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sábado, 6 de junho de 2020

Leviaethan - Clube Geraldo Santana - Porto Alegre (1992)




O Leviaethan em ação no palco já em 2014.
(fonte: Facebook oficial da banda- créditos : Aline Jechow))
O primeiro show que eu fui foi de uma banda de trash metal gaúcha chamada Leviaethan. Era um grupo até bem conceituado fora das fronteiras da província  de São Pedro do Rio Grande do Sul, já  tendo feito abertura para bandas como Angra e Sepultura e gozava de um certo renome na cena alternativa especialmente por ter "emplacado um grande "hit",  uma versão metal da cantiga de jogo infantil "Pimponetta". Cara, aquilo era o inferno em tom de brincadeira!
Meu primo Lucio Agacê, colaborador aqui do blog, que já era interado nessas coisas de som pesado e frequentador do mundo underground de Porto Alegre e arredores, covenceu aquele frangote inocente, eu, a ir num show de metal. Eu era meio desconfiado , meio medroso, mas não era muito longe de casa, não era muito caro e, de mais a mais, que mal poderia fazer? Fui então! O show seria no Clube Geraldo Santana, um ginásio de boas dimensões e capacidade na rua Luís de Camões, uma ladeira de inclinação considerável, num bairro próximo ao meu.
Que mal aquilo poderia fazer? Podia mudar irreversivelmente uma criança.
Pelo que lembro, a Leviaethan até que não era tão má, até me surpreendeu positivamente, mas mais importante que a qualidade da atração daquela noite no Geraldo Santana, foi que aquilo tudo teve uma vibração tal que me fez ficar louco por aquele tipo de ambiente e por aquela energia.
Naquela noite fui iniciado no logo, no mosh e fiquei até  com torcicolo no dia seguinte depois de tanto bater cabeça na minha estreia  headbanger.
Não lembro de quase nenhuma do show e do Leviaethan mas recordo do vocalista, um gordão barbudo, anunciando com voz sinistra e silabicamente pausada a música mais esperada da noite: "Pim-po-ne-ttaaaaaaa!!!!", anunciou ele com a boca colada no microfone.
A parte dali... fudeu!
Aquele guri nunca mais seria o mesmo.


Leviaethan - "Pimponetta"




Cly Reis 

domingo, 13 de janeiro de 2019

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2018




Abre o olho, Babulina, porque Caê tá chegando
e o Síndico tá chamando pra briga.
O ano de 2018 foi especial por ter sido o que marcou os 10 anos do ClyBlog e para comemorar isso tivemos uma série de convidados escrevendo sobre seus discos favoritos nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Já abrimos o ano com o especial de número 400 da seção, com o convidado Michel Pozzebon, e ao longo do ano tivemos as mais ricas e valorosas participações de convidados que deram suas brilhantes contribuições para o nosso blog, como foi o caso de Ticiano Paludo, Samir Alhazred, Arthur de Faria, Helson Trindade, Rodrigo Lemos e Lucio Brancato. A todos eles, nossos sinceros agradecimentos.
Além disso, foi ano de Copa do Mundo e, como temos feito, unimos música e futebol em publicações espaciais onde o artista ou sua obra tivesse alguma relação com o esporte mais amado do mundo, como foi o caso do apaixonado por futebol Bob Marley, dO Rappa cujas letrar volta e meia remetem a futebol e do Iron Maiden, cujo baixista é quase um hooligan e que já tentou inclusive jogar no seu time de coração.
Isto colocado, como sempre fazemos, todo ano, vamos àquela repassada na nossa seção de grandes discos atualizando os números e verificando aqueles que têm mais discos indicados, países com maior número de representantes, os anos e as décadas que mais se destacam em número de grandes obras citadas e o que mais mereça destaque neste ano que passou nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, como, por exemplo, o fato de 2018 ter sido um ano de muitas estreias nos AF's. Muitos artistas que, por sua biografia, importância em sua época, seu segmento ou no cenário musical geral, já deviam ter dado as caras por aqui há muito tempo, apareceram pela primeira vez neste ano, como é o caso de nomes como Bob Marley, que foi um dos nossos AF ClyBola, da diva Aretha Franklin, do Kiss, T-Rex e do lendário Queen que fez seu debut por aqui. Por outro lado, poucos se repetiram e, assim, especialmente nos internacionais, as posições de cima não se alteraram muito, apenas com o Iron Maiden e os Kinks entrando para o time dos que têm três álbuns fundamentais e aproximando-se do pessoal com quatro álbuns (Who, Floyd, Kraftwerk...) e um pouco mais dos líderes Beatles, Stones e Bowie que seguem na ponta com cinco discos cada.
Nos nacionais a movimentação também não foi grande mas dois artistas deram uma emoção à "disputa pela liderança": com um disco de Caetano Veloso e um de Tim Maia, poderíamos tê-los empatados na ponta com Gilberto Gil e Jorge Ben. Mas isso se, lá no início do ano, o Babulina não tivesse colocado mais um entre os fundamentais e garantido sua posição no topo entre os brasucas.
Na disputa por países, ainda que os norte-americanos ainda mantenham um boa vantagem na liderança, em 2018 os ingleses fizeram quase o dobro de indicações que os yankees e diminuíram um pouco a desvantagem para os brasileiros que haviam se distanciado no ano anterior
No que diz respeito a épocas, a marcante década de 70 continua liderando, acompanhada, com uma distância bem confortável, pela década de 80. Só que quando falamos em anos, é o de 1986 que manda, com nada menos que 20 discos, seguido pelo seu ano anterior, o de 1985 e o ano de 1976, cada um com 16 álbuns na nossa lista.
O ano que entra promete movimentação nos placares, especialmente de artistas, tanto nacionais quanto internacionais, uma vez que a vantagem dos líderes é pequena e quem vem logo atrás não tá pra brincadeira. 
As comemorações dos dez anos acabaram mas não é por isso que não continuaremos tendo participações especias nos AF. Além das habituais colaborações de Paulo Moreira, Leocádia Costa, Lucio Agacê, com certeza teremos durante ao ano a contribuição de amigos tão apaixonados por música quanto nós e que sabem que os álbuns de suas coleções e de seus corações são simplesmente fundamentais.

Vamos conferir então como ficaram as coisas por aqui depois deste último ano:


PLACAR POR ARTISTA INTERNACIONAL (GERAL)

  • The Beatles, David Bowie  e The Rolling Stones: 5 álbuns cada
  • Kraftwerk, Miles Davis, Talking Heads, The Who e Pink Floyd: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Smiths, Led Zeppelin, John Coltrane, Van Morrison, Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, John Cale* e Bob Dylan: 3 álbuns cada
  • Björk, The Beach Boys, Brian Eno*, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Lee Morgan, Lou Reed, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, R.E.M., Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Velvet Underground e Wayne Shorter: todos com 2 álbuns
*contando com o álbum de Brian Eno com JohnCale ¨Wrong Way Out"


PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Jorge Ben: 5 álbuns*
  • Gilberto Gil*, Tim Maia e Caetano Veloso: 4 álbuns*
  • Chico Buarque, Legião Urbana, Titãs e Engenheiros do Hawaii: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**, Gal Costa, João Bosco, João Gilberto***, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão e Sepultura: todos com 2 álbuns 
*contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas" 
*** Contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"


PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 2
  • anos 40: -
  • anos 50: 15
  • anos 60: 79
  • anos 70: 117
  • anos 80: 100
  • anos 90: 75
  • anos 2000: 11
  • anos 2010: 11

*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 21 álbuns
  • 1976 e 1985: 16 álbuns cada
  • 1968 e 1977: 15 álbuns cada
  • 1967: 14 álbuns
  • 1971, 1972, 1973 e 1991: 13 álbuns
  • 1965, 1969, 1975, 1979 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1970, 1987 e 1989: 11 álbuns cada
  • 1966 e 1980: 10 álbuns cada


PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 146 obras de artistas*
  • Brasil: 116 obras
  • Inglaterra: 102 obras
  • Alemanha: 8 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica e Islândia: 2 cada
  • País de Gales, Itália, Hungria, Suíça e França: 1 cada

*artista oriundo daquele país




C.R.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Criolo - "Nó na Orelha" (2011)




"Posso dizer que Gil e Caetano são gênios. Eu, na verdade, sou um trabalhador contumaz, sou obsessivo. Aí, quando entra o Milton e o Criolo, pronto."
Tom Zé

Confesso que resisti um pouco a Criolo. Em 2011, por sugestão de meu primo-brother Lúcio Agacê, ouvi o então recém-lançado “Nó na Orelha” e me impressionei de cara. Conhecendo-me bem, Lucio acertara que eu iria gostar de um rapper de São Paulo até então chamado Criolo Doido, que tinha tomado um “banho de loja” e produzira um disco de se prestar atenção. Como sempre, fui na dele, que nunca dá dica furada. E, caramba: que musicalidade era aquela?! Ao mesmo tempo em que destrincha hip hop com estilo próprio de letras incomuns e rimas ligeiras, forjando quase uma nova linguagem que junta o vocabulário da periferia com um entendimento profundo do português culto, também mandava ver com naturalidade outros ritmos (às vezes, mesclando a este rap tão original), como samba, afrobeat, reggae e soul.

Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Ney Matogrosso, Tom Zé, Martinho da Vila e Milton Nascimento ou seja, a nata da MPB – o elogiavam. Era tão legal, que cheguei a desconfiar. Pensei em escrever sobre o disco no calor do impacto, mas meu cérebro buscou comparações e parâmetros que, embora não devessem ter nada a ver com o simples ato de gostar, foram suficientes para, preconceituosamente, rechaçar a minha ideia de imediato. Para ajudar, um infeliz tributo a Tim Maia ao lado de Ivete Sangalo, no qual Criolo se sujeitou a participar, em 2015, ajudou a alimentar minha antipatia por ele.

Entretanto, “Nó...” resistiu a mim. Por isso, faço aqui o que não tive coragem seis anos atrás depois daquela primeira audição. Afinal, o disco se mantém intacto em sua qualidade, simbolizando aquilo que na época já era uma certeza: a chegada do maior artista da música brasileira dos últimos tempos. Com a luxuosa produção e arranjos de Daniel Ganjaman (Planet Hemp, Sabotage, Otto, Racionais MC’s, Nação Zumbi, entre outros, no currículo) e poucas mas preciosas participações (como da excelente cantora Juçara Marçal, da Metá Metá, nos backings), “Nó...” traz essa originalidade letrística e sonora, algo evidenciado já na faixa de abertura, “Bogotá”. Um ritmo latino com beats e sopros afiados muito bem cantado com a voz melodiosa e agradável de Criolo. Não é rap, mas namora com o estilo na força da mensagem e no approuch, mostrando o quanto o artista, já no segundo disco, havia ampliado sua musicalidade.

Avança-se somente mais um pouco para provar definitivamente esta afirmação em “Subirusdoistiuzin”. Este, sim, um rap, com direito aos tradicionais beats funk, scratches e samples. Mas cheio de groove, numa atmosfera de jazz-soul – adensada pelo elegante trompete de Rubinho Antunes e o baixo acústico de Marcelo Costa, coarranjador do disco. Novamente muito bem cantada por Criolo, destaca-se, antes de mais nada, pela letra de rimas improváveis e pela divisão silábica quebrada, como bem fazem Tom Zé e Marlui Miranda. E o que dizer desses versos? “Mandei falá/ Pra não arrastá/ Não botaram fé/ Subirusdoistiozin/ O baguio é loco/ O sol tá de rachá/ Vários de campana aqui na do campin/ Má quem quer preta/ Má quem qué branca/ Todo azule/ Requer seu rejuntin/ Pleno domingão/ Flango ou macalão/ Se o negócio é bão/ Cê fica é chineizin/ Cença aqui patrão/ Aqui é a lei do cão/ Quem sorri por aqui/ Quer ver tu cair/ É, é... justo é Deus/ O homem não/ Ouse me julgá/ Tente a sorte, fi”.

Na sequência, um dos motivos da reverência dos papas da música brasileira: “Não Existe Amor em SP”. Cantada por seu autor ao lado de Caetano no Video Music Awards daquele ano numa apresentação que “chancelara” a posição de Criolo no rol da MPB, a canção, contundente e melodiosa, já se tornou naturalmente um clássico e um novo hino popular sobre a cidade paulistana. O título, cuja menção à grande metrópole brasileira é pronunciada na forma de sigla (“essepê”), desvenda a mensagem: “Um labirinto místico/ Onde os grafites gritam/ Não dá pra descrever”. Lembra, em poética e raciocínio, outro talentoso rapper de Sampa, o amigo Mano Brown, nos versos de “Vida Loka nº 1”, dos Racionais MC’s, quando diz “em São Paulo, Deus é uma nota de 100”, principalmente comparada com esta parte da música de Criolo: “Os bares estão cheios de almas tão vazias/ A ganância vibra, a vaidade excita/ Devolva minha vida e morra/ Afogada em seu próprio mar de fel/ Aqui ninguém vai pro céu/ Não precisa morrer pra ver Deus”.

“Mariô” vem dar ainda mais sentido à ideia jazzística lançada em “Bogotá” e “Subirusdoistiuzin”, uma vez que intensifica a pegada de jazz moderno, haja vista que é coescrita com Kiko Dinucci, o principal compositor da Metá Metá, a inovadora banda paulistana do novo jazz brasileiro. Emulando sons e vocabulários do matiz africano, típico da musicalidade de Dinucci, remonta ao “pop nagô” de Marku Ribas pela mistura de sonoridades funk, soul, samba e batuque de terreiro.

Surpreendendo novamente, Criolo traz o bolero "Freguês da Meia-Noite". Balada brega ao estilo Nelson Ned e Reginaldo Rossi, contextualiza mais uma vez a São Paulo urbana, aqui no clima decadente e rasgado da boemia noturna. “Meia Noite/ Em pleno Largo do Arouche/ Em frente ao Mercado das Flores/ Há um restaurante francês/ E lá te esperei”. Já “Samba Sambei”, embora o título faça supor o estilo musical, é, na verdade, um reggae, engendrando a tirada metalinguística de canções como “Samba da Minha Terra”, de Dorival Caymmi, na versão heavy dos Novos Baianos, o rock-exaltação “A Bossa Nova é Foda”, de Caetano, ou “Amigo Punk”, a milonga (e não um punk-rock) do grupo gaúcho Graforréia Xilarmônica.

Claro, a raiz de Criolo não poderia deixar de estar presente. Com a mesma desenvoltura que passeia por outras formas musicais, o artista também articula seu inato rap. Caso de "Grajauex", com os criativos versos rimados em “écs” (“É o play 3 na golfera te sai, chanex/ É o ouro branco o pó mágico e o poder de Rolex/ Na favela com fome atrás dos Nike Air Max/ Os canela cinzenta que não tem nem cotonets/ Os Mc das antiga é dinossauro T-Rex/ Pra fazer bobaginha cole ali com Jontex/ Pra zoar na rua com os cachorro é pex pex/ E as princesinha na nóia de um papel faz bo...”); "Sucrilhos", crítica social em que exercita sua poética sui generis (“Calçada pra favela/ Avenida pra carro/ Céu pra avião/ E pro morro descaso/ Cientista social/ Casas Bahia e tragédia/ Gosta de favelado mais que Nutella”); e "Lion Man", de excelente construção melódica e harmônica.

“Nó...” encerra revelando outra habilidade que Criolo traria mais vezes a partir de então – inclusive em parcerias com Martinho da Vila e Tom Zé –, que é o domínio do samba. Partido alto estiloso, que lembra os bambas da velha guarda, "Linha de Frente" faz uma brincadeira com os nomes dos personagens da Turma da Mônica, inserindo-os na realidade do tráfico de drogas na periferia. Os versos iniciais dizem: “O nó da tua orelha ainda dói em mim/ E Cebolinha mandou avisar/ Que quando a ‘fleguesa’ chegar/ Muitos pãezinhos há de degustar”. O refrão é ainda mais interessante: “O dinheiro vem pra confundir o amor/ O santo pesado que tá sem andor/ Na Turma da Mônica do asfalto/ Cascão é rei do morro e a chapa esquenta fácil”.

Dentre as várias qualidades de “Nó...” está a que o trabalho trouxe de vez a turma do rap para o patamar dos músicos, vencendo a pecha de meros “coladores de música dos outros” ou de “vozes da favela”. Criolo representa a nova geração mestiça brasileira, saída das classes baixas e sintonizada com a política, com a produção cultural e com a realidade social, personalidades que têm (e se põem no) compromisso de pensar o Brasil. Além disso, o convencimento de que rapper não sabe (e nem precisa) só fazer rap. Mas mesmo com toda a diversidade sonora e de referências conceituais que carrega, “Nó...” é, contudo, um disco saboroso de se ouvir, mesmo que desafiador – desafio este que, de pronto, não me permiti vencer em relação a Criolo. Mais do que a “repaginada” a qual meu primo se referiu ao me indicar a audição, o disco é a afirmação de um artista que tem muito a dizer e que veio para ficar. Talvez por tudo isso, o disco tenha dado em meu pretenso conhecimento e gosto musical um verdadeiro nó na orelha. Acho que, com todas estas linhas escritas, eu agora tenha desenosado.

FAIXAS:
1. "Bogotá" - 4:40
2. "Subirusdoistiozin"  - 3:33
3. "Não Existe Amor em SP" - 4:40
4. "Mariô" - 3:37
5. "Freguês da Meia-Noite" - 4:09
6. "Grajauex" - 2:36
7. "Samba Sambei" - 3:42
8. "Sucrilhos" - 4:00
9. "Lion Man" - 3:25
10. "Linha de Frente" - 4:30
Todas as composições de Criolo, exceto “Mariô”, de Criolo e Kiko Dinucci

*********

OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Periferia S/A - "Fé+Fé=Fezes" (2014)


"Povo burro 
é povo submisso"
Jão



Então fazia algum tempo que eu não trazia algo para o AF, mas aí estava eu em casa a cozinhar quando resolvi pôr algo no YouTube para ouvir/assistir. Entre tantas opções modernas, entre tantos lançamentos, resolvi assistir a uma entrevista que há alguns dias eu vinha namorado na telinha. Nada mais nada menos que João Carlos Molina Esteves, o Jão, guitarrista fundador de uma das bandas que na minha opinião foi uma das precursores do movimento punk brasuca: os Ratos de Porão. Esta foi a banda que me inspirou e me fez querer fazer hardcore. Os caras tinham uma energia, uma verdade que eu sentia em poucas bandas. Mas até aí é a história que todo mundo conhece: o pioneirismo, a força, a fúria, as letras a influência... O que quero chamar atenção aqui, no entanto, talvez só quem tenha vivido aquele punk brasileiro dos anos 80 entenda o sentido. Eu curto RDP desde 1987 quando os ouvi na coletânea "Ataque Sonoro" e depois fui conhecer o "Sub", outra coletânea clássica do punk nacional dos oitenta, que é justamente o tiro inicial dessa resenha. Quando ouvi o "Ataque Sonoro", fiquei um tanto confuso quanto àquela banda. Eu havia gostado mas havia algo ali que voltimeia me fazia pular as músicas. Porém, depois, quando ouvi no "Sub" aquele baixo marcante da faixa “Vida Ruim” tive vontade de pegar imediatamente meu skate e descer a maior ladeira que eu pudesse entoando o “NÃO VAI DAAARR DESSE JEITO O MUNDO VAI ACABAARR”!!!! Aquilo me fez me fez sentir o motivo de ser punk naquele momento.
Mas os Ratos  de repente deram, meio que do nada, um salto pra um crossover. Seguiram naquele rip e eu, fã, mesmo não tendo compreendido bem aquela mudança, aprendi a amar e me mantive fiel durante todo esse tempo. Só após trinta anos, finalmente compreendi aquele salto, aquela passagem brusca daquele punk pro crossover. Estava tudo guardado na cabeça de um cara: o Jão. Um cara que com toda sua humildade e generosidade soube guardar e esperar o exato momento para, quem sabe, explicar a transição após todo esse tempo.
No meu ponto de vista, a retomada daquele ponto foi inconsciente. Uma coisa que aconteceu. Tipo, aquela namorada de adolescente que você resolve fazer um recibo mas que de repente explica o motivo de muitos erros e acertos na vida. Me refiro à Periferia S/A, banda formada por Jão na guita e vocal, Jabá no baixo e Dru na batera. A banda traz um som punk enérgico com letras de protesto que vão desde revolta contra o sistema, até o tiozinho bebaço que põe a vida fora na cachaça. E porquê eu falo deles no AF??? Porque eles me fizeram entender tal transição e também me fizeram acreditar que mesmo que o Ratos não fosse o Ratos que tanto curto e acompanho, eu teria o que acompanhar caso eles não existissem. Ouvindo o disco, o ótimo "Fé+Fé=Fezes" de 2014, segundo trabalho dos caras, vejo que seria ducaralho ouvir esse álbum de 2014 lá em 1989, por exemplo, e se por acaso o RDP não tivesse lançado o "Cada Dia Mais Sujo e Agressivo", este, o "Fé+Fé=Fezes", seria tão contemporâneo (não que pareça antigo, é que Ratos sempre esteve a frente do seu tempo), que teríamos discos para três ou quatro gerações futuras.
Mas situando-o devidamente em sua época e seu contexto, o álbum do Periferia S/A, se formos analisar de uma maneira mais ampla, pode ser visto como um acontecimento importante no cenário cultural e social brasileiro da atualidade. Numa época em que há tanto pelo que se gritar e pouca gente no mundo artístico parecendo disposta ou com capacidade para fazê-lo, trabalhos como este do Periferia configuram-se como obras necessárias e fundamentais. Sabemos que esse grito atinge poucos, e àqueles a quem chega estes já tem a consciência da necessidade de um insurgimento popular, mas já que a cena nacional de rock praticamente inexiste e ao contrário dos anos 80 quando pelo menos havia um rol de bandas, ainda que comerciais, com poder de discurso e mobilização, que a voz da periferia seja a representante de nossa legítima insatisfação. Mais do que o alcance, o importante neste momento é a indignação, o sangue nos olhos e isso o Periferia S/A tem de sobra. Como diz o título de uma das músicas do álbum, "devemos protestar" e nenhum gênero, estilo, movimento é mais legítimo do que o punk para fazer um convocação como essa. Sim, o bom e velho punk está de volta e com toda a fúria e energia. Longa vida a ele.


Lucio Agacê

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FAIXAS:
1. Pindorama Pindaíba (01:59)
2. Urbanóia (01:46)
3. Fé + Fé = Fezes (01:09)
4. Problema de Ninguém (02:31)
5. Fé + Fé = Fezes (01:27)
6. 12XU )01:33)


7. Pindorama Pindaíba (01:48)*
8. Recomeçar (03:06)*
9. Eles (01:59)*
10. A Farsa do Entretenimento (02:31)*
11. Segunda Feira (01:40)*
12. Oprimido (01:48)*
13. Carestia (01:11)*
14. Parasita (01:22)*
15. Padre Multimídia (03:31)*
16. Devemos Protestar (02:18)*

* (7 a 16 gravações ao vivo)

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Ouça:

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Agosto, Mês do Aniversário do ClyBlog







As pessoas, de um modo geral, costumam demonizar o mês de agosto, em muitos casos gratuitamente, sem que ele tenha lhes feito mal algum, sem que nele tenha ocorrido qualquer fato relevantemente negativo que não tivesse acontecido em qualquer outro dos onze meses do ano. Atribui-se ao oitavo mês do ano uma série de títulos pouco elogiosos, responsabilidades injustas e predicados nada agradáveis repetindo chavões batidos como "mês do desgosto", "mês do cachorro louco" como se seus trinta e um dias guardassem por alguma maldição todas as desgraças do mundo. Não raro ouve-se até que agosto seria um mês ruim por ser o que gente importante morreu, sendo Getúlio Vargas o mais comum de associar-se a este período que, aí, para justificar a má fama do mês até por uma aura quase beatificada parece ficar coberto. Mas não é só ele, vão na carona Elvis, Raul Seixas, John Lennon e outros só pra reforçar a tal reputação maldita do agosto.
De minha parte, pra começar, nunca tive nada contra agosto na minha vida desde sempre, mas com o passar dos tempos o mês oito acabou me reservando algumas grandes alegrias que, contrariando a maioria, acabaram fazendo com que se tornasse um mês especial. Lá pelos idos dos anos 90, minha banda amadora, a HímenElástico fazia seu primeiro e marcante show no município de Alvorada, vizinho a Porto Alegre, numa sexta-feira 13 de agosto, abrindo a apresentação com uma marcha fúnebre, celebrando a data também tida como sinistra, e aos poucos vencendo a desconfiança do público fazendo um show matador até conquistar definitivamente a audiência no final. Um dos grandes momentos da minha vida e tenho certeza que do meu irmão Daniel Rodrigues e do meu primo Lucio Agacê, ex-integrantes da banda, hoje parceiros de ClyBlog. Mais adiante, superando um período acadêmico um tanto conturbado, depois de ter concluído meu trabalho de diplomação entre as madrugadas frias de julho assistindo aos jogos da Copa do Mundo de 2002 da Coreia/Japão, foi marcada para agosto minha cerimônia de formatura, momento marcante não só pelo passo pessoal e profissional em minha vida naquele momento mas também pelo momento emocionante da homenagem à minha mãe guerreira que fez de tudo para que eu conseguisse chegar àquele momento vitorioso.
 Outros agostos vieram com novas vitórias, derrotas, fatos bons, ruins, alegrias, tristezas e a vida, que tem dessas coisas quis que no início de 2006 eu acabasse no Rio de Janeiro. Naquele ano, meu time do coração o Sport Club Internacional, no dia 16 de agosto conquistaria pela primeira vez o tão sonhado título sul-americano em seu estádio em Porto Alegre. Ironia do destino: exatamente no ano em que saía da minha cidade o clube era campeão lá, no estádio onde nunca deixara de ir e assistira a inúmeras decisões, muitas delas, nas décadas que precederam aquele momento, marcadas pelo fracasso. Naquela ocasião acompanhei à distância. Estava em um emprego novo, não podia faltar ao trabalho para viajar e de qualquer forma ainda estava tentando me estabilizar na nova cidade, mas em 18 de agosto de 2010, já um pouco mais estruturado no Rio e diante de uma nova decisão de Libertadores, numa jornada apaixonada e quase inconsequente me toquei para Porto Alegre para ver no estádio, no Beira-Rio, com meus próprios olhos e exorcizar meus fantasmas de derrotas do passado, o Bi da América. Era agosto me trazendo mais uma alegria.
Mas a maior delas ainda estaria por vir. Em 11 de agosto do ano seguinte viria ao mundo meu maior tesouro, minha filha, uma leonina, saudável, linda e inteligente que tornou-se a razão superior da minha vida. Tem como eu não gostar de agosto?
E por essas cargas d'água, sem ter premeditado nada, uma das coisas mais legais que fiz e que tenho feito na vida, um dos projetos criativos mais amplos e abrangentes que tive a oportunidade de criar teve seu início num agosto. Em 26 de agosto de 2008 estava em ação na internet o ClyBlog, no início sem saber muito bem o que pretendia, sem um formato, sem uma ideia definida mas com a intenção de ser o meio onde eu pudesse expôr meu material criativo em todos os segmentos nos quais eu tivesse qualquer coisa para apresentar. Para quem? Para quem quisesse ver, para quem por acaso topasse com aquilo na internet, para minha família, para amigos... O ClyBlog tornou-se um projeto apaixonante. Não é um blog gigante com milhares de visualizações por dia, mas pelo que acompanho, nos gerenciamentos de página, atinge o público certo: quem QUER ler uma crônica, quem QUER ler um conto, um poema, quem tem interesse por música, por arte, por cinema. A sensação que eu tenho é que quem entra na página do blog, LÊ o blog, VÊ o conteúdo e não apenas passa por acaso e segue em frente. Por isso, mais do que em qualquer outra situação, é mais importante é a qualidade do leitor do que a quantidade.
Pois esta ideia individual ganhou corpo, ganhou um parceiro valiosíssimo, ganhou colaboradores, foi se desenvolvendo, ganhou seções, participações especiais importantes, teve seus textos valorizados ganhando espaço em publicações e coletâneas e chega agora, neste agosto de 2016, aos 8 anos. A partir de hoje, desta semana até o final de agosto, o ClyBlog estará comemorando seu aniversário e por esses dias teremos além das publicações habituais, algumas publicações especiais e algumas surpresas.
Temos prazer em fazer o blog e esperamos que quem o visite, leia, veja também o tenha pois a nossa intenção é fazer um blog com coisas que gostaríamos de encontrar quando 'navegamos' por aí ou buscamos alguma informação e por isso procuramos fazer um espaço virtual ágil e diversificado, conseguindo com isso colocar, expôr e expressar todas as nossas paixões, preferências e manifestações sem direcioná-lo especificamente em um só assunto ou modelo.
São oito anos de prazer em criar e sempre estar apresentando algo novo. Sempre manter nossas páginas com alguma coisa no mínimo interessante, instigante, inventiva. Quem vai ler? Quem vai ver? Os amigos, os parentes, quem topar com a gente na internet... Ou seja, continuamos do mesmo jeito que há oito anos atrás. Este momento é apenas mais um novo começo.



Cly Reis
editor-chefe

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

cotidianas #409



ilustração: Cly Reis
Essa e a história de Sofia
Que dizia-se sofrida, e sofria
Por ser fria
Mas... Sofia... ser fria
Não a faz sofrer na vida
Pois sorria
Sua ira não combina
Sua ira não combina com as capas coloridas
Desenhadas nas revistas que registram
Suas idas ou suas vindas
Sofia... sofria
Por ser fria, mas não via
Não lia, não sentia, não sabia
Que o melhor da sua linda
Rabiscada
Dependia de mentiras inventadas por artista ilusionista
Que com pouco vem fazendo
Ter um pouco de sentido toda essa ironia
Quente ou fria
Saborosa ou insípida
Inodora ou cheirosa
Sua vida
Seja dona, ó, Sofia!
Sorria... sorria...



terça-feira, 8 de dezembro de 2015

8º Mississipi Delta Blues Festival – Largo da Estação Férrea – Caxias do Sul/RS (28/11/2015)



Com Dylan no peito,
nada melhor para uma
noite de blues.
Quando assisti ao ótimo bluesman Kenny Neal em São Paulo mês passado pensei que aquele breve mas impecável show fosse uma compensação por não poder ir ao Mississipi Delta Blues Festival, que ocorreria dali a semanas na cidade gaúcha de Caxias do Sul. Mas era, na verdade, um bom presságio. Tal sentimento se dava por um misto de falta de disponibilidade e a possibilidade de se fazer outra boa programação mais próxima – e mais fácil. É que teria também o festival Som de Peso, que ocorreria em Porto Alegre justamente no mesmo dia e hora e onde tocariam bandas célebres do punk nacional, como Cólera e Olho Seco, e, além destas, a Vômitos & Náuseas, a grande banda de hardcore do meu primo Lucio Agacê. Dúvida cruel. Depois de muita combinação, tive que suplantar a vontade de ir ao Som de Peso, pois conseguimos Leocádia e eu nos organizar para subir a Serra e conferir pela primeira vez o MDBF, vontade alimentada há anos.

Stroger, comandando o grupo no baixo.
E o esforço não poderia ter sido mais bem recompensado. Com uma programação cuidadosa e qualificada, tanto no que se refere a atrações internacionais quanto nacionais, além de uma estrutura planejada e eficiente, o MDBF, em sua 8ª edição, provou (pelo menos a nós, que ainda não o conhecíamos) que é o melhor festival de música do Rio Grande do Sul do momento. Prova disso é que o dia em que fomos, o terceiro e último da edição de 2015, não por isso ficou devendo. Dividido em sete palcos, o festival apronta um rodízio de apresentações dos artistas por vários destes durante os três dias de evento, fazendo com que se possa assisti-los em mais de uma oportunidade. Igualmente, o local não poderia ser mais adequado: a antiga estação férrea de Caxias, prato cheio para Leocádia fazer várias fotos pois empresta uma atmosfera onírica àquela sonoridade melancólica, antiga e sensual típica do blues. A chuva que caía ajudou a aumentar o clima cinematográfico.

Bob Stroger posando para as lentes.
O blues rolava por todos os cantos, dos alto-falantes, dos palcos, das pessoas cantando, assobiando, dançando. Chegava a emanar de algumas figuras que ali estavam. Um desses seres iluminados era Bob Stroger, o incrível baixista californiano de (acredite-se) 85 anos. Stroger, que havia estado em Porto Alegre na semana anterior – e que, novamente por agenda e correria, não pudera assistir –, foi um dos principais motivos de irmos ao MDBF. Artista “residente” do festival, participou de todas as edições deste até agora, o que certamente continuará fazendo até não poder mais, haja vista seu prazer em estar ali. Ele dizia, faceiro: “This is my house”. Um dos primeiros a se apresentar naquele dia, ele referia-se não somente a Caxias e ao festival como ao Front Porch Stage, um caracterizado palco que reproduzia o ambiente de uma sacada de um rancho do Sul norte-americano, aquelas que a gente vê em filmes sobre negros pobres e trabalhadores de fazendas de algodão de antigamente. Para alguém como ele, do início do século passado, certamente aquilo era bem familiar. Estava se sentindo em casa mesmo, acarinhado e admirado pelo público.

Cokeyne, à direita, e sua banda de ilustres convidados.
Na verdade, Stroger fazia o ambiente se tornar real, visto que ele em si é uma entidade em pleno palco. De terno risca de giz escuro, sapatos e chapéu, é a encarnação daquilo que o mundo conheceu no início do século XX chamado blues, o gênero musical afro-americano que coloca, em ritmo sincopado, repetitivo e simples, os sofrimentos e tristezas dos negros escravos e apartados de sua terra. Blues, com suas raízes religiosas, de trabalho ou de protesto. Um estado de espírito. E Bob Stroger é a representação viva disso. Ele mesmo, orgulhoso, diz várias vezes: “I’m the blues”. Quem há de contrariá-lo? Entre as maravilhas que escutamos de sua voz sôfrega, mas com o aveludado que somente os negros de lá conseguem ter, “Just a Sad Boy”, “Talk to me Mamma”, “Don't You Lie to Me” e uma canção que, além de fantástica, se tornaria especial naquela noite: “Blind Man Blues”, autoria do próprio Stroger. Um bluesão embalado num riff de baixo contínuo e cheio de groove, que lhe põe naquele limiar entre o blues e o rock. Esta, comporia outro episódio importante horas depois...

"Don't You Lie To Me" - Bob Stroger - Mississipi Delta Blues Festival 2015

Sherman Lee Dillon, pura energia.
Tinham mais coisas a se aproveitar ainda. Noutro palco, o Bus Stage, iriamos conferir o nosso amigo Cokeyne Bluesman (Beto Petinelli, ex-Cascavelletes), que havia reunido uma galera especial para uma das apresentações. E olha: que apresentação! Disparado a mais empolgante da noite e que, mesmo não estando num dos palcos principais, ensandeceu o público que assistia. Que energia que saída dali, a ponto de as pessoas serem tomadas por ondas de euforia, respondidas pelos músicos e vice-versa. A química foi precisa: Cokeyne, referencial na guitarra solo e slide guitar; Lucas Chini, no baixo, um cabeludo psicodélico e tomado pela música que parecia ter se congelado no tempo, pois era tal um integrante de banda de rock-blues dos anos 60, uma Canned Heat ou The Band; e o norte-americano Sherman Lee Dillon, de quem se pode dizer apenas uma coisa: nossa! Aquele velhinho branco de camisa, calça social e quepe poderia ser, como bem Leocádia observou, o vendedor da banca da esquina ou o dono da tabacaria. Só que quando empunha a guitarra, sai de perto! É um furação em forma de blues.

Na bateria, Gutto Goffi.
Melhor amigo do saudoso B.B. King, Dillon, natural do Mississipi, mostrou ser um genuíno seguidor de Muddy Waters e Bo Diddley. Com sua harmônica e sua guitarra de metal, parecido com um banjo elétrico, ele incendiou o pequeno palco, pondo todo mundo pra se mexer. Uma das mais quentes foi a versão de “Maybelline”, clássico de Chuck Berry, que tocaram numa versão tão eletrizante quanto. Além disso, quem completava a banda na bateria era Guto Goffi, o baterista do Barão Vermelho, que estava ali animadíssimo tocando o que gosta e sem todo o aparato e multidões de que é acostumado. Cokeyne, o anfitrião, também não deixou por menos. Com solos arrebatadores, levantou a galera várias vezes, mesmo sem cantar como Dillon. Ainda teve a palhinha do músico gaúcho Andy Serrano, na gaita, o mesmo da banda de rockabilly que vimos anos atrás no Clube de Jazz Take Five, em Porto Alegre. Um empolgante e surpreendente show.

'Super Chikan' no palco principal do MDBF.
Entre uma programação e uma paradinha para comer, deu tempo de ver, no Moon Stage, palco principal, um bom pedaço da apresentação de outra das também principais atrações do MDBF desse ano: o norte-americano James "Super Chikan" Johnson, mais um filho do Mississipi. Outro arraso. O cara, que ganhou esse apelido na infância, quando ainda era jovem demais para trabalhar no campo e passava o seu tempo conversando com as galinhas, começou tocando o diddley bow, instrumento muito rudimentar que o ajudou a desenvolver sua capacidade de extrair sons de uma só corda. Essa forma de tocar é evidente em seu estilo, que aproveita ao limite uma sequência de notas, sempre com muito groove. Isso sem falar do característico grito que lança entre uma execução e outra imitando o cocoricó das galinhas com quem tanto conversava quando criança.

Eu com Rip Lee Pryor.
Voltando ao Front Porch Stage, pena que não deu tempo de assistir um pouquinho de outra lenda: o harmonicista Rip Lee Pryor (filho de Snooky Pryor), que ainda estava passando som e o pito na equipe técnica, que não acertava o que ele pedia. Na mesma hora – essas coincidências são inevitáveis, ainda mais para que foi em apenas um dos dias como nós – subiria no Magnolia Stage outra das que nos motivaram bastante a escolher por essa e não outra programação: a cantora Zora Young. Igualmente produto do Delta do Mississipi, é daqueles vários artistas de blues cujas famílias, depois da 2ª Guerra, migraram para Chicago em busca de novas oportunidades. Criada dentro das igrejas gospel, foi tomando com o passar do tempo gosto pelo Rhythym n' Blues a ponto de não o largar mais. A explicação talvez esteja no sangue: Zora tem em sua árvore genealógica uma das lendas do blues, Howlin' Wolf. No festival, ela mandou ver num show pulsante e dançante, com sua poderosa voz rouca muito trabalhada nos corais religiosos e nos pubs de blues. Interagindo com a plateia, Zora e sua banda fizeram um espetáculo daqueles que não dá vontade de sair mais (tanto que, quando vimos, já tinha acabado o de Pryor), com repertório de primeiríssima qualidade, solos afiadíssimos e, claro, a excelência da voz de Zora.

A divina cantora de raízes gospel e rythm'n blues,
Zora Young e o privilégio de ter na banda Stroger, ao fundo.
Mas por falar na banda de Zora Young, aqui vai aquela parte que havia ficado faltando sobre “Blind Man Blues”, de Bob Stroger. Aconteceu que, com receio de que sobrasse para nós algum daqueles esporros de Rip Lee Pryor com a equipe, saímos logo do Front Porch Stage e chegamos minutos antes para assistir Zora. Porém, para nossa surpresa quem sobre no palco são três músicos mais... Bob Stroger! ”Ué, será que mudaram o lugar do show dela?”, pensamos. Fomos perguntar a um rapaz do staff e ele nos confirmou que era ali, sim, o show da cantora. Pois não é que Stroger, nos seus já mencionados (mas que não custa relembrar) 85 anos foi, horas depois de ter aberto o festival, formar a banda de Zora Young? Na maior simplicidade e humildade. Coisa de músico de verdade. Já no final da noite, ele abriu com a mesma música que já tinha tocado no outro palco para depois tocar, como apenas mais um integrante, mais uma hora e meia – sem se sentar nem pedir água. Pelo contrário: no centro do palco, estava lá ele postado, elegante em seu terno risca de giz e chapéu, abrilhantando ainda mais o show da companheira de blues.

"The Thrill Is Gone"/ "I'm Freee" - Zora Young - Mississipi Delta Blues Festival 2015

Foi o próprio Bob Stroger que disse se sentir em casa. Sentimento compartilhado com muita gente ali, entre músicos e espectadores, que fazem o MDBF crescer a cada ano, sempre com a expectativa pela edição seguinte. Eu mesmo já estou me vendo, lá em novembro de 2016, cantando para convencer Leocádia: “Oh, baby, don't you want to go? Back to the land of Caxias do Sul/ To my sweet home, festival?”
Front Porch Stage, "this is my house".




quinta-feira, 5 de novembro de 2015

COTIDIANAS ESPECIAL nº400 - A Lenda do Assubiadô



ilustração: Cly Reis
Lá é lugá de gente, mas gente de tudo qui’é feitio: gente rúim, gente humirde, trabaiadô, coroné, garimpêro, jagunço, caboclo, curandêro, ticunã, bandido, moça-da-vida. Gente do bem e otros... nem tanto. Gente viva, muito da viva, e gente que não tem nem onde caí morta, porque quando morre nem tem direito à terra pra descansá, que já não tem mais valia pra nada mêmo. E como morre gente! Ara! Gente cumo a gente que é de lá, entende, seu moço? Incrusive esse tar que o sinhô me pede pra falá. É: lá é terra de gente anssim grossêra quinem eu anssim, me adescurpe meu jeito. Gente cumo o sinhô, estudado nas estranja, conhecedô desse mundão aí fora, deve de achá inté estranho. Deve de achá que a gente é quase bicho, né? E se não é mêmo?! Anssim, quinem bicho, a gente se ‘custumô a sê tratado. Quem trabaia amarrado inté definhá pra cumê um quase-nada por dia é o quê?
Mas é terra bonita, sim sinhô! Ô, se é! Verde que não acaba mais, terra boa de se plantá. Toda a sementêra que se joga, a terra prenha. É só oiá lá as fazenda tudo. E tem de montão aquilo que os ôme mais cubiça: os ôro. Por isso, graça ao Nosso Bão Sinhô e a São Binidito, trabaio nunca fartô. Os patrão mandavo trazê gente de tudo qui’é lugá com as caçamba pra trabaiá, gente de monte quinem boiada, quinem furmiguêro, tudo amuntuado. Nem percisava de tê os dois braço. Miguelino, lá da terra do Tamborão, que diga: bão de garimpo só com uma braçada por vêiz. Será que já não definhô o pobre do Miguelino?...
Mas que bão que o sinhô me indaga essas cosa. Gosto de prosá. Anssim, a gente espanta as cosa rúim que fica grudada nos interno da gente. Não sô de protesto, não, sinhô. Ganho o meu unzinho na páiz do meu Bão Deus e na certidão que minha finada mãe me ensinô. Hoje, véio anssim, posso descansá. Mas o sinhô, vivido e entendedô, deve de sabê cumé qui’é vida de quem não tem mobral: trabaio, de bastante; mas prata, qui’é bão e de direito, um quase-nada. Por isso, lá, os trabaiadô trabaiavo tudo de cara fechada, no siso, ‘cabrunhado. Eles trabaio ainda anssim lá. Tudo brigão: se mexê, fáiz quinem carcará: bisa sem reza nem conversa. Desde de sempre foi anssim. E se não fáiz as obrigação, toma no lombo. Muita judiação, sabe, seu sinhô... Chibatada, tronco, laço de faca, de vara, taio de adaga, isso quando não é uma chupada de bala mêmo. Cosa feia de se vê. Teve um, uma vêiz, que fêiz umas marcriação e ficô dois dia no tempo dipindurado num cajueiro com os peito lambuzado de mér doce. O sinhô deve de imaginá o que as abeia fêiz com ele... Cosa do Chico Diabo, o jagunço mais marvado de lá. Ara, que esse tinha o capa-verde com ele! Mas não só ele, não! Tinha o Côsa-Feia, o Ambrosino, o Delcino Mete Bala, o Manuelzinho Bulhento, o João Tição: tudo com mardade nus’óio. Tudo cosa-rúim, tudo mafarrico, excumungado. Fêiz quarqué cosinha fora do acertado, era castigo nas carne!
Inté que um dia, um dia quarqué desses tanto, deu de aparecê pelas banda de lá um tar de Assubiadô, esse que o sinhô me apergunta. Roto, pôca carne, c’as rôpa tudo escangaiada. Cariboca feio didadó! Não prosava com ninguém. Tumbém: não sabia dizê um “ai”! Só assubiá. Nem cumê direito cumia: era só pro de si mantê di’pé e tê fortidão pra assubiá. E fazia isso com contento, sim, sinhô! A gente oiava pr’ele e ele tava com as feição dum santinho, ‘bençoado, assubiando aqueles estribio. A cara era tar a páiz de Jesuis. Ele apertava os beiço, dava um segundinho... e sortava. Um som nem fino nem grosso. Era só... bonito de se ouvi. E não digo só eu, não: todo o garimpo gostava, fosse gente ou fosse bicho. O passaredo tudo se vinha pra junto dele quando ele assubiava: aracuã, sapucaia, mutum-poranga, painho, fura-bucho, caraúna, coró-coró. Tudo, tudo se vinha pra cima das árvre cantá junto.
Fáiz muito tempo isso, seu moço. Ô, se fáiz! De primêro, ele se chegô cumo se não quisesse nada. E não queria nada mêmo. Só foi ficando pelos garimpo, ficando, assentado numa pedra, numa árvre, no mato ralo, num cabeço, assubiando. Era só o que queria. Às vêiz, usava uma fôia verde pra fazê apitá, e não é que aí era mais boniteza ainda!? Cumo não fazia mar pra ninguém – era só oiá pras feição dele que se via que não era de rinha – fôro deixando ficá ali, de garimpo em garimpo, assubiando. Quando mais qu’isso, ganhava um prato montado com os resto dus’otro. E não se quexava: cumia com gosto e com cara de ‘gradicido.
Quando o tar assubiava era cumo o canto do uirapuru no matagão fechado. Bonito cumo o cér. A gente, que vivia de cabeça quente, pela lida forçada e pela mira das espingarda, ia ouvindo aquele assubio e desmanchava um bucado da raiva, sabe? A gente ia se acarmando, acarmando, via que era milhó fazê o afazê, que se não a gente ia tá morrendo toda hora, a gente que não tinha arma de fogo e tinha poca fortidão contra os jagunço, esses, forte e gordo, que cumia as cumida boa que o patrão dava. Com o assubio do Assubiadô nos ouvido, a gente trabaiava milhó, inté com gosto, porque o tempo passava num estalo.
Mas o sinhô, seu moço, sabe que tem sempre os que não ‘guenta domá o fogo que tem no bucho, né? Pois não é que teve um jagunço que cismô com o Assubiadô? Ele, que não fazia mar pra um ramo de mureré! Isso foi logo dispois que ele se achegô por lá, e quem fêiz isso foi o Bilico Come-Dorme, jagunço do Nhô Bandêra, um gordalhão priguiçoso que só sabia cumê, durmi e inticá cuns’otro. Ele viu aquele ôme assubiando encostado no pé de um pinheiro-manso, qu’ele gostava, se achegô e foi logo destacando o punhar. “Que tu qué aqui, seu disgracento!?”, falô, arto que todo mundo escuitô. Os garimpêro tudo pararo de trabaiá; é que ninguém queria que ele morresse anssim, de faca. E dispois, ele não tava fazendo um nada! Só tava ali, assubiando cumo se nasceu nessa vida só pra fazê. Mas não é que com o punhar de fronte pr’ele o Assubiadô seguiu assubiando, carmo, na paz de Jesuis? De mó’de que ele não parô a cantiga, o capataz vortô a perguntá: “Qual tua graça? Hein, diz: qual tua graça? Não sabe fazê mais nada se não assubiá, bicho burro? Deve de sê mêmo muito burro mêmo!”, se rindo todo do Assubiadô, mas tava mêmo era com raiva dele, que não ‘parentava medo ninhum no sembrante. Cumo ele não movia uma paia, o Bilico se desgostô todo e caiu na ameaça braba: “Ah, tu não vai falá!? Qué morrê, disgracento dus’inferno?!”
Aí foi o que se assucedeu o que o sinhô quiçá nem ‘credite, que decerto só pra gente de cabeça pôca que nem a gente. É, ‘quilo foi um milagre, sim, meu sinhô, adescurpe se lhe conto o que parece troça. Mas não é, não! Por essa lúiz que me alumia! Quando o prevalecido do Bilico Come-Dorme ia lhe passá o punhar nas tripa, o Assubiadô virô os óio pr’ele, na mêma carma e... assubiô. Só assubiô. Na minha ‘gnorânça de ôme de fora, eu firmo: foi uma maravía do Nosso Sinhô. Foi cumo se o Divino que chegô naquele assopro de cantiga pro desvairido do Bilico. Não teve punhalada, nem carne rasgada. Nem mais prosa. O jagunço baixô a arma e ficô oiando nus’óio do Assubiadô, ‘dmirado. Decerto, tentando entendê o que tava se assucedendo lá no de dentro dele mêmo. Dispois, foi s’imbora pé por pé, ‘sustado, e os garimpêro, eu, ‘crusive, tudo começaro a se ri baxinho, mas que deu pra escuitá. O ôme saiu com o rabo no meio das perna, cumo se tivesse tomado uns para-te-queto do patrão!
Ô, que eu me rio todo dessas história! É bão lembrá... Só sei que dispois daquele ocurrido o tar do Bilico Come-Dorme nunca mais judiô de ninguém. Não buliu mais com ninhum trabaiadô, de móde que Nhô Bandêra lhe mandô pra imbora do garimpo pra nunca mais, que não lhe servia de nada jagunço com “modo de moça”. Foi o que me disséro – isso anos dispois –, que o Bilico tinha entrado pra igreja, e ajuda o padre numa paroquinha d’otra paragem não muito disiguar de lá. Que Deus o conduza, né mêmo, seu moço? O que eu sei é que tar do Assubiadô era um pobre que não sabia nem o seu pra-quê na vida, mas assubiava bonito as música inventada dele, e isso fazia um bem danado pros trabaiadô tudo.
E aí que começa a verdadera história desse desinfeliz de bão coração, o Assubuiadô, que o sinhô me veio de pronto indagá quem foi. Antão que chegô tão longe anssim a lenda do Assubiadô, inté lá pra suas banda, foi? Ara! Valei-me São Binidito! Foi dispois desse ocurrido com o Bilico que ele passô mêmo a sê mais um de nóis, e foi daí que ele passô a vivê com a gente, ora numa terra, ora nôtra, se ‘comodando ca’gente nas estalage, sempre assubiando seu assubio, ajudando os trabiadô a trabaiá com mais gosto. Na hora da lida, era só ele passá um meio-dia com nóis, soprando o vento pra fazê cantiga, que tudo se corria na maió das tranquilidade.
Os sim-sinhô, dono dos garimpo e das terra – o seu moço deve de imaginá –, de primêro estranharo aquilo. Querío tudo sabê quem era esse tar, por que assubiava, por que não prosava, donde saiu, essas cosa de gente desconfiada e dona dus’otro. Só que era tão meió quando ele tava, e dispois do ‘currido com o Bilico curria nos ovido que ele não bulia com ninguém, que inté os patrão não se importaro de dexá. Só ele que pudia andá por tudo, que não tinha amarração no pé quinem nóis, pro sinhô vê. Adispois, os ôme começaro a enxergá que quando o Assubiadô tava lá, assubiando enquanto os garimpêro garimpava, o trabaio rendia mais. Aí é que os patrão, que sabe ganhá as prata e usá o trabaio dus’otro, não quiséro mais que o Assubiadô fosse s’imbora.
Era tão bão quando o Assubiadô tava que os garimpo começaro a querê ele sempre, sem deixá us’otro aproveitá tumbém. Tivéro inté que se reuni o Nhô Bandêra mais o Nhô Quim, Nhô Tião, coroné Vaca-Brava, coroné Vilêga e coroné Salustiano pra mó’de organizá cada dia que o Assubiadô ia tá em que garimpo. Tudindim batido no relójo. Os jagunço já ficava esperando de banda, e quando batia a hora, pegavo o Assubiadô e levavo pr’otro garimpo. E anssim era o dia todo, zanzando pr’um e pr’otro. “E ele?”, o sinhô me apergunta? Não se desgostava. Deixavo ele assubiá, antão tava mais de bão pr’ele. Decerto, nem atinava que passô a sê mais um trabaiadô cumo nóis. Só que ao invéis de trabaiá com os braço e mercúro nas mão, ele só usava os beiço. Nem percisava de mais nada.
Anssim foi por um bão dum tempo. Foi o tempo mais bão que teve por lá, isso é acertado. Os garimpêro passaro a trabaiá mais e meió, e anssim passaro a rendê mais prata pros patrão. Os patrão, anssim, começaro a de tê mais prata que já tinho, e pra móde de não perdê o que já tava bão, passaro a dá mais prata tumbém pros garimpêro. Época boa ‘quela, seu moço! Ô, se foi! Época de pogresso. Os garimpêro não trabaiava mais de fuça cerrada, río trabaiando e fazío as cosa com gosto. Teve inté uns que queria bamburrá iguar aos patrão! Todo mundo teve menos moléstia; tomavo agora água limpa; os bodeguêro vendío muito mais quebra-goela e di-cumê. Inté as ramêra tínho mais criente pra fazê ‘quilo que os ôme e as muié gosta de fazê.
E o assubio do Assubiadô voziando tudo a gente todos dia.
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A vida de todo mundo miorô, e parecia que as cosa ío ficá daquele jeito bão que tava. Mas o sinhô sabe, né, seu moço, que nesse mundão erva má depressa cresce. Não se ademorô muito prus´ôme começá a se disintendê. Foi só o coroné Vilêga, um que falava todo ‘revezado, se apercebê que os garimpo do Nhô Quim e do Nhô Tião tava dando mais riqueza, e que os estrangêro tava começando a comprá mais deles, que as brigaiada começaro tudo de novo. Adispois, ‘inda por cima o Nhô Bandêra enfiô na cabeça que o coroné Salustiano tava mandando os garimpêro dele tirá ôro das terra que era de seu pertence. E isso era desverdade, seu sinhô. Valei-me São Benidito se eu tivé dizendo cosa errada! É que o Nhô Bandêra, sempre de ôio nas cosa dus’otro, não gostava do Salustiano, e isso era briga antiga das famía. Mas como o povo diz: “Em tempo de guerra, mintira é cumo terra”. Aí foi que se desintendêro tudo. Promessavam de morte, pararo de dá as prata boa pros garimpêro e inté as corrente vortaro pra prendê os trabaiadô. O Assubiadô, que nem sabia o que tava se assucedendo, paricia fole de oito-baxo: ia pra lá, ia pra cá. Não tinha mais paradêro. Tudo os patrão querío ele e não tinha mais combinação de relójo. Só pra móde tirá vantage um d’outro. Era a hora que eles querío e pronto!
A cosa toda foi de um jeito que se estragô o que tava bão. Ninguém trabaiava mais cum gosto nem podia comprá mais pinga nem aporveitá as noite no meretriço. Tudo vortô a sê cumo era de antes do Assubiadô chegá: cara triste, vida sofrida, tóchico, bibida, morte de arma, judiação, desatino de cabeça por causa dos mercúro. Nem o assubio dele ajudava mais os garimpêro, porque os jagunço pegavo ele toda hora toda hora. Mar dexavo ele ficá num garimpo só, e os garimpêro nem conseguia mais escuitá as cantiga de assubio dele.
Me adescurpe do que eu vô lhe falá, seu moço, mas é verdade verdadera: o bicho ôme não sabe arresorvê as cosa dotro móde que não na rinha. Foi anssim que o coroné Vaca-Brava, ôme marvado por demais, arresorveu o embaraço: se não era ele a tirá vantage, ninhum dus’otro patrão igual ele que ia tirá. Ele mandô o Chico Diabo mais trêis capanga ‘traiz do Assubiadô, tudo de cospe-fogo na mão. Não foi difícer de achá o Assubiadô. Tava ele lá, encostado no pinheiro-manso que ele gostava de se encostá pra assubiá pro ar. Não fêiz movimento ninhum quando oiô o camionetão do coroné Vaca-Brava enfreá de pertinho dele, de móde que a puêra se foi toda pra cima dele. Os capanga – gente tisnada, que Deus me aperdoe! –, descêro no depressa cumo se o pobre do Assubiadô fôsse corrê ou ameaçá eles. Óia só o sinhô, que desabsurdo! O Chico Diabo, esse sim com o cão-tinhoso por de dentro, veio carmo, mas ‘quela carma de quem tá seco pra metê bala, se lambendo, que gostava duma morte matada.
Foi antão que o Chico Diabo escarrô no chão um cuspe grosso e disse pro Assubiadô: “Vai ‘subiá pro diabo ‘agora, seu desinfeliz!”. O Assubiadô ficô só parado, sem medo ninhum, nem raiva paricia sintí. Antes de se ouvi o estampido, diz que ele esticô o braço na direção do Chico Diabo ‘ferecendo a fôia verde qu’ele fazia as música. Se fêiz ‘quele clarão. Tar um sor que se nasce e logo em siguidinha ‘noitece...
Mas o fío do tisnado do Chico Diabo não se contava cunh’essa: com a espingarda mirada, ele oiô de banda, pra que nenhum garimpêro se bobiasse em querê se provalecê ou desforrá por causa do Assubiadô. Só que quando foi oiá de novo pro cadáve... quedê? O Assubiadô: quedê? Estranhô tanto o jagunço e os ôme dele que se alevantaram tudo as arma de novo, ‘sustado que ficaro. Os garimpêro tudo parado, sem se mexê, sem dizê um “ai”, que quarqué cosinha cumia bala de novo cun’sôme naquele nervoso que tava. Foi antão que se tornô a ouvi um assubio. E era o assubio... tar e quar do Assubiadô! E vinha da árvre ‘quele som. Será que era dos passarim? Será qu’ele tava lá escundido?
Todo mundo se arvoroçô, sem ninhum entedimento, e foi aí que o Chico Diabo virô diabo mêmo! Só que de raiva. Ele cuspiu fogo pra riba, e um passarim saiu vuando do meio da copada, ‘sustadinho. Só que o assubio não parô. O Chico Diabo, sem sabê o que fazê, falô arto: “É tu que tá iscundido, disgracento?! ‘Parece! ‘Parece aqui, que eu vô te metê bala no teu bucho de novo!” Brabo que tava. O sinhô sabe qual foi o retruco? O assubio. Que continuô lindo daquele jeito que só o Assubiadô fazia. E não parava, e não parava. O Chico Diabo se vortô pra oiá se não era ninhum garimpêro que tava se engraçando em ‘remedá o assubio do Assubiadô. Mas não era, não: tava tudo de bico fechado, cun’beiço pregado de vexado que tava tudo. Devia de pensá o Chico Diabo: cumé que podia o disgracento fugi se tinha ele certidão que tinha metido bala no desinfeliz? Foi antão que o Chico Diabo, pra móde não passá vergonha na frente dos trabaiadô que ele bulia, pegô os ôme dele no ligêro e se foi-se ‘imbora no camionetão do coroné Vaca-Brava cuspindo fogo pelas venta.
Ficô tudo mundo estaqueado, sem entendê o assucedido. E o assubio do Assubiadô cismava nus’ovido da gente. Ou era os passarim das árvre que fazia? Ficô uns achando disconfiado que fosse sempre o gogó dos bichinho que assubiava, e não o Assubiadô. Pudia. Mas pudia sê tumbém que o espetro daquele ôme tivesse ido pra árvre, aquele pinhêro-manso qu’ele tanto gostava, que já era quase iguar a ele mêmo: árvre e gente. Teve inté um que disse: “É o espríto dele, cês não enxerga?” Eu, seu moço, posso lhe dizê que eu não vi espríto ninhum. Mas vai sabê se não era mêmo? Otros, inda achava que era o Assubiadô mêmo, que tava já lá no cér essas hora encostado num travissêro de núve assubiando pros lá no chão, se rindo, gracejado.
Ninguém sôbe dizê donde foi pará o cadáve do Assubiadô. Se fugiu, se saiu avoando, se entrô pra dentro da árvre. Era tão minguado o judiado que, no acertado, um tiro só serviu pra fazê ele sumi todinho duma vêiz só! Só sei lhe dizê que não que dispois desse ocurrido ninguém mais enxergô o Assubiadô, nem lá nem em lugá ninhum paricido ou desparicido c’aquele.

Quero não tê ‘borrecido o sinhô cué’ssa história toda. Foi não? Bão! Me dá sastisfação de sabê. Inda mais hoje, que vivo aqui, tão longe de lá d’onde passei tanto tempo da vida. E adispois é o sinhô que tá me fiando, o sinhô, sujeito letrado, conhecedô das cosa boa desse mundão aí. Decerto, deve de tê mêmo nessa história ‘cabrunhada que lhe prosei cosa boa tumbém, né? E adescurpre se distraí dalgum bucadim de história. Cabeça de gente véia quinem eu dêxa passá as cosa. É que já fáiz tanto tempo isso tudo! Ara, se fáiz! Me arrecordo bem sim é de quando foi esse ocurrido: otubro de doismilequinze.


A Lenda do Assubiadô
a partir do argumento original de Lucio Agacê
ilustração de Cly Reis