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segunda-feira, 24 de maio de 2021

Bob Dylan - "Blood on the Tracks" (1975)

Dylan, o salvador

 

"Como se estivesse escrito em minha alma de mim para você." 
Verso da letra de "Tangled Up in Blue"


A intenção deste texto não é falar sobre “Blood on the Tracks”. Assim como outros vários discos de Bob Dylan, esta obra-prima merece estar entre os fundamentais de qualquer discoteca rock como “Desire”, “Besament Tapes”, “Planet Waves”, “The Freewheelin' Bob Dylan” ou os aqui já resenhados “Blonde on Blonde”, "Bringing It All Back Home" e "Highway 61 Revisited"

Na verdade, é quase irrelevante comentar que “Blood...” é considerado por muitos o seu melhor trabalho; que, confessional, foi escrito sob a dor dilacerante de um casamento desfeito; que a "cozinha" que lhe acompanha é a clássica The Band; ou que traz algumas das melhores letras e arranjos da carreira de Dylan, da lindeza de sua faixa de abertura, "Tangled Up in Blue"; da emocionante balada arrependida “If You See Her, Say Hello”, uma das mais belas do cancioneiro rock; do blues infalível "Meet Me in the Morning"; do desfecho primordial de “Buckets of Tears”. Não, este texto não se propõe a falar sobre o óbvio. Pelo menos, não a esta obviedade. Quero falar, sim, sobre quando Bob Dylan me salvou. O que não é nenhuma novidade, visto que o Nobel de Literatura 2016 faz isso a uma geração inteira. Voz da cultura beatnik, foi vital para o ativismo social na década de 60 por causas mundiais como os Direitos Civis, o armamento nuclear e a Guerra do Vietnã. Também, o artista que mais do que ninguém, mais que Jean Cocteau, Jim Morrison ou Bertold Brecht, aproximou a literatura e a poesia da música. 

Mas, para chegar a Dylan, tenho que falar antes sobre outro grande músico do século XX a quem também atribuo minha salvação: Henri Mancini. Impossível desvincular essa história, entretanto, de outra figura aparentemente nada a ver com esses dois, pois homem da política e longe de minha consideração: Alceu Collares. Todos a seu modo me levaram a mim mesmo e a “Blood...”. Mas voltemos à metade dos anos 90, quando eu era um jovem recém saído do 1º Grau do Ensino Fundamental. Como para muitos estudantes brasileiros diante desta etapa, tinha eu que escolher o que fazer da vida. Ano de 1994. Governador do Rio Grande do Sul àquela época, Collares, havia nomeado a igualmente incompetente esposa Neusa Canabarro para o comando da Secretaria de Educação do Estado. Ela, por sua vez, instituíra um sistema indigno e desumano de seleção e ingresso de alunos egressos para o 2º Grau que obrigava as famílias de alunos a formarem constrangedoras e quilométricas filas à porta de escolas estaduais semanas antes para, depois de noites e dias de chuva, frio, sol e perigos de violência, mendigar uma vaga. 

Embora já tivesse certa noção de que a Comunicação era meu caminho, a curto prazo não via como algo a seguir. Filho de uma família de classe média pobre e da periferia, queria fazer o 2º Grau e, assim que possível, começar a trabalhar concomitantemente. Para isso, então, melhor era ver um curso técnico, que dava melhores perspectivas para esse plano. Havia uma escola pública que oferecia curso técnico de Publicidade, algo na área que me interessava, mas a procura a este curso, sabia-se, era extremamente disputada e as vagas eram poucas. Fora que, morando longe dessa escola, localizada noutro extremo da cidade, a logística imposta pela política estadual dificultava-nos ainda mais. Outra alternativa era a chamada Informática, algo hoje tão embrenhado na vida social mas que recém começava a surgir no Brasil naqueles idos. Revoltado com a condição desrespeitosa à sempre desfavorecida classe média daquele sistema educacional vigente, e diante da obrigação da escolha para que escola ir, neguei-me a colocar a mim e a minha família naquela situação de infinitas, insalubres, perigosas e aflitivas filas. Não podendo optar por algo mais a fim comigo, e nem mais tendo ao alcance vaga sequer em Informática, o jeito foi deslocar-me para mais longe e pegar o que viesse. Foi então que, por essas coisas que adolescentes não sabem medir, ingressei num curso de Eletrônica como se isso tivesse algum fio de relação com Informática – a qual, por si, já era uma segunda alternativa.

Óbvio que, no transcorrer do curso, as diferenças entre um ser das humanas como eu e um curso essencialmente das exatas como o de Eletrônica apareceram e ficaram cada vez mais evidentes. Afora os discos em casa, estava muito, muito longe de Dylan. Não via a hora de finalizar os três anos exigidos e partir para um cursinho pré-vestibular. 

