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segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Mesma melodia, letras diferentes


O fato de apresentar o programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, é meio que mera desculpa minha para ir à cata de listas. Sempre gostei de criá-las a partir das coisas que curto, das criteriosas às mais estapafúrdias. Uma dessas que me veio à mente para usar no programa se refere a músicas que têm a mesma melodia, mas letras diferentes. A parte musical e o arranjo podem ser idênticos, mas o que é cantado, não. Às vezes, até melodias de voz e cantores diferentes. Dois lados da mesma moeda ou - por que não? - do mesmo disco.

Numa rápida pesquisa de memória, o interessante foi perceber que essa prática é comum nos mais diferentes gêneros, culturas e locais. Seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Inglaterra ou até na Jamaica, não há quem resista em usar aquela base que ficou superlegal de um outro jeito, numa outra roupagem. 

Pra compor esta lista de 15 + 1 exemplos, ainda contei com a ajuda de meu irmão e parceiro de blog Cly Reis, que contribuiu com algumas das duplas de músicas as quais não tinham me ocorrido.

Tom Zé e Tim: ambos com duas duplas
de músicas na lista
Importante ressaltar que não valem músicas até então instrumentais que ganharam letra depois de um tempo, casos de “Valsa Sentimental” (de Tom Jobim, que, quando letrada por Chico Buarque, virou ”Imagina”) e “A Rã” (originalmente, “O Sapo”, de João Donato, que passou a ter esse novo título na letra de Caetano Veloso). Neste caso, aceitou-se como exceção quando uma delas é instrumental e a outra cantada, mas desde que pertençam a um mesmo artista e que este as tenha composto para um mesmo projeto.

Igualmente, não se incluem canções “reprise” ou de letra mesmo que diferentes entre si, mas que se tratam de duas partes da mesma, nem mesmo versões para idioma diferente do original feita por outro artista. Músicas “irmãs”, tipo “Blue Monday” e “586”, da New Order, ou “Crush with Eyeliner” e “I Took Your Name”, da REM, não cabem, nem muito menos aquelas que samplearam a “alma” do tema que a inspirou, como o rap norte-americano costuma fazer. Essas todas ficam de fora – quem sabe, guardam-se para uma futura outra lista...

Do blues ao samba, do industrial a soul, do shoegaze ao psicodelismo. Têm dobradinhas bem interessantes e variadas.


1. "João Coragem"/ "Padre Cícero" - Tim Maia
Em 1970, Tim estava gravando seu disco de estreia quando Nelson Motta aparece no estúdio e fica maravilhado com "Padre Cícero". Tanto que pediu para Tim e Cassiano alterarem a letra para a música entrar na trilha da primeira novela da Rede Globo, "João Coragem".

2. "Sister Midnight"/ "Red Money" - David Bowie
A fase berlinense rendeu coisas maravilhosas e simbióticas para Bowie. "Sister Midnight", composta por ele e Iggy Pop para abrir "The Idiot", de Iggy, de 1977, serviu para o próprio Bowie finalizar sua própria trilogia na capital alemã dois anos depois com outro título e letra.

O mestre da "preguiça" baiana sabia muito bem fazer sambas geniais com pouquíssimos versos, quando não quase repetidos. Aqui, o que Caymmi repete é a parte instrumental idêntica a ambas, mas com melodias de voz e letras totalmente diferentes entre si.

"Strange Brew", que abre o cláscico disco "Disreali Gears", de 1967, é tão boa que dá vontade de reescutá-la. Não precisa, pois Clapton/Bruce/Baker a põem no fim do disco, só que com outro nome e letra. 


5. "Mã""Nave Maria" – Tom Zé
Uma mais percussiva, a outra mais world music, mas ambas de abertura de seus discos "Estudando o Samba", 1976, e "Nave Maria", 1984) e sobre o genial riff do baiano de Irará.

6. "Teenage Lust"/ "Heat" - Jesus & Mary Chain
"Teenage Lust" é um clássico da banda que coroa uma fase inspirada, marcada pelo disco "Honey's Dead", de 1992. "Heat", por sua vez, está na coletânea de B-sides "Stoned and Detoned", de um ano depois.

Vindo de Moz, artista que produz muito, não seria estranho haver esse tipo de repetição. No caso, "Alma Matters", hit do disco "Maladjusted", de 1997, tem como sombra "Nobody..,", da coletânea "My Early Burglary Years", de 1998.

8. "Waiting""Do You do It?" – Madonna
No talvez melhor disco de Madonna, "Erotica" (1992), a ousadia de pôr um mesmo tema duas vezes, sendo a segunda cantada não por ela, mas pelos rappers Mark Goodman e Dave Murphy.

9. "Pocket Calculator"/ "Dentaku" – Kraftwerk
Totalmente iguais, não fosse uma ser cantada em inglês e a outra em japonês. Aí os alemães conseguiram fazer, pro disco "Computer World", de 1981, duas obras totalmente diferentes sendo a mesma coisa.

Quase iguais, não fosse o título e algumas partes da letra. Mesmo estando no mesmo disco, o clássico "Pet Sounds", de 1966, é tão bonita que não há nenhum problema em "reouvi-la" com pouca diferença entre uma e outra.

