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quarta-feira, 8 de abril de 2020
Música da Cabeça - Programa #157
Achatadores de curva de plantão, vamos dar uma folga pro coronavírus e prestar atenção noutras curvas: as das ondas sonoras do Música da Cabeça! Gente como Fela Kuti, Toni Tornado, Vince Guaraldi, Bob Marley e Bauhaus são alguns dos que nos ajudam nessa empreitada. Também nossos quadros fixos de notícia e poesia, além do móvel "Cabeça dos Outros". Tudo às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. #ficaemcasa
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Steve Winwood - "Steve Winwood" (1977)
"Eu queria fazer um álbum em que não tivesse que discutir com ninguém sobre quais músicas fazer e como fazer.”
Steve Winwood, em 1977 para a Rolling Stone
Instado pelo colega e amigo Carlos Guimarães, este é um dos discos da minha lista de 10, 15, 20 ou mais discos preferidos da casa. Em especial, esse aqui me traz lembranças de janeiro de 1978, quando eu recém havia passado no vestibular e resolvi me dar de presente dois LP's que comprei no Zaffari Ipiranga (velhos tempos em que a discoteca do supermercado tinha coisas muito boas). O primeiro já coloquei numa lista anterior, "Pirão de Peixe com Pimenta" do Sá & Guarabyra. O outro foi o primeiro disco solo do Steve Winwood, que levava o nome dele, de 1977.
O álbum foi massacrado pela crítica americana, mas eu acho que eles se equivocaram. É um baita trabalho com as participações dos ex-Traffic, o baterista e cantor Jim Capaldi, e o percussionista Reebop Kwaku Baah. Tem ainda o Willie Weeks no baixo, Andy Newmark na batera e o guitarrista do Bob Marley, Junior Marvin, numa música.
A voz maravilhosa, guitarra e teclados de Winwood dominam o disco, que tem uma balada demolidora chamada "Let Me Make Something in Your Life" e um groove que tocou no rádio na época, "Time is Running Out".
**********
FAIXAS:
1. "Hold On" - 4:32
2. "Time is Running Out" - 6:30
3. "Midland Maniac" (Winwood) - 8:32
4. "Vacant Chair" (Winwood, Vivian Stanshall) - 6:54
5. "Luck's In" - 5:23
6. "Let Me Make Something in Your Life" - 5:33
Todas as composições de autoria de Steve Winwood e Jim Capaldi, exceto indicadas
**********
OUÇA O DISCO:
Steve Winwood - "Steve Winwood"
por Paulo Moreira
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Música da Cabeça - Programa #131
Saiba: tudo mundo foi criança, inclusive os artistas que compõem a playlist do Música da Cabeça de hoje. Vai ter diversão para todos os gostos: do reggae de Bob Marley ao punk da New York Dolls; do pop sensual de Marina ao samba-rock de Jorge BenJor; da soul melodiosa de Stevie Wonder ao brit-rock da The Smiths. Quer brincar com a gente? É só chegar aqui, às 21h, no parquinho da Rádio Elétrica. Tá tudo mundo convidado! Produção, apresentação e atividades lúdicas: Daniel Rodrigues.
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
domingo, 13 de janeiro de 2019
Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2018
Abre o olho, Babulina, porque Caê tá chegando
e o Síndico tá chamando pra briga.
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Além disso, foi ano de Copa do Mundo e, como temos feito, unimos música e futebol em publicações espaciais onde o artista ou sua obra tivesse alguma relação com o esporte mais amado do mundo, como foi o caso do apaixonado por futebol Bob Marley, dO Rappa cujas letrar volta e meia remetem a futebol e do Iron Maiden, cujo baixista é quase um hooligan e que já tentou inclusive jogar no seu time de coração.
Isto colocado, como sempre fazemos, todo ano, vamos àquela repassada na nossa seção de grandes discos atualizando os números e verificando aqueles que têm mais discos indicados, países com maior número de representantes, os anos e as décadas que mais se destacam em número de grandes obras citadas e o que mais mereça destaque neste ano que passou nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, como, por exemplo, o fato de 2018 ter sido um ano de muitas estreias nos AF's. Muitos artistas que, por sua biografia, importância em sua época, seu segmento ou no cenário musical geral, já deviam ter dado as caras por aqui há muito tempo, apareceram pela primeira vez neste ano, como é o caso de nomes como Bob Marley, que foi um dos nossos AF ClyBola, da diva Aretha Franklin, do Kiss, T-Rex e do lendário Queen que fez seu debut por aqui. Por outro lado, poucos se repetiram e, assim, especialmente nos internacionais, as posições de cima não se alteraram muito, apenas com o Iron Maiden e os Kinks entrando para o time dos que têm três álbuns fundamentais e aproximando-se do pessoal com quatro álbuns (Who, Floyd, Kraftwerk...) e um pouco mais dos líderes Beatles, Stones e Bowie que seguem na ponta com cinco discos cada.
Nos nacionais a movimentação também não foi grande mas dois artistas deram uma emoção à "disputa pela liderança": com um disco de Caetano Veloso e um de Tim Maia, poderíamos tê-los empatados na ponta com Gilberto Gil e Jorge Ben. Mas isso se, lá no início do ano, o Babulina não tivesse colocado mais um entre os fundamentais e garantido sua posição no topo entre os brasucas.
Na disputa por países, ainda que os norte-americanos ainda mantenham um boa vantagem na liderança, em 2018 os ingleses fizeram quase o dobro de indicações que os yankees e diminuíram um pouco a desvantagem para os brasileiros que haviam se distanciado no ano anterior
No que diz respeito a épocas, a marcante década de 70 continua liderando, acompanhada, com uma distância bem confortável, pela década de 80. Só que quando falamos em anos, é o de 1986 que manda, com nada menos que 20 discos, seguido pelo seu ano anterior, o de 1985 e o ano de 1976, cada um com 16 álbuns na nossa lista.
O ano que entra promete movimentação nos placares, especialmente de artistas, tanto nacionais quanto internacionais, uma vez que a vantagem dos líderes é pequena e quem vem logo atrás não tá pra brincadeira.
As comemorações dos dez anos acabaram mas não é por isso que não continuaremos tendo participações especias nos AF. Além das habituais colaborações de Paulo Moreira, Leocádia Costa, Lucio Agacê, com certeza teremos durante ao ano a contribuição de amigos tão apaixonados por música quanto nós e que sabem que os álbuns de suas coleções e de seus corações são simplesmente fundamentais.
Vamos conferir então como ficaram as coisas por aqui depois deste último ano:
PLACAR POR ARTISTA INTERNACIONAL (GERAL)
- The Beatles, David Bowie e The Rolling Stones: 5 álbuns cada
- Kraftwerk, Miles Davis, Talking Heads, The Who e Pink Floyd: 4 álbuns cada
- Stevie Wonder, Cure, Smiths, Led Zeppelin, John Coltrane, Van Morrison, Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, John Cale* e Bob Dylan: 3 álbuns cada
- Björk, The Beach Boys, Brian Eno*, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Lee Morgan, Lou Reed, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, R.E.M., Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Velvet Underground e Wayne Shorter: todos com 2 álbuns
*contando com o álbum de Brian Eno com JohnCale ¨Wrong Way Out"
PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)
- Jorge Ben: 5 álbuns*
- Gilberto Gil*, Tim Maia e Caetano Veloso: 4 álbuns*
- Chico Buarque, Legião Urbana, Titãs e Engenheiros do Hawaii: 3 álbuns cada
- Baden Powell**, Gal Costa, João Bosco, João Gilberto***, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão e Sepultura: todos com 2 álbuns
** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
*** Contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"
PLACAR POR DÉCADA
- anos 20: 2
- anos 30: 2
- anos 40: -
- anos 50: 15
- anos 60: 79
- anos 70: 117
- anos 80: 100
- anos 90: 75
- anos 2000: 11
- anos 2010: 11
*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1
PLACAR POR ANO
- 1986: 21 álbuns
- 1976 e 1985: 16 álbuns cada
- 1968 e 1977: 15 álbuns cada
- 1967: 14 álbuns
- 1971, 1972, 1973 e 1991: 13 álbuns
- 1965, 1969, 1975, 1979 e 1992: 12 álbuns cada
- 1970, 1987 e 1989: 11 álbuns cada
- 1966 e 1980: 10 álbuns cada
PLACAR POR NACIONALIDADE*
- Estados Unidos: 146 obras de artistas*
- Brasil: 116 obras
- Inglaterra: 102 obras
- Alemanha: 8 obras
- Irlanda: 6 obras
- Canadá: 4 obras
- Escócia: 4 obras
- México, Austrália, Jamaica e Islândia: 2 cada
- País de Gales, Itália, Hungria, Suíça e França: 1 cada
*artista oriundo daquele país
C.R.
terça-feira, 26 de junho de 2018
Bob Marley & The Wailers - "Burnin' " (1973)
"Futebol é uma arte completa em si.
É todo um universo.
Eu amo futebol porque é preciso
ser um artista para praticá-lo.
Quando nós jogamos futebol,
também fazemos música.
Eu preciso disso.
Liberdade! Futebol é liberdade."
Bob Marley
É todo um universo.
Eu amo futebol porque é preciso
ser um artista para praticá-lo.
Quando nós jogamos futebol,
também fazemos música.
Eu preciso disso.
Liberdade! Futebol é liberdade."
Bob Marley
Aproveitando o ensejo da Copa do Mundo, dessa coisa toda de futebol, aproveitamos para incluir entre os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS um artista que, com certeza, por sua representatividade, por sua obra, por sua ascendência já merecia há algum tempo aparecer por aqui, mas que, na verdade, nunca fora destacado anteriormente na nossa seção de grandes discos pelo fato de seu estilo musical, embora gozando de todo nosso respeito e reconhecimento, não figure entre os favoritos do blog. Mesmo assim talvez algum convidado, como costumeiramente temos, resolvesse vir a escrever sobre ele mas como nunca aconteceu, resolvemos fazer justiça.
Bob Marley, cantor e compositor jamaicano, é, sem dúvida alguma, um dos maiores nomes da música mundial e um dos artistas mais influentes de todos os tempos, sendo sua obra engajada, e contestadora, símbolo de lutas por toda forma de liberdade.
Bob Marley correndo atrás da redondinha e, ao lado,
com ilustres parceiros de pelada,
Chico Buarque, Toquinho e o craque Caju.
|
Destacamos aqui o disco "Burnin' " de 1973, que, depois da ótima recepção do disco anterior, "Catch a Fire", projetou definitivamente Marley e sua banda ao reconhecimento internacional, marcando contudo, o fim da participação de Peter Tosh, junto aos Wailers. Além de divergências e desentendimentos pessoais, Tosh, outro ícone do reggae, sentira-se incomodado com a separação do nome da banda do nome de seu frontman, o que acontecera exclusivamente por vontade da gravadora, que pretendia (e conseguira com êxito) torná-lo um grande nome individual.
"Burnin' ", salvo todas as questões periféricas, é um disco de incitação, de convocação, de chamamento às armas contendo algumas das letras mais incisivas de Marley e Tosh nesse sentido. Destaque especial para os sucessos, mundialmente conhecidos, "Get Up, Stand Up" e "I Shot The Sheriff", gravada posteriormente por Eric Clapton, mas também para "Pass It On", "One Foundation" e "Rastaman Chant".
A trajetória de Marley infelizmente foi curta, abreviada, ironicamente, por sua outra paixão, o futebol. Um pisão no pé, numa pelada, teria gerado uma lesão que, não tratada devidamente, se transformara num melanoma que se espalhara pelo corpo, levando o cantor à morte poucos meses depois.
Pena que exatamente o esporte que Marley tanto amava e relacionava de forma tão afetuosa e direta à sua música tenha sido a origem de toda sua tragédia. Mas tenho certeza que de onde estiver, Marley não culpa o futebol pelo fato de não estar mais entre nós. Quem ama o futebol como Bob Marley amava, sabe que o esporte mais praticado no mundo, assim como a música dele, se bem utilizado, pode ser um grande instrumento de transformação, congraçamento e paz.
*************
FAIXAS:
- "Get Up, Stand Up" (Marley/Tosh) - 3:16
- "Hallelujah Time" (Livingston) - 3:28
- "I Shot the Sheriff" (Marley) - 4:41
- "Burnin' And Lootin" (Marley) - 4:15
- "Put It On" (Marley) - 3:13
- "Small Axe" (Marley) - 4:01
- "Pass It On" (Livingston) - 3:33
- "Duppy Conqueror" (Marley) - 3:44
- "One Foundation" (Tosh) - 3:42
- "Rastaman Chant" (Trad., arr. Marley/Tosh/Livingston) - 3:47
Ouça:
Bob Marley - Burnin'
Cly Reis
segunda-feira, 18 de junho de 2018
Nei Lisboa - Show "Duplo H" - Teatro Renascença - Porto Alegre/RS (12/06/2018)
O show, muito bem intitulado “Duplo H”, referência às letras iniciais em comum do título de cada disco, fez lotar o Teatro Renascença em duas sessões naquele dia, sendo a anterior a que assistimos extra, devido à grande procura. Tocando os dois discos inteiros e na sequência, um simpático e sempre sagaz Nei Lisboa hipnotizou o público com o repertório ao mesmo conhecido, mas capaz de emocionar ao ser reouvido – ainda mais considerando a egrégora particular da ocasião.
Com Nei e Paulinho Supekóvia no violão/guitarra e Luis Mauro Filho ao piano/teclados, a apresentação deu a largada, conscientemente, pelas 14 faixas de “Hi-Fi”, cujo formato acústico original mostrou-se ideal para “começar os trabalhos” e por caber mais a este tipo de formação do conjunto. Os standarts, hits e AOR da música pop internacional, muito bem pescados por Nei para o set-list de “Hi-Fi”, são imbatíveis, visto que muito afins com o estilo e gosto pessoal dele. Tocando e, principalmente, cantando muito bem, Nei e a banda executaram as versões já tão queridas quanto suas originais, oscilando entre o folk, o blues, o country rock e as baladas no estilo da “Mellow Mafia” dos californianos anos 60/70. Casos de “Everbody's Talking”, do norte-americano Fred Neil; a linda “Summer Breeze”, da dupla setentista Seals & Croft; a beatle “Norwegian Wood”; “Fifity Ways to Leave you Lover”, do craque Paul Simon; e a sensibilíssima releitura de “Still... You Turn Me On”, da Emerson, Lake & Palmer.
Nei, ao centro, com sua enxuta e competente banda |
Completado “Hi-Fi”, agora era partir para as desafiadoras 11 faixas de “Hein?!”. Desafio duplo: primeiro, porque a formação do grupo não contava com bateria, fator essencial para a sonoridade do disco de 1988. “Como Nei vai resolver o arranjo?”, perguntava-me enquanto curtia o primeiro “H” da noite. O segundo desafio era mais íntimo ao próprio autor, uma vez que o disco foi composto sob a aura de uma tragédia na vida de Nei: a perda da então namorada, Leila Espellet, com quem se acidentou de carro na estrada, matando-a. “Como está o coração dele hoje, passadas três décadas, depois daquele acontecimento fatal? O que guarda no peito ainda: culpa, remorso, saudade, serenidade?”, passava-me à mente.
Parte da resposta veio na conversa com a plateia antes de começarem os números. De forma muito aberta e bonita, Nei pediu uma salva de palmas à memória da ex-companheira e executou na íntegra aquela que é apenas uma vinheta de abertura no álbum, “Zen”, escrita para o filho de Leila, à época com apenas 6 anos de vida. A música, a qual não conhecia por completo, apenas os poucos versos que foram parar na edição final de “Hein?!”, são um tocante recado de conforto de um padrasto talvez tão perdido e triste quanto àquele então pequeno órfão. “A vó da gente é mãe/ Da mãe da filha/ A filha da tia/ O pai do filho/ O espírito são/ Gente do bem, do mal/ Gente gorda, gente fina/ Quando vai pro céu/ O céu se ilumina”, diz a letra. Noutra parte (que também não consta no disco), Nei mostra o quanto aquelas palavras são tanto para ele quanto para o garoto: “Não tem desculpa, não tem culpa/ A culpa é sempre minha/ A culpa é da vizinha/ É uma chatice infernal.”
Um show carregado de canções fortes e emocionais já começou assim! O coração seguiu batendo forte com “No Fundo” e a brilhante faixa-título, uma das melhores do cancioneiro do gaúcho de Caxias do Sul. Nela foi possível conferir o acerto na escolha do arranjo, visto que se trata de uma música-chave do disco e que, se não funcionasse sem a bateria (possante nas baquetas de Renato Mujeiko no disco de 1988), correria sério risco de perder intensidade e, por consequência, identidade. Não foi o que aconteceu. Harmonizando com o arranjo dado à primeira parte do show, o formato violão/guitarra/teclado se encaixou muito bem também na segunda metade da apresentação. A mesma sensação ficou em outras duas igualmente adoradas por mim e pela plateia: a sentida “Nem Por Força” (“Nem por força do diabo/ Eu volto a vegetar/ Nessas malditas esquinas/ Na pressa de te encontrar”) e “A Fábula (Dos 3 Poréns”), debochada mas igualmente ferida pela perda que a motivou ser escrita: “Quebrei uns vinte, trinta espelhos/ De perguntar/ Se tinha alguém mais bela que ela/ Noutro lugar/ Comi todas maçãs da feira/ Pra adormecer/ E em vez do príncipe encantado/ Veio um baixinho assim”.
“Faxineira”, um blues elétrico, ganhou uma sonoridade de piano-bar muito adequada, além de uma leve modernização na letra que, segundo Nei, são para a “faxineira empoderada” dos tempos atuais. Outras que sofreram adaptação para o arranjo foram a country-rock “Fim do Dia”, menos acelerada, e o sucesso “Telhados de Paris”, que, embora parecesse a mais fácil de se adaptar – haja vista que é originalmente só no violão e voz –, ganhou o acertado acompanhamento do piano de Mauro Filho e teve a linha vocal levemente modificada. Nada que comprometesse um dos hinos da Porto Alegre moderna.
Mas os questionamentos que levantei intimamente no início do show sobre o envolvimento emocional de Nei Lisboa com o marcante motivo de “Hein?!”, mesmo que não tenham sido respondidos totalmente, deram-me a entender que permanecem de alguma maneira ainda latente nele, homem amadurecido e vivido em relação àquela época da composição do disco, anos 80. O que talvez tenha me passado a impressão de que as baladas não eram de uma época, assim, tão remota foi a supressão dos últimos versos de uma das preferidas da galera: “Baladas”. Emotiva, a canção fala sobre a referida perda de Leila e a briga interna para manter-se íntegro e desvencilhado do passado. Porém, os versos de “Baladas” escritos depois do acidente, como relatou Arthur de Faria, desta vez não foram cantados: "Só, muito além do jardim/ Viajo atrás de sombras/ Não sei a quem chamar/ Mas sei que ela diria ao acordar/ ‘Tudo bem/ Você me arrasou, meu bem/ E qualquer dia desses eu como as tuas bolas/ Mas agora esqueça o drama na sacola/ Não puxe o cobertor/ Não tape o sol que resta nessa dor’/ Foi bom: não durou”.
Se Nei optou por não cantá-los por não enxergar-lhes mais sentido ou por qualquer outro motivo, os da talvez ainda mais carregada “Teletransporte nº 4” foram ditos na íntegra. Faixa que finaliza o disco num clima de balada triste, foi tocada exatamente como é originalmente: violão, guitarra, piano e muita dor. E que versos fortes! “Porém o céu parece estúdio/ Nem o silêncio não diz nada/ Mesmo essas frases vão pro lixo/ São como lenços de papel/ Ainda por cima aquelas pernas/ Algumas coisas serão eternas/ Que bela ideia acreditar/ Que o mundo te aprendeu.” Para arrebatar os corações apaixonados em pleno 12 de junho.
Depois de 25 sessões em que a carga emocional só foi aumentando, partindo das músicas de “Hi-Fi” para as de “Hein?!”, Nei Lisboa encerra com uma que não entrou no repertório do primeiro por acaso: “Live and Let Die”, de Paul McCartney, numa competentíssima versão que dispensou até a orquestra que embala as aventuras de James Bond. Show perfeito do início ao fim deste que é um dos ícones da cultura de Porto Alegre. Se já tinha assistido ao vivo Tangos & Tragédias, Replicantes, De Falla, Renato Borghetti e Orquestra da Ospa na Praça da Matriz, faltava-me um show de Nei Lisboa para completar a lista dos patrimônios culturais da minha cidade. Uma estreia de luxo.
SET-LIST:
"Hi-Fi":
1 Everbody's talking
(Fred Neil)
2 Bennie & The Jets
(Bernie Taupin, Elton John)
3 Summer breeze
(Dash Crofts, Jim Seals)
4 Norwegian wood
(John Lennon, Paul McCartney)
5 Sometimes it snows in April
(Lisa Coleman, Rogers Nelson, Prince, Wendy Melvoin)
6 Fifty ways to leave your lover
(Paul Simon)
7 I'm having a gay time
(Alberta Hunter)
8 That's why God made the movies
(Paul Simon)
9 Walking away blues
(Ry Cooder, Sonny Terry)
10 Still... you turn me on
(Lake)
11 Cool water
(Nolan)
12 Ventura highway
(Deney Bunnel)
13 I shot the sheriff
(Bob Marley)
14 Ruby Tuesday
(Mick Jagger, Keith Richards)
"Hein?!"
15 Zen [Vinheta]
16 No fundo
17 Hein!?
18 Nem por força
(Ricardo Cordeiro, Nei Lisboa)
19 A fábula [Dos três poréns]
20 Faxineira
21 Baladas
22 Rima rica / Frase feita
23 Fim do dia
24 Telhados de Paris
25 Teletransporte n 4
(Glauco Sagebin, Nei Lisboa)
Todas composições de Nei Lisboa, exceto indicadas
Bis:
26. Live and Let Die
(Paul McCartney)
texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa
segunda-feira, 20 de novembro de 2017
Gilberto Gil - "Refavela" (1977)
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra” do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê |
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/ Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela" |
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros, buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"
Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"
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FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas
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OUÇA
por Daniel Rodrigues
segunda-feira, 7 de setembro de 2015
Caetano Veloso & Gilberto Gil – “Dois Amigos, Um Século de Música” – Auditório Araújo Vianna – Porto Alegre/RS (28/08/2015)
Caetano e Gil, pura genialidade.
foto: Júlio Cordeiro
|
“Gil é um rouxinol de grandes
mistérios”.
Caetano Veloso
“Eu faço música primeiro pra mim,
depois pra ele e depois pros outros”.
Gilberto Gil,
sobre Caetano
Sabe aqueles acontecimentos em que se cria uma grande expectativa e a
recompensa vem completa? Pois ter assistido Caetano Veloso e Gilberto Gil juntos e ao vivo foi assim: momento completo de se guardar para a vida.
Folgados os nós dos sapatos, das gravatas, dos desejos e dos receios, fui, na
doce e astral companhia das hermanas Leocádia e Carolina, ao Araújo Vianna presenciar uma noite inesquecível na
cidade (ao menos, a nós). Dois gênios vivos da arte mundial celebrando algo
incomparável e irrepetível: a união de 50 anos de carreira de cada um. As vivências
artísticas e próprias ou em comum; as conexões com vários tempos e movimentos;
a confluência com diversas manifestações da Arte e culturas; a musicalidade e a
poesia constantemente desenvolvidas ao longo dos muitos anos; as parcerias
entre eles e com outros. A significância inequívoca de cada um dentro do cenário
sociocultural brasileiro e mundial. Enfim: uma gama de motivos que fazem de “Dois Amigos, Um Século de Música” um
marco só por sua realização.
Porém, no palco, Caetano e Gil justificam o show, cuja turnê, iniciada
na Europa, em junho, passou pelo Brasil e já ganha a América Latina. Repertório
escolhido com inteligência e cuidado, como sempre fizeram em seus projetos.
Aliás, conheço essa qualidade não só dos discos ao vivo mas por já ter
assistido tanto a um quanto outro por duas ocasiões. Coincidentemente, as duas
primeiras vezes nos anos 90, quando cinquentões, e as recentes há bem pouco
tempo: 2013 (Gil, “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo”), e 2014
(Caetano, "Abraçaço"), já passados dos 70 anos. Pela tevê ainda tive, em 1993,
a oportunidade de assisti-los num memorável megashow aberto em São Paulo com
duas superbandas mais a cozinha da Timbalada com Brown e tudo por ocasião do
disco “Tropicália 2” (à época, gravei em VHS e revi várias vezes o que hoje tem
no Youtube). Ou seja: vê-los agora de novo e reunidos é como se fechasse um
panorama de compreensão da extensão e da perenidade de suas obras ao longo do
tempo, esse “tambor de todos os ritmos”.
E foi justo a diversidade de ritmos que, trazidos pelo ecletismo
tropicalista ainda hoje revolucionário, pautaram o show. O arrebatamento se deu
do primeiro ao último acorde. O inicial, aliás, foi de emocionar qualquer um
que admire e entenda um pouco de suas obras. A música escolhida para abrir o
espetáculo foi a magistral “Back in Bahia”, rock
‘n’roll escrito por Gil na volta do exílio de Londres, início dos anos 70,
na qual ele expõe de forma madura, consciente e transformadora tudo o que
aprendeu com a (que poderia ter sido) traumática experiência. O tom de
identificação de um se refletiria no outro durante todo o desenrolar do show –
aliás, uma mostra daquilo que um sempre foi para o outro: um espelho. Foi o que
aconteceu no número seguinte. Se “Back...” traz as reminiscências de Gil de um
período marcante de sua vida, Caetano preferiu reviver outro tipo de memória
afetiva com a bossa nova que abriu seu primeiro disco (na voz de Gal Costa, à
época), em 1966: “Coração Vagabundo”.
Arranjos bem pensados, ambos dividiram os violões e os microfones nas
duas de abertura para, na sequência, trazerem uma cantada por cada um. E foram
dois hinos tropicalistas: a própria “Tropicália”, numa bela e impensável versão
acústica (difícil imaginá-la sem a orquestração de Duprat) com Caetano à voz, e
a tocante “Marginália II”, poesia brasilianista de Torquato Neto que Gil,
magistralmente, musicara para o disco-manifesto “Tropicália” ou “Panis et
Circensis”, de 1968. Primeiro momento do show a me levar às lágrimas ao ouvir
Gil entoando aquela letra do mais alto lirismo e identidade: “A bomba explode lá fora/ E agora, o que vou temer?/ Oh, yes, nós temos banana/ Até pra dar e vender/
Olelê, lalá/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo...”
Passeando por suas histórias, foi a vez de reverenciar com afinco a
bossa nova e, mais que isso, ao ídolo João Gilberto. Outras duas dividindo os
vocais: “É Luxo Só”, samba de Ary Barroso “convertido” em bossa por João quando
da inauguração do estilo, em 1959, e “É de Manhã”, primeira composição de
Caetano e mais antiga escrita por um dos dois em todo o show, em 1963. Nesta, destacaram
a importância de Maria Bethânia, primeira da turma dos baianos a gravá-la e a registrar
uma música do irmão, então um jovem compositor iniciante.
Contraponto à canção mais antiga, num dos momentos especiais do show,
eles apresentaram uma composição de 2015, primeira parceria em 22 anos escrita
em São Paulo quando retornaram da temporada europeia. Ou seja: somente São
Paulo e Curitiba, shows imediatamente anteriores ao de Porto Alegre, a tinham
escutado. Uma joia chamada “As camélias do Quilombo do Leblon”, samba poético e
filosófico que repensa as condições socioculturais que o Brasil tem de criar e colher,
como dizem os versos, “as camélias da
Segunda Abolição”. Numa resposta a toda polêmica gerada pela tentativa de
boicote do ex-Pink Floyd, Roger Waters, ativista anti-Estado de Israel, quando
da passagem dos brasileiros por Tel-Aviv, a letra não deixa por menos, evidenciando
as possibilidades emancipadoras que o miscigenado e “cordial” povo brasileiro (aka Sérgio Buarque de Hollanda e Domenico
de Masi) tem diante de outras civilizações do planeta: “Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron/ Rimos com as doces
meninas sem sair do tom/ O que fazer/ Chegando aqui?/ As camélias do Quilombo
do Leblon/ Brandir.”
Caetano, uma das maiores forças criativas da MPB.
foto: Júlio Cordeiro
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Uma sequência de várias de Caetano emocionou o público – de uma
complacência um tanto fria até então, mas que a partir dali se derreteu de vez.
Não era para menos, pois vieram a clássica “Sampa” e a não menos épica “Terra”,
talvez a mais bem arranjada de todo o show. Somente aos dois violões, de longe
superou a versão original, revelando toda a atmosfera etérea da melodia, com
seus traços árabes e folks. Enquanto
Caetano cantava com emoção e destreza, Gil percutia levemente na madeira do
pinho. No refrão, providenciava para o amigo todos os complementos que o
arranjo original suscita. As percussões cintilantes, o som da cítara, a viola,
o andamento cadenciado: tudo é substituído e condensado no dedilhar magistral
de Gil. De arrepiar.
Caetano emenda outras de três momentos importantes de sua carreira: “Nine
Out of Ten”, presente em "Transa", de 1972, seu melhor disco e que, gravado em
Londres, foi responsável por fazê-lo sair da depressão do exílio; “Odeio”, do
visceral “Cê”, já dos anos 2000, uma confissão de amor ao estilo rock: fazendo
sexo virtual a esmo, o que ele queria mesmo era a ex ali consigo; e a
castelhana “Tonada de Luna Ilena” (de Simón Diaz, que gravou em 1994, em “Fina
Estampa”), numa impressionante interpretação que, claro, tocou a nós gaúchos
tão próximos dos irmãos portenhos.
Mais outras três encantadoras tocadas em dupla: a excelente bossa nova
“Eu Vim da Bahia”, das primeiras composições de Gil; “Come Prima”, em que ambos
mandaram um afiado italiano; e "Super-Homem, a canção", noutro momento de emoção.
Caetano, com a afinação e o timbre doce que lhe foram presenteados por Deus,
começa cantando. Na segunda parte, Gil, comovido por ouvir o parceiro, engasga
a voz e é aplaudido.
Gil e o violão qu expressa tudo.
foto: Júlio Cordeiro
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O repertório, seguindo o conceito de espelhamento, trouxe, então, uma
série com Gil, começando pela gostosa “Esotérico”, cantada em coro pela plateia.
Tomado pela acolhedora egrégora criada pelos dois, me deu até a impressão de
esta ser uma música de Caetano – embora saiba que é de fato de Gil – devido às
repetições de versos, às assimetrias de métrica e o tom desafiador típicos
deste. Depois, esmerilhando as cordas, Gil sacou uma impecável “Tres Palavras”,
do mexicano Osvaldo Farrés, para, na sequência, emocionar novamente todos com
“Drão” que – assim como ocorrera antes, quando o companheiro desnuda-se ao
tocar “Odeio” – revela a dor da separação da antiga esposa. Caetano, que a
gravou em 1998 (no ao vivo “Prenda Minha”), nem ousou cantar junto.
Aliás, a deferência e a admiração de Caetano para com Gil ficam visíveis.
Não que ele se apequene; não que desconheça seu tamanho e relevância; mas Caê
reverencia “aquele preto que ele gosta” e deixa que ele estabeleça o clima do
show, o qual se dá de forma leve e elevada. Bonito de se perceber. Em “Expresso
2222”, obra-prima visionária de Gil, é ele quem, além de tanger os complexos
acordes da melodia, comanda o forró que se instala. O Araújo Vianna dança. No
embalo da animação, vem o afoxé “Toda Menina Baiana”, outro clássico.
Junto com a nova composição já apresentada, a lírica “São João, Xangô
Menino” é a única do set-list
composta em parceria. Linda, outra que me emociona sempre (e não foi diferente
desta feita), principalmente no refrão de versos móveis, um verdadeiro canto de
louvor à riqueza do folclore nacional e às forças da natureza: “Viva São João/ Viva o milho verde/ Viva São
João/ Viva o brilho verde/ Viva São João/ Das matas de Oxóssi/ Viva São João”. A
crença e a espiritualidade voltam em outro sucesso de Gil: “Andar com Fé”. Na
mesma atmosfera, eles enfim me desmontam ao tocarem "Filhos de Gandhi". Das
melhores e mais significativas canções de todo o vastíssimo cancioneiro de Gil.
Um privilégio ouvi-la ali naquela ocasião tão especial, acompanhado de quem
estava e, tendo recentemente ido à Bahia e sentido todo esse universo que a
canção carrega. E ainda mais com Caetano entoando junto essa verdadeira oração
aos orixás (“Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré/
Todo o pessoal/ Manda descer pra ver/ Filhos de Gandhi...”).
O primeiro bis teve uma que já nasceu clássica: “Desde Que o Samba e
Samba”, a qual parece ter sido composta por aqueles bambas dos anos 30/40 tipo
Wilson Baptista ou Ataulfo Alves. Mas não: é do próprio Caetano e do já
mencionado “Tropicália 2”, dos anos 90 – que teve também a eletrizante “Nossa
gente” no repertório. “Luz de Tieta”, forte e cantarolável, não foi suficiente
para que os deixassem ir embora. Teve ainda um segundo bis com a beatle “Leãozinho”, muito querida da
plateia, uma impressionante "Domingo no Parque", em que Gil novamente faz
daquele violão uma orquestra completa e, fechando de vez a apresentação, “Tree
Little Birds”, de Bob Marley. Um final alegre e sereno.
Caê e Gil, andando com fé pela música.
foto: Júlio Cordeiro
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Poucas foram as repercussões pré ou pós na cidade. Parafraseando
Caetano, o “silêncio sorridente de Porto Alegre” de quem não quer
admitir admiração por outrem. Talvez, em decorrência de um intimidamento
provocado pela interferência internacional de Roger Waters ao show de Israel
(muitos pensaram alarmados: “Nossa, um
estrangeiro importante dando atenção para tupiniquins como eu?!”) ou pela
polêmica em torno do valor dos ingressos, “caros demais para artistas que se
dizem populares”, como ouvi. Uma proposital confusão entre “popular” e “populista”
de quem não se autoentendeu diante da situação de existirem representantes do
seu país com merecido destaque tanto lá fora quanto aqui – haja vista que a
turnê de “Dois Amigos, Um Século de Música” foi um sucesso na Europa. Detração
que vem, certamente, de quem criticou o preço do ingresso de um show como este
(que não teve nada de diferente de qualquer outra bilheteria de artista
brasileiro, muitas vezes infinitamente menos expressivo) mas paga caro para ver
algum dinossauro do rock caquético e descontado que vem tirar uma grana naquela
cidade que se submete a isso. Desculpe frustrá-lo, Caetano, mas Porto Alegre
não faz jus à sentença de que a “verdadeira
Bahia é o Rio Grande do Sul”.
De minha parte, só elogios. Uma ocasião que, até pelo mote, jamais se
repetirá, e sabe-se lá se ainda tocarão assim juntos novamente em vida. Óbvio
que, como fã, passou-me pela cabeça músicas das preferidas que não foram incluídas,
como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Cajuína”, “Cores Vivas”, “Palco”, "Lamento Sertanejo", “Aqui e Agora”. Ou mesmo não terem escolhido apenas duas
das coautorias: quiçá uma “Divino Maravilhoso”, “Iansã”, “Haiti”, “Panis et
Circensis”, “Cinema Novo” ou “Beira-mar”. Mas é evidente que, em 100 anos de
carreiras somadas tão profícuas quanto extensas e constantes, fica impraticável
condensar tudo em uma hora e meia. Ao menos, foi possível neste tempo sentir a
riqueza infindável da arte que emana de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Minutos,
na verdade, dentro de toda a amplidão. Minutos que valeram por um século.
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Caetano Veloso e Gilberto Gil - As Camélias do Quilombo do Leblon - Porto Alegre 28/08/2015
por Daniel Rodrigues
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