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segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

As Minhas 14 Preferidas de Suzanne Vega (16, na verdade)


Tem convites que são mais presentes que pedidos. Falar de Suzanne Vega já é algo que me apraz. Afinal, não é de hoje - desde os anos 80, pra falar a verdade, lá se vão mais de 30 anos - que admiro imensamente a obra desta artista californiana dona de um estilo muito próprio e sofisticado de música pop. Já a resenhei em duas ocasiões nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog, aliás. E o convite? Montar uma lista com 14 músicas preferidas do cancioneiro de Miss Suzanne. Um pedido mais que uma ordem, ainda mais vindo de outro fã da artista, meu amigo igualmente radialista André Buda, para a montagem de um programa especial O Método Buda de Controle Mental na Internova Rádio Web. Aí, falar de Suzanne Vega e montar lista não é tarefa: é juntar dois prazeres.

Muito já compartilhamos André e eu impressões em relação a ela e sua encantadora música. Parte delas, pois, está nesta listagem. A melodista incrivelmente criativa. A poeta e songwritter folk. A feminista consciente e existencialista. A cantora da voz de cristal e da dicção perfeita. A conhecedora de todos os caminhos para uma composição pop e cantarolável. A exímia violonista. Enfim, características que vão aparecendo no decorrer das selecionadas e que denotam, todas a seu modo, uma arte pop altamente elegante. 

Porém - e isso é uma das premissas que levou André a me convidar a colaborar tanto quanto o gosto que comungamos - o óbvio foi evitado. Ou seja, o megahit "Luka" e até "Tom's Diner", que tocou bastante no início dos anos 90 com o remix dance feita pela dupla inglesa D.N.A., não estão contemplados. Adoro ambas as músicas, aliás, mas Suzanne é muito mais do que elas. Está aqui, sim, uma playlist de 16 canções na ordem cronológica de suas feituras que, para além de transmitirem essas características as quais mencionei anteriormente (bem como outras possíveis de serem percebidas), o que se dá naturalmente, refletem a versatilidade da autora ao longo dos quase 40 anos de carreira e dão, assim, a dimensão de seu talento e de sua rica obra. 

Ah! E deram 16 faixas no final, pois convenci André de socar mais duas além das que tinha pedido. Coisa de fã, consentimento de outro fã. Mesmo assim fiquei me coçando pra incluir outras amadas, como "Book of Dreams", "Night Vision", In Liverpool", "Unbound", "Pornographer's Dream"... Paciência. Mas a quem estiver lendo esta seleção, além das escolhidas, recomendo fortemente a audição destas aqui também, quando não de seus discos completos.

Seja folk, bossa nova, ethnic, blues, jazz, punk, rap, tecno ou clássica. Tudo está na voz e no violão de e uma das artistas mais completas da música pop. Uma pequena deusa, que nem todos acham ou sabem. Mas André e eu concordamos com isso, isso que importa.

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O emblemático
primeiro disco
1. "The Queen and the Soldier"
(de Suzanne Vega”, de 1985)

A veia literata da filha de professora e poeta num folk “coheniano”. Suzanne no primeiro disco dizendo a que veio. 



 
2. "Ironbound / Fancy Poultry" (de “Solitude Standing”, de 1987)
Quanta elegância musical dessa mulher, credo! Folk-soul-pop com pitadas de bossa nova - sem ser nenhum deles propriamente dito. 

 
3. "Tired of Sleeping" (de “Days of Open Hand”, de 1990)
Perfect pop pra começar arrasando o terceiro disco. Daquelas perfeitas em tudo: letra, arranjo, estrutura, canto, poesia. 


O ótimo "Days...", com 3
na lista
4. "Rusted Pipe" (de “Days of Open Hand”, de 1990)
Afropop com a elegância só dela. Craque em melodias de voz. 
OUÇA AQUI
               







5. "Fifty-Fifty Chance" (de “Days of Open Hand”, de 1990)
A mais beatle de todas de Suzanne, e ainda com arranjo de Philip Glass. Que luxo. 


              
6. "Rock in This Pocket (Song of David)" (de "99.9 F°", de 1992)
Pedrada feminista pra arrancar o ótimo 99.9. Suzanne se renova em alto estilo. 


7. "Blood Makes Noise" (de "99.9 F°", de 1992)
Eletrorap com o fluxo sanguíneo como batida, é isso mesmo? Genial (e um baita clipe)



8. "99.9 F°" (de "99.9 F°", de 1992)
De novo a África correndo nas veias. Sensual pra caralho. 


9. "Blood Sings" (de "99.9 F°", de 1992)
Literalmente, encarnada. Das melodias misteriosas de Suzanne. Triste, triste! Mas linda, linda! E como toca violão, como canta com afinação e assertividade, cruzes! 


10. "Birth-Day (Love Made Real)" (de “Nine Objects of Desire”, de 1995)
Essa vem lá de dentro da selva, de tão orgânica que é. Começo arrasador do melhor disco de Suzanne. 

11. "Caramel" (de “Nine Objects of Desire”, de 1995)
Sinceramente: só uma grande compositora pra fazer uma bossa nova com essa elegância e personalidade sem ser brasileira



12. "Thin Man" (de “Nine Objects of Desire”, de 1995)
Outro samba da brasileirinha Suzanne. Quanta sensualidade - e letra na primeira voz feminina. 


13. "World Before Columbus"
 
(de “Nine Objects of Desire”, de 1995)
Das mais tocantes de sua quase irretocável obra. Que letra, que melodia! Quanta beleza! 


Filme brasileiro
"Jenipapo"
14. "Ignorant Sky"
(da trilha sonora do filme “Jenipapo”, de 1995)

A única que não é de sua autoria, mas o motivo é grandioso, pois é parceria de Philip Glass com Antonio Cícero. Tá bom? 


 

15. "Penitent" (de "Songs in Red and Gray", de 2001)
A songwriter ataca de novo! Que fineza ao cantar! Outra abertura de disco. 



Arte do Blue Note
"B&C"
16. "Zephyr & I"
(de “Crime and Beauty”, de 2007)

A música de Suzanne já é charmosa, agora imagine gravada pelo selo Blue Note?! E como sabe abrir um disco, né?




