalidades e jeitos, mas passíveis de enxergarem o
mundo para além de si mesmos. Afinal, é Natal.
A bola não é a inimiga como o touro, numa corrida; e, embora seja um utensílio caseiro e que se usa sem risco, não é o utensílio impessoal, sempre manso, de gesto usual: é um utensílio semivivo, de reações próprias como bicho e que, como bicho, é mister (mais que bicho, como mulher) usar com malícia e atenção dando aos pés astúcias de mão.
A democracia anda dando vertigem em muita gente por aí. Mas
vertiginoso mesmo é o Música da Cabeça de hoje! Sente só o que terá: Small
Faces, João Gilberto, João Cabral de Melo Neto, U2, Curtis Mayfield e mais. Tem
também “Sete-List” sobre o grande baterista Neil Peart, falecido esta semana, e
homenagem a Geraldo Azevedo. Sentiu uma tonturinha? Fica tranquilo: é só ouvir
o MDC, às 21h, na Rádio Elétrica que passa. Produção e apresentação:
Daniel Rodrigues. Foi golpe.