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domingo, 7 de agosto de 2022

Caetano Veloso - “Estrangeiro” (1989)




“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.” 
Caetano Veloso


Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem. 

Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo. 

“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil. 

A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito. 

Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso 


Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious Lovers Peter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).

Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”. 

Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.

Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”. 

Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova. 

Caetano acompanhado de Brown e Moreno
na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).

Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.

Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou. 

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FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Música da Cabeça - Programa #276

Tá brabo o calor na Europa, hein? A gente dá um alívio com um programa cheio de coisas fresquinhas. Tem Moby, Bauhaus, Chic, Chico Buarque & Maria Bethânia, Julee Cruise e mais. Ainda, um Sete-List sobre os 70 anos de Stewart Copeland. Sombra, água fresca e boa música é o que tem hoje no MDC, às 21h, na refrigerada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e termômetro de boas: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

domingo, 9 de janeiro de 2022

DOSSIÊ ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2021




O velho Wayne de olho no trono dos Beatles
Chegou a hora da verdade! A hora dos número. Mais um ano se foi e é chegada a hora de fazer aquele habitual levantamento dos álbuns que entraram para a seleta galeria dos Fundamentais do Clyblog. Lembrando sempre que, na verdade, a seção não tem por objetivo promover disputa ou qualquer tipo de comparação entre artistas e obras, mas a gente mesmo fica curioso para saber quais as marcas e quantitativos e aí, então, levantamos e, em forma de ranking, passamos para vocês. 

2021 foi o ano do jazz nos ÁLBUNS FUNDAMENTAISÁLBUNS. Das 29 obras destacas na nossa seção de discos, 11 foram do refinado estilo norte-americano. Se aproveitando desse predomínio, neste período, o craque Wayne Shorter encostou definitivamente no pessoal de cima. Ainda não alcançou os Beatles, que continuam liderando, mas, junto com seu companheiro de sopro, Miles Davis, que também chegou nas cabeças, já começam a botar uma certa pressão nos rapazes de Liverpool. A propósito da Terra da Rainha, curiosamente no último ano, não tivemos NENHUM artista britânico teve discos incluídos na nossa seção. as ações ficaram basicamente divididas entre norte-americanos e brasileiros, com destaque para o primeiro japonês na lista, o versátil Ryuichi Sakamoto.

No que diz respeito aos brasileiros, Caetano Veloso que dividia a liderança com Jorge Ben, agora toma a frente isoladamente por conta pela participação no disco "Brasil", com João Gilberto, Bethânia e Gilberto Gil. Mas  a disputa está tão apertada quanto no internacional e qualquer disco aqui, disco ali, no ano que chega, pode mudar o panorama.

Entre as décadas com mais obras mencionadas, os anos 70 continuam imbatíveis, embora o ano que aparece mais vezes seja o de 1986. Chama atenção que cada vez mais é inevitável que seja reconhecida a qualidade e se projete a relevância de trabalhos recentes, o que faz com que venham aparecendo com mais frequência, em maior número e cada vez mais fresquinhos, como foi o caso do recém lançado "Carnivore", do Body Count, que mal nasceu  e já figura entre os melhores.

Então, vamos aos números que é o que interessa. Chegou a hora da verdade!


  • The Beatles: 6 álbuns
  • David Bowie, Kraftwerk, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis e Wayne Shorter: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan, John Coltrane e John Cale*  **: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, Lee Morgan e Lou Reed**: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, Body Count, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"
**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 6 álbuns*
  • Jorge Ben: 5 álbuns **
  • Gilberto Gil*  **: 5 álbuns
  • Tim Maia e Chico Buarque: 4 álbuns
  • Gal Costa, Legião Urbana, Titãs, Engenheiros do Hawaii e João Gilberto*  ****: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**, João Bosco, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Milton Nascimento**** : todos com 2 álbuns 

*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil
**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"
**** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 19
  • anos 60: 96
  • anos 70: 138
  • anos 80: 116
  • anos 90: 89
  • anos 2000: 13
  • anos 2010: 15
  • anos 2020: 2