Daniel Rodrigues


segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Aimee Mann – “Magnolia – Music from the Motion Picture” (1999)



Acima, a capa original, de 1999,
e, abaixo, com os sapos,
da reedição de 2018.

“Aimee Mann é uma cantora e compositora maravilhosa. Provavelmente devo a ela uma tonelada de dinheiro pela inspiração que ela teve neste filme.” 
Paul Thomas Anderson

Esta resenha bem que podia ser sobre o filme. De certa forma é, haja vista que é impossível dissociar, neste caso, filme e trilha. Embora comum a associação entre imagem e música no cinema, nem sempre um resultado tão afinado como este acontece. Tem, claro, as trilhas clássicas, aquelas que basta ouvir meio acorde para lembrar do filme, caso do que John Williams fez com “Tubarão” e a saga “Star Wars” ou Nino Rota para com a trilogia “Chefão”. Igualmente, “Koyaanisqatsi”, dirigido por Godfrey Reggio e musicado por Philip Glass, é assim, mas num nível diferente, haja vista que, para tal, a criação da imagem depende da música para tomar forma e vice-versa. Com “Magnolia”, cuja trilha é escrita pela cantora e compositora norte-americana Aimee Mann, entretanto, essa relação é diferente. A ligação da canção com as imagens do filme se dá num estágio mais sensível de entendimento, tornando-se, por esta via, parte essencial da obra de uma maneira bastante subjetiva e profunda.

Assisti “Magnolia” no ano de lançamento, 1999, cujos 20 anos decorridos só o engrandeceram. O então jovem diretor Paul Thomas Anderson, grande revelação do cinema alternativo dos Estados Unidos dos anos 90 junto com Quentin Tarantino, vinha do ótimo “Jogada de Risco” e da obra-prima “Boogie Nights”. O aguardado “Magnolia”, cujas notícias a respeito davam conta de que trazia um elenco estelar, como Tom Cruise numa atuação elogiadíssima, Juliane Moore, idem, Philip Seymour Hoffman afirmando-se como um dos maiores de sua geração, entre outros destaques, carregava a expectativa de que o cineasta se superasse. E foi o que aconteceu. A trama coral ao estilo Robert Altman, que amarra como sensibilidade a vida de vários personagens, nos deixava boquiabertos e cientes de que estávamos presenciando um novo marco do cinema.

Mas o que aumentava ainda mais essa sensação era a trilha sonora de Aimee, a qual concorreu ao Oscar daquele ano na categoria Canção Original. Responsável por pontuar toda a narrativa, a música composta por ela cumpre o papel de atar a história, contando-a através de sons e poesia. Mas isso não é tudo, visto que a música é tão presente e embrenhada com a história que acaba sendo mais um personagem. São nove preciosidades de um pop cristalino entre o folk e o indie que, além de cumprir a função de banda sonora, funciona perfeitamente como um disco independente do filme que o inspirou. Dá para ouvir “Magnolia” e se deliciar tão somente com a qualidade musical que contém. Contribui para isso também o fato de todas as músicas terem cada uma sua melodia e universo, sem valer-se da comum prática de trilhas sonoras de se desenvolverem variações sobre um ou dois temas musicais centrais para várias faixas.

Mesmo que a audição do disco possa ser aproveitada a qualquer momento, é impossível a apaixonados pelo filme como eu dissociar sua música da memória imagética, pois a trilha faz se transportar para as cenas a cada faixa. Exemplo disso é o tema de abertura tanto do disco quanto do filme: a precisamente intitulada “One”. A quem, como eu, não vem à mente a imagem da flor se abrindo em alta velocidade e os letterings do título aparecendo na tela com a voz de Aimee cantando: “One is the loneliest number/ that you'll ever do/ Two can be as bad as one/ it's the loneliest number/ since the number one”? (“Um é o mais solitário número/ Que você irá encontrar/ Dois pode ser pior que um/ É um número solitário/ depois do número um”).

Após o arrebatador começo, Aimee não dá trégua, emendando uma canção tocante atrás da outra. “Momentum” inicia desconcertada e dissonante para, em seguida, tomar a forma de um country-rock embalado e com um refrão comovente em que a voz de Aimee expressa docilidade mas, igualmente, a força do feminino – elemento narrativo que o filme traz de forma central em vários níveis e aspectos. “Build That Wall”, um pop delicado sobre a sofrida e viciada personagem Claudia (Melora Walters), traz um belo arranjo com flautas Piccolo e a capacidade da compositora de criar melodias e refrões tocantes (“How could anyone ever fight it/ Who could ever expect to fight it when she/ Builds that wall”: “Como alguém pode combatê-la/ Quem poderia esperar para combatê-la quando ela/ Constrói esta parede”).

Outra das mais emocionantes, “Deathly”, sobre suicídio, abre com a voz de Aimee rasgando em uma balada sofrida e realista: “Agora que te encontrei /Você se incomodaria/ Se não nos víssemos mais?/ Pois eu não posso me permitir/ Subir sobre você/ Ninguém tem tamanho ego a gastar“. A letra fala também da dificuldade emocional da personagem Claudia (um reflexo de vários outros personagens, como o arrogante Frank, de Cruise, e o abusador astro da TV Jimmy Gator, vivido por Phillip Baker Hall) de aceitar o amor do oficial Jim (John C. Reilly), que pelas coincidências da vida, encontrou-a e se apaixona: “Nem comece/ Pois eu já tenho problemas demais/ Não me importune/ Quando um simples ato de bondade pode ser/ Mortal/ Definitivamente”.

“Driving Sideways”, linda, repete a fineza comovida das composições, Já a instrumental “Nothing Is Good Enough” dá uma ligeira trégua para, na sequência, mandar outra bomba sentimental: “You Do”, em que novamente Aimee solta a voz com tamanho trato e verdade que é impossível ficar alheio ao ouvir. A também bela “Nothing Is Good Enough” toca num ponto basal do longa, que são as relações familiares: “Era uma vez/ Esta é a maneira como tudo começa/ Mas eu serei breve/ O que começou com tal excitação/ Agora eu felizmente termino com alívio/ No que agora se tornou um motivo familiar”.

Se a carga emotiva já era grande, Aimee, acompanhando o desenrolar do filme, também a intensifica mais para o final. “Wise Up”, tema que marca a sequência logo após a célebre cena da chuva de sapos sobre Los Angeles, revela uma série de tomadas de consciência dos personagens, todos com suas aflições, dificuldades, culpas e medos. O contexto de vícios, desentendimentos, suicídio, incesto, fugas emocionais e rancores, que os personagens trazem cada um a seu grau, ganha a redenção depois daquele fenômeno surreal, o que lhes oportuniza um momento de autoesclarecimento e arrependimentos. Isso, por sua vez, é brilhantemente desenhado pelos acordes de “Wise Up”, que inicia com um leve toque de piano simulando o som da batida de um coração. Figura nada mais adequada. Quando a voz de Aimee surge, é como se aquela vida ainda existisse. Ainda há esperança! Aimee, aliás, mais uma vez, esbanja sensibilidade na melodia e no canto. E o refrão, inesquecível, diz: ”It's not going to stop/ It's not going to stop/ Till you wise up” (“Isso não vai parar/ Isso não vai parar/ Até você se tocar”).

Um desavisado que estivesse escutando apenas o disco poderia achar “Wise...” um final falso. No entanto, quem conhece o filme sabe que, além desta, ainda vem outra para desmanchar em lágrimas de vez qualquer um: “Save Me”. Literalmente, a “salvação” final. Como se a redenção divina expressa naquela sequência de acontecimento recaísse sobre os homens. Misto de country e balada pop, num de seus trechos, diz assim: “Você me pareceu tão banal como radium/ Como Peter Pan ou como o Super-Homem/ Você aparecerá para me salvar/ Venha e me salve/ Se você puder, salve-me/ Deste bando de loucos/ Que suspeitam que nunca irão amar ninguém”. A música, além de marcar a cena de encerramento do filme, representa, na figura da personagem Claudia, a tentativa humana de superar suas dificuldades e dar espaço para o amor. É o arrebatamento final que Aimee dá ao genial filme de P.T. Anderson.

Duas músicas da Supertramp, uma de Gabrielle e um tema orquestrado por Jon Brion ainda desfecham o álbum, mas é evidente que a trilha de “Magnolia” é, de fato, a parte de Aimee Mann. Num momento muito inspirado da carreira, ela consegue imprimir personalidade ao filme através da música e, ao mesmo tempo, compor um disco de igual personalidade quando ouvido separadamente da obra cinematográfica. As músicas dela, através de uma sintonia muito profunda com o filme, se adéquam às cenas muito menos por sua representação narrativa do que por uma afinação que apenas o sentimento imagem/som proporciona. Talvez seja isso que distinga “Magnolia” de outros soundtracks, mesmo os mais clássicos: a música faz remeter ao sentimento que o filme traz, e não à obra a qual está ligada. Pode parecer um detalhe, mas faz toda a diferença. A música de "Magnolia" é como mais um personagem, mas onipresente, imbricado dentro de todos eles: homens e mulheres como nós.

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Lançado em 2018, a versão intitulada "Magnolia - Original Motion Picture Soundtrack" traz, além de um disco com as músicas de Aimee Mann, outros dois com o Original Score composto pelo maestro Jon Brion.


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FAIXAS:
1. “One” (Harry Nilsson) - 02:53
2. “Momentum” - 03:27
3.  “Build That Wall” (Jon Brion/Aimee Mann) - 04:25
4. “Deathly” - 05:28
5. “Driving Sideways” (Michael Lockwood/Aimee Mann) - 03:47
6. “You Do” - 03:41
7. “Nothing Is Good Enough” - 03:10
8. “Wise Up” - 03:31
9. “Save Me” (04:35)
10. “Goodbye Stranger” – Supertramp (Rick Davies/Roger Hodgson) - 05:50
11. “Logical Song” – Supertramp (Davies/Hodgson) - 04:07
12. “Dreams” - Gabrielle (James Bobchak/Tim Laws) - 03:43
13. “Magnolia” - Jon Brion (Brion/ Mann) - 02:12
Todas as composições de autoria de Aimee Mann, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Lou Harrison - "La Koro Sutro" (1972)

 

Nem Reed, nem George

"Forma não é mais que vazio.
Vazio não é mais que forma.
Forma é exatamente vazio.
Vazio é exatamente forma.
Sensação, conceituação, diferenciação, conhecimento
Assim também o são."
Trecho do “Sutra do Coração da Grande Sabedoria Completa”, da filosofia budista Mahayana, século I

Pode-se entender como um impulso natural por parte de músicos modernos que queiram sair do óbvio o movimento em direção à música do Oriente. O esgotamento do sistema harmônico tonal, adotado pelo Ocidente a partir do século XVIII, levou artistas mais antenados a naturalmente procurarem saídas para esta armadilha diatônica. De Claude Debussy a David Bowie, de Dave Bruback a Philip Glass, a milenar cultura oriental vem servindo de baú de descobertas para aqueles que tentam suplantar as limitações impostas por aquilo que está estabelecido. Esta inquietação, claro, contaminou profundamente a música pop. Tanto é que as duas bandas mais influentes do rock, The Beatles e Velvet Underground, tiveram, cada uma a seu modo, a contribuição diferenciada das sonoridades vindas do outro lado do mundo, mastigando estes elementos para a música pop. E se George Harrison, pelos ingleses, e a dupla Reed/Cale, para com os nova-iorquinos são os principais mobilizadores desta busca, antes deles uma figura foi fundamental para que o Oriente chegasse ao Ocidente já depurado: Lou Harrison.

Nascido em Portland, no Oregon, em 1917, Harrison é um dos mais inovadores e influentes compositores da vanguarda norte-americana, tornando-se, junto a Iannis Xenakis, uma referência na música percussiva na vanguarda do século XX. Ex-aluno de Arnold Schöenberg, sua carreira inclui trabalhos como compositor, performer, professor, teórico musical, etnomusicólogo, maestro, fabricante de instrumentos, poeta, calígrafo, crítico, dançarino, marionetista e dramaturgo. O interesse música para percussão data da década de 1930, quando começou a apresentar concertos com o mestre John Cage. Nos anos 40 e 50, já um referencial professor universitário e diversas vezes premiado (inclusive com um Pulitzer), Harrison sentia que precisava buscar novos horizontes. E o achou. No Oriente. Passa a se interessar pela música asiática e seu sistema de afinação de “entonação justa” e muda radicalmente sua concepção musical, introjetando uma leitura original desses elementos a seu trabalho.

Obra temporã, “La Koro Sutro”, de 1972, que completou 50 anos de lançamento em 2022, é fruto de todos os elementos estilísticos, teóricos e conceituais construídos por Harrison ao longo de então cinco décadas. Porém, diferentemente do que poderia ocorrer a um autor acadêmico, “La Koro Sutro” não resulta carregada de elementos, que tornariam facilmente sua audição hermética e difícil. Pelo contrário: Harrison depura as influências orientais e a incrementa à sua música, tornando “La Koro Sutro” algo bastante pop aos ouvidos. Se o termo já era comum ao enterteinment naqueles idos de geração hippie, há de se supor, no entanto, que constituir uma obra palatável ao público menos especializado é um grande mérito vindo de um teórico.

A veia popular de “La Koro Sutro”, no entanto, explica-se de uma forma menos óbvia. Contrariando o que seria bem mais fácil a qualquer compositor, Harrison não recruta elementos da música do Ocidente para “poptizar” o “exótico”, facilitando a vida do receptor. Estudioso profundo, ele encontra na sonoridade oriental tais pontos de aproximação com o ouvinte. Essas observações vinham sendo percebidas por Harrison fazia tempo. No início dos anos 60, incentivado por uma conferência em Tóquio, inicia um estudo mais sistemático da música do Leste Asiático, viajando para a Coréia e Taiwan. Peças como “Pacifika Rondo” (1963) revelam a maneira altamente original com que Harrison empregou esses estilos. Em 1967, ele conhece Bill Colvig, um eletricista e músico amador que se torna seu parceiro de vida. Colvig projeta instrumentos para a ópera “Young Caesar” (1971), de Harrison. No início dos anos 1970, a dupla já estudava e tocava música tradicional chinesa em conjunto.

Harrison e o parceiro de vida e obra Colvig
comandando seus instrumentos inventados
Para “La Koro Sutro”, é fundamental a contribuição de Colvig, desta vez na construção do gamelão americano. Incitado pelo amigo e igualmente importante compositor da vanguarda norte-americana Harry Partch, Harrison buscou na feitura manual dos próprios instrumentos os sistemas de afinação que não só lhe conferisse personalidade como, igualmente, trouxesse esse arejamento à desgastada música ocidental. Caso do gamelão, instrumento musical coletivo típico da Indonésia composto por uma série de metalofones, xilofones, tambores e gongos, podendo algumas variantes incluir ainda flautas de bambu e instrumentos de cordas percutidas ou tocadas com arco. Harrison, então, estuda com o mestre javanês K.R.T. Notoprojo, com quem soube identificar aquilo que queria: adaptar a sonoridade complexa do instrumento para a sua realidade. Eis o gamelão americano, usado pela primeira vez na obra de Harrison em “La Koro Sutro”.

O título da peça é a tradução da língua universal esperanto para “Sutra do Coração”, que é um dos textos sagrados da tradição budista Mahayana, que descreve o caminho que se deve seguir para alcançar a destilação pura da sabedoria (Nirvana). O uso que Harrison faz do esperanto é uma clara declaração social e política que reflete sua esperança em um mundo unido e na transcendência das fronteiras étnicas e nacionais. Esse texto é brilhantemente ornado de corais, que se atrelam a uma orquestra de formação única (composta, conjuntamente ao coro, para percussão, harpa, órgão e gamelão americano), que extrai sonoridades improváveis.

Certa vez, o compositor e amigo Bill Alves escreveu que “como compositor, artista, poeta, calígrafo, ativista pela paz, Lou Harrison dedicou sua vida a trazer beleza ao mundo”. Com o potente e poético “La Koro Sutro”, Harrison atingiu este objetivo, formal e conceitualmente. A pequena obra, capaz de agradar os ouvidos mais incultos aos mais exigentes, é uma síntese de décadas de trabalho musical, acadêmico é uma declaração de amor de um artista que buscou incessantemente militar por uma arte mais democrática num campo em que facilmente os colegas se escudam no hermetismo inatingível. E ainda de quebra abriu portas para que o rock, a música mais pop do século 20, tirasse de si o exemplo da “ocidentalidade”. Os Beatles jamais teriam buscado Ravi Shankar ou os cantos orientais não fosse George Harrison pegar essa trilha, o mesmo que a dupla Reed e Cale fez com a Velvet Underground quando encontrou o oriente em La Monte Young. Reed e George, pode-se afirmar que, sim, ambos são, além da coincidência linguística, um pouco de Lou Harrison.

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FAIXAS:
La Koro Sutro
1. Kunsonoro Kaj Gloro - 2:27
2. Strofo 1 - 4:42
3. Strofo 2 - 3:45
4. Strofo 3 - 1:24
5. Strofo 4 - 4:08
6. Strofo 5 - 4:27
7. Strofo 6 - 2:27
8. Strofo 7 - Mantro Kaj Kunsonoro - 5:04

Varied Trio*
9. I. Gending 3:15
10. II. Bowl Bells 3:07
11. III. Elegy 3:29
12. IV. Rondeau In Honor Of Fragonard 3:12
13. V. Dance 2:05

Suite For Violin And American Gamelan**
14. First Movement - 7:20
15. Estampie - 5:28
16. Air - 3:58
17. Jhala - 2:24
18. Jhala II - 1:19
19. Jhala III - 2:00
20. Chaconne - 5:29

* ** Faixas presentes na versão do CD de 1987, com The Chorus and Chamber Chorus of University of California at Berkeley com regência de Philip Brett, Karen Gottlieb, arpa, Agnes Sauerbeck, órgão, William Winant, American Gamelan


OUÇA O DISCO:
:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Protagonistas coadjuvantes

Michael dando um confere bem de perto no que seu
mestre Stevie Wonder faz em estúdio, nos anos 70
Não é incomum artistas da música que, mesmo sendo astros, têm por hábito participarem de projetos de outros, seja tocando em gravações, shows ou como convidados. George Harrison, por exemplo, muito tocou sua slide guitar em discos dos amigos John Lennon e Ringo Starr. Eric Clapton, igualmente, além da carreira solo e de bandas próprias como Cream e Yardbirds, também emprestou sua guitarra para Beatles, Yoko Ono, Tina Turner, Phil Collins e vários outros. Como eles, diversos: Brian Eno, Robert Wyatt, Flea, Eddie Van Halen ou brasileiros como Herbert Vianna, Gilberto Gil, Frejat e João Donato. Todos comumente contribuem com seus instrumentos e/ou voz na música que não somente a deles próprios.

Há também aqueles que dificilmente se supõe que fariam algo fora de seus trabalhos pelos quais são mais conhecidos. Mas vasculhando com atenção as fichas técnicas dos discos, acha-se. Vez ou outra se encontra um artista que geralmente é visto apenas como protagonista atuando, deliberadamente, como um coadjuvante. E não estamos nos referindo àqueles principiantes que, posteriormente, tornar-se-iam ilustres, caso de Buddy Guy em “Folk Singer”, de Muddy Waters, de 1959, na primeira gravação do jovem Guy, então com 18 anos, com o veterano bluesman, ou Jimi Hendrix nas gravações de 1964 com a Isley Brothers anos antes de transformar-se num ícone do rock.

Aqui, referimo-nos àqueles que, já consagrados, abriram mão de seu status em nome de algo que acreditavam seja para um disco, um projeto, uma música ou um show. São momentos em que se vê verdadeiros mitos descerem de seus altares para, humildemente, colaborarem com a música alheia, seja por admiração, amizade, sentimento de dívida ou o que quer que explique. O fato é que esses “protagonistas coadjuvantes”, mesmo que estejam escondidos ou somente encontráveis nas miúdas letras da ficha técnica, abrilhantam com seus talentos peculiares a obra de outros.


Robert Smith para Siouxsie & The Banshees

Os anos 80 foram de inquietude para Robert Smith, líder da The Cure. Sua banda já era uma das mais celebradas do pós-punk britânico em 1983 quando ele, que havia lançado um ano anos o disco único “Blue Sunshine”, da The Glove, projeto em parceria com Steven Severin, decide dar um tempo com o grupo. Mas para quem estava a pleno naquela época, Bob “descansou carregando pedra”, como diz o ditado. Ele decide fazer parte da Siouxsie & The Banshees, banda coirmã da The Cure, mas estritamente como integrante. Com os vocais e o palco já devidamente preenchidos por Siouxsie, Robert assume as guitarras e une-se a Severin (baixo) e Budgie (bateria) para compor a melhor formação que a Siouxsie & The Banshees já teve. Não deu outra: dois discos, duas pérolas, para muitos os melhores da banda: “Hyenna” e o ao vivo “Nocturne”




Miles Davis
para Cannonball Adderley
Mais do que na música pop, é comum no jazz grandes astros e band leaders tocarem na banda de colegas. Isso não funciona, entretanto, para Miles Davis. O talvez mais exclusivo músico do jazz havia tocado no início da carreira para Sarah Vaughan, mas depois jamais fez nada que não fosse tão-somente seu. Até que, com jeitinho, em 1958, o amigo Cannonball Adderley convida-o para participar das gravações de um disco que ele estava por lançar e no qual teria ainda Art Blakey, na bateria, Hank Jones, no piano, e Sam Jones, no baixo. Uma sessão de gravação apenas, só cinco números, algumas horinhas de estúdio com Rudy Van Gelder na mesa, engenheiro com quem Miles tanto estava acostumado a trabalhar. "Não vai custar nada. Diz, que sim, diz que sim!" Tanto foi, que Miles topou, e saiu "Somethin' Else", aquele que é o disco que antecipa a obra-prima “Kind of Blue”, em que, reassumido o posto de front man, aí é Miles que conta com o parceiro saxofonista na banda. Tudo de volta ao normal.


Paul McCartney para Foo Fighters
É conhecida a versatilidade de Paul McCartney. Multi-instrumentista, ele é capaz de tocar, em apenas um show, vários instrumentos ou gravar um disco inteirinho sozinho sem precisar de mais ninguém no estúdio. Quem também fez isso foi Dave Grohl, líder da Foo Fighters, que, no álbum de estreia da banda, em 1995, toca não apenas a bateria, que era seu instrumento na Nirvana, como todos os outros. A amizade e talvez essa semelhança tenham feito com que chamasse o eterno beatle para uma empreitada 12 anos depois. Fã de Macca, ele convidou o veterano músico para gravar para ele não a guitarra, o piano ou a voz. Isso, muita gente já havia feito. Ele pediu para Paul tocar justamente bateria. A “brincadeira” deu super certo, como se vê na canção "Sunday Rain" presente no disco "Concrete And Gold".


Michael Jackson para Stevie Wonder
É uma música apenas, mas considerando o tamanho deste “coadjuvante”, vale por um disco inteiro. A linda e melodiosa “All I Do”, que Stevie Wonder gravaria em seu “Hotter than July”, de 1980, conta com ninguém menos que Michael Jackson nos vocais. E não se trata da voz principal, e sim do backing vocals! Surpreende ainda mais que o Rei do Pop já havia lançado à época o megassucesso “Off the Wall”, de um ano antes, com o qual revolucionaria a música pop e que quebrara os paradigmas de vendas da música negra no mundo. Mas a devoção de Michael para com Stevie era tamanha, que ele nem se importou em fazer um papel secundário. Para quem era conhecido pela habilidade de canto e arranjos de voz, no entanto, o que seria uma mera participação contribui sobremaneira para a beleza melódica da canção.



David Bowie
 para Iggy Pop
Em meados dos anos 70, Iggy Pop e David Bowie estavam bastante próximos. Bowie havia chamado o amigo para uma temporada em Berlim, na Alemanha, onde desfrutariam do moderno estúdio Hansa para erigir alguns projetos, dentre estes, “The Idiot”, no qual dividem todas as autorias e gravações. O período foi tão fértil, que rendeu também uma turnê, registrada no álbum ao vivo “TV Eye Live 1977". Acontece que, no palco, não dá para apenas os dois se resolverem com os instrumentos. Foi então que chamaram os Sales Brothers para o baixo e bateria, Ricky Gardiner, para a guitarra, e... quem assumiria os teclados? Ah, chama aquele cara ali que tá de bobeira. O próprio David Bowie. Quando se escuta as versões ao vivo de “Lust for Life”, “I Wanna Be Your Dog” e “Funtime”, acreditem: os teclados que se ouvem são do Camaleão do Rock. 



Phlip Glass
 para Polyrock
O cara já tinha composto de um tudo: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata, estudos. Faltava uma coisa: música pop. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, o gênio da vanguarda californiana Philip Glass “apadrinhou” junto com este a new wave art rock Polyrock. Dizem nos bastidores, que o cérebro da banda é Glass e não só os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação com a música minimalista do autor de "Einsten on the Beach". Seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. O que consta, sim, é a participação do maestro tocando piano e teclados nos dois discos do grupo, “Polyrock”, de 1980, e “Changing Hearts”, de um ano depois, no qual, inclusive, assina oficialmente o arranjo de cordas da faixa-título. Daqueles raros momentos em que a música de vanguarda se encontra com o rock.





João Gilberto para Rita Lee
Se hoje a participação de João Gilberto tocando violão para Elizeth Cardoso em duas faixas de “Canção do Amor Demais”, de 1958, é considerado o pontapé inicial para o movimento da bossa nova, àquela época o gênio baiano era apenas um músico iniciante ao qual não se havia ouvido ainda toda sua arquitetura sonora de instrumento, voz e harmonia. 24 anos depois, já um mito, João dificilmente repetia uma ação como aquela do passado. Quisessem tocar com ele, ele que convidava. Exceção feita nos anos 80 para sua então esposa, Miúcha (e somente o violão), mas especialmente para Rita Lee. Admirador confesso da Rainha do Rock Brasileiro, João topou o convite de gravar ele, seu violão e sua atmosfera única a faixa “Brasil com S”, do disco “Rita Lee & Roberto de Carvalho”, autoria dos dois. Pode-se dizer que, como todo o cancioneiro de João, é mais uma obra-prima, porém a única em que põe sua voz à serviço de um outro artista fora da sua discografia. Privilégio.


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Música da Cabeça - Programa #95


“É a lama, é a lama”. Não a das águas harmoniosas de março, mas a das águas sujas de janeiro, a que soterra Brumadinho, a que expulsa Jean Wyllys do país. Mas o Música da Cabeça não abandona a “promessa de vida no teu coração”, e na semana em que Tom Jobim faria aniversário, damos vivas à boa música através de New Order, Sambrasa Trio, Philip Glass e Sepultura. Além de nossos quadros fixos, “Música de Fato” e “Palavra, Lê”, ainda um “Cabeção” para desfazer dos rostos o desgosto. Tarefa fácil? Não, mas o programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica, será esse (necessário) “resto de mato na luz da manhã”. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues E, não: não “é o fim do caminho”.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

terça-feira, 26 de julho de 2016

Grupo Corpo – “Parabelo" e "Dança Sinfônica” – Teatro do SESI – Porto Alegre (26/06/2016)



Plasticidade sobre o palco.
Assistir ao Grupo Corpo é sempre uma ocasião especial. Ponto. Agora, imagine um espetáculo comemorativo aos 40 anos da companhia, com sessão pré da melhor montagem deles e na companhia amorosa de Leocádia e Carolina Costa, duas costumazes espectadoras do Corpo há décadas como eu. A perfeição! Assim foi com a apresentação de “Dança Sinfônica”, que a melhor companhia de dança do Brasil (quiçá, na atualidade, do mundo) trouxe a Porto Alegre junto com o balé "Parabelo", de 1997.

Como de praxe, abre-se com o espetáculo mais antigo. No caso de “Parabelo”, a escolha por esta e não outra peça de sucesso como “Corpo” (Arnaldo Antunes, 2000) ou “Onqotô” (Caetano Veloso e José Miguel Wisnik, 2005) parece bastante pontual, haja vista que, feitos quase 20 anos de sua estreia, continua dizendo muito sobre o trabalho dos Pederneiras e sua equipe. Para mim, mesmo já a tendo visto outras duas vezes anteriores nesse meio tempo, “Parabelo” é sempre uma avalanche emocional. Que belíssima montagem! Sobre músicas de Tom Zé e Wisnik, é, como disse antes, provavelmente a melhor coreografia do grupo e, igualmente, talvez a mais brilhante trilha sonora já escrita para eles – além de ser um dos grandes discos instrumentais de toda a música brasileira, certamente.

O rico e brasileiro "Parabelo" de 1997.
O esmero do material criado pela dupla, que entrelaça a cultura regional do Nordeste através dos sons e dos cantos folclóricos e antropomórficos à uma inerência da musicalidade barroca e ao atonalismo da vanguarda, dá a Rodrigo Pederneiras (coreografia), Fernando Velloso, Paulo Pederneiras (cenografia e cenografia), Freusa Zechmeister (figurino) um manancial de possibilidades de criação que sublimam muito do coração brasileiro. Ver esse espetáculo é sentir-se brasileiro e, mais do que isso, feliz por ver que se é capaz de criar algo tão bonito e rico tendo como substrato elementos que nos compõem como entes culturais. É impossível não se tocar pela beleza, pelo gingado, pela leveza (ora dureza), de momentos como do balé clássico se entremeando à realidade dura dos retirantes de “Assum Branco”, ou a apoteose “frevística” do fechamento com a faixa “Xique Xique”.

Depois do arrebatamento total advindo com “Parabelo”, a estreia de fato. A nova montagem, feita sobre trilha de um velho parceiro do Corpo, o também mineiro Marco Antônio Guimarães, tem todos os quesitos de um grande espetáculo. A música, escrita para grande orquestra – a primeira feita nesses moldes para a companhia, geralmente tomada de brasilidade temática e instrumentalização idem – retraz elementos de trilhas dele para o Corpo, como em “21” (1992), “7 ou 8 Peças para Ballet” (1994) e “Bach” (1996). Igualmente, aciona células sonoras de outros trabalhos marcantes da trajetória do grupo ("Benguelê", 1998; “Santagustin”, 2002; “Sem Mim”, 2011; “Triz”, 2013) como que prestando pequenas homenagens – típicas das obras sinfônicas –, o que aqui soa como metalinguagem também.

Metalinguagem, aliás, é a chave para esta nova montagem do Corpo. A vida dedicada aos palcos e a relação vital entre artista e obra conceituam “Dança...”. A cenografia/iluminação e os figurinos dialogam o tempo todo ao usarem o vermelho encarnado do veludo, típico das cortinas dos teatros, e o preto do fundo da caixa cênica como o elemento escuro, a não-luz. Dessa forma, o conceito coreográfico de “Dança...” se baseia todo nestas cores-elementos, nesses dois estados emocionais de vida e morte, em que os dançarinos surgem e somem de “dentro” das cortinas ou do fundo infinito do palco, como se se desprendessem dali para apresentar movimentos e, em seguida, retornarem a suas origens: o imaterial, o nada.

Saltos e esticar de pernas, lembrando o balé clássico e moderno.
Guimarães, cabeça do Uakati, vale-se, na composição, bastante do estilo “folk tropicalista” do grupo, que forma a banda principal da peça sinfônica. Eles usam instrumentos peculiares, como flauta e tambores Uakati, tubos PVC, piano sem o ataque, buzina de sopro, caxixi e castanhola. Somados à volumosa orquestra da Filarmônica de Minas Gerais, todos esses músicos dão à trilha uma textura bastante própria, que lembra em vários momentos os trabalhos do Uakati e de Philip Glass, compositor com quem coassinam a trilha de “7 ou 8...”. As coreografias de “Dança...”, por sua vez, vão de lances bastante lânguidos, referenciando o balé clássico – numa reverência à raiz da arte da dança – a gestuais peculiares da dança moderna, os quais hibridizam o folclórico aos movimentos da vida urbana, com suas assimetrias e desequilíbrios. Tudo, porém com muita leveza, haja vista os vários momentos de saltos e giros, menos comuns ao Corpo da forma tradicional como foram usados. Mesmo assim, estão presentes as jogadas de pernas, o balanço dos quadris, o corpo a corpo das duplas e as composições plástico-espaciais vistas em suas obras anteriores. Assim, a coreografia veste de forma muito competente a sonoridade proposta por Guimarães, e o que se vê em “Dança...”, universal e brasileiro na medida certa, é uma síntese de um trabalho de quatro décadas pautado pela inventividade e pelo rigor. Como dizem os próprios, uma dança sobre a memória.

Na comparação com o que se assistiu antes em “Parabelo”, entretanto, fica-se com uma sensação de “podia ser mais”. Mesmo forjando um universo mais onírico e fulgurante, acaba perdendo força diante daquela enxurrada de brasilidade, algo que marca muito a companhia nesses anos de estrada. Impossível assistir ao Corpo sem associá-los à uma tropicalidade. Isso não quer dizer que “Dança...”, enquanto proposta e realização, não tenha valido. Bem pelo contrário. É um trabalho em que se nota a simbiose entre artista e palco, vida e obra, encenação e real, luz e sombra. Uma justa homenagem que o Corpo presta ao teatro e a si mesmo enquanto artífice da arte da dança no Brasil e nas Américas. A nós, admiradores de longa data da companhia, que não só buscam não perder nenhuma estreia como ainda colecionam várias de seus CD’s (relembrando as danças a cada execução), a satisfação é completa. E com o gostinho da excitante dúvida: o que será que eles trarão daqui a dois anos na nova montagem? Isso fica para 2018.


Grupo Corpo - Dança Sinfônica






segunda-feira, 24 de junho de 2013

14 Video Portraits by Robert Wilson








“Vídeo, cinema e fotografia são oferecidos como documentos de desempenho, mas raramente se aproximam da experiência tridimensional, o soa como eles irradiam através do teatro, iluminação, uma vez que envolve um lado, a antecipação da audiência, o gesto sutil do ator individual”

 Noah Khoshbin & Matthew Shattuck. 





“Se ele se move, eles vão vê-lo” 
Andy Warhol. 





“A carreira de Robert Wilson tem a assinatura de uma grande criação artística”
Susan Sontag.


O Santander Cultural realizou em 2010 a Mostra Robert Wilson – Video Portraits numa parceria antenada com as redes sociais e novas tecnologias durante a 17º edição do Porto Alegre em Cena na cidade de Porto Alegre. Em todo o espaço expositivo via-se os 14 vídeo-retratos produzidos pelo artista norte-americano em alta definição no suporte de telas de 1,5m de altura. Wilson está entre o teatro e as artes visuais de vanguarda, sendo um multiartista conhecido também por suas técnicas de iluminação e cenários no teatro americano.

Os vídeo-retratos apresentados nessa Mostra reuniam atores, artistas, dançarinos, escritores, atletas, pessoas de todas as origens, e animais que refletem a amplitude da carreira de Wilson. Entre eles figuravam: o chinês Zhang Huan, o escritor Gao Xingjian, os atores Brad Pitt e Steve Buscemi, Alan Cumming e Winona Ryder, Ditta von Teese, Jeanne Moreau e Johnny Depp entre outros. Produzidos a partir de uma parceria entre Robert Wilson e as câmeras Voom HD Networks uma empresa de TV onde Robert foi artista residente a partir de 2004. Os Vídeo-Portraits são retratos de celebridades e anônimos caracterizados por um formato que vai além da fotografia, inclui cinema e teatro, literatura e música de múltiplas dinâmicas reveladas no retrato do vídeo. As criações de Wilson apresentam uma linguagem de movimentos mínimos, gestos sutis e coreografados, somados a arranjos cenográficos sofisticados, aqui as trilhas musicais e as palavras também tem força. Aliás a ligação de Wilson partindo inspiradamente do ambiente cenográfico com a música vem desde 1976 quando apresenta o trabalho com seu parceiro Philip Glass "Einstein on the Beach".

Para estes vídeo-retratos a música torna-se parte integrante da peça, em vez de apenas uma ilustração auditivo de um tema visual. Executando a gama de gravações de campo às pontuações do jogo de vídeo, desde o clássico ao blues, ao rock ao punk dos retratos de vídeo contêm uma lição na abordagem contemporânea de apropriar-se de toda a história das gravações sonoras. Alguns críticos que abordaram as obras chegaram a questionar se Wilson está sinalizando com essas gravações sonoras um caminho da música do futuro. Será?
A impressão que temos é que o artista transporta para a tela em HD o seu velho conhecido – o palco. Nele faz todas as intervenções e correlações possíveis. A fotografia se dá pela quase imobilidade dos personagens que se congelam e se movimentam num tempo nem sempre real, brincando assim com a observação do espectador e com a sua própria noção de tempos.

Um das obras que mais gostei é a que apresenta o escritor Gao Xingjian (Prêmio Nobel da Literatura 2000 vive na França e em 1997 tornou-se cidadão francês - é também tradutor da obra de Samuel Beckett e Eugène Ionesco, além disso é roteirista, diretor de teatro e pintor). O vídeo-retrato com seu nome está datado no ano de 2005 e tem música de Peter Cerone “Never Doubt I Love, Desert”. A música pontua o tempo que a escrita percorre pelo rosto de Gao. E sugere as relações estabelecidas entre um lugar onde a solidão é uma situação permanente e um estado emocional onde o deserto pode confirmar ou negar de maneira provocativa uma afirmação duvidosa. Nesta obra o que se move quase todo o tempo é a escrita e o personagem serve de meio para recebê-la. A face do escritor recebe a frase “La solitude est une condition nécessaire de la liberte” escrita em letra manuscrita no idioma francês. Aos poucos ela se forma cruzando o rosto do escritor e tão logo está escrita começa a desaparecer culminando com a abertura dos olhos dele ainda sob a pontuação da música. 

Um texto tão carregado de emoção precisa de tempo para ser absorvido. A frase evoca reflexões. O tempo da escrita coincide com o tempo real de leitura da frase, mas não com o que a frase diz. Qual tempo de solidão é necessário para que se escreva tal reflexão? Ainda – esta frase faz parte de algum livro do escritor ou é uma frase universalmente conhecida? Será que a intenção de Wilson é fazer com que o espectador perceba que escrever é um trabalho interno profundo? E que esse mergulho na construção do texto, faz parte do processo de criação sobre o que se coloca de fato no papel?

Outro aspecto que me chamou atenção é que essa mesma obra foi exposta em Museus com diferentes suportes o que legitima o diálogo entre o meio digital e os espaços expositivos sejam eles de vanguarda ou tradicionais, sendo esse um fator que se relaciona a proposta de trabalho de Wilson que interliga novamente áreas aparentemente incompatíveis. 

Os vídeos-retratos foram exibidos em Los Angeles, Berlim, Áustria, Itália, Espanha, Rússia, EUA, Singapura, Alemanha e em New York em plena Times Square. Fico imaginando o impacto destes retratos numa avenida que é conhecida por um fluxo de imagens, cores e agitação constantes. As obras de Wilson são coloridas, contrastadas e com uma definição incrível, totalmente conectadas ao universo pixelado e frenético da Times Square que guarda para si uma profusão de anúncios publicitários, divulgação de espetáculos e reúne os mais refinados investidores mundiais. O que diria Warhol , um dos pais e Mestre destas relações entre comunicação e Arte sobre, por exemplo, a imobilidade da pantera negra que Robert expõe nesta Mostra? “Se ele se move, eles vão vê-lo", diz Andy. E quando ele se moverá? Se isso acontecer a que momento poderemos capturar esse gesto? Eis que o desafio está lançado: perceba e questione seu corpo em reação a estas obras, teste sua paciência em esperar por um movimento e transporte-se a figura do leitor de Arte, em frente a contemporaneidade explícita de Wilson independente de qual personagem ou cidadão esteja retratado na sua frente. Participe desse espetáculo e perceba o quanto você faz parte disso tudo.
Gao Xingjian: assista ao vídeo-retrato





quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Música da Cabeça - Programa #233

 

Você, meu amigo e minha amiga, que não se representa nas mentiras ditas boca afora na assembleia da ONU, saiba: aqui você é representado. Não só você, mas também quem está com a gente na edição de hoje: Towa Tei, Philip Glass, Carole King, Roberto Carlos, Led Zeppelin e mais. Também tem uma homenagem aos 100 anos de Zé Keti e um "Cabeça dos Outros" com Jamiroquai. Representando a verdade, o MDC de hoje, 21h, vai ao ar na representativa Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues

E não deixem de votar no Música da Cabeça (Programa de Rádio) e em Daniel Rodrigues (Apresentador de Rádio) para o Prêmio Press! www.revistapress.com.br/premiopress/


Rádio Elétrica:

http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Música da Cabeça - Programa #222

 

Vamos combinar: 222 não é número cabalístico, mas que dá uma boa impressão, dá. O ducentésimo vigésimo segundo MDC vem cheio de boas e variadas impressões, passeando do samba de Paulinho da Viola ao minimalismo de Philip Glass; do gothic punk da Bauhaus ao jazz-soul de Ed Motta. Isso, ainda contando com os quadros "Cabeça dos Outros", "Música de Fato" e "Palavra, Lê", todos impressionantemente musicais. Vai circular hoje o nosso expresso 222, que parte às 21h direto de Bonsucesso para a Rádio Elétrica. Produção, apresentação e pós-ano 2000: Daniel Rodrigues. (#JailBolsonaro #ImpeachmentJá)