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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Hermeto hermenêutico

"O músico mais importante do planeta." 
Miles Davis, sobre Hermeto Pascoal

Hermeto se foi. Mas fica. Eternamente. Presentemente. Magicamente, como que entranhado nos entremeios da vida. Acreditem: no dia em que ele partiu, dia 13, eu, pela manhã, na feira, vi dois violinistas tocarem uma série de músicas brasileiras, até que uma me chamou atenção: "Bebê", clássica composição de Hermeto gravada por ele diversas vezes e por inúmeros outros músicos outras diversas. Mas por músicos MÚSICOS! Aqueles que admiram o som brasileiro em tom maior.

Mas a simbiose com Hermeto continuou. À noite, assistindo pela quarta vez o balé "Parabelo", do Grupo Corpo, evoquei Hermeto novamente ao ouvir num dos números o toque áspero e gutural da flauta nordestina, flauta de quem tem fome. Fome de arte. Tal qual mestre Hermeto tantas vezes tocou. E quem há de discordar dessa onipresença? Elis? Miles? Airto? Corea? Flora? Tom? Hancock? Edu? Vandré? Sivuca? Eu, não.

Hermeto estava ali, sim, presente. Dia e noite. Como sempre está. Física e espiritualmente. Simbólica e materialmente. Conceitual e praticamente.

Imagina eu querer desconfiar de um mago, desses que nos ajudam, hermeneuticamente, a interpretar o sagrado. Anos atrás, num dia que seria só um dia qualquer do ano de 2010, dei-me com Hermeto em plena área de embarque do Aeroporto de Porto Alegre. Pedi-lhe, como poucas vezes faço, um autógrafo. Saquei o primeiro papel que vi na frente: meu livro “Kind of Blue: A História da Obra-prima de Miles Davis”, que há época eu lia. Ele prontamente atendeu. Sabendo do que se tratava a obra, Hermeto, então, com toda a simplicidade (e autoridade) que tinha, falou que não só conhecera Miles como que havia tocado com ele num disco "que não lembrava o nome".

O disco era "Live Evil", de 1970. Ganhei o autógrafo - com direito a desenho de Hermeto - e a certeza de que ele estava, sim, em todos os lugares e em todos os tempos. 

Nada estranho pra quem legou ao mundo da música a ideia de que ela, a música, estava em todo lugar. Nada estranho pra alguém que se vestiu de música, se fez música, existiu-se música. Que compreendeu que música está nos átomos, na atmosfera, nos corpos. Se música é Hermeto, há de se entender porque Hermeto está em todos os lugares. Seja na praça, seja no happening, seja na zona de embarque. De dia e de noite.

Hermeto se foi ficando. Eterno, enorme, universal, intergaláctico, quântico, hermenêutico. Explicação da vida.

Morre vivendo. Nasce morrendo. Nada estranho para um Bruxo.


🎶🎶🎶🎶🎶🎶🎶🎶🎶


HERMETO PASCOAL
(1936-2025)




Daniel Rodrigues

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Capas de K7 VI - "Tutu"

 






RODRIGUES, Daniel
"Tutu"
Arte para fita cassete doméstica sobre o disco de Miles Davis, de 1986, pela gravadora Warner Music
Recorte, impressão e colagem sobre papel sulfite
9,5 x 10,3 cm
s/d

quinta-feira, 29 de maio de 2025

"Kind of Blue – A História da Obra-Prima de Miles Davis", de Ashley Kahn - ed. Barracuda (2007)



por Márcio Pinheiro


"Use este livro como uma introdução, um guia de escuta, uma maneira de compreender que há muito mais nesses 40 minutos de grande jazz do que o ouvido é capaz de captar. Permita que este livro mostra a você que, às vezes, o que fala menos é o que mais tem a dizer."
Ashley Kahn

Foram apenas dois dias de gravações que resultaram em 45 minutos que resumem um dos pontos mais altos da história da música. O relato desse encontro histórico, que reuniu um grupo de sete instrumentistas comandados pelo trompetista Miles Davis, está nas 256 páginas do livro "Kind of Blue – A História da Obra-Prima de Miles Davis", de Ashley Kahn.

No dia 2 de março de 1959, o septeto entrou em uma velha igreja em Nova York que havia sido transformada em estúdio. Não tinham muita certeza sobre o que pretendiam gravar. O líder, Miles Davis - que completaria 99 anos no último dia 27 -  tinha algumas ideias, que foram ampliadas com os palpites dos saxofonistas John Coltrane, Cannonball Adderley e, principalmente, do pianista Bill Evans – os outros músicos eram o contrabaixista Paul Chambers, o baterista Jimmy Cobb e o pianista Wynton Kelly.

O trabalho de Kahn começa com um foco amplo, destacando a figura de Miles – sua infância sem traumas (ao contrário de muitos outros músicos de jazz), sua formação musical, sua proximidade com Charlie Parker e Dizzy Gillespie, seu envolvimento com drogas e sua capacidade em transitar por vários estilos musicais. Depois, o autor faz um ajuste de sintonia para se deter apenas ao que diz respeito a "Kind of Blue". Kahn mostra que é possível enxergar melhor o mundo do jazz apenas através de um detalhe.