11. "Os Escravos de Jó"/ "Caxangá" – Milton Nascimento
A censura, que comeu praticamente todas as letras de "Milagre dos Peixes", de 1973, inclusive "Os Escravos de Jó", parceria de Milton com Fernando Brant, já havia abrandado um pouco anos depois quando Elis Regina gravou "Caxangá" e depois o próprio Milton.

12. "Graveyard""Another" – P.I.L.
A instrumental "Graveyard", de "Metal Box" (1979), é, literalmente, a "Outra" em "Commercial Zone", disco de sobras de estúdio da mesma época. Coisas da cabeça conceitual de John Lydon e sua Public Image Ltd..

13.  "Jimi Renda-se"/ "Dor e Dor" – Tom Zé
A mente inquieta de Tom Zé faz com que, mais de uma vez, ele revisite a própria obra. Assim como "Mã"/"Nave Maria", a metaliguagem pega nestas duas também, de 1970 e 1972 respectivamente.

14. "Slave to the Rythmn""The Fashion Show" – Grace Jones
O disco de Grace "Slave to the Rhythm", de 1985, em si, é todo cunhado sobre a mesma base, mas estas duas não não são iguais pela letra.


15. "With no One elseAround"/ "Pra Você Voltar" – Tim Maia
Tim não tinha vergonha de reaproveitar melodias suas mais de uma vez, mas aqui ele fez melhor: uma em inglês, para o arrasador álbum de 1978, e outra na língua de Camões, um ano depois ("Reencontro"), em que até o sentido das letras são totalmente diferentes.


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+1. "À Flor da Pele""À Flor da Terra" – Chico Buarque
O título é igual, "O que Será?", eu sei, mas o fato de o subtítulo ser diferente faz, com perdão da redundância, toda a diferença. Escritas por Chico para a trilha sonora de "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1976, uma inicia o filme e outra o encerra - e as letras são totalmente distintas.


cena final do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos" - tema: "À Flor da Pele"


Daniel Rodrigues

sábado, 12 de setembro de 2015

Howlin' Wolf - "Howlin' Wolf" ou "The Rockin' Chair Blues" (1962)



"Seus olhos se iluminavam e você podia
ver as veias se incharem no seu pescoço
e, irmão, sua alma inteira
se concentrava naquela canção.
Ele cantava com a danada da alma."
Sam Phillips,
da gravadora Sun Records,
descrevendo Howlin' Wolf



Um uivo de lobo.
Uma voz potente.
Um homem transfigurado em animal no estúdio.
Assim era Chester Arthur Burnett, mais conhecido como Howlin' Wolf, um dos maiores nomes do blues de todos os tempos. Artista de admiráveis qualidades vocais, exímio manejo da guitarra e performances arrasadoras em shows, Wolf que começara na Sun, gravadora que revelou Elvis Presley, teve, no entanto, seu período de maior sucesso pelo famoso selo Chess, de Chicago, curiosamente levado pelas mãos do, sabidamente um arquirrival, Muddy Waters.
Rivalidades à parte, cada um com seus talentos, muitos diga-se de passagem, havia espaço para os dois na Chess. A maioria dos músicos do staff da gravadora gravavam as canções do baixista da casa e compositor Willie Dixon, mas poucos como Wolf tiraram tanto proveito desta parceria. Saíram das maos de Dixon alguns dos maiores sucessos de Howlin' Wolf e diga-se de passagem, em contrapartida, são dele algumas das melhores interpretações das músicas de Dixon.
Wolf já havia gravado um disco desde sua chegada à Chess mas que ainda trazia heranças da Sun Records, sua antiga gravadora, e contava apenas com as composições do próprio cantor, mas foi com o disco conhecido popularmente como "The Rockin' Chair Blues" que Wolf alçou voo definitivamente no universo do blues muito em função das composições de Dixon e de seu dedo na produção.
O disco abre com a excitante "Shake For Me", uma incitação à libido e já traz na sequência o clássico "The Red Rooster" cantado de maneira arrastada por Wolf com o acompanhamento de por uma slide guitar matadora do próprio cantor. A música ganharia inúmeras versões posteriores, nas quais ganharia o diminutivo pela qual é mais conhecida ("Little"), dentre elas a suingada de Sam Cooke, a suja do Jesus and Mary Chain e a maliciosa dos Rolling Stones.
"Who's Been Talkin'", um blues lento, quebrado com um toque latino é uma das duas, apenas, de autoria do próprio cantor no disco, e ""Wang Dang Doodle", que a segue é pegada, cheia de embalo, com uma guitarra vibrante e um refrão contagiante.
Outra que já foi regravada incontáveis vezes, por Etta James, Who, pelo Cream de Eric Clapton, mas que tem na versão deste blueseiro do Mississipi, a primeira, diga-se de passagem, uma de suas melhores interpretações, é a magnetizante "Spoonful",  mais uma das obras-primas de Dixon imortalizada pelo vocal singular do Lobo.
Na chorosa "Going Down Slow" onde o vocalista praticamente apenas declama a letra, o que destaca-se mesmo, desde a introdução martelada, é o piano; já em "Back Door Man", Howlin' Wolf retoma o protagonismo e encarna o personagem soltando ganidos arrepiantes numa canção que é uma espécie de assombração sensual e sedutora e que cuja versão, talvez, mais conhecida seja a da banda The Doors gravada logo em seu álbum de estreia.
Bem ritmada, embalada, impetuosa, "Howlin' for My Baby" (que também é conhecida com a variação de "... My Darling"), talvez a melhor tradução da fusão de estilos do blues do Delta para o de Chicago, encaminha com grandiosidade o final do disco para que "Tell Me", a outra composição de autoria de Wolf no disco, um gostosíssimo blues com uma levada apaixonante de harmônica  se encarregue de fechar de forma magistral.
Um daqueles caras para o qual a alcunha lenda do blues cabe perfeitamente, ainda mais reforçada pelo nome sugestivo que carregava, pelas performances insanas no palco, pelo feitiço que impunha às mulheres e pelos uivos quase animalescos que emitia em suas interpretações. Seria aquela figura na verdade uma criatura entre o home e o lobo? Teria ele, como o outro legendário Robert Johnson, feito algum pacto sinistro cujo preço seria que dividisse sua forma entre o humano e o bestial, metamorfoseando-se depois de determinada hora, em determinados dias, em dada fase lunar? Ficaria ele assim, mesmo em sua forma humana com traços do animal o que explicaria seus grunhidos, uivos e rosnados característicos e sua forma gigantesca e quase gutural? Bobagem, bobagem. Mas, ei... Alguém aí ouviu um uivo?
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FAIXAS:
  1. "Shake for Me" – 2:12
  2. "The Red Rooster" – 2:22
  3. "You'll Be Mine" – 2:25
  4. "Who's Been Talkin'" (Howlin' Wolf) – 2:18
  5. "Wang Dang Doodle" – 2:18
  6. "Little Baby" – 2:45
  7. "Spoonful" – 2:42
  8. "Going Down Slow" (St. Louis Jimmy Oden) – 3:18
  9. "Down in the Bottom" – 2:05
  10. "Back Door Man" – 2:45
  11. "Howlin' for My Baby" – 2:28
  12. "Tell Me" (Howlin' Wolf) – 2:52
* todas as faixas compostas por Wilie Dixon, exceto as indicadas
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Ouça: 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Jorge Ben - "Solta o Pavão" (1975)