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 22 álbuns
  • 1977: 19 álbuns
  • 1969 e 1985: 17 álbuns
  • 1967, 1972, 1973 e 1976: 16 álbuns cada
  • 1968 ,1970 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1971, 1979, 1980 e 1991: 14 álbuns
  • 1965, 1975 : 13 álbuns
  • 1965 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1964, 1966, 1987,1989, 1990 e 1994: 11 álbuns cada
  • 1978: 10 álbuns



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 192 obras de artistas*
  • Brasil: 139 obras
  • Inglaterra: 114 obras
  • Alemanha: 9 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica, Islândia, País de Gales: 2 cada
  • Japão, País de Gales, Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de páises diferentes, conta um para cada)

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Musica da Cabeça - Programa #224

 

Semana de começo de Olimpíadas, e você se dá conta de que não pode estar lá. Aliás, nem quem é japonês pode estar nos jogos! Para preencher essa lacuna e aproximar você de Tóquio, o MDC vem com muita música legal, inclusive do Japão. E também tem a Karnak, a Living Colour, a Maria Bethânia, a Sonic Youth, a Rita Lee e mais. No "Cabeça dos Outros", também um pouco de Esporte e um músico japonês, o Cornelius, no quadro "Cabeção". Faz assim: escuta o programa hoje, que você não vai nem precisar acordar de madrugada pra isso, pois é às 21h, na olímpica Rádio Elétrica. Produção, apresentação e tocha acesa: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Roberto Carlos - "Roberto Carlos" (1975)


“Seu carisma e sua bondade levam muitas pessoas a mitificá-lo num patamar de uma entidade como um anjo ou coisa assim. Embora o chamem normalmente de ‘Rei’, já ouvi alguns o chamarem de ‘santo’ e até de ‘Deus’. Para mim, é o Amigo, com maiúscula.” 
Erasmo Carlos 

Não são infundadas várias das acusações que recaem sobre Roberto Carlos. Que ele é pouco generoso com outros artistas. Que deliberadamente “puxou o tapete” de novas estrelas que podiam ameaçar seu trono. Que deixou de usar o seu poder midiático para enfrentar a Ditadura Militar enquanto colegas eram perseguidos, presos ou mortos. Que passou a agir de forma cada vez mais excêntrica e maniática. Que tornou paulatinamente sua música cafona, principalmente, pela intensificação da imagem católica. Que faz décadas que não produz nada que o valha. Mas uma coisa é impossível contestar: Roberto é o Rei. Dizer que ele nunca compôs uma das centenas de músicas que gravou ou dedicou a outros músicos, como alguns ilógicos sustentam, é tão loucura quanto acreditar que o homem não foi à Lua ou que Elvis Presley não morreu. Amor e ódio são dois lados da mesma moeda deste personagem único no Brasil, o qual completa 80 anos de vida hoje.

É inquestionável que o Roberto Carlos Braga, nascido neste mesmo dia 19 de abril na sua natal Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, no longínquo ano de 1941, seja altamente carismático e dono de uma das obras mais gigantescas da música brasileira, talvez a única em toda a América Latina da segunda metade do século XX a unir com tamanho êxito arte autoral e apelo popular. Da fase inicial, no final dos anos 50, em que passou dos boleros ingênuos para a quase tão ingênua Jovem Guarda, revolucionando a música e a indústria fonográfica brasileiras, à segunda e mais duradora, em que se torna o maior cantor do Brasil, há um longo caminho repleto de discos quase que invariavelmente autointitulados e regulares. Sem variação, no entanto, são seus resultados. Estima-se que, nos 62 anos de carreira, tenha vendido, até hoje, cerca de 140 milhões de discos.

A maioridade de RC, que havia se solidificado na virada dos anos 60 para os 70, não foi assim, tão linear quanto possa parecer. Amadurecido artística e pessoalmente, ele, maior nome do staff de sua gravadora, a CBS, sabia e tinha carta branca para criar obras que juntassem o frescor da fase anterior às novas perspectivas do mercado que se abriam à sua frente com o envelhecimento natural de seu público. Atinado, ele engendra isso com sabedoria e coesão. Caso deste disco de 1975, seu 15º no mercado brasileiro, em que traz, além de clássicos imortais do cancioneiro nacional, versões de outros autores, como sempre fez muito bem, e temas escancaradamente românticos, aqueles que punham as mulheres da incipiente classe média brasileira a suspirar. Mesmo essas últimas, mais bregas, como “Elas por Elas” e “Desenhos na Parece”, são tão bem apresentadas em arranjos das mãos Horace Hott e Lee Holdridge, que agradam ouvidos dos seletivos aos mais ousados.