É aí que o livro cresce, principalmente pela exaustiva pesquisa que esmiúça faixa a faixa, solo a solo, músico a músico, além de trazer comentários sobre o local e a técnica de gravação, a produção da foto da capa, a feitura do texto da contracapa e os comentários das pessoas envolvidas.

Obra perfeita, da concepção (com exceção de uma faixa, tocada duas vezes, tudo foi registrado no primeiro take, de maneira espontânea) ao lançamento, "Kind of Blue" até hoje surpreende quem ouve. Ou, como diz o autor logo nas primeiras páginas, é um álbum que simplesmente tem o poder de silenciar tudo ao seu redor.

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Ouça o disco "Kind of Blue"
Miles Davis

quinta-feira, 20 de março de 2025

John Coltrane - “Giant Steps” (1960)

 

"Aquela sessão foi diferente das gravações anteriores. Parecia a única coisa em que ele [Coltrane] sabia que tinha algo importante. Todos sabíamos".
Tommy Flanagan

Como explicar o fenômeno John Coltrane? A cada disco que se escuta, a cada faixa que se reouve, a cada acorde que é emitido do seu sax transcendente é como se se ouvisse a sublimação. Não fosse sua morte prematura, em 1966, vitimado por um câncer, poderia se afirmar que a genialidade deste compositor e instrumentista sui generis era infindável. Afinal, mesmo em uma discografia extensa, tanto dos trabalhos solo quanto nos quais compôs bandas e/ou parcerias, muitos desses discos trazem um sopro divinal – com o perdão da expressão. Aqui no blog mesmo já listamos entre os álbuns fundamentais de sua autoria cinco deles: “Blue Train”, “My Favourite Things”, “Crescent”, “A Love Supreme” e “Ascension”. Isso, fora os diversos outros discos nos quais integra bandas, como os memoráveis “Kind of Blue” e “Cookin’”, ambos de Miles Davis e também resenhados no blog. 

Porém, em se tratando de Trane, não só cabem mais discos nessa lista como alguns ainda não incluídos são faltas notórias. Caso do gigante no nome e em conteúdo “Giant Steps”, de 1960, que completa 55 anos de lançamento em 2025. Primeiro trabalho como band leader de Coltrane para a sua então nova gravadora, a Atlantic, na qual produziu alguns de seus melhores trabalhos, o disco é um marco na sua carreira por uma série de motivos. O primeiro deles, além da estreia na nova casa, era que se tratava do primeiro projeto autoral do saxofonista e compositor após as gravações justamente do já mencionado “Kind...”, aquele que é considerado um dos maiores clássicos do jazz de todos os tempos e o de maior sucesso do gênero. “Kind...” fora gravado apenas quatro semanas antes por ele junto a Miles mais Paul Chambers (baixo), Jimmy Cobb (bateria), Bill Evans e Wynton Kelly (pianos). Impossível Coltrane não ter sido contagiado por aquela atmosfera modal concebida por Miles.

Acontece que Coltrane sabia muito bem o que queria expressar em sua música, e a proximidade com as sessões de “Kind...” não foram suficientes para influenciar o centro daquilo que pretendia fazer na estreia pela Atlantic: uma ode ao bebop. Partindo do estilo que o formou, desde a audição de seus ídolos Dexter Gordon, Coleman Hawkins e Lester Young, até os trabalhos solo realizados nos anos anteriores na Prestige e no seu único Blue Note, o memorável “Blue Train”, de um 1959, Coltrane deixou de lado (pelo menos, por ora) o jazz modal e aproveitou para despedir-se do bebop em alto estilo. Ele sabia que seu caminho seria tomado por outras facetas sonoras dali para frente. Era inevitável para um artista sempre em busca da renovação estilística e espiritual. Talvez até nem soubesse ainda quais caminhos seriam estes, mas os intuía. Por esse sentimento de gratidão, então, Coltrane entendeu que ainda não era a hora de apontar para novas fronteiras e, sim, aproveitar a confiança e a profundidade emocional adquiridas com sua experiência até ali e encerrar um ciclo.

A faixa-título é um de seus maiores clássicos, ao nível do que também representam temas como "Blue Train", "Resolution" e "My Favourite Things". Não por coincidência, visto que abre o disco trazendo sua assinatura estilística aliada ao domínio da variação de acordes próprias do bebop. O riff, dos mais conhecidos da história do jazz, larga arrebatando para, na sequência, Coltrane dominar todos os espaços (físicos e emocionais) com um solo de praticamente 4 minutos e meio. Isso, sustentado por outro fator que faz do disco um feito distinto: a banda. Se corria nas veias de Coltrane o sangue “tipo azul” do recente trabalho com Miles, o mesmo fluido mágico pulsava nas dos companheiros Cobb, Chambers e Kelly, que tocam em ambos os discos. Nada é por acaso. 

"Cousin Mary", na sequência, reduz um compasso, mas mantém a força expressiva de quem compunha a partir de progressões de sequências de acordes e tirava, no fim, peças como esta. O piano de Tommy Flanagan (responsável por esta e por mais quatro das seis faixas do álbum) tenta pacificar um pouco o clima, solando com a inteligência concentrada ao estilo de Thelonious Monk. Chambers, no embalo, engata um improviso arejado. Mas Coltrane é sempre intenso, e retorna vigoroso para encerrar a faixa. Embora a reverência ao "antigo", a alma de Coltrane carregava invariavelmente algo pessoal e com o olhar para uma experiência inovadora. Flanagan conta que era um desafio aprender as músicas, pois havia algo de muito especial em cada uma delas, o que os músicos queriam captar em essência. "As músicas não se resolviam do jeito que você espera de uma progressão, embora tudo tivesse uma lógica. Tinha lógica, mas era diferente para a época", relembra.