"Pavão Real, Pavão Dourado
Procedente da África e da Índia [...]
Sua cauda, de uma plumagem azul. verde e ouro
Formando um lindo e majestoso leque
Na Idade Média
O pavão, pela sua figura bonita e livre
Era visto como uma ave real e da sorte." 
Jorge "Sanctus" Ben,
do texto da contracapa original do disco 


Na metade dos anos 70, Jorge Ben, que ainda não tinha se tornado o Benjor que assumiria a guitarra elétrica no lugar do violão, já havia alcançado tudo que um artista popular podia. Estouro no disco de estreia, altas e baixas vendagens, idolatria e ostracismo, adesão a movimentos (sambalanço, soul, tropicalismo), participação e vitória em festivais, hits nas paradas, gravações internacionais e até briga judicial por plágio (vencida por ele sobre um Rod Stewart metido a esperto). Mas principalmente, desde que começara a carreira, o “Babulina” foi responsável pela talvez mais extensa e irreparável sequência de discos de um artista na indústria fonográfica no Brasil. Somente nos primeiros cinco anos daquela década, enfileirou os álbuns “Força Bruta”, “Negro é Lindo”, “Ben” e “10 Anos Depois”, isso sem falar dos registros ao vivo com o Trio Mocotó e dos clássicos absolutos “Gil & Jorge/Xangô Ogum” e “A Tábua de Esmeralda”. Com estes dois, principalmente o segundo, o autor de “Chove Chuva” atingia o ápice da criatividade e forjava uma linguagem totalmente peculiar, com melodias de alta inventividade, harmonias despojadas, estilo de cantar próprio e ritmo, muito ritmo. Seu samba-rock, carregado de referências ao esoterismo, à religião, à filosofia e a uma visão humanista do mundo, é igualmente sustentado na cultura popular da ginga, do país tropical, do amor, das moças bonitas e da cordialidade.

O que faltava, então, a um artista consagrado por crítica e público? Explodir. Isso que é “Solta o Pavão”: uma explosão de sonoridade, de balanço, de misticismo, de religiosidade, das paixões. Aquilo que Ben trouxera em “A Tábua...” se intensifica neste seu último disco antes da adoção de vez da guitarra, ocorrido um ano depois noutro disco emblemático, “África Brasil”. Está nele toda a bruta brasilidade de Ben, encharcada de matizes africanas e influenciada por elementos da cultura pop, do funk norte-americano ao gospel, da soul ao blues, do rock ao jazz. “Solta...”, assim, com seus riffs inspiradíssimos, sua percussão carregada e arranjos modernos, tem o despojamento e o peso de um disco de rock – sem dever nada em densidade a outros de roqueiros daquele ano, como “Fruto Proibido”, de Rita Lee, ou “Novo Aeon”, de Raul Seixas –, mas ainda com um pé no Jorge Ben do “Samba Esquema Novo”: o da batida percussiva no violão de nylon, malemolente, suingado, malandro, enraizado no morro.

A abertura dignifica todas essas qualidades: um riff de violão como um Neil Young acústico e a batida potente da percussão ao fundo. Prenúncio do arrasador samba que irá começar: “Zagueiro”, uma ode ao “anjo da guarda da defesa” no futebol. Quem sustenta a coesa cozinha, além da Admiral Jorge V Group (João “Van da Luz”, piano; Dadi “Aroul Flavi”, baixo; João “Zim” da Percussão, ritmo; e Gusta “Von” Schroeter, bateria) são os Cream Crackers, grupo formado por ninguém menos que o percussionista e arranjador Zé Roberto, o não à toa intitulado Mestre Marçal e um jovem pernambucano já muito afim com o samba chamado Bezerra da Silva. Todos comandados pela batuta de Jorge “Sanctus” Ben.

O pensamento sobre o ser humano ganhava suma importância na obra de Ben àquela época. Se o filosofia alquimista do Egito de 1.300 a.C. fora responsável pela letra de “Hermes Trismegisto Escreveu” em “A Tábua...”, agora Ben volta sua abundante musicalidade para dar cores aos densos escritos do filósofo oficial da Igreja da Idade Média: São Tomás de Aquino. Capaz de musicar até bula de remédio (e torná-la suingada!), Ben adapta trechos do complexo livro “Suma Teológica”, escrito no século XIII, e o transforma num samba cheio de molejo. Em “Assim Falou Santo Tomás de Aquino” ele consegue imprimir no hermético texto escolástico frases sonoramente cantaroláveis, como: “Senhor, que tens tido feito o nosso refúgio” ou “Estão enganados, puramente enganados/ Estão errados, puramente errados”.

O clima de devoção sambada continua na sequência numa das melhores do disco – e, por que não, da carreira de Ben. “Deus todo poderoso eterno pai da luz, da luz/ De onde provem todos bens e todos dons perfeitos/ Imploro vossa misericórdia infinita, infinita/ Deixai-me conhecer um pouco de vossa sabedoria eterna”. Esses versos dão a ideia da contrição contida na lindíssima "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros", misto de prece franciscana e canto humanista. De ritmo vibrante e contagiante, passa longe de ser piegas. Pelo contrário, a música tem uma aura especial, tanto por causa da melodia quanto pelo coro alto e intenso, que traz o mesmo “Ôôô” de “Os Alquimistas Estão Chegando”, de “A Tábua...”, porém, usados em outro tom para dar uma atmosfera de canto litúrgico. Ben, como em todo o disco, está solto, tocando o violão com total desembaraço, brincando com vocalizes e melismas e inventando cantos na hora da execução.

Por falar em brincadeira, a divertida "Cuidado com o Bulldog" é, além disso, um show de musicalidade. Começa em um ritmo de rock com o band leader esmerilhando o violão e Dadi mandando ver numa base de baixo no melhor estilo Novos Baianos, ambos acompanhados por uma bateria que abusa dos rolos. Até que, de repente, um breque, e a música dá uma virada para se transformar num samba gingado daqueles de não deixar ninguém parado. A impressão é de farra, mas os músicos estão fazendo um samba-jazz do mais alto nível. Ben aproveita para se divertir com o tema, lançando grunhidos como se estivesse sendo mordido pelo cão (um desses, sampleado pela Nação Zumbi no início de “Cidadão do Mundo”, do disco “Afrociberdelia”, de 1996) e bolando frases engraçadas como: “Bulldog, mandíbulas de ouro” ou “Bulldog não perdoa, Bulldog morde”. Registro ao vivo no estúdio – assim como tudo dos álbuns dele à época –, lembra a naturalidade e a descontração das jam sessions com Gilberto Gil do então recente “Gil & Jorge”. Impagável.

"O rei chegou, viva o rei", com sua linha de metais tropicalista, segue o conceito letrístico de prosa medieva (“Então vierem os cavaleiros com seus uniformes brilhantes/ Garbosos e triunfantes/ Um abre-alas lindo de se ver/ E logo atrás/ Separado por lanceiros/ Vinha a guarda de honra, orgulhosa, polida, agressiva/ Porém bonita/ Anunciando e protegendo o rei”), estilo que serviria, entre outras semelhantes de Ben, de inspiração a Caetano Veloso para escrever “Alexandre”, do disco “Livro”, de 1997. Também prosada e tomada de suingue, "Luz Polarizada" (“Coloque o teu grisol sob a luz polarizada/ Ó meu filho/ Lava as escórias com a água tri-destilada/ Pois aquele que forja a falsa prata/ E o falso ouro/ Não merece a simpatia de ninguém”) lembra a psicodelia de “O Homem da Gravata Florida”, do disco anterior. Ben, totalmente à vontade com os companheiros no estúdio, chama-os para o “La, la, la, la, la, la” do refrão dizendo: “Quero ver o coral agora!”

Mas se tem algo que está no mesmo pé que a religiosidade e o esoterismo em “Solta...” são elas: as musas. Como um menestrel medieval apaixonado, Ben canta para várias delas: "Dumingaz", um samba “maravilha” e “sensual”, como classifica o próprio enquanto canta; “Luciana”, a “canção singela” feita pra lembrar-se do seu trovador quando se ouvir no rádio (clara homenagem a Gil por "Essa é pra Tocar no Rádio", que gravaram juntos em "Gil & Jorge" um ano antes); "Jesualda", samba-rock de riff puxado no assovio que conta a história da mulata saída da favela que ganhou a vida no exterior; e "Dorothy", outra irretocável, com destaque para o arranjo de flautas de Ugo Marotta.

“Solta...” ainda tem a gostosa "Se Segura Malandro", tema do filme homônimo de Hugo Carvana (na linha de “O Namorado da Viúva”, de “A Tábua...”) e um dos mais inspirados temas da história da música brasileira: “Jorge da Capadócia”. Um hino da MPB, regravado por Caetano, Fernanda Abreu e Racionais MC’s, que virou um símbolo do próprio autor, xará do Santo Guerreiro e filho de Ogum, o correspondente ao santo católico no Candomblé pelo sincretismo. Musicando a oração de São Jorge, Ben atinge um clímax como apenas em especiais momentos de sua carreira conseguira – talvez, parecidas, só “5 Minutos” e “Zumbi”, faixas que cumprem o fechamento dos discos “A Tábua...” e “África Brasil”. Isso porque, ao evocar as preces ao Jorge dos Céus, o Jorge da Terra o faça com tamanha potência que a música acaba ganhando uma dimensão mais profunda, etérea e espiritual. O Coral do Kojac entoa o título da canção repetidas vezes num samba marcado e intenso sob um riff de guitarra (sim, de guitarra!). Porém, a exaltação se arrefeça para, aí sim, serem declamados os emocionados versos: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge/ Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem/ Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem/ Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam/ E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal”. Ben, com sua voz oscilante, funde canto de escravos à dicção do morro. Um teclado entra para fazer a base, enquanto o violão sola e a percussão, estilo jazz-fusion, desenha um compasso arrastado e assimétrico. Para terminar, retorna a melodia da abertura, porém ainda mais enérgica, mais volumosa, mais expressiva. Um desbunde.

Guardadas as devidas proporções, “Solta...” é o “Magical Mystery Tour” de Jorge Ben: ao mesmo tempo em que é a continuidade natural de uma obra-prima revolucionária (“Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, no caso dos Beatles, “A Tábua...”, para o músico brasileiro), também a consolida, redimensionando-lhe as ideias e conceitos originais. Assim, tanto este quanto o da banda inglesa passam longe de serem meros “volumes 2” das obras-irmãs, haja vista que são tão únicos quanto estas e até mais ousados. “Solta...” é, sim, um feliz acontecimento da música brasileira de um momento em que Ben, figura única no panteão da MPB, está com toda vitalidade e alegria. Um artista pleno, que concebeu, na linha evolutiva de sua própria obra, o mais livre e completo trabalho. Majestoso e colorido como a cauda de um pavão.

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FAIXAS:
1. "Zagueiro" - 3:05
2. "Assim Falou Santo Tomaz de Aquino" - 3:04
3. "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros" - 3:16
4. "Dorothy" - 3:58
5. "Cuidado com o Bulldog"  - 2:53
6. "Para Ouvir no Rádio (Luciana)" - 4:20
7. "O rei chegou, viva o rei" - 3:03
8. Jorge de Capadócia"  - 3:53
9. "Se Segura Malandro" - 2:53
10. "Dumingaz" - 3:30
11. "Luz Polarizada"  - 2:20
12. "Jesualda" - 4:06
todas as composições de autoria de Jorge Ben

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OUÇA O DISCO:
Jorge Ben - "Solta o Pavão"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Música da Cabeça - Programa #56


As revoltas de maio de 68 em Paris, cujos ecos estão fazendo 50 anos, e o Dia do Trabalho, data símbolo da luta pela democracia no Brasil, não poderiam deixar de estar no Música da Cabeça desta semana. Além destes assuntos, os libelos mais palpáveis do sentimento de liberdade, ou seja: as músicas! Dentre elas, teremos Parliament, O Rappa, Cream e Gilberto Gil. Ainda, os quadros “Palavra, Lê”, “Música de Fato” e uma lista superinteressante sobre o recém aniversariado Iggy Pop. É muito grito revolucionário para você perder! Então, pega tua faixa e vem escutar o programa hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e voz de protesto: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

PIL - "Album" (1986)

"Ele (John Lydon) canta como eu toco trumpete."
Miles Davis


Uma superbanda, um disco cujo título é seu formato, um hit com a cara dos anos 80 com refrão fácil e inconfundível e um’ frontman’ que havia sido nada mais nada menos que o rei do punk. O cara: John Lydon, ex-Johnny Rotten do Sex Pistols; o álbum: bom, o nome do álbum era “Album” mesmo. E todo o panorama em torno dele e seu lançamento pode ser justificado com o nome de outro disco da banda: “Isso é o que vocês querem, isso é o que vocês terão”. Com “Album”, John Lydon dava à industria pop o que ela queria, e o PIL, sempre avesso às regras do sistema, por sua vez aproveitava então para ganhar dinheiro com a brincadeira. E por que não?
Como o PIL na verdade é John Lydon, ou, John Lydon é o PIL (não importa), depois de brigar com um integrante aqui, dispensar outro ali, convocar outro lá, resolveu então chamar um timaço de feras para reforçar a IMAGEM PÚBLICA da banda: Ruyichy Sakamoto nos teclados; o multicolaborador de inúmeras bandas Jonas Hellborg no baixo; Steve Vai (que dispensa apresentações) nas guitarras; Tony Williams (da banda de Miles Davis) e Ginger Baker (ex-Cream) para a bateria, tudo sob a batuta do produtor Bill Laswell.
Laswell era conhecido por trabalhos de funk, ligações com o jazz tendo conduzido um trabalho interessantíssimo com Herbie Hankock pouco antes. Trabalhara também produzindo o Time Zone, parceria de Lydon com Afrika Bambaata, o suficiente para convencer o ‘anticristo’ a convidar o cara para produzir seu novo projeto. A escolha mostrou-se perfeita! Laswell dava ao projeto de Lydon o tempero que ele precisava acertando em cheio logo de cara com o sucesso “Rise” composto pelos dois. Quem não lembra daquele refrão “I could be wrong, I could be wright”?
“Album” provavelmente consegue o melhor resultado daquilo que se costuma chamar “superbanda”, normalmente grupos com muito nome, pouca qualidade e resultado bastante insuficiente. Neste não: Ginger Baker destrói na bateria, sempre soando alta e estourando, com destaque especial para “Round”que por ser enfática para a percussão permite-lhe um showzinho à parte. Sakamoto e Tony Willimas são aqueles que não aparecem muito pra torcida mas jogam um bolão; sempre discretos mas competententíssimos, sendo que o japonês pode, sim, ser destacado em “Ease”, épico que fecha o disco, na qual aliás todos matam-a-pau. Em “Ease” Ginger volta a estourar o couro da bateria, Lydon está inspirado, mas nesta especialmente Steve Vai, que na maior parte das faixas empresta seu talento com disciplina e discrição, aqui estraçalha e esmirilha num solo final arrepiante.
Se por um lado Lydon parece com “Album” ter-se rendido de vez à indústria fonográfica, dando o que ela queria; por outro mantém nas letras seu tradicional fel e violência pouco palatáveis para rádio e deixa uma dose implícita de cinismo quando, ao invés de uma capa colorida, chamativa, com a banda posando fodona, simplesmente nos apresenta uma capa branca com o nome do formato escrito grande. (Bem pouco comercial, não?) Algo como uma caixa de medicamento, uma embalagem... um produto.
Mas tal simplicidade da capa, de certa forma, se justifica plenamente: o que mais precisaria-se dizer de um disco como este, afinal?
Basta dizer apenas que é O ÁLBUM.

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(O disco efetivamente leva o nome do formato, tanto que a versão em fita chamava-se "Cassete" e o CD chama-se "Compact Disc", mas é conhecido e referido na maioria das vezes, independente da forma como se apresenta, como "ALBUM")
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FAIXAS (listadas na contracapa como "Ingredientes") :
  1. "F.F.F." (John Lydon, Bill Laswell) – 5:32
  2. "Rise" (Lydon, Laswell) – 6:04
  3. "Fishing" (Lydon, Jebin Bruni, Mark Schulz) – 5:20
  4. "Round" (Lydon, Schulz) – 4:24
  5. "Bags" (Lydon, Bruni, Schulz) – 5:28
  6. "Home" (Lydon, Laswell) – 5:49
  7. "Ease" (Lydon, Bruni) – 8:09
Músicos:
John Lydon - vocais
Tony Williams - bateria em "FFF", "Rise" e "Home"
Ginger Baker - bateria na "Fishing", "Round", "Bags" e "Ease"
Bernard Fowler - backing vocals em todas as faixas
Ryuichi Sakamoto - Fairlight CMI em "Rise", "Fishing", "Bags" e "Ease"
Nicky Skopelitis - guitarra em todas, exceto "Ease"
Steve Vai - guitarra em todas as faixas
Jonas Hellborg - baixo em todas as faixas

pessoal adicional
Shankar - violino elétrico de "Rise" e "Round"
Bernie Worrell - órgão em "FFF", "Round" e "Home", Yamaha DX7 em "Fishing"
Malaquias Favores - baixo acústico em "Fishing" e "Bags"
Steve Turre - didjeridu em "Ease"
Aïyb Dieng - tambores em "Round"


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Ouça:
PIL Album



Cly Reis

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Eric Clapton - "Me and Mr. Johnson" (2004)



"É uma coisa significativa minha vida ter sido
conduzida e influenciada pelo trabalho de um homem (Robert Johnson)"

"(A música de Johnson) É a melhor música que já ouvi."
Eric Clapton


Disco de discípulo homenageando mestre. Eric Clapton, confesso amante do blues e que já dedicara vários momentos de sua carreira a gravações no gênero, resolvia então depois de muito tempo fazer um álbum inteiro somente com canções do homem que é por muitos considerado o maior nome da história do blues, Robert Johnson. O projeto, no entanto, nasceu meio que por acaso, uma vez que Clapton tinha o compromisso com a gravadora de lançar um novo álbum mas, de repente, vira-se sem tempo hábil para apresentar novas composições. Assim, a solução foi partir para um repertório que conheciam bem e que tirariam de letra. Clapton pediu para que a banda tocasse como se estivesse num bar de beira de estrada e o resultado é um disco extremamente leve, gostoso e solto.
Fora a diferença de tocar com uma banda completa ao passo que, na maioria das veze a única companhia de Johnson era o próprio violão, as canções mantêm suas estruturas e características originais, sem maiores ousadias. "When You Got a Good Friend", "Me and the Devil Blues" e "Kindheart Woman Blues" são praticamente puras, preservando ao máximo a atmosfera original das canções, mas é lógico que um músico talentoso como Clapton dá seus toques pessoais a muitas delas e aseja em solos destruidores e altamente originais mesmo em composições tão consagradas, seja em diferenças sutis nos arranjos. "Last Fair Deal Gone Down", por exemplo, tem uma versão alucinada sendo possivelmente a que mais se distancia da original. "Traveling Riverside Blues" por sua vez sofre uma certa desaceleração e ganha uma mixagem mais trabalhada que a diferencia das demais nesse sentido; "32-20 Blues" carrega no piano; "They're Red Hot" abre mão do ritmo frenético imposto por Johnson; "Hellhound on My Trial" tem um ritmo quebrado, bateria marcante e guitarras surgindo de todos os lados; e "Milkow's Calf Blues" ganha peso lembrando os tempos de Cream e seus blues envenenados.
Um tributo tardio segundo o próprio Clapton que já manifestara o desejo de gravar a obra deste cantor, uma homenagem quase sem querer dadas as circunstâncias, mas que nós, fãs de blues e de boa musica, somos gratos por ter acontecido. Uma justa celebração do blues que carrega, curiosamente, uma estranha ironia, considerando a alcunha pela qual Clapton ficou conhecido e a lenda em torno de Robert Johnson: "Me and Mr. Johnson" seria, por assim dizer, uma homenagem de Deus para o Diabo. 

Cly Reis

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FAIXAS:
1."When You Got a Good Friend" (3:20)
2."Little Queen of Spades" (4:57)
3."They're Red Hot" (3:25)
4."Me and the Devil Blues" (2:56)
5."Traveling Riverside Blues" (4:31)
6."Last Fair Deal Gone Down" (2:35)
7."Stop Breakin' Down Blues" (2:30)
8."Milkcow's Calf Blues" (3:18)
9."Kind Hearted Woman Blues" (4:06)
10."Come on in My Kitchen" (3:35)
11."If I Had Possession Over Judgement Day" (3:27)
12."Love in Vain" (4:02)
13."32-20 Blues" (2:58)
14."Hell Hound on My Trail" (3:51)

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Ouça:
Eric Clapton - Me and Mr. Johnson

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

The Who - Anfiteatro Beira-Rio - Porto Alegre/RS (26/09/2017)



"Eu não acho que você poderia ter escolhido 
algum lugar no planeta Terra que proporcione 
um evento mais positivo. Na verdade, 
este era O LUGAR para se estar hoje à noite." 
Bryan Kehew, da equipe técnica do The Who, 
a respeito do show de Porto Alegre.

A gente se emocionar com uma banda é normal. Quando a gente vê que os músicos e equipe também se emocionaram com o mesmo show é a prova de que aquela noite foi realmente mágica e única. Conversei com meu pai após o show e comentei que, das bandas que NÓS dois realmente gostávamos, dos que ainda estão vivos e/ou na ativa, com o show do The Who poderíamos dizer que assistimos A TODOS: Steppenwolf, Santana, Rolling Stones, Ringo Starr e Paul McCartney (Beatles), Jack Bruce e Eric Clapton (Cream), Roger Waters e David Gilmour (Pink Floyd), Robert Plant (Led Zeppelin), Jethro Tull. Assistimos muitos shows juntos, é claro, mas estes aí com certeza são os que nos agradam fortemente e tem um sabor especial.

As lendas Daltrey e Townsend
Ver no palco (finalmente!) Roger Daltrey e Pete Townsend, acompanhados de uma fenomenal banda, com energia de garotos, com execução perfeita dos sons, com bom humor, felizes de estarem ali, felizes pelo feedback que estavam tendo do público (é o que o texto deste link fala), tocando uma sonzeira atrás da outra (óbvio que como fã eu gostaria de escutar várias mais) deu gosto, deu muito gosto esperar todo esse tempo.

Noites mágicas ficam na memória pra sempre, e estar com os que eu amo junto quase fez esse coração explodir de felicidade, não havia lugar pra se estar no planeta Terra, a não ser o show do THE WHO naquela noite.

"Listening to you
I get the music
Casing at you
I get the heat
Following you
I climb the mountain
I get excitement at your feet
Right behind you
I see the millions
On you
I see the glory
From you
I get opinions
From you
I get the story."
da letra de "See Me Feel Me", do The Who

Delírio do público porto-alegrense que conferiu o show,
elogiado pela própria equipe da banda

por Ricardo Finocchiaro Bolsoni

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

"Escola de Rock", de Richard Linklater (2003)





"Deus do Rock,
obrigado por esta oportunidade de arrebentar.
Nós somos vossos servos humildes.
Por favor, nos dê o poder de explodir a mente das pessoas
com o nosso rock de alta tensão.
Em seu nome oramos, Amém."
Dewey Finn (Jack Black)






E pensar que eu hesitei tanto em assistir a esse filme!
Completamente desinformado e imaginando que pudesse apresentar uma visão caricatural ou excessivamente estereotipada de roqueiros, que tivesse um monte de rockzinhos juvenis irritantes e que fosse uma típica comédia teen repleta de baboseiras, namoricos e valentões de escola, além de algumas restrições que tenho ao ator Jack Black, um tanto expressivamente exagerado em muitos momentos, sempre adiei a possibilidade de sentar pra ver "Escola de Rock". Mas como minha filha de seis anos começa a se interessar por rock e, na pior das hipóteses, mesmo que o filme fosse uma completa porcaria, pelo menos teria algum estreitamento de contato com o gênero por aquela coisa toda de guitarras, palco, postura, visual e tudo mais, achei que valia a pena dar uma olhada com ela. E não é que o filme é um grande barato? É um filme de roqueiros! Um filme de paixão pelo rock. De respeito por ele e por tudo  que representa.
Jack Black que, se em outros papéis é exagerado, caricato, neste é perfeito, caindo como uma luva na pele do músico fracassado e desempregado Dewey Finn que dispensado por sua própria banda e pressionado pelo casal com quem divide o apartamento a pagar sua parte nas despesas, vê numa vaga que seria para o amigo Ned Shneebly de professor-substituto numa escola de ensino fundamental, a chance de, se fazendo passar pelo colega, faturar uma grana e pagar as despesas que estão sendo cobradas. O caso é que chegando lá, depois de deixar claro para a turminha que assumira que não queria nada com nada, ele descobre que a galerinha tem aula de música e que as crianças são bastante talentosas. Dewey, enxerga então ali a possibilidade de usar aquele talento a seu favor convencendo, sob falsos pretextos, a garotada a entrar num concurso de bandas de olho no polpudo prêmio que lhe garantiria o fim dos pesadelos financeiros. Só que os alunos têm aula de música clássica e o desafio de Finn passa a ser o de colocar o rock no sangue, na cabeça e na atitude daquela crianças e aí é que o filme fica um barato. A seleção da banda, as noções sobre rock'n roll, a apresentação dos ídolos marcam um momento muito legal no filme. A cena em que o falso professor escolhe os mais aptos para cada instrumento e improvisa um "Smoke On The Water" com eles é bárbara; o passar dos dias com o  desenvolvimento das atividades de sua equipe mirim e das aulas de rock ao som de "My Brain is Hanging Upside Down" dos Ramones chega a ser emocionante para fãs do bom e velho rock'n roll; e a do retorno para a escola, na van, depois da inscrição na Batalha das Bandas ao som de "Immigrant Song" do Led é empolgante.
O "professor" Finn dando uma aula de rock.
O roteiro é aquele bem padrãozinho americano, nada demais: apresentação da situação-problema-solução aparente-nova complicação da situação-ato heroico-encaminhamento do grande momento-apoteose (com ou sem final feliz). Seu grande mérito, no entanto, está na escolha do tema e a forma de sua apresentação, na qual o protagonista tem a oportunidade de expôr para os alunos, e por extensão, é claro, a nós espectadores, tudo o que o rock representa, e como quem não quer nada, entre uma aulinha e outra, um diálogo aqui outro ali, coloca alguns pontos interessantíssimos que estão no sangue do rock como a vocação provocadora e desafiadora, o veículo para manifestar suas insatisfações e indignações e o tesão de tocar pelo prazer, pra fazer algo legal ou simplesmente pela possibilidade de deixar as pessoas malucas. 
Dirigido pelo bom Richard Linklater de "Boyhood" e da trilogia romântica "Antes do Amanhecer", "Antes do Pôr-do-Sol" e "Depois da Meia-Noite" com Julie Delpy e Ethan Hawke, "Escola de Rock" tem do roteiro assinado por Mike White (que interpreta o verdadeiro Ned Shneebly no filme) mas deve muito ao próprio ator principal, Jack Black, fanático por rock, na época vizinho de White e que segundo o roteirista vivia tocando em volume altíssimo e cantando pelado pela casa afora muitas das músicas que fazem parte da trilha do filme, o que o inspirou a escrever a história da forma como o fez. Aliás, a trilha sonora é, sem dúvida, um dos pontos altos do filme com sonzeiras de AC/DC, Black Sabbath, The Doors, Cream, Metallica e mais um montão de clássicos muito bem colocados  dentro do filme.
Enfim, um ótimo filme para que se apresente o rock'n roll aos filhos e entretenimento garantido aos papais e mamães roqueiros. Para a minha filhe que já estava interessada, já curtindo alguma coisa, já identificando alguns nomes e riffs, talvez tenha sido o empurrão definitivo. Pra ter uma ideia do quanto a aula foi válida, a minha pequeninha já tá até pedindo, "Põe "Iron Man". Valeu, né? Nota dez pra ela. Com louvores.


Cly Reis

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Música da Cabeça - Programa #137


Deixa aquela gente lá batendo continência pros boçais, que o Música da Cabeça aqui segue reverenciando aquilo que importa. Olha só quanta importância trazemos hoje: Cream, Herbie Hancock, Giorgio Moroder, Cidade Negra, OMD e outros. Além disso, um "Música de Fato" sobre a situação da Bolívia e um "Cabeção" sobre o microtonal Harry Partch. Tudo no MDC de hoje, às 21h, na sempre importante Rádio Elétrica. Produção, apresentação e devida importância: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/