Naquela metade dos anos 70, Roberto tinha o mundo em suas mãos. E sabia disso. Para tanto, contava com a parceria iluminada do “irmão camarada” Erasmo Carlos, com quem dividiu centenas de autorias ao longo de mais de três décadas – na grande maioria, as melhores de seu cancioneiro. “Quero que Vá Tudo pro Inferno”, hit do álbum, é exemplar neste sentido. O arranjo para a música de 1965, originalmente do álbum "Jovem Guarda", é um misto de soul e rock e mostra um compositor maduro, mas ligado a suas origens dos tempos do Clube do Rock e da adolescência no bairro carioca da Tijuca. Fã de Elvis, Little Richard e James Brown, mostrava estar viva essa ligação com a alma contestadora do rock, inclusive ainda permitindo-se dizer com naturalidade e poesia palavras "negativas" como “inferno”, coisa que a tacanhice cristã ridiculamente o impede hoje.

A dupla Roberto e Erasmo: alta produção nos anos 70
Outras três da dupla Roberto/Erasmo, todas clássicas: a balada country-humanista “O Quintal do Vizinho”, a romântica “Olha” – sucesso na voz de Maria Bethânia, em 1993, e que ganharia, 32 anos de sua estreia, uma bela versão bossa nova do coautor Erasmo com a participação de Chico Buarque – e o memorável samba-rock “Além do Horizonte” – também regravada por Erasmo, em 1980, mas aí contando com o vozeirão do tijuacano como eles: Tim Maia. Nesta, RC se vale de sua habilidade inigualável de interpretação aliada ao arranjo do maestro norte-americano Jimmy Wisner, que faz as cordas dialogarem com seu vocal.

Outra vertente que o disco solidifica é a apropriação do cancioneiro em espanhol, nova porta internacional que começava a se mostrar promissora para o artista já consagrado na Itália ao conquistar, em 1968, o Festival de San Remo com “Canzone per Te”. Ele já havia feito um disco inteiro assim em 1965, mas desde que a fase romântica deslanchara, passou a apostar mais fortemente nos países latinos. Agora era a vez de emplacar duas em pronúncia castelhana: “Inovildable”, de Julio Gutierrez, e a andina “El Humahuaqueño”, de Edmundo Zaldivar, na qual é acompanhado do grupo Los Chaskis. Ambas as faixas são usadas no repertório de "Tu Cuerpo", disco de um ano depois, o qual continha exatamente as mesmas músicas, porém todas cantadas no idioma de Cervantes.

Mais uma com o Tremendão é a balada (ainda em português) “Seu Corpo” ("No seu corpo é que eu me encontro/ Depois do amor o descanso/ E essa paz infinita/ No seu corpo minhas mãos/ Se deslizam e se firmam/ Numa curva mais bonita"), com primoroso arranjo de Chiquinho de Moraes. Importante na carreira de RC, a faixa consolida o estilo de canções com temática heteroeróticas iniciado em “Amada Amante” (1971) e “Proposta” (1973) e que resultaria em sucessos absolutos desse filão trazido por ele do brega e aperfeiçoado em hits posteriores como “Os Seus Botões” e “Cavalgada”. Muito bem intercaladas entre as composições próprias, contudo, estão as de músicos como Benito Di Paula (“Amanheceu”), Maurício Duboc (“Existe Algo Errado”) e de uma dupla de jovens nordestinos que recém começavam a carreira: Fagner e Belchior, de quem grava “Macuripe”, escolhida para fechar o álbum.

Ao completar oito décadas de vida, Roberto Carlos merece ter sua obra revisitada e reavaliada – o que resultará, certamente, numa maior apreciação de seus trabalhos dos anos 60, 70 e 80, os mais produtivos. Mas jamais menosprezada. Polêmico, o autor de "Detalhes" pode não agradar a todos, mas nunca ser chamado de artista medíocre como defendem os detratores. Afora o plausível, é fato que ele sofre, na mesma medida e como se isso fosse justificativa, com o peso dos que fazem fama no Brasil: são a representação do povo, mas também não são aceitos como alguém que ascendeu. Tornado divindade, é exatamente por isso condenado por não ser humilde pela ótica cristã e mal resolvida da sociedade. 

Deve-se saber separar o joio do trigo, no entanto. Roberto Carlos se tornou um velho chato, mas alguém dono de uma história que não se apaga. Há cantores melhores do que ele? Erasmo é melhor compositor que o parceiro? Há veracidade naquilo que o acusam? Tudo pode ser verdade, mas o fato é que sua obra guarda uma qualidade e uma importância incomensuráveis. Admitir que RC é um dos mais bem sucedidos artistas do século é talvez demais para quem ainda crê na sandice de que Erasmo é seu ghostwriter. Mas basta uma audição de discos como este de 75 para perceber que, definitivamente, não é qualquer coisa que se diga sobre ele que o faça perder a majestade.

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Roberto Carlos - "Quero que Vá Tudo pro Inferno" 
(Roberto Carlos Especial 1975)


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FAIXAS:
1. "Quero Que Vá Tudo Pro Inferno" - 3:37
2. "O Quintal do Vizinho" - 2:51
3. "Inolvidable" (Julio Gutierrez) - 3:15
4. "Amanheceu" (Benito di Paula) - 4:19
5. "Existe Algo Errado" (Maurício Duboc-Carlos Colla) - 3:38
6. "Olha" - 4:02
7. "Além do Horizonte" - 4:20
8. "Elas Por Elas" (Isolda-Milton Carlos) - 3:13
9. "Desenhos na Parede" (Beto Ruschel-Cezar de Mercês) - 3:20
10. "Seu Corpo" - 3:19
11. "El Humahuaqueño" (Edmundo Zaldivar) - 3:28
12. "Mucuripe" (Fagner-Belchior) - 4:43
Todas as composições de autoria de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 11 de março de 2021

João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia - "Brasil" (1981)

Brasil com "H"

 

Quatro capas de "Brasil", lançado por Warner, Philips,
Universal e em edição conjunta com 
o disco
imediatamente anterior de João, "Amoroso"

"Quando dizem que João é o grande mestre inventor da bossa nova, não é gratuita essa denominação. Ele, com essa capacidade aglutinadora de vários elementos musicais para uma direção especial, foi o grande inventor desse conjunto extraordinário". 
Gilberto Gil

"Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira". 
Maria Bethânia

"A bossa nova tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado". 
Caetano Veloso

Definir um povo através da música nem sempre é uma tarefa fácil. Países como Portugal e seu fado ou a Argentina com o famoso tango talvez sejam afortunados por conseguirem essa identidade sonora, o que certamente lhes é favorecido pelas pequenas dimensões territoriais e a formação social uniforme – resultante, não raro, de alguma dose de tragédia. Porém, esse aspecto ganha complexidade quando o povo em questão é diverso e a jurisdição bem maior, tal como ocorre com os continentais Estados Unidos e Brasil. Assim como os norte-americanos tem tanto o jazz quanto o country, o rock ou o blues, o Brasil, obviamente, não é só samba. O Sul da milonga difere brutalmente do Nordeste do baião, do forró e do maracatu, igual ao carimbó do Norte ou o sertanejo do Centro-Sul. O que dizer então, quando se aprecia as peculiaridades culturais – e musicais, por consequência – entre os estados? A riqueza mestiça de Minas, o balanço leve da Bahia, a realeza malandra carioca, a dureza concreta de São Paulo...

O que abarcaria, então, um conceito minimamente consensual que representasse o ser brasileiro para dentro e para fora dos limites fronteiriços? A resposta talvez esteja justamente no gênero que efetivou esse protagonismo interna e externamente. O estilo que achou a "caixa de munição" ideal e sintética do Brasil: a bossa nova. João Gilberto, promotor da revolução ao inferir sua estética infalível de canto e instrumental (e espírito) às harmonias jobinianas já suficientemente revolucionárias, o ponto perfeito entre a tradição e o moderno, acreditava nesse poder simbólico da bossa nova. Depois do seu advento, com todos os seus protagonistas e personagens (Tom, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Antônio Maria, Carlos Lyra, Dolores Duran, entre outros) o Brasil, em recente industrialização pois ainda fortemente rural e mero exportador de matéria-prima naquela metade de século XX, nunca mais foi o mesmo. Entrou, definitivamente, no mapa da produção intelectual mundial.

Além disso, João completava 50 naquele 1981. Era hora de celebrar a própria trajetória, bem como a do estado e do país que lhe fizeram artista. Isso ajuda a explicar porque João, sem pudores, chamou para gravar consigo os conterrâneos baianos e súditos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia um disco corajosamente chamado "Brasil". A "estação primeira do Brasil", aquela que o destino quis que recebesse o navio descobridor impregnado de Velho Mundo, juntava seus mais célebres porta-vozes para cantar-lhe, o Brasil, nos seus versos. 

O autor de “Bim Bom”, em sua inteligência e sensibilidade supremas, sabia muito bem o que queria com esse projeto, que completa 40 anos de lançamento em 2021. Tanto que é ele mesmo quem assume pela primeira vez na carreira de então mais de 30 anos e onze discos gravados a própria produção do álbum. E o faz com total domínio, nada tão complicado para alguém dotado de ouvido absoluto e atento aos dedos hábeis de craques das mesas de som com quem trabalhou, como Tommy LiPumma, Aloysio de Oliveira e Creed Taylor. O repertório, escolhido a dedo, igualmente, saiu de sua cabeça, que desde os anos 50 propusera uma releitura constante e modernizante (mas também arraigada nos matizes de um Brasil complexo e multicultural) da música através das notas dissonantes. Era samba-de-roda, era batuque de morro, era bloco de escola. Mas era também o choro, a modinha, a seresta, a valsa e uma pitada da jazz norte-americano para os gringos ficarem boquiabertos com tamanha musicalidade vinda dos trópicos.

Os manos Caê e Bethânia admiram o mestre João
ao vivo exibindo sua arte: momento único
Celebrações se inauguram ao som de hinos. Não poderia ser diferente, então, que o disco começasse com aquele que é considerado o segundo símbolo musical nacional, talvez mais conhecido que o próprio hino pátrio: “Aquarela do Brasil”. O clássico de Ary Barroso – então já imortalizado em gravações como as de Francisco Alves com a orquestra de Radamés Gnatali, em 1939, ou a de Elis Regina, de 30 anos depois – ganha uma versão revestida de personalidade e elegância e que vai ditar o conceito de toda a obra. Os primeiros acordes são emitidos da espinha dorsal: o violão, instrumento que João integrou à voz na sua revolução bossa-novista ao invés de dissociar um elemento do outro como até então havia sido em música popular. Porém, desta vez ele tem correligionários para acompanhá-lo em sua magia, pois é um uníssono emocionante o que se ouve. Os famosos versos ufanistas "Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou cantar-te nos meus versos" saem das vozes de João, Gil e Caetano juntas. Quanta história e simbologia unidas! Assim, impactante, como a delicada força das águas do mar, eles intercalam-se, cada um repetindo uma vez a letra sozinho para, num final triunfante, tornarem a unir os vocais, agora acompanhados da empolgante percussão comandada por Paulinho da Costa e os teclados e sintetizadores arranjados por Johnny Mandell. A sensação ao final da faixa é que podia até ficar somente nisso, de tão completo que é. Mas tem mais.

A fórmula é repetida com igual brilhantismo em “Bahia com H”, samba dos anos 40 escolhido por motivos óbvios, e, ainda mais bairrista. “Milagre”, a versão da fantasia praieira de Caymmi, artista largamente reverenciado por todos eles, é muito mais que uma faixa, mas um acontecimento único na história da música brasileira. O trato do violão e da voz de João à rica melodia e a perfeita harmonia da canção, estarrece. Gil, cujas guias de Logunedé, Jimi Hendrix e Luiz Gonzaga carrega sempre consigo no pescoço, elabora o canto com seu gingado gracioso. Já a voz de cristal de Caetano parece acariciar as notas, joão-gilbertiando o que há de bom.