Se havia até então alguma concessão em amenizar a velocidade e a complexidade características dos be-bopers, a curta mas intensa "Countdown", totalmente formada a partir desses exercícios de progressões de escala altamente técnicas de Coltrane, não deixa dúvidas de que o músico queria venerar a geração de Charlie Parker e Dizzie Gillespie. Também nesta linha, mas injetando aspectos inovadores, "Spiral" – cujo nome dá a entender o sentido de sua estrutura – consegue mesclar a impermanência harmônica do bebop com uma ideia levemente inspirada no modal, em que os blocos de solos do sax, do piano e do baixo, respeitam um “limitante” de escalas, indo e voltando para o mesmo ponto, numa imagem espiral. 

"Syeeda's Song Flute", um blues suingado em homenagem à filha de Coltrane com a então esposa Naima, tem um salutar ar de descontração, que quebra o hermetismo das duas faixas anteriores, trazendo leveza para a narrativa geral. E se Trane acarinha a filha, agora é a vez de fazer o mesmo para com o seu amor. A música que leva o nome da esposa, no entanto, não se trata de qualquer canção romântica que se escuta por aí e logo se esquece. Mesmo separando-se de Naima anos depois (ele casou-se posteriormente com a pianista de jazz Alice Coltrane, com quem teve Ravi Coltrane, também talentoso músico e saxofonista como o pai), esta música guarda um lugar especial em todo o cancioneiro de Coltrane. Afinal, é talvez a maior balada jazz de todos os tempos. Não é exagero afirmar que “Naima”, com sua emotividade e sensibilidade compositiva singulares, está no mesmo patamar que temas clássicos como “Round Midnight”, “Virgo”, “Body and Soul”, “Blue in Green” ou “Embraceable You”. Possivelmente, até mais que estas. A perfeição.

Finalizando, mais um preito, desta vez para o amigo e parceiro Paul Chambers ("Mr. P.C."), um acelerado hard-bop com todos os ingredientes da obra-prima que Coltrane e sua trupe construíam: variações de escala, progressões e harmonias intrincadas apoiadas por muito coração, apuro técnico e intensidade expressiva. Como não se abismar com Coltrane tocando? Ele pisando confiante no seu terreno, o bebop, é puro proveito – e deleite.

O próprio Coltrane conta que “Giant...” foi um adeus à estrada harmônica construída pelos pioneiros do bebop. “Eu não sabia para onde ir em seguida. Não sei se eu já tinha pensado em abandonar os acordes, mas ele chegou fazendo aquilo, eu ouvi e disse: ‘bem, acho que essa é a resposta”. O “ele” a quem Coltrane se refere é Ornette Coleman e a “resposta” é seu revolucionário “The Shape of Jazz to Come”, lançado meses antes e que abriria portas para toda uma nova revolução no jazz: o free-jazz. Coltrane, claro, deixaria igualmente sua marca nesse capítulo inovador do jazz, dando sua contribuição para a história do gênero através também do jazz modal, do avant-garde, do spiritual e do post-bop nos álbuns subsequentes. Considerando que são menos de seis anos até sua morte, pode-se dizer, tranquilamente, que ele só o fez por ser capaz de dar “passos gigantes”, como o próprio nome de seu disco diz. Mas a pergunta inicial era: “como explicar o fenômeno John Coltrane?” Bem, não existe explicação para fenômenos. Eles não têm como serem dimensionados. 

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FAIXAS:
1. "Giant Steps" - 4:43
2. "Cousin Mary" - 5:45
3. "Countdown" - 2:21
4. "Spiral" - 5:56
5. "Syeeda's Song Flute" - 7:00
6. "Naima" - 4:21
7. "Mr. P.C." - 6:57
Todas as faixas de autoria de John Coltrane

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

John Coltrane - “Blue Train” (1957)

 


"Coltrane pode ter feito álbuns mais importantes, mas nenhum foi tão eficaz quanto este". 
Colin Larkin, criador e editor da Encyclopedia of Popular Music, no livro“All Time Top 1000 Albums”

“Aquela gravação de ‘Blue Train’ era mesmo diferente... dava para ver, havia algo de espiritual”.
Curtis Fuller 

Quando se fala em bandas no jazz, John Coltrane é conhecido pelo quarteto mágico que formou entre 1961 e 1965 ao lado de Elvin Jones, na bateria, Red Garland, piano, e Jimmy Garrison, baixo. Porém, é verdade também que Coltrane nunca deixou de experimentar outros formatos de banda menos enxutos. Compôs, por exemplo, em 1961, para o disco “Olé”, um septeto e para o free jazz avant-garde “Ascension”, de 1965, nada menos que um decateto. A versatilidade para aplicar seu gênio musical, fosse rodeado de menos ou de mais músicos, está, aliás, desde que se tornou um band leader no final dos anos 50. “Blue Train”, seu primeiro e único disco pela cultuada Blue Note e menos de quatro meses depois de sua estreia como líder em outro selo clássico, a Prestige, é fruto da sessão de gravação a 15 de setembro de 1957 com cinco parceiros em estúdio. 

Porém, não se trata apenas de uma mera reunião para mais um mero disco, nem muito menos Trane estava acompanhado de quaisquer músicos. O trompete, sim senhores, estava a cargo do enfant terrible Lee Morgan, então com apenas 19 anos, mas já considerado em toda a Costa Leste norte-americana como um fenômeno do jazz. Além de Morgan, estavam com ele naquele dia no Van Gelder Studios, em New Jersey, só craques: o trombonista Curtis Fuller, maior do seu instrumento à época e sucessor de J.J. Johnson; o já tarimbado pianista Kenny Drew, da escola de Charlie Parker e Johnny Griffin; o jovem baixista Paul Chambers, presença constante a toda turma do be-bop; e o disputado baterista Philly Joe Jones – estes dois últimos, aliás, ex-colegas de Coltrane do famoso primeiro quinteto de Miles Davis. O resultado é um dos maiores clássicos da história do gênero e um dos mais célebres da exitosa, mas curta carreira do artista.

Com uma das aberturas mais emblemáticas da discografia jazz, aquele chorus dos metais marcados pelos dois acordes de piano, a faixa-título é daquelas desbundes provadores de que ali estava pronto, lapidado, já no primeiro projeto solo, o maior nome do jazz: John Coltrane. Como compositor, arranjador e, principalmente, pelo sofisticado e intrincado modo de tocar. Algo único e inédito até então, haja vista que, experimentado nas bandas de Dizzy Gillespie e Earl Bostic, no quinteto de Miles Davis e ex-aluno de Thelonious Monk, Trane unia num só soprar o blues, o spiritual, o be-bop e a vanguarda. Em “Blue Train”, embora um trabalho inicial, já fica notória a forma de tocar de Coltrane num movimento em direção ao que se tornaria seu estilo característico: solos harmônicos e linhas arpejadas em que o tempo muitas vezes está fora ou acima do compasso, estabelecendo sutis conexões com a melodia.

Mas quem não fica para trás são Morgan e Fuller. Convidados de honra para dividirem os sopros com o anfitrião, eles se esmeram em suas participações sempre inspiradas. Caso de “Blue Train”, mas também da gostosa “Moment's Notice”, quando dividem o chorus com Coltrane. Fuller com seu jeito colorido de tocar um instrumento de registro grave. Já Morgan exibe seu virtuosismo possante de viradas criativas, agudos surpreendentes e encadeamentos improváveis. Chambers tira das cordas do baixo através do tanger do arco sons mágicos num solo luminoso. Já o blues ligeiro “Locomotion”, como o nome indica, tem na bateria de Joe Jones o impulso inicial para improvisações de alta habilidade de Coltrane, Morgan e Fuller. Mais uma vez, funciona com perfeição a trinca, com o devido destaque para cada um. Porém, não são somente eles que se sobressaem. Drew é pura elegância, enquanto Jones repete o destaque da abertura num curto, mas marcante improviso.

Diminuindo o ritmo com elegância, a romântica “I'm Old Fashioned”, originalmente da trilha sonora do musical de Fred Astaire “Bonita como Nunca”, de 1942, capta a atmosfera de que Coltrane muito se valeu junto a Miles Davis em suas inseparáveis baladas. Porém, também antecipa o tipo de releitura de standarts do cinema norte-americano que faria a partir de então, culminando na obra-prima “My Favourite Things”, de “A Noviça Rebelde”, o qual versaria em seu álbum homônimo em 1960. A pronúncia lânguida do sax na abertura, articulada com leves salpicos nas teclas, são de arrebatar. Escovinhas na caixa e no prato, um baixo vadio por detrás e um piano machucado dão aquele ar de fim de noite de nightclub

Para terminar, outro clássico, das preferidas dos amantes do jazz e de Coltrane: “Lazy Bird”, brincadeira com a progressão harmônica de “Lady Bird”, do pianista e então recente parceiro Tadd Dameron. A impressionante performance do líder pela metade da faixa quase não deixa perceber que quem a abre com o riff e executa a primeira sessão de improviso não é ele e, sim, Lee Morgan. A inteligência musical de Coltrane é tamanha que, longe de qualquer vaidade, ele percebe que cabia ao trompete esta função dentro do arranjo do tema. E olha que se trata do número de encerramento e para o qual podia, com todas as razões, puxar para si o protagonismo. Mas o que se escuta é, a bem dizer, uma música do repertório de Morgan. Na sequência, Fuller, Coltrane, Drew, Chambers e Jones cada um entra para seu momento, fechando, novamente, com a irreverência vigorosa de Morgan. 

Não por coincidência, "Blue Train" foi um dos trabalhos preferidos pelo próprio Coltrane, que continuaria a promover maravilhas fosse com duos, trios, quartetos, sextetos, octetos... Sua escalada sonora e espiritual ainda revelaria muitos momentos singulares para o desenvolvimento do jazz moderno até seu apogeu criativo naquela que pode ser considerada a trilogia máxima: "Crescent", "A Love Supreme" e "Ascencion". Porém, nada disso seria construído não fossem os trilhos abertos por este "trem azul", a linha de partida para o estilo hipnótico e exultante que o músico seguiria até sua prematura estação final, em 1966. Quase uma metáfora para um artista que passou pelo planeta "blue" na velocidade de um trem, iluminando por onde passava e emanando os sons que simbolizam o supremo.

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FAIXAS:
1. "Blue Train" - 10:43
2. "Moment's Notice" - 9:10
3. "Locomotion" - 7:14
4. "I'm Old Fashioned" (Johnny Mercer, Jerome Kern) - 7:58
3. "Lazy Bird" - 7:00
Todas as composições de autoria de John Coltrane, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

domingo, 9 de janeiro de 2022

DOSSIÊ ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2021




O velho Wayne de olho no trono dos Beatles
Chegou a hora da verdade! A hora dos número. Mais um ano se foi e é chegada a hora de fazer aquele habitual levantamento dos álbuns que entraram para a seleta galeria dos Fundamentais do Clyblog. Lembrando sempre que, na verdade, a seção não tem por objetivo promover disputa ou qualquer tipo de comparação entre artistas e obras, mas a gente mesmo fica curioso para saber quais as marcas e quantitativos e aí, então, levantamos e, em forma de ranking, passamos para vocês. 

2021 foi o ano do jazz nos ÁLBUNS FUNDAMENTAISÁLBUNS. Das 29 obras destacas na nossa seção de discos, 11 foram do refinado estilo norte-americano. Se aproveitando desse predomínio, neste período, o craque Wayne Shorter encostou definitivamente no pessoal de cima. Ainda não alcançou os Beatles, que continuam liderando, mas, junto com seu companheiro de sopro, Miles Davis, que também chegou nas cabeças, já começam a botar uma certa pressão nos rapazes de Liverpool. A propósito da Terra da Rainha, curiosamente no último ano, não tivemos NENHUM artista britânico teve discos incluídos na nossa seção. as ações ficaram basicamente divididas entre norte-americanos e brasileiros, com destaque para o primeiro japonês na lista, o versátil Ryuichi Sakamoto.

No que diz respeito aos brasileiros, Caetano Veloso que dividia a liderança com Jorge Ben, agora toma a frente isoladamente por conta pela participação no disco "Brasil", com João Gilberto, Bethânia e Gilberto Gil. Mas  a disputa está tão apertada quanto no internacional e qualquer disco aqui, disco ali, no ano que chega, pode mudar o panorama.

Entre as décadas com mais obras mencionadas, os anos 70 continuam imbatíveis, embora o ano que aparece mais vezes seja o de 1986. Chama atenção que cada vez mais é inevitável que seja reconhecida a qualidade e se projete a relevância de trabalhos recentes, o que faz com que venham aparecendo com mais frequência, em maior número e cada vez mais fresquinhos, como foi o caso do recém lançado "Carnivore", do Body Count, que mal nasceu  e já figura entre os melhores.

Então, vamos aos números que é o que interessa. Chegou a hora da verdade!


  • The Beatles: 6 álbuns
  • David Bowie, Kraftwerk, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis e Wayne Shorter: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan, John Coltrane e John Cale*  **: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, Lee Morgan e Lou Reed**: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, Body Count, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"
**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 6 álbuns*
  • Jorge Ben: 5 álbuns **
  • Gilberto Gil*  **: 5 álbuns
  • Tim Maia e Chico Buarque: 4 álbuns
  • Gal Costa, Legião Urbana, Titãs, Engenheiros do Hawaii e João Gilberto*  ****: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**, João Bosco, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Milton Nascimento**** : todos com 2 álbuns 

*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil
**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"
**** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 19
  • anos 60: 96
  • anos 70: 138
  • anos 80: 116
  • anos 90: 89
  • anos 2000: 13
  • anos 2010: 15
  • anos 2020: 2


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 22 álbuns
  • 1977: 19 álbuns
  • 1969 e 1985: 17 álbuns
  • 1967, 1972, 1973 e 1976: 16 álbuns cada
  • 1968 ,1970 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1971, 1979, 1980 e 1991: 14 álbuns
  • 1965, 1975 : 13 álbuns
  • 1965 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1964, 1966, 1987,1989, 1990 e 1994: 11 álbuns cada
  • 1978: 10 álbuns



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 192 obras de artistas*
  • Brasil: 139 obras
  • Inglaterra: 114 obras
  • Alemanha: 9 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica, Islândia, País de Gales: 2 cada
  • Japão, País de Gales, Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de páises diferentes, conta um para cada)

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Kenny Dorham - "Quiet Kenny" (1959)

 

“Foi no trompete que Kenny expressou seus sentimentos e emoções mais profundos e, como 'Quiet Kenny' demonstra de forma conclusiva, suas ideias e sua capacidade de trazê-las à vida o colocam entre os melhores."
Dan Morgenstein, do texto da reedição especial de Quiet Kenny de 2005

Os orientais são os que mais celebram o silêncio dentro da música. Aquilo que chamam de "ma" (algo como “intervalo”, “tempo”, “espaço”) pode ser interpretado e captado de diversas formas, seja filosófica, prática ou formalmente. Advinda da filosofia dualista do yin e yang, a ideia de “silêncio” trazida do Oriente se incutiu também em músicos do Ocidente, aqueles cujos ouvidos e sentimentos souberam compreender essa sabedoria milenar originária da própria natureza. Kenny Dorham foi um desses perspicazes aprendizes. Como um mestre taoísta, ele transpôs para seu trompete a sabedoria do silêncio oriental através de uma das formas mais sublimes que os sentidos humanos podem captar: a quietude. Não por coincidência, seu melhor disco chama-se “Quiet Kenny”, uma definição sintética, didática e até profética de si mesmo.

Dorham, formado nas big-bands de be-bop dos anos 50 de Lionel Hampton, Billy Eckstine, Dizzy Gillespie e Mercer Ellington, além do quinteto de Charlie Parker e a primeira formação da Jazz Massangers de Art Blakey, curiosamente não é tão celebrado quanto alguns de seus colegas de instrumento como Miles Davis, Lee Morgan e Chet Baker. Os motivos podem ser vários para ser considerado, como disse o crítico e escritor Gary Giddins, “sinônimo de subestimado”. Uma suspeita pode-se levantar: “Quiet...”, um trabalho tão definidor de sua verve e sua primeira incursão no selo Prestige, saiu justo no mesmo ano do acachapante “Kind of Blue”, de Miles, que, além de ser o álbum de jazz mais vendido da história e revolucionário por "inventar" um subgênero, o jazz modal, marcou justamente a saída de Miles do selo Prestige para a abastada gravadora Columbia. “Quiet...”, com a sombra ainda de outras obras daquele ano, como “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman, e “Time Out”, de Dave Brubeck, igualmente marcantes para o jazz, pareceu, como o título sugere, aquietar-se.

No entanto, passados os anos e o impacto midiático de seus concorrentes, “Quiet...” mostra-se tão fresco e brilhante quanto merecia ter sido recebido à época de seu lançamento. O estilo depurado de Dorham, tanto de compor e versar quanto de, principalmente, tocar, estão cristalinos no disco. Acompanhado de Tommy Flanagan, ao piano, Paul Chambers, no baixo, e Art Taylor, bateria, Dorham desfila estilo e classe sem, contudo, perder o diálogo com seu ouvinte ao exercitar uma pronúncia clara e sem rodeios do trompete. Essa proposta fica bem evidente em "Blue Friday" e "Blue Spring Shuffle", em que preserva a linguagem pop do blues ao lhe captar a essência e sem complexá-la desnecessariamente. Simplicidade. Até os ouvidos menos rebuscados conseguem sorvê-las saborosamente.

Antes disso, porém Dorham mostra que também sabia ousar, provando que apenas os desatentos o subestimavam. "Lotus Blossom", que abre o álbum, é um dos mais originais e engenhosos temas do jazz daquele final de anos 50, quiçá de toda a história do hard-bop. Intensa, lírica, dissonante, desconcertante. De andamento que ondula, surpreende por seu riff inteligente, mas também pela variação de ritmos e encadeamentos, bastante a cargo, aliás, das baquetas de Taylor. "Lotus...”, aberta referência ao Oriente, tem condensado, em menos de 5 min, tudo isso: solos incríveis de Dorham, Flanagan e de Taylor, subidas e descidas, be-bop, blues e música indiana.

Se a serenidade está mais escondida numa faixa tão vívida quanto a de abertura, nada melhor do que aplicá-la num clima de balada. É o que Dorham sabiamente faz na versão de "My Ideal", em que conta com uma rica dobradinha com o piano de Flanagan e a condução consciente de Taylor, só nas escovinhas e pratos, e de Chambers, acostumado com estas ocasiões sonoras visto que recentemente saído do quinteto que acompanhou anos Miles em seus clássicos discos pela Prestige, tais “Steamin’” e “Cookin’”. Tratamento delicado e semelhante o band leader traz para outra adaptação: "Alone Together". O trompete, que atinge notas altas de pura emoção romântica, é transparente, sem exaltação, um exemplo de como utilizar as pausas e ataques de forma sutil e fluida. Nota-se a mesma limpidez do conjunto sonoro – muito ajudada pela captação sempre perfeita do engenheiro de som Rudy Van Gelder – nos “quiet blues” "I Had the Craziest Dream" e "Old Folks". Em ambas, contracenando com Dorham, o piano de Flanagan prioriza as teclas pretas, agudas e faceiras, enquanto o baixo e a bateria mantêm a base ideal para o desenvolvimento harmônico. 

Kenny Dorham é fatalmente menos lembrado que outros trompetistas contemporâneos a ele. O temperamento reservado que manteve até sua morte sem alardes, aos 72 anos, após anos de doença renal, provavelmente explique o descompasso entre reconhecimento e qualidade artística. Esse ofuscamento pode ter sido também pela genialidade ou pela personalidade explosiva de Miles? Pelo carisma ou a intempestividade midiática de Lee Morgan? Pelo charme ou a face polêmica de Chet Baker? Probabilidades. Há de se supor, quem sabe, que a diferença de prestígio recaia sobre o estilo, quiçá mais identificável nestes outros. De fato, diversamente destes, Dorham não vai nem pela economia estruturada de Miles, nem pelo virtuosismo jovem de Morgan e nem pela expressividade cool de Chet, mas, sim, pela simplicidade. Esse era seu campo e onde atuava com desenvoltura. 

Não se sabem ao certo os motivos, porém nada disso impediu que Dorham, a seu modo, demarcasse o seu lugar entre os grandes do jazz norte-americano. Tranquilo, discreto e quieto como classificou a si próprio, Dorham não promoveu uma revolução do nível do free jazz, da avant-garde, do modal ou cool jazz, mas sim, uma (quase) silenciosa. A sua própria revolução: interna e consciente. Como um sensei do jazz.

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FAIXAS:

1. "Lotus Blossom" [also known as "Asiatic Raes"] (Kenny Dorham) - 4:39
2. "My Ideal" (Richard A. Whiting/Newell Chase) - 5:06
3. "Blue Friday" (Dorham) - 8:46
4. "Alone Together" (Howard Dietz/Arthur Schwartz) - 3:11
5. "Blue Spring Shuffle" (Dorham) - 7:38
6. "I Had the Craziest Dream" (Harry Warren/Mack Gordon) - 4:40
7. "Old Folks" (Dedette Lee Hill/Willard Robison) - 5:11
8. "Mack the Knife" (Bertolt Brecht/Kurt Weill) - 3:02 (faixa bônus da reedição em CD)

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Protagonistas coadjuvantes

Michael dando um confere bem de perto no que seu
mestre Stevie Wonder faz em estúdio, nos anos 70
Não é incomum artistas da música que, mesmo sendo astros, têm por hábito participarem de projetos de outros, seja tocando em gravações, shows ou como convidados. George Harrison, por exemplo, muito tocou sua slide guitar em discos dos amigos John Lennon e Ringo Starr. Eric Clapton, igualmente, além da carreira solo e de bandas próprias como Cream e Yardbirds, também emprestou sua guitarra para Beatles, Yoko Ono, Tina Turner, Phil Collins e vários outros. Como eles, diversos: Brian Eno, Robert Wyatt, Flea, Eddie Van Halen ou brasileiros como Herbert Vianna, Gilberto Gil, Frejat e João Donato. Todos comumente contribuem com seus instrumentos e/ou voz na música que não somente a deles próprios.

Há também aqueles que dificilmente se supõe que fariam algo fora de seus trabalhos pelos quais são mais conhecidos. Mas vasculhando com atenção as fichas técnicas dos discos, acha-se. Vez ou outra se encontra um artista que geralmente é visto apenas como protagonista atuando, deliberadamente, como um coadjuvante. E não estamos nos referindo àqueles principiantes que, posteriormente, tornar-se-iam ilustres, caso de Buddy Guy em “Folk Singer”, de Muddy Waters, de 1959, na primeira gravação do jovem Guy, então com 18 anos, com o veterano bluesman, ou Jimi Hendrix nas gravações de 1964 com a Isley Brothers anos antes de transformar-se num ícone do rock.

Aqui, referimo-nos àqueles que, já consagrados, abriram mão de seu status em nome de algo que acreditavam seja para um disco, um projeto, uma música ou um show. São momentos em que se vê verdadeiros mitos descerem de seus altares para, humildemente, colaborarem com a música alheia, seja por admiração, amizade, sentimento de dívida ou o que quer que explique. O fato é que esses “protagonistas coadjuvantes”, mesmo que estejam escondidos ou somente encontráveis nas miúdas letras da ficha técnica, abrilhantam com seus talentos peculiares a obra de outros.


Robert Smith para Siouxsie & The Banshees

Os anos 80 foram de inquietude para Robert Smith, líder da The Cure. Sua banda já era uma das mais celebradas do pós-punk britânico em 1983 quando ele, que havia lançado um ano anos o disco único “Blue Sunshine”, da The Glove, projeto em parceria com Steven Severin, decide dar um tempo com o grupo. Mas para quem estava a pleno naquela época, Bob “descansou carregando pedra”, como diz o ditado. Ele decide fazer parte da Siouxsie & The Banshees, banda coirmã da The Cure, mas estritamente como integrante. Com os vocais e o palco já devidamente preenchidos por Siouxsie, Robert assume as guitarras e une-se a Severin (baixo) e Budgie (bateria) para compor a melhor formação que a Siouxsie & The Banshees já teve. Não deu outra: dois discos, duas pérolas, para muitos os melhores da banda: “Hyenna” e o ao vivo “Nocturne”




Miles Davis
para Cannonball Adderley
Mais do que na música pop, é comum no jazz grandes astros e band leaders tocarem na banda de colegas. Isso não funciona, entretanto, para Miles Davis. O talvez mais exclusivo músico do jazz havia tocado no início da carreira para Sarah Vaughan, mas depois jamais fez nada que não fosse tão-somente seu. Até que, com jeitinho, em 1958, o amigo Cannonball Adderley convida-o para participar das gravações de um disco que ele estava por lançar e no qual teria ainda Art Blakey, na bateria, Hank Jones, no piano, e Sam Jones, no baixo. Uma sessão de gravação apenas, só cinco números, algumas horinhas de estúdio com Rudy Van Gelder na mesa, engenheiro com quem Miles tanto estava acostumado a trabalhar. "Não vai custar nada. Diz, que sim, diz que sim!" Tanto foi, que Miles topou, e saiu "Somethin' Else", aquele que é o disco que antecipa a obra-prima “Kind of Blue”, em que, reassumido o posto de front man, aí é Miles que conta com o parceiro saxofonista na banda. Tudo de volta ao normal.


Paul McCartney para Foo Fighters
É conhecida a versatilidade de Paul McCartney. Multi-instrumentista, ele é capaz de tocar, em apenas um show, vários instrumentos ou gravar um disco inteirinho sozinho sem precisar de mais ninguém no estúdio. Quem também fez isso foi Dave Grohl, líder da Foo Fighters, que, no álbum de estreia da banda, em 1995, toca não apenas a bateria, que era seu instrumento na Nirvana, como todos os outros. A amizade e talvez essa semelhança tenham feito com que chamasse o eterno beatle para uma empreitada 12 anos depois. Fã de Macca, ele convidou o veterano músico para gravar para ele não a guitarra, o piano ou a voz. Isso, muita gente já havia feito. Ele pediu para Paul tocar justamente bateria. A “brincadeira” deu super certo, como se vê na canção "Sunday Rain" presente no disco "Concrete And Gold".


Michael Jackson para Stevie Wonder
É uma música apenas, mas considerando o tamanho deste “coadjuvante”, vale por um disco inteiro. A linda e melodiosa “All I Do”, que Stevie Wonder gravaria em seu “Hotter than July”, de 1980, conta com ninguém menos que Michael Jackson nos vocais. E não se trata da voz principal, e sim do backing vocals! Surpreende ainda mais que o Rei do Pop já havia lançado à época o megassucesso “Off the Wall”, de um ano antes, com o qual revolucionaria a música pop e que quebrara os paradigmas de vendas da música negra no mundo. Mas a devoção de Michael para com Stevie era tamanha, que ele nem se importou em fazer um papel secundário. Para quem era conhecido pela habilidade de canto e arranjos de voz, no entanto, o que seria uma mera participação contribui sobremaneira para a beleza melódica da canção.



David Bowie
 para Iggy Pop
Em meados dos anos 70, Iggy Pop e David Bowie estavam bastante próximos. Bowie havia chamado o amigo para uma temporada em Berlim, na Alemanha, onde desfrutariam do moderno estúdio Hansa para erigir alguns projetos, dentre estes, “The Idiot”, no qual dividem todas as autorias e gravações. O período foi tão fértil, que rendeu também uma turnê, registrada no álbum ao vivo “TV Eye Live 1977". Acontece que, no palco, não dá para apenas os dois se resolverem com os instrumentos. Foi então que chamaram os Sales Brothers para o baixo e bateria, Ricky Gardiner, para a guitarra, e... quem assumiria os teclados? Ah, chama aquele cara ali que tá de bobeira. O próprio David Bowie. Quando se escuta as versões ao vivo de “Lust for Life”, “I Wanna Be Your Dog” e “Funtime”, acreditem: os teclados que se ouvem são do Camaleão do Rock. 



Phlip Glass
 para Polyrock
O cara já tinha composto de um tudo: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata, estudos. Faltava uma coisa: música pop. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, o gênio da vanguarda californiana Philip Glass “apadrinhou” junto com este a new wave art rock Polyrock. Dizem nos bastidores, que o cérebro da banda é Glass e não só os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação com a música minimalista do autor de "Einsten on the Beach". Seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. O que consta, sim, é a participação do maestro tocando piano e teclados nos dois discos do grupo, “Polyrock”, de 1980, e “Changing Hearts”, de um ano depois, no qual, inclusive, assina oficialmente o arranjo de cordas da faixa-título. Daqueles raros momentos em que a música de vanguarda se encontra com o rock.





João Gilberto para Rita Lee
Se hoje a participação de João Gilberto tocando violão para Elizeth Cardoso em duas faixas de “Canção do Amor Demais”, de 1958, é considerado o pontapé inicial para o movimento da bossa nova, àquela época o gênio baiano era apenas um músico iniciante ao qual não se havia ouvido ainda toda sua arquitetura sonora de instrumento, voz e harmonia. 24 anos depois, já um mito, João dificilmente repetia uma ação como aquela do passado. Quisessem tocar com ele, ele que convidava. Exceção feita nos anos 80 para sua então esposa, Miúcha (e somente o violão), mas especialmente para Rita Lee. Admirador confesso da Rainha do Rock Brasileiro, João topou o convite de gravar ele, seu violão e sua atmosfera única a faixa “Brasil com S”, do disco “Rita Lee & Roberto de Carvalho”, autoria dos dois. Pode-se dizer que, como todo o cancioneiro de João, é mais uma obra-prima, porém a única em que põe sua voz à serviço de um outro artista fora da sua discografia. Privilégio.


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Música da Cabeça - Programa #217

 

Variante da Índia, do Brasil, da África e até da Escócia por aí? Aqui no MDC também temos as nossas variantes de nacionalidades diferentes. Circulando entre nós teremos hoje os norte-americanos Vince Guaraldi e R.E.M., os ingleses da The Who, a irlandesa Sinéad O'Connor e os brasileiros Sérgio Sampaio e Amado Maita, além de outros. Ainda, no 'Cabeção' e no 'Palavra, Lê', Miles Davis e Nelson Sargento, que são de todos os lugares. Sem variação, o programa de hoje é 21h, na invariável Rádio Elétrica. Produção, apresentação e livre circulação: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues