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segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tom Zé - "Estudando o Samba" (1976)



“[Tom Zé] pensou e realizou este disco, onde procurou reunir uma variedade de tipos e de formas rurais e urbanos do samba, dando a cada música a vestimenta que achou mais adequada.”
Elton Medeiros


Nos anos 90, o destino pôs diante de Tom Zé o 'talking head' David Byrne, que o trouxe do ostracismo para uma posição de artista cult e mundialmente reverenciado. Mas o início desta história hoje já conhecida nasceu de uma audição despretensiosa de um dos vários LP’s de MPB que Byrne comprara numa vinda ao Brasil. Dentre aqueles bolachões, um lhe fez a diferença. Foi este que o motivou a procurar saber quem era aquele artista e, em seguida, conhecê-lo e gravá-lo. Este álbum era “Estudando o Samba", de 1976, sem dúvida o melhor trabalho do baiano de Irará.

Metalinguístico, atonal, serialista, revisionista. Todos estes atributos “difíceis” estão certos quando creditados a “Estudando o Samba”. Mas tudo tem pouca importância quando o negócio é simplesmente ouvi-lo. Um deleite! Trata-se de um disco indiscutivelmente conceitual, o que já lhe garante certa aura de complexidade. É, talvez, o grande disco-conceito da música brasileira depois do “Coisas” do Moacir Santos, de 1965 (neste quesito, nem “Tropicália”, de 68, em que Tom Zé participa junto com toda a turma de Caetano, Gil, Gal, Nara e Mutantes, é tanto). Mas, acima de tudo, é delicioso escutar o álbum do início ao fim e curtir músicas como “Tô”, “Hein?” e “Vai”, onde Tom Zé desconstrói o gênero samba para, didaticamente, mostrá-lo de maneira híbrida em suas mais variadas vertentes.

Comecemos pelo fim. Afinal, sou daquela teoria de que todo grande disco tem uma obra-prima de desfecho, de abertura ou as duas coisas juntas. No caso de “Estudando...” a faixa final não é bem um espetáculo, mas, com certeza, original e incomum, por isso o destaque. Intitulada “Índice”, traz na letra de frases fragmentadas e de sentido vago um verdadeiro índice remissivo em que se repassam os títulos de todas as músicas anteriores. Aí o motivo tanto de a letra ser quase silábica, pois todos os títulos (exceto “A Felicidade” e a própria “índice”) são formados por palavras que não passam de quatro letras, quanto, também, do teor fortemente conceitual do disco, visto que a obra se autoreferencia a todo instante.

Se o final do disco é interessante, porém não musicalmente estonteante, o início é. “Mã”, samba modernista repleto de referências aparentemente díspares, é a tradução da obra de Tom Zé (não à toa o próprio artista a regravou com outras letras mais de uma vez depois). Num clima entre a ópera e o ritualístico, mistura batuque de terreiro, canto de trabalho das lavadeiras nordestinas, coro sacro-religioso, ruídos da São Paulo urbana, entrecruzamentos vocais ao modo das vanguardas europeias (Ligeti, Stockhausen) e riff de rock (tocado não na guitarra, mas cavaquinho de samba!). Tudo está ali: tradição e vanguarda, lundu e tropicália, popular e erudito, roça e asfalto; e de uma forma intensa, poderosa. Já tendo criado ótimas músicas até então (o samba concretista “Todos os Olhos”, o sertanejo-pop “Sabor de Burrice” ou o funk-rock “Jimi Renda-se”), “Mã” é, definitivamente, marco da maturidade musical de Tom Zé como músico.

Na sequência, a única do disco que não é de sua autoria: o clássico “A Felicidade”, de Tom e Vinícius. A escolha, claro, não foi à toa: tocada em ritmo de valsa-rancho, Tom Zé canta lindamente em tom baixo acompanhado só de violão, que sincopa o compasso. Ainda, esparsos acordes de baixo e frases de orquestra de metais ao estilo de George Martin ou Rogério Duprat. Através desta economia de elementos, Tom Zé põe a nu a belíssima estrutura melódica original da canção, homenageando não apenas a famosa dupla de autores, mas a bossa nova como um dos gêneros sambísticos. Ainda, para arrematar, depois de um dos últimos “soluços” da síncope, entra uma cozinha de pagode na diagonal do compasso, desconexão rítmica esta que não estraga a música. Pelo contrário: cai tão bem que faz deixar ainda mais clara a percepção de que os criadores da bossa nova muito se inspiraram no que vinha do morro.

Outra que merece todos os elogios é “Toc”, talvez o único samba serial da história! Próximo ao que o maestro francês Pierre Boulez inventou, o serialismo (método de composição que usa séries de notas, ordenando-as e variando suas durações, intensidades e ataques), “Toc” representa, em tese, uma sequência de sons infinitos e contínuos. Só não é assim porque, como um jogo de xadrez, o compositor “joga” com as notas e as séries sonoras, tirando-as, adicionando-as, repetindo-as, deslocando-as, num esquema matemático em que as variáveis são intermináveis. Sem nenhuma percussão, esta “brincadeira” instrumental ainda traz um dos “inventos” de Tom Zé: o agogô no esmeril, uma serra de verdade adaptada como instrumento musical, o que faz deste samba soar mais barulhento do que muito rock pesado.

“Tô” é outra pérola; das minhas preferidas. Parceria com o sambista Elton Medeiros e de letra filosófica, mas pegajosa (“Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer/ Tô iluminado pra poder cegar/ Tô ficando cego pra poder guiar”), é um sambão urbano a la Riachão. O disco ainda passa pelo samba brejeiro (“Ui!”), o samba minimalista (“Dói”), o samba-canção (“Só”), o samba-marchinha (“Vai”) e o samba “dor de cotovelo” (“Se”: “Ah, se maldade vendesse na farmácia/ Que bela fortuna você faria”). Tudo de forma revisitada, revisada, irônica e filtrada pelo olhar tropicalista de Tom Zé.

“Estudando o Samba” significa, na história da MPB, um passo adiante na linguagem do gênero não por inventar um novo conceito, mas por montar uma “enciclopédia do samba”, evidenciando, ao decompor a espinha-dorsal dos seus subestilos, as mil e uma possibilidades que ainda poderia vir a ser explorado. E deu certa a experiência em laboratório. Estão aí Towa Tei, Beastie Boys, Sean Lennon, Ed Motta e Fantastic Plastic Machine que não me deixam mentir. Todos adicionaram a seu paradigma de referências o samba, invariavelmente usando-o entre outros estilos. Afinal, foi Tom Zé mesmo quem disse: “estudando [o samba] pra saber ignorar”.

FAIXAS:
1. Mã
2. A Felicidade
3. Toc (Instrumental)
4. Tô
5. Vai
6. Ui!
7. Dói
8. Mãe
9. Hein?
10. Só
11. Se
12. Índice
**********************

Ouça “Estudando o Samba”:
Tom Zé Estudando o Samba
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Além de “Estudando o Samba”, vale ouvir outros três discos super representativos da longa obra de Tom Zé: “Todos os Olhos” (1973), a “mais completa tradução” da São Paulo moderna; “The Hips of Tradition” (1992), o marcante primeiro trabalho gerado após a redescoberta por David Byrne; e a linda trilha do balé “Parabelo” (1997), composta em parceria com José Miguel Wisnik para o Grupo Corpo.

Ouça “Todos os Olhos”:
Todos os Olhos

Ouça “The Hips of Tradition”:
The Hips of Tradition

Ouça “Parabelo”:
Parabelo

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por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Emílio Santiago - "Emílio Santiago" (1975)

 

As duas versões da capa do disco
lançado pela CID em 1975

“Emílio Santiago, como o Rio de Janeiro, começou pronto. Pronto e total. O que é muito importante. Você não conta nos dedos cantores totais nascidos nesse hemisfério. Total, vocês já estão sabendo, é o que na gíria esportiva a gente diz ‘bate com todas’. Emílio Santiago canta qualquer gênero com um mesmo e espantoso desembaraço. Em Emílio Santiago cabem pontes equilibradas no espaço, como lhe fica muito bem as palmeiras imperiais do Jardim Botânico. Tudo se coloca em torno de Santiago, ele absorve e vira ele.”
Ronaldo Bôscoli, no texto original da contracapa

Em meados dos anos 70, todo mundo sabia que a chegada de Emílio Santiago ao cenário musical significava o ápice da arte do canto na música brasileira. Menos o próprio Emílio Santiago. Havia décadas que os tronos restavam devidamente ocupados: Roberto Carlos reinando para as massas; Orlando Silva, uma lenda vida; Cauby Peixoto emocionando plateias; Nelson Gonçalves mantendo a tradição da Rádio Nacional; Agnaldo Timóteo caprichando no “dó de peito”. Até que surgiu um cantor que não só reunia todas as qualidades de seus colegas quanto, ainda, era capaz de superá-los. Dono de uma voz de barítono que conectava num tempo potência, leveza e perfeição técnica, além de um timbre aveludado inconfundível, Emílio há muito impressionava. Embora sua fama já corresse havia um tempo, aquilo que todos desconfiavam aconteceu de fato somente em 1975, quando lança, pela Companhia Industrial de Discos (CID), seu álbum de estreia e se confirma como o mais completo talento masculino da arte de interpretar canções no Brasil.

Precisou, no entanto, que muita água passeasse debaixo da ponte para que o próprio Emílio se convencesse disso. Desde os anos 60, quando ainda estudante de Direito na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, sua cidade-natal, ele ansiava pela emancipação que seus antepassados não tiveram. Sabia que pertencia à primeira leva de negros brasileiros de uma recente classe média que chegava à universidade após séculos de escravidão e poucas décadas de liberdade. Não queria perder, portanto, a oportunidade de se tornar alguém reconhecido e, por isso, pensava em formar-se advogado ou até, quem sabe, diplomata. Porém, nem desconfiava que seria por outro caminho que este reconhecimento viria. Na faculdade, quando não estava em sala de aula estudando as leis, Emílio cantava nos bares em roda de amigos. Mas como o seu talento era evidente para os outros, mas não para o próprio Emílio, que relutava em se tornar um cantor profissional, por obra divina, quando as inscrições do festival de música da faculdade foram abertas, os amigos o inscreveram sem que ele soubesse. Resultado? Emílio participou e venceu o concurso, chamando a atenção dos jurados, entre eles, Beth Carvalho. 

A partir daí, a música já falava mais alto na vida de Emílio. Sua presença em festivais estudantis passou a ser frequente, ganhando todos os concursos dos quais participava. Formou-se em Direito, mas abandonou a toga para dedicar-se àquilo que agora ficava-lhe claro que havia ganho de sobra dos céus: a voz. Participou do programa de auditório de Flávio Cavalcanti, trabalhou como crooner da orquestra de Ed Lincoln e substituiu Tony Tornado quando este saiu para disputar o V Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Já famoso no meio musical foi, então, que Emílio gravou, enfim, seu primeiro e aguardado disco. O prestígio era tamanho que ninguém quis ficar de fora daquele projeto, o qual reuniu músicos do mais alto gabarito como João Donato, Azymuth, Ivan Lins, Tita e Dori Caymmi, que fizeram questão de montar a cama para que sua voz de ouro brilhasse soberana.

O repertório, inteligentemente bem montado, trazia canções de compositores consagrados e de várias épocas e vertentes, mas não óbvias escolhas. Começava ali a se configurar um estilo de repertório que marcaria sua carreira. De Gilberto Gil, nada de consagradas como “Aquele Abraço” ou “Procissão”, e, sim, “Bananeira”, coautoria com Donato que, inclusive, conta com este ao piano elétrico e na assinatura do arranjo, de ares jazzísticos e certamente um dos mais brilhantes de toda a música brasileira. Emílio, depois de muito relutar, agora tinha plena noção de que seu debut devia ser à altura do tamanho que já alcançara. Por isso, “Bananeira” é mais do que somente a faixa de abertura do álbum, e, sim, um “cartão de visitas”. Samba-funk com cores da soul como é típico dos sopros em tons médios de Donato, tem, no entanto, na voz elástica de Emílio uma prova de que estava ali o cantor mais versátil que a MPB via até então. E que “cozinha”: Ariovaldo e Orlandivo na percussão; Vitor Assis Brasil, Zé Bodega e Aurino Ferreira no sax; Carlos Roberto Rocha e Durval Ferreira na guitarra; Edson Maciel, no trombone; e Marcio Montarroyos no trompete!

Muita classe para interpretar o samba-dark de Nelson Cavaquinho “Quero alegria”, dando ao partido-alto um tom de bossa-jazz, o qual conta novamente com Donato no arranjo e electric piano, mais o arranjo de cordas de Dori. Ainda, o baixo magistral do “Clube da Esquina” Novelli e a bateria igualmente classuda de Wilson das Neves marcando o ritmo. A melodiosa “Porque Somos Iguais”, com a participação de outros craques – a guitarra de Helio Delmiro, a bateria de Ivan Conti "Mamão" e a flauta de Danilo Caymmi, além do arranjo do irmão Dori – é mais uma prova da capacidade interpretativa de Emílio, bem como ”Batendo a porta”, outro samba que vem na sequência. De autoria da certeira dupla Paulo César Pinheiro e João Nogueira, aqui, é à malandragem que o ex-office boy morador do subúrbio recorre para cantar com a malemolência que o carioca tem. O célebre refrão (“Pode tentar, pode me olhar, pode odiar/ E pode até sair batendo a porta/ Que a Inês já é morta do lado de cá”), conhecido na voz potente de Nogueira, ganha na versão de Emílio uma elegância insuperável. Novamente, que arranjo de Donato! E ainda conta com os serviços de Copinha, lenda da flauta.

O primeiro lado do LP ainda traz Emílio cantando uma das duas de Ivan Lins no disco, “Depois”, com arranjo e piano do próprio e o acompanhamento do grupo Modo Livre. Fortemente combativo à Ditadura Militar em suas canções à época, Ivan não amolecia nesta. O que os milicos achavam tratar-se de uma lamúria romântica, era, na verdade, um recado de resistência: “Não vou no teu segredo eu já sei/ Vou aumentar teu medo eu bem sei/ Não me arrependo e fico na lei/ A culpa só se pune uma vez”.

Depois de virar o vinil num samba-canção “barra pesada”, mais uma surpresa, que demonstrava toda a versatilidade e inteligência de repertório de Emílio. Assim como iniciou o disco, com uma autoria de Gil e Donato menos óbvia, na segunda metade ele faz o mesmo, porém com outro consagrado compositor da música brasileira: Jorge Ben. “Taj Majal”? “Fio Maravilha”? “Chove Chuva”? Como diria o próprio Ben, “mas que nada”! Emílio simplesmente regrava a improvável “Brother”, do cultuado disco “A Tábua de Esmeraldas”, gravado por Ben um ano antes mas que, até então, ninguém havia sondado em explorá-la. E o faz resgatando a tarimba de crooner ao desenvolver num belo inglês a letra original deste gospel transformado em samba-rock. As ajudas, também, são à altura: a lendária Azymuth na base, Assis Brasil no sax alto; Delmiro na guitarra; Zé Bodega no sax barítono; percussão de Orlandivo e Ariovaldo mais Chacal; e um coro que conta, entre as vozes, com as de Lucinha Lins e as irmãs Jurema e Nair. Pouco mais de 2 min de puro suingue e maestria.

A rumba “La Mulata”, dos irmãos Valle, quebra mais uma vez a linearidade e transporta o ouvinte para um novo universo. E quando se fala em ritmo latino, claro que Donato estaria presente. É ele quem, novamente, assina o arranjo e ataca nos teclados, enquanto os sopros conversam entre si e a sessão rítmica, composta pelo trio da percussão Wilson, Ariovaldo e Orlandivo, garante o sacolejar dos quadris. Noutro samba de morro, a clássica “Nega Dina”, de Zé Keti, repete-se o primor de Emílio para este tipo de tema. Aqui, no entanto, Donato com ginga nos teclados (mais a graciosa flauta de Copinha) garante um arranjo orgânico, com breques insuspeitos e compasso propício para Emílio desfilar seu barítono invejável.

Ivan Lins, que havia concluído o lado A, volta agora a ser interpretado noutro samba ainda mais mordaz: “Doa a quem doer”. “Eu não sei ganhar/ Que eu só sei perder/ Que eu não sei matar Eu só sei morrer (...)/ Nessa escuridão/ Quero me acender/ Quero me atiçar/ Doa a quem doer”. Precisa dizer mais? Arranjo magistral de Gilson Peranzzetta, que trabalhava à época com Ivan em seus discos, e a Modo Livre de Joãozinho, Luiz Carlos, Wagner Santos e cia. se despede do disco, que já vai chegando ao final. E que final! O que começa como uma balada somente ao violão, “Sessão das Dez”, vai aos poucos evoluindo para um blues pra lá de sensual. O vozeirão de Emílio, quase sussurrado na primeira parte, faz arrepiar. Arrepia também o sax intenso do genial Assis Brasil, o violão da autora Tita e o electric piano de Laércio de Freitas, que assume somente para esta faixa o arranjo, inclusive das cordas, comandadas pelo germânico-brasileiro Peter Dauelsberg. Cazuza certamente se inspiraria muito neste tema anos mais tarde.

A admiração da crítica e do meio artístico Emílio já tinha antes de lançar sua marcante estreia fonográfica. Outros belos discos vieram na sequência, porém, o sucesso comercial demorou. Voz e qualidade musical tinha de sobra; precisava era acertar o conceito. Foi, então, somente na segunda metade dos anos 80, que Emílio obteve o verdadeiro reconhecimento das massas com a série “Aquarela Brasileira”, lançada pela Som Livre e produzida por Roberto Menescau. Os pout-pourri de sambas-enredo e o repertório pop com músicas como “Você é Linda”, “Bem que se Quis” e os megahits “Saigon” e “Verdade Chinesa” caíram nas graças do público e Emílio vendeu como jamais havia conseguido. No entanto, os admiradores de antes torceram o nariz para a “plastificação” da sua sonoridade, bastante pobre na comparação com trabalhos antigos. 

Independentemente dessa discussão, Emílio forçou que se providenciasse um novo trono no panteão dos grandes cantores da MPB. Gay, preferiu em toda a carreira a discrição como fizeram Johnny Alf e Assis Valente, artistas negros como ele igualmente sabedores do preconceito que sofreriam. Ainda ganharia um Grammy Latino como melhor álbum de Samba-Pagode por “Só Danço Samba Ao Vivo”, de 2011, até sofrer um AVC dois anos mais tarde, que tirou sua vida prematuramente aos 66 anos. Como se vê, não fosse o abreviamento do destino, Emílio Santiago estaria produzindo e logrando reconhecimentos como fez desde que entendeu que o mundo inteiro cabia em sua voz.

**********
FAIXAS:
1. Bananeira (Gilberto Gil, João Donato)
2. Quero Alegria (Guilherme de Brito, Nelson Cavaquinho)
3. Porque Somos Iguais (Pedro Camargo, Durval Ferreira)
4. Batendo a Porta (Paulo César Pinheiro, João Nogueira)
5. Depois (Otávio Daher, Ivan Lins)
6. Brother (Jorge Ben)
7. La Mulata (Paulo Sergio Valle, Marcos Valle)
8. Nega Dina (Zé Keti)
9. Doa a Quem Doer (Ivan Lins)
10. Sessão Das Dez (Édson Lobo, Tita, Renato Rocha)

Daniel Rodrigues

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

“Imprensa Cantada Segunda Edição: Tribunal do Feicebuqui” – Tom Zé (2013) e “Abraçaço” – Caetano Veloso (2012)



Se para todos os tropicalistas a bossa nova foi o motivo propulsor para que seguissem pelo viés da música, o tropicalismo exerceu este poder de forma ainda mais penetrante no universo pop. Jorge Mautner, o pré-tropicalista igualmente influenciado pelos acordes dissonantes de João Gilberto  pelas harmonias engenhosas de Tom Jobim e pela poesia lírica de Vinícius de Morais, um dia afirmou: “não há possibilidade de escapar do tropicalismo”. Esta frase exaltadora, ainda mais vinda de alguém tão ligado ao movimento, poderia soar exagerada. Mas não é. A Tropicália sempre se mostrou uma corrente musical que, inteligentemente, soube se construir aberta, conectada com a pós-modernidade e sem preconceitos, abarcando todas possíveis e imagináveis referências da arte (música, cinema, artes plásticas, literatura, poesia, teatro) e do contexto sociopolítico, fazendo com isso a mais bem elaborada “geleia geral”, o mais bem acabado “lixo lógico” jamais assemelhado no mundo. Um produto tão abrangente e conceitualmente elaborado que, desde o histórico “Tropicália”, de 1968, que une ópera e Luiz Gonzaga, samba-de-roda e poesia concreta, Beatles  banda marcial, tudo-junto-e-misturado, nunca mais a música brasileira deixou de andar conforme seus passos. No exterior, a ação vanguardista do tropicalismo para com o que é produzido por estrangeiros deu-se de forma diferente mas não menos elogiosa: quando não bebem diretamente na música brasileira (Brian EnoTalking HeadsBeck, Suzane Vega, Björk, Jamiroquai, Beastie Boys, a repetem e/ou a referenciam mesmo sem saber que o estão fazendo.


Ao longo dos anos seus três principais compositores, os baianos Gilberto GilCaetano Veloso e Tom Zé,vêm provando isso através de suas obras, sempre um passo à frente do resto de todas as tendências, sejam cults ou populares. Os dois últimos mostram isso novamente em seus mais recentes trabalhos: o CD “Abraçaço” (2012) e o EP “Tribunal do Feicebuqui” (2013), respectivamente. A começar pela semelhança conceitual das capas (adoração ou achincalhamento?), cada um a seu jeito e com pontos em comum, ambos os trabalhos trazem a inovação estilística e a liberdade criativa que não se nota em nenhum outro lugar do planeta com a mesma integridade de proposição. 

Começando pelo de Tom Zé: surgido por um incidente em que o artista, ao autorizar que uma música sua fosse usada para um comercial da Coca-Cola, sofreu, por conta disso, críticas severas pelo Facebook de ditos “fãs“ acusando-o de “vendido ao sistema”, “Tribunal do Feicebuqui”, além do evidente sarcasmo do título, já nasce impregnado com essa tensão. Tensão, porém, que parece ter feito bem a Tom Zé como autor, pois o motivou a se reencontrar com a agudez de sua obra popular, e não uma obra popular marcada pela agudez. Estudado em música erudita pela linha da vanguarda, Tom Zé é, antes de tudo, um filho dos sons populares, das cantigas de cortejo, do samba urbano de Adoniran Barbosa, do canto das lavadeiras, dos trovadores nordestinos e, principalmente, da bossa nova. Porém, como todo músico ligado a avant-garde, vinha, nos últimos tempos, progressivamente, evoluindo para uma música excessivamente hermética em que o percentual de erudito se sobrepunha ao de popular – basta ouvir os dificílimos e chatos “Estudando o Pagode” (2005) e “Danc-Êh-Sá” (2006), excessivamente rebuscados e distantes do ouvinte. Processo igual ao que invariavelmente acontece com músicos desta linhagem, basta ver a obra de Pierre Boulez (do dodecafonismo ao serialismo ao estrtuturalismo figurativo) ou Stockhausen (do atonalismo à eletroacústica à música de influência “esotérica”).

O trabalho atual de Tom Zé, entretanto, parece, por causa da provocação gerada, tê-lo movido a buscar uma resposta inteligível (ou seja, popular) para que sua mensagem fosse compreendida e, bingo: de volta o Tom Zé inovador e ferino da MPB. E, claro, valendo-se da carga erudita e de seu vasto intelecto, que sempre foram muito bem vindos quando não usados para que só meia dúzia de intelectuais entendessem. É o caso de “Zé a Zero”, parceria com Tim Bernardes (“Mas será revolução?/ Pocalipse se pá?/ Quando ligo na TV/ Caio duro no sofá/ Ô rapá, qualé que é?/ A copa aqui co qui calé?/ É coco colá/ Aqui copa coca acolá/ Fazendo propaganda do Tom Zé”), e a brilhante faixa-título, em que se vale das contribuições do rapper Emicida mais Marcelo Segreto, Gustavo Galo e Tatá Aeroplano para compor um arranjo bastante moderno que alia hip-hop, rock, samba, atonalismo e xote com recortes e ferramentas eletrônicas. Nela, a resposta aos críticos vem em forma de puro sarcasmo: “Não ouço mais, eu não gostei do papo/ Pra mim é o príncipe que virou sapo/ Onde já se viu? Refrigerante!/ E agora é a Madalena arrependida com conservantes”. E, então, completa: “Bruxo, descobrimos seu truque/ Defenda-se já/ No tribunal do Feicebuqui/ A súplica:/ Que é que custava morrer de fome só pra fazer música?”

A briga com os internautas parece ter trazido de volta a Tom Zé, inclusive, a coerência com sua própria obra e não apenas uma reapropriação da mesma como um mero arremedo disfarçado de metalinguagem, caso dos últimos CD’s. Isso porque “Tribunal...” é a continuação de outro EP lançado pelo artista em 1999, o “Imprensa Cantada”. Na ocasião, Tom Zé sentiu-se na obrigação cívica de fazer um registro musical para outro incidente: o da inconcebível vaia proferida ao mestre João Gilberto durante um show em São Paulo em que este, indignado, discutiu com a plateia e encerrou a apresentação. A canção era "Vaia de Bêbado Não Vale", e nela está um dos pontos de ligação de todos os tropicalistas e que, inclusive, tem eco no novo CD de Caetano: a devoção à bossa nova: “no dia que a bossa nova inventou o Brasil/ No dia que a bossa nova pariu o Brasil/ Teve que fazer direito/ Teve que fazer Brasil...”. “Tribunal...” é coerente com este primeiro volume por colocar novamente em questão um assunto do momento em forma de crônica, ligeira e fugaz como a elaboração dada pela própria imprensa. Porém, desta vez, numa plataforma mais moderna da mídia, a internet, mais precisamente, o Facebook, este tribunal e palanque aberto e incontrolável, lembrando, até mesmo, uma outra antiga obra sua: a psicopatológica “Todos os Olhos”, de 1973.

Mas a melhor faixa do novo trabalho de Tom Zé é, justamente, a que melhor responde às descabidas críticas dos detratores, pois a pergunta a que a canção rebate indiretamente é: como Tom Zé teria se tornado “vendido” a uma multinacional se ele mesmo já a tinha, como bom tropicalista (ou seja, coerente com sua ideologia), se apropriado dela? Para além dos engajamentos xiitas, em 1979 (para esclarecimento daqueles que não têm memória ou não se preocupam em tê-la), quando trabalhava para a agência DPZ, de Washington Olivetto, como publicitário, Tom Zé criara para a marca de guaraná Taí, da “bendita” Coca-Cola, um jingle em que, muito “tropicalistamente”, reelabora o clássico cantado por Carmen Miranda (ela, a própria pré-história da Tropicália) para vender o produto. Se falta memória e conhecimento aos críticos, pelo menos pesquisem um pouco antes de achincalhar! Será que esses que criticam sempre acharam que a estocada de “Parque Industrial” era apenas para a direita? A ver por este caso, ingenuamente, talvez sim. A atual versão de "Taí" , além de resgatada com muita pertinência – dando uma resposta melhor do que a própria carta de justificativa publicada por Tom Zé no Facebook explicando que o cachê seria doado à banda de sua cidade-natal, Irará, num ato um tanto descabido de autoculpabilidade, uma vez que não há culpa a se admitir –, traz cores novas ao arranjo que ele mesmo, metalinguisticamente, elaborou em 1992 em “The Hips of Tradition”, mantendo a base da melodia original e os ares de cantiga-de-roda que lhe atribiuíra naquela ocasião, porém, agora, aglutinando outros elementos pop, como rap e rock. Um destes elementos é outro ponto de convergência com “Abraçaço”, de Caetano: a apropriação do funk carioca. Sob uma base vocal que repete o tradicional: “tchum tshack tchum tchum tchum tchum tshack” do ritmo popularesco, Tom Zé reinventa a própria música de forma crítica e tropicalista na melhor acepção do gênero. 

O mesmo funk carioca serve de tema para "Funk Melódico"  de Caetano em seu “Abraçaço”. A música, de abertura quase idêntica a “Taí”, se desenvolve não para uma reelaboração modernista de uma marchinha, como na de Tom Zé, mas, sim, para uma textura eletrificada e até pesada. O expediente, que já havia sido utilizado por Caetano em outra obra recente, a faixa “Miami Maculelê”, a qual escrevera para Gal Costa em seu CD "Recanto" (2011), novamente estreita fronteiras com os ritmos africanos, mas agora de uma forma mais áspera. Se antes eram as danças afro-brasileiras que se aproximavam do repique e da cadência do funk carioca, agora é outro estilo provindo dos negros que ele estabelece paralelo: o rock ‘n’ roll. Sob um riff de guitarra arábico, efeitos de sintetizador e bateria pulsante, “Funk Melódico” é das melhores do disco, terceiro do músico com o grupo Cê, formado por Marcelo Callado, na bateria, Pedro Sá, guitarra, e Ricardo Dias Gomes, baixo. Se não o melhor da trilogia (gosto muito do homônimo à banda, de 2006, e menos do apenas regular “Zii et Ziê”, 2009), é, certamente, o mais coeso para a roupagem roqueira que esta formação imprimiu a suas composições. A guitarra de Sá dá um show, pesada e, num solo técnico e bem sacado, faz as vezes de cuíca. Esta referência não é à toa, pois Caetano constitui na letra uma interessante analogia com o samba de Noel Rosa, “Mulher Indigesta” (“Mulher indigesta você só merece mesmo o céu/ Como está no samba de Noel”), aproximando de uma forma bem original os dois ritmos pop vindos do morro do Rio: o de outrora, o batuque, e o de hoje, o funk.

O CD traz ainda outras joias, como “Um Abraçaço”, reggae-rock de linda letra, ao modo lírico-modernista de Caetano, e onde Sá, exuberante mais uma vez, nos presenteia com um solo rasgado e ruidoso ao estilo de Neil Young ou Kurt Cobain. Outra de destaque é “O Império da Lei”, samba com toque nordestino, que lembra em sua letra a atmosfera dos contos sertanejos de Guimarães Rosa e as canções-estórias de João do Valle, e que também impressiona pela sonoridade forte dos instrumentos de rock executando uma música que, normalmente, seria arranjada para um grupo de pagode, principalmente na combinação do metal da guitarra com o som cheio do tambor da bateria. Ainda, o alegre samba-reggae “Parabéns”, de refrão delicioso e pegajoso (“Tudo mega bom, giga bom, tera bom...”) e a biográfica “Um Comunista”, que relata de forma sensível e épica, num andamento lento e marcial, a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella. Nela, novamente Caetano e Tom Zé se reaproximam. Caetano, ao dizer, com o verbo no passado, que os “os comunistas guardavam um sonho”, conversa com “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”, canção em que este último usa sarcasticamente a figura icônica do Papa, novo dentro do circo capitalista da sociedade moderna, para clamar por aquele que pode ser a única salvação em um mundo em que “a diferença entre esquerda e direita/ Já foi muito clara, hoje não é mais”. Numa marchinha que se transforma em rock ao final, Tom Zé ainda punge inteligentemente: “Papa Francisco vem perdoar/ O tipo de pecado que acabaram de inventar/ O povo, querida, com pedras na mão/ voltadas contra o imperialismo pagão”. Ou seja, tanto Caetano quanto Tom Zé expressam em figuras de estilo diferentes (um, pela metáfora; o outro, pela ironia) a mesma percepção desacreditada da atuação ideológica das esquerdas. (Não é difícil remontar a figura de Caetano contra a plateia no festival de 1968 ao lado dos Mutantes bradando: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”...)

Mas é quando o assunto volta a ser bossa nova que as parecenças conceituais entre os dois se tornam ainda mais visíveis. “A Bossa Nova é Foda”, disparado melhor música do álbum e talvez a melhor do ano no Brasil, é não um samba cadenciado, como fielmente Tom Zé o fez em “Vaia...”, mas, sim, um rock com riff minimalista e criativo em que o efeito do pedal wah-wah ressoa dois acordes em alturas diferentes, dando a sensação de movimento. Só mesmo um rock ‘n’ roll para dizer um elogio desta forma! A letra, além do costumeiro desbunde poético e filosófico típicos do Caetano inspirado de uma "O Estrangeiro", “Vaca Profana” ou “Uns”, traz a mesma ideia de Tom Zé de valorização da bossa nova e da pungência de sua assimilação no Brasil e no mundo, em que, como afirma, “lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação”, referindo-se à capacidade de unir diferentes referências musicais e socioantropológicas em um estilo tão sucinto e denso como o fez com maestria de alquimista “o bruxo de Juazeiro”, ou seja, João Gilberto. A semelhança com os versos da primeira “Imprensa Cantada” é direta: “E a Europa, assombrada:/ ‘Que povinho audacioso’/ ‘Que povo civilizado’”

Em “A Bossa Nova é Foda” Caetano ainda expõe outra ideia interessante em que é possível notar-se concordância com Tom Zé, que é o exemplo popular que a bossa nova legou. Quando diz que a velha bossa nova foi capaz de transformar o “mito das raças tristes” em “produtos” pop como os lutadores de MMA, os deuses olimpianos da era contemporânea, está apontando o mesmo que Tom Zé diz em “Vaia...”, de que, então apenas exportador de matéria-prima, “o grau mais baixo da capacidade humana”, “criando a bossa nova em 58/ O Brasil foi protagonista/ De coisa que jamais aconteceu/ Pra toda a humanidade/ Seja na moderna história/ Seja na história da antiguidade.” Tom Zé ratificava a importância social, histórica e antropológica da bossa nova para um país que passava, naquele ano, a exportar, como diz depois a letra, “o grau mais alto da capacidade humana”: a arte. O mesmo entendimento de Caetano.

Tanto “Tribunal...” quanto “Abraçaço” são dois grandes discos que valem a pena ao menos serem ouvidos com atenção e repetição, pois contêm muitas mensagens e percepções de dois artistas que nunca perderam a verve crítica e pensadora das coisas que os rodeiam. Concorde-se com eles ou não, goste-se deles ou não, o fato é que eles são, sim, muito coerentes com suas próprias obras e posturas, e isso é o que, visivelmente, mais indigna os críticos, pois não é por aí que eles podem ser criticados. Eu abertamente os admiro e não brigo com isso. Apenas discordo de Caetano em uma coisa: não é só a bossa nova: também ‘a Tropicália é foda’!


clipe oficial de “A BOSSA NOVA É FODA” - Caetano Veloso:




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FAIXAS “Tribunal do Feicebuqui":

1. Tribunal Do Feicebuqui (Marcelo Segreto/Gustavo Galo/Tatá Aeroplano/Emicida)
2. Zé A Zero(Tom Zé/Marcelo Segreto/Tim Bernardes)
3. Taí (Joubert De Carvalho/Tom Zé/Marcelo Segreto)
4. Papa Francisco Perdoa Tom Zé (Tim Bernardes/Tom Zé)
5. Irará Iralá (Tom Zé)

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FAIXAS “Abraçaco”:

1. A Bossa Nova é Foda
2. Um Abraçaço
3. Estou Triste
4. Império da Lei
5. Quero ser Justo
6. Um Comunista
7. Funk Melódico
8. Vinco
9. Quando o Galo Cantou
10. Parabéns
11. Gayana

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segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Mesma melodia, letras diferentes


O fato de apresentar o programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, é meio que mera desculpa minha para ir à cata de listas. Sempre gostei de criá-las a partir das coisas que curto, das criteriosas às mais estapafúrdias. Uma dessas que me veio à mente para usar no programa se refere a músicas que têm a mesma melodia, mas letras diferentes. A parte musical e o arranjo podem ser idênticos, mas o que é cantado, não. Às vezes, até melodias de voz e cantores diferentes. Dois lados da mesma moeda ou - por que não? - do mesmo disco.

Numa rápida pesquisa de memória, o interessante foi perceber que essa prática é comum nos mais diferentes gêneros, culturas e locais. Seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Inglaterra ou até na Jamaica, não há quem resista em usar aquela base que ficou superlegal de um outro jeito, numa outra roupagem. 

Pra compor esta lista de 15 + 1 exemplos, ainda contei com a ajuda de meu irmão e parceiro de blog Cly Reis, que contribuiu com algumas das duplas de músicas as quais não tinham me ocorrido.

Tom Zé e Tim: ambos com duas duplas
de músicas na lista
Importante ressaltar que não valem músicas até então instrumentais que ganharam letra depois de um tempo, casos de “Valsa Sentimental” (de Tom Jobim, que, quando letrada por Chico Buarque, virou ”Imagina”) e “A Rã” (originalmente, “O Sapo”, de João Donato, que passou a ter esse novo título na letra de Caetano Veloso). Neste caso, aceitou-se como exceção quando uma delas é instrumental e a outra cantada, mas desde que pertençam a um mesmo artista e que este as tenha composto para um mesmo projeto.

Igualmente, não se incluem canções “reprise” ou de letra mesmo que diferentes entre si, mas que se tratam de duas partes da mesma, nem mesmo versões para idioma diferente do original feita por outro artista. Músicas “irmãs”, tipo “Blue Monday” e “586”, da New Order, ou “Crush with Eyeliner” e “I Took Your Name”, da REM, não cabem, nem muito menos aquelas que samplearam a “alma” do tema que a inspirou, como o rap norte-americano costuma fazer. Essas todas ficam de fora – quem sabe, guardam-se para uma futura outra lista...

Do blues ao samba, do industrial a soul, do shoegaze ao psicodelismo. Têm dobradinhas bem interessantes e variadas.


1. "João Coragem"/ "Padre Cícero" - Tim Maia
Em 1970, Tim estava gravando seu disco de estreia quando Nelson Motta aparece no estúdio e fica maravilhado com "Padre Cícero". Tanto que pediu para Tim e Cassiano alterarem a letra para a música entrar na trilha da primeira novela da Rede Globo, "João Coragem".

2. "Sister Midnight"/ "Red Money" - David Bowie
A fase berlinense rendeu coisas maravilhosas e simbióticas para Bowie. "Sister Midnight", composta por ele e Iggy Pop para abrir "The Idiot", de Iggy, de 1977, serviu para o próprio Bowie finalizar sua própria trilogia na capital alemã dois anos depois com outro título e letra.

O mestre da "preguiça" baiana sabia muito bem fazer sambas geniais com pouquíssimos versos, quando não quase repetidos. Aqui, o que Caymmi repete é a parte instrumental idêntica a ambas, mas com melodias de voz e letras totalmente diferentes entre si.

"Strange Brew", que abre o cláscico disco "Disreali Gears", de 1967, é tão boa que dá vontade de reescutá-la. Não precisa, pois Clapton/Bruce/Baker a põem no fim do disco, só que com outro nome e letra. 


5. "Mã""Nave Maria" – Tom Zé
Uma mais percussiva, a outra mais world music, mas ambas de abertura de seus discos "Estudando o Samba", 1976, e "Nave Maria", 1984) e sobre o genial riff do baiano de Irará.

6. "Teenage Lust"/ "Heat" - Jesus & Mary Chain
"Teenage Lust" é um clássico da banda que coroa uma fase inspirada, marcada pelo disco "Honey's Dead", de 1992. "Heat", por sua vez, está na coletânea de B-sides "Stoned and Detoned", de um ano depois.

Vindo de Moz, artista que produz muito, não seria estranho haver esse tipo de repetição. No caso, "Alma Matters", hit do disco "Maladjusted", de 1997, tem como sombra "Nobody..,", da coletânea "My Early Burglary Years", de 1998.

8. "Waiting""Do You do It?" – Madonna
No talvez melhor disco de Madonna, "Erotica" (1992), a ousadia de pôr um mesmo tema duas vezes, sendo a segunda cantada não por ela, mas pelos rappers Mark Goodman e Dave Murphy.

9. "Pocket Calculator"/ "Dentaku" – Kraftwerk
Totalmente iguais, não fosse uma ser cantada em inglês e a outra em japonês. Aí os alemães conseguiram fazer, pro disco "Computer World", de 1981, duas obras totalmente diferentes sendo a mesma coisa.

Quase iguais, não fosse o título e algumas partes da letra. Mesmo estando no mesmo disco, o clássico "Pet Sounds", de 1966, é tão bonita que não há nenhum problema em "reouvi-la" com pouca diferença entre uma e outra.

11. "Os Escravos de Jó"/ "Caxangá" – Milton Nascimento
A censura, que comeu praticamente todas as letras de "Milagre dos Peixes", de 1973, inclusive "Os Escravos de Jó", parceria de Milton com Fernando Brant, já havia abrandado um pouco anos depois quando Elis Regina gravou "Caxangá" e depois o próprio Milton.

12. "Graveyard""Another" – P.I.L.
A instrumental "Graveyard", de "Metal Box" (1979), é, literalmente, a "Outra" em "Commercial Zone", disco de sobras de estúdio da mesma época. Coisas da cabeça conceitual de John Lydon e sua Public Image Ltd..

13.  "Jimi Renda-se"/ "Dor e Dor" – Tom Zé
A mente inquieta de Tom Zé faz com que, mais de uma vez, ele revisite a própria obra. Assim como "Mã"/"Nave Maria", a metaliguagem pega nestas duas também, de 1970 e 1972 respectivamente.

14. "Slave to the Rythmn""The Fashion Show" – Grace Jones
O disco de Grace "Slave to the Rhythm", de 1985, em si, é todo cunhado sobre a mesma base, mas estas duas não não são iguais pela letra.


15. "With no One elseAround"/ "Pra Você Voltar" – Tim Maia
Tim não tinha vergonha de reaproveitar melodias suas mais de uma vez, mas aqui ele fez melhor: uma em inglês, para o arrasador álbum de 1978, e outra na língua de Camões, um ano depois ("Reencontro"), em que até o sentido das letras são totalmente diferentes.


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+1. "À Flor da Pele""À Flor da Terra" – Chico Buarque
O título é igual, "O que Será?", eu sei, mas o fato de o subtítulo ser diferente faz, com perdão da redundância, toda a diferença. Escritas por Chico para a trilha sonora de "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1976, uma inicia o filme e outra o encerra - e as letras são totalmente distintas.


cena final do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos" - tema: "À Flor da Pele"


Daniel Rodrigues