A união de vozes do trio volta para interpretar uma deliciosa versão de Haroldo Barbosa para o standart “All of Me” num jazz rebatizado nas águas de Senhor do Bonfim. Arranjo, produção, timbrística, tudo impecável. E quando João percebeu ser necessário uma voz feminina? Chamou outra baiana, claro. Mas nada de recrutar alguma falsa delas, mas sim Bethânia, que faz dueto com ele e com os parceiros de Doces Bárbaros no brejeiro samba “No Tabuleiro da Baiana”, outra de Ary Barroso. Uma única participação da poderosa voz da Abelha-Rainha, mas marcante e significativa. Aliás, como em todo o disco – e a bossa nova em si –, mínimo é mais.

A faixa de encerramento, "Cordeiro de Nanã", é um comovente mas breve canto, quase uma vinheta, para a orixá da sabedoria, a que domina os trânsitos entre a vida e a morte. Impressionante como uma canção pode ser tão singela e penetrante: pouco menos de 1 minuto e meio de uma das coisas mais bonitas da música brasileira. E com ela se encerra este sucinto mas acachapante disco: com sons que parecem misturar-se com o ar, que parecem soprados pela natureza, que parecem emergidos das águas profundas da mais velha das Yabás. Sabedoria é o que define.

Ouvir “Brasil”, indepentemente da época, faz com que, pelo menos durante sua pouco menos de meia hora, acredite-se que este é o Brasil que deu certo, seja para dentro de seus domínios como para fora dele. Os germânicos legaram ao mundo a sintaxe da música clássica, os norte-americanos forjaram o arrojado jazz, mas não é nenhum exagero dizer que o mais sofisticado dos gêneros musicais modernos tem pele mestiça e se chama bossa nova. Internamente, faz-se ainda mais provável essa tese. Há Villa-Lobos, o chorinho e a tentativa legítima do movimento Armorial de cunhar um estilo genuinamente brasileiro. Mas ninguém realizou esse sonho como João e seu violão. Seu Brasil foi a Bahia, de onde ele veio e invariavelmente voltava para lá. A Santa Bahia Imortal a qual ele ficava contente da vida em saber que era Brasil. Um Brazyl, aliás, que conheceu o Brasil. Um Brasil que foi, sim, ao Brazil. Aquele mais cosmopolita e contemporâneo, mas basicamente folclórico, popular e profundo, como as águas protegidas por Nanã Buruquê. Caetano tem razão: definitivamente, depois dos acordes dissonantes emanados do peito dos desafinados, a nossa vida nunca mais foi igual. 

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documentário "Brasil", de Rogério Sganzerla (1981)

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FAIXAS:
1. "Aquarela do Brasil (Brasil)" (Ary Barroso) - 6:34
2. "Disse Alguém (All of Me)" (Gerald Marks, Seymour Simons – versão: Haroldo Barbosa) - 5:18
3. "Bahia com H" (Denis Brean) - 5:13
4. "No Tabuleiro da Baiana" (Ary Barroso) - 4:50
5. "Milagre" (Dorival Caymmi) - 4:57
6. "Cordeiro de Nanã" (Dadinho, Mateus) - 1:20

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Chico Buarque - "Vida" (1980)

O disco de uma vida



 

“Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz?”
Versos iniciais da música “Vida”

“- Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
- Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde ‘Construção’ até ‘Meus Caros Amigos’, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto.”
Entrevista de Chico Buarque à Rádio Eldorado, em 1989

No final dos anos 90, Porto Alegre presenciou um encontro histórico e inédito na Casa de Cultura Mario Quintana de duas figuras icônicas da cultura brasileira: Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque. Mais do que as falas inteligentes e bem humoradas vindas de ambos, no enquanto, uma imagem captada pelas câmeras que registravam o bate-papo entre o gaúcho e o carioca ficou marcada em minha memória já que eu, igual a milhares de outros porto-alegrenses menos afortunados, contentava-me em assistir pela televisão por não poder estar presente devido à rápida lotação do evento preenchida dias antes. A imagem era a de um espectador da plateia, que carregava em seu colo um LP de Chico. Com a capa um tanto surrada pelos anos de fabricação e, certamente, constante uso na vitrola de sua casa, era com ela que iria enfrentar uma quilométrica fila após o evento para ganhar um autógrafo do autor. 

Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.

O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.

Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.

Detalhe da contracapa
do disco: a identidade
das digitais e da 3x4
de quando foi preso na 
adolescência, que lembra
as fotos de presos
políticos da Ditadura
A proposta é inequívoca, tanto que é ela, a memorável faixa-título, uma de suas melhores em todos os tempos, que abre o disco. Crítica e autocrítica, “Vida” já seria um marco na carreira de Chico pela inerente simbologia. Mas a canção, em letra e música, vai além. A melodia, num ritmo rumbado, é densa mas absolutamente sensível. Arranjada por Francis Hime, que lhe impõe uma orquestração dramática e ares melancólicos com o trompete de Maurílio nos primeiros acordes, tem ainda o violão erudito de Arthur Verocai e uma intensa percussão comandada por Chico Batera, que se exalta conforme o decorrer – conforme a “vida” passa. Já a letra é de uma honestidade e consciência tocantes, poucas vezes atingida na tão rica música brasileira: "Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz/ Deixei a fatia/ Mais doce da vida/ Na mesa dos homens/ De vida vazia/ Mas, vida, ali/ Quem sabe, eu fui feliz”. Chico, amadurecido e fortalecido, questiona-se, e não apenas defende-se ou lamenta. 

O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos). 

Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco. 

O artista em 1980,
 fotografado por Thereza
Eugenia: maturidade
A própria faixa-título é extraída da peça “Geni”, situação igual à canção seguinte, a sensível e melodiosa “Mar e Lua”. Como classifica o jornalista Márcio Pinheiro, a “melhor música sobre suicídio duplo da música brasileira”, narra de forma altamente poética o trágico destino de duas mulheres amantes cujo amor não é admitido“naquela cidade distante do mar” e que “não tem luar”. Chico falando de uma relação homossexual novamente, como já o tinha feito na censurada “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de 1973, cujo sulco dos vinis havia sido literalmente riscado pela censura no momento em que se pronunciavam os versos “de nós duas”... Agora, conquistava o direito de falar com todas as letras sobre um tema tabu sem cortarem-lhe violentamente a fala. Mais uma pequena vitória de uma democracia clamante.

Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?

Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier. 

De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.

A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.

"Bye Bye, Brasil": marco do cinema
brasileiro genialmente traduzido em
música por Chico
Mais um rescaldo suntuoso: “Bye Bye Brasil”, canção que intitula o filme de Cacá Diegues, noutra contribuição para o cinema e para a filmografia do parceiro, tal como já o fizera em “Quando o Carnaval Chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1973). Com maestria, Chico traça uma crônica do Brasil em fase de modernização com todas suas maravilhas e mazelas. Tal como num filme, a música (com coautoria de Roberto Menescal), lança diversos insights, às vezes, aparentemente desconexos, mas que dão condições de o ouvinte visualizar uma cena em que o cenário social, político e cultural são extremamente profundos. Desigualdade social, globalização, analfabetismo funcional, avanço da tecnologia, urbanização desenfreada, solidão e outros aspectos estão todos dispostos e interligados, dando destaque, principalmente, para a inexorável passagem do tempo. Seja na ligação telefônica, fadada a terminar conforme os minutos passam, seja na implacável ação da natureza, nada está sob o controle dos meros mortais. Tudo pertence ao destino. Quase terminando o disco, os versos “as fichas já vão terminar” se ligam imperiosamente ao clamor do tema-mãe do disco, “Vida”: “Arranca, vida/ Estufa, vela/ Me leva, leva/ Longe, longe/ Leva mais”.

Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.

"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.

Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?

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Chico Buarque com Tom Jobim e Telma Costa - 
Vídeo de "Eu te Amo" (1980)

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FAIXAS:
1. "Vida" - 3:20
2."Mar e Lua" - 1:50
3."Deixe a Menina" - 2:53
4."Já Passou" - 1:50
5."Bastidores" - 2:27
6."Qualquer Canção" - 1:50
7."Fantasia" - 4:30
8."Eu Te Amo" (Chico Buarque/Tom Jobim) - 4:55
9."De Todas As Maneiras" - 1:50
10."Morena de Angola" - 3:15
11."Bye Bye Brasil" (Buarque/Roberto Menescau) - 4:40
12."Não Sonho Mais" - 3:45
Todas as composições de autoria de Chico Buarque, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues