“Apesar de carioca,
sempre tive
uma ‘visão exterior’
ligada ao resto do Brasil.
Meus pais viajavam muito
pelos
interiores de Minas, São Paulo e Rio,
e isso, junto com as viagens que fiz com
Guarabyra
ao então ignoto e isolado sertão do São Francisco,
me deram o
necessário banho-Brasil.
Hoje sou um anel carioca folheado a sertão.”
Sá
“Concordo.
E concordo também com
a crítica
que acha que outros é que são (risos)."
Guarabyra,
sobre a crítica
considerar “Pirão de Peixe com Pimenta”
o melhor disco da dupla
Era começo de 1978, eu recém tinha passado no vestibular. Estava feliz
porque tinha entrado no Jornalismo de primeira depois de “matar” o cursinho no
sentido de que ia às aulas, mas sentava na última fila, onde se juntavam os
malucos, baderneiros e afins. O mês era janeiro, tava um calorão e fui no
Zaffari Ipiranga comprar uns discos (é, na época tinha discos pra vender no
Zaffari: “economizar é comprar bem”). Dei de cara com um que tinha ouvido no rádio
– 1120 Continental, por supuesto – e
tinha gostado da música. Se chamava “Pirão
de Peixe com Pimenta”, da dupla Sá
& Guarabyra. Acompanhava os caras desde os tempos do rock rural que
tinha eles mais o Zé Rodrix e do lendário jingle da Pepsi (“Hoje existe tanta gente
que quer nos modificar...”). Dei uma ouvida e comprei sem pestanejar. Pois este
disco me acompanha desde aquele tempo e é um dos meus discos favoritos.
A aventura musical começa com “Sobradinho”, música deles, talvez uma
das primeiras a falar dos desmandos do poder público quando resolve que
destruir a natureza é mais importante do que preservá-la. E a letra é explícita
desde o começo: “O homem chega/ já desfaz
a natureza/ tira gente põe represa/ diz que tudo vai mudar... E passo a passo
vai cumprindo a profecia do beato/ que dizia que o sertão ia alagar/ O sertão
vai virar mar/ dá no coração/O medo que algum dia o Mar também vire sertão... Remanso,
Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado, Sobradinho, Adeus, Adeus”. Preocupações
ecológicas numa roupagem rock rural e a harmônica do mestre Maurício Einhorn
percorrendo a canção. Grande sucesso na época, que só foi ofuscado na fase
“Roque Santeiro” da dupla.
“Marimbondo”, uma parceria de Xico Sá com Marlui Miranda, bem ao estilo
onomatopaico da cantora. “Marimbondo vem
fazer sua casa/ em minha asa, za za/Sai azar marimbondo”. A banda base
composta por Sérgio Caffa ao piano, Sérgio Magrão (Ex-O Terço, atual 14 Bis) no
baixo, Luis Moreno na bateria e Chico Batera na percussão segura todas,
enquanto os violões e as violas caipiras de Sá e Guarabyra encontram o bandolim
de Quinintinho de Pirapora. No final, o narrador diz ao marimbondo que não pode
fazer sua casa lá porque “Eu já sou torto
e solto/ e não posso te morar/ ou vai curtir a bananeira/ que tem eira, eira,
eira e eu/ não tenho eira nem beira não/ tenho eira nem beira”. Viagens de
Xico e Marlui que S&G tornam palatáveis e, especialmente, audíveis.
Nesta fase, Sá e Guarabyra andavam muito curtindo o interior de
Minas Gerais e da Bahia, e isso se reflete nas canções. “Trem de Pirapora” faz
a defesa da vida interiorana: “O trem de
Pirapora já passou por essa pont / perdido em Montes Claros/ achado em Belo
Horizonte/ pirapora preta, preta barranqueira/ luz acesa até altas horas da
noite... cadeira na calçada fugiu pra dentro de casa/ da porta entreaberta
espreita a cara zangada...”. O arranjo de Nelson Ângelo valoriza as flautas
de Paulo Jobim, Danilo Caymmi, Franklin e Paulo Guimarães e as cordas no final.
“João Sem Terra” toca no drama dos imigrantes e dos sem-terra numa
levada sertanejo roqueira. “Desde pequeno
me chamam/ desde pequeno me chamam/ João Sem Terra/ Filho de um sol
estrangeiro/ que acabou me renegando/ fico onde chego primeiro/ João Sem
Terra”. A questão de quem chega numa terra desconhecida é bem explorada
pela dupla sem cair num rame-rame político-ideológico. Lá pelas tantas, a letra
diz: “ter de se andar para frente/ sem
olhar atrás o que se deixou/ não se deseja o pior inimigo/ tão sujo presente...
ter de lembrar todo o dia/ o medo que te fez deixar teu chão/ nem ao pior
inimigo/ se quer tão amarga recordação”. A dupla diz tudo e capta bem o
sentimento do imigrante e do sem terra. Grande música.
Pra fechar o lado 1 do LP, vem a faixa-título, que dá água na boca só
de ouvir: “Carne de Sol, pirão de peixe
com pimenta/ e uma boa Januária completando a refeição/ dizendo assim até
parece que é mentira/ de Sá & Guarabyra / coisa da imaginação...”. Com
um arranjo do mestre Rogério Duprat, a canção vira uma grande celebração num
coreto qualquer do interior do Brasil, com direito a bandinha. E esta comilança
toda fica lá. Tanto que S&G ficam muito saudosos e dizem: “Eh parada em Carinhanha/ Eh Zé Sales nosso
irmão/ Eh Ranchão de CorrentinA/ Eh paizinho de alemão/ vamos voltar no próximo
verão/ O Quincas nos espera pra inauguração”. Uma delícia de canção.
Abrindo o Lado 2, tem “Coração de Maçã”, uma metáfora da busca do amor. “Coração de maçã/ uma fruta aqui dentro do
peito/ que vive não fala/ tomada de horror/ pelos mistérios do mundo exterior”.
Nela, se destaca o piano de Caffa, que percorre a canção enquanto os violões da
dupla se misturam com as flautas de Paulo Guimarães e do lendário Copinha,
arranjadas por Guarabyra e Duprat. E este coração vive um amor ardente: “Coração de maçã/ lutando contra o verão que
queima este corpo/ febre equatorial/ bicho de amor/ Coração de maçã/ fechado e
guardado espera/ o sangue vermelho e novo/ da primavera/ pra que possa dar sua
flor”. Pelo jeito, tanto Sá quanto Guarabyra tiveram problemas com as
garotas com coração de maçã.
O experimento musical mais ousado do disco vem com “Cinamomo”, que tem
o baixo de Sérgio Magrão dando o tom e a flauta de Paulo Guimarães e as
marimbas de Chico Batera ajudando a criar um clima. A experimentação também se
dá na letra, uma poesia com jeito concretista, brincando com as sílabas: “Farta fumaceira/ faz este vapor/ moça
marinheira/ quem é teu amor/ nos cabelos belos bibelôs/ nos cabelos bibelôs/ E
um cinamo ci ci cinamomo/ E um cinamomo”. Deve se destacar também o piano
elétrico de Caffa, que faz harmonias dissonantes.
Depois, vem outro sucesso do disco, a popular “Espanhola”, gravada por
eles antes de estourar com Flávio Venturini, o autor da música junto com
Guarabyra. Esta versão traz uma banda completamente diferente: Cartier no viola
elétrica de 12 cordas; Burnier no violão; Gilson ao piano; Fernando Leporace no
baixo; e Nonato na bateria mais o arranjo maravilhoso de cordas de Eduardo
Souto Neto. A dupla só canta nesta linda canção que muita gente conhece, mas
deveria ouvir esta linda versão. “Por
quantas vezes/ eu andei mentindo/ só por não poder/ te ver chorando/ te amo
espanhola/ te amo espanhola/ se vais chorar/ Te amo”. Vale a pena conferir.
O momento mais divertido do disco vem a seguir com “Canção dos
Piratas”. O arranjo de Eduardo Souto Neto agora se utiliza dos metais com
trompas, trombones e tuba pra dar um ar de trilha sonora de filme de pirata. E
a letra é divertida: “Hoje o tempo parece
tranquilo/uma brisa soprada de leve/ ahey, ahey/ Hoje o mar mais parece um
espelho/ refletindo bonecos de neve/ ahey, ahey/ Diz o capitão que amanhã de
manhã/ se continuar esta viração/ nós vamos chegar no mar do Japão”. Os backing vocals de Lizzie Bravo, Rosana,
Ismail, Betinho e Didito ajudam S&G a dar o recado na canção, que tem o
arranjo mais rebuscado de todo o disco.
“Pirão de Peixe com Pimenta” termina com uma canção linda que remete
aos passeios no interior do Brasil, onde se pode ver a “Água Corrente”, pura e
cristalina (ou pelo menos se podia naquela época). A banda está reduzida ao
máximo com Sá na viola caipira, bandolim e guitarra slide; Guarabyra no violão;
Sérgio Caffa ao piano; Sergio Magrão no baixo e Moreno na bateria. A letra é
tão bonita que foi reproduzi-la inteira: “Água
corrente, pedra rolante/ desce contigo o meu coração/ leito de rio, esconderijo
e doce, doce prisão/ Deixa eu molhar minha voz e repetir a canção/ Água corrente,
pedra redonda/ Onde os segredos se vão afogar/ Leva a saudade pra quem te
espera longe/junto do mar/ Que nenhum desvio te possa deter/ por entre os
barrancos/ palavras de amor/ lá se vão na corrente”. Linda canção, que
encerra este disco e que tem um quê de country
rock, o irmão americano do rock rural brasileiro.
Sou fã desta dupla e dois anos depois eles lançaram mais um disco muito
bom e que, em breve vai estar aqui chamado “Quatro”. Mas isso é outra história.
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FAIXAS:
1. Sobradinho
2. Marimbondo (Xico
Sá/Marlui Miranda)
3. Trem De Pirapora
4. João-Sem-Terra
5. Pirão De Peixe Com Pimenta
6. Coração De Maçã
7. Cinamomo
8. Espanhola (Flávio Venturini/Guarabyra)
9. Canção Dos Piratas
10. Água Corrente
todas as composições de autoria
de Sá/Guarabyra, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO
por Paulo Moreira
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