Consegui, em parte, no entanto, o que me propunha: trabalhar enquanto estudava, o que se deu dentro da própria escola, pois assumi, no contraturno, um estágio no almoxarifado do laboratório. Foi ali, numa noite fortuita, que um dos meus salvadores surgiu. Acompanhava o trabalho de dois alunos, que desenvolviam seu trabalho de conclusão conjunto, fornecendo-lhes os materiais necessários. Já cansados de tanto raciocinarem sobre diodos e transistores, lá pelas tantas começaram a falar sobre assuntos diversos para desanuviar. Em determinado momento, um deles, que gostava de música, quis fazer uma referência ao autor do tema da Pantera Cor-de-Rosa, que ele sabia, mas não se recordava do nome. Foi, então, que eu, de forma extremamente natural, pois era uma informação comum para mim, despretensiosamente ajudei-lhe: "Henri Mancini". A conversa terminou ali, pois o espanto do rapaz foi tamanho que chocou não somente a ele quanto a mim mesmo. Era-lhe tão improvável que o estagiário de almoxarifado soubesse com tanta facilidade quem era o autor de clássicos como "Blue Moon" e "Peter Gunn", que aquela informação não poderia ser descartada por mim. Eu estava gritantemente no lugar errado e meu primeiro salvador, Henri Mancini, me ajudava a tomar o rumo que a vida escolhera.

Corrigida a rota, fiz o pré-vestibular e entrei na faculdade de Jornalismo da PUCRS em 1999, onde pude confirmar categoricamente a assertividade da minha escolha profissional. Entre muitas lembranças, amigos e momentos inesquecíveis daquele tempo, um me marcou. E é aí que entra meu outro salvador. Se naquele episódio do laboratório de Eletrônica o ocorrido com Mancini transcorreu num dia qualquer do qual não guardo com exatidão, neste caso, a lembrança tem dia e ano certos: 24 de maio de 2001. Aniversário de 60 anos de Dylan.

Sem nenhuma combinação prévia, aquela data foi comemorada da maneira mais natural e devota que se possa imaginar. Foi absolutamente bonito e emocionante. Era uma celebração calma e solene: pelos corredores e salas de aula, as pessoas se cumprimentavam, como que celebrando um acontecimento familiar. Era como se um ente querido, um Deus, um salvador, estivesse completando mais um ciclo ao redor do sol e todos ali sabiam do tamanho simbólico disso. Não teve show, “parabéns pra você”, algazarra, nada diferente. Simplesmente, mestre Dylan fazia seis décadas e nós, cientes de que presenciávamos um momento especial, sabíamos que estávamos no lugar certo para compartilhar aquela felicidade. Para mim, assim como Mancini, Dylan não fez nenhuma força para isso: bastou-lhe a sua representativa existência.

Passadas exatas duas décadas daquela célebre noite na faculdade de Jornalismo, Dylan faz, hoje, 80. Muito trilhei depois daquele episódio, que serviu para me dar a certeza de que autoconhecer-se e ser coerente consigo é o melhor caminho. E que vale a pena correr atrás disso. Curiosamente, “Blood...”, considerado a salvação da alma do artista após o choque da separação, a mim represente também isso, porém noutros termos. Como outros álbuns dele, carregam essa força incomensurável de um artista que cumpre aquilo que os grandes são capazes: são fundamentais para o desenvolvimento da civilização, pois decifram o mistério do que somos, estabelecendo pontes entre nossas mentes e corações através de suas obras. Privilégio ter sido um dia, como milhares de outras pessoas, salvo por esse oitentão.

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FAIXAS:
1. "Tangled Up in Blue" – 5:42
2. "Simple Twist of Fate" – 4:19
3. "You're a Big Girl Now" – 4:36
4. "Idiot Wind" – 7:48
5. "You're Gonna Make Me Lonesome When You Go" – 2:55
6. "Meet Me in the Morning" – 4:22
7. "Lily, Rosemary and the Jack of Hearts" – 8:51
8. "If You See Her, Say Hello" – 4:49
9. "Shelter from the Storm" – 5:02
10. "Buckets of Rain" – 3:22
Todas as composições de autoria de Bob Dylan

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Mesma melodia, letras diferentes


O fato de apresentar o programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, é meio que mera desculpa minha para ir à cata de listas. Sempre gostei de criá-las a partir das coisas que curto, das criteriosas às mais estapafúrdias. Uma dessas que me veio à mente para usar no programa se refere a músicas que têm a mesma melodia, mas letras diferentes. A parte musical e o arranjo podem ser idênticos, mas o que é cantado, não. Às vezes, até melodias de voz e cantores diferentes. Dois lados da mesma moeda ou - por que não? - do mesmo disco.

Numa rápida pesquisa de memória, o interessante foi perceber que essa prática é comum nos mais diferentes gêneros, culturas e locais. Seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Inglaterra ou até na Jamaica, não há quem resista em usar aquela base que ficou superlegal de um outro jeito, numa outra roupagem. 

Pra compor esta lista de 15 + 1 exemplos, ainda contei com a ajuda de meu irmão e parceiro de blog Cly Reis, que contribuiu com algumas das duplas de músicas as quais não tinham me ocorrido.

Tom Zé e Tim: ambos com duas duplas
de músicas na lista
Importante ressaltar que não valem músicas até então instrumentais que ganharam letra depois de um tempo, casos de “Valsa Sentimental” (de Tom Jobim, que, quando letrada por Chico Buarque, virou ”Imagina”) e “A Rã” (originalmente, “O Sapo”, de João Donato, que passou a ter esse novo título na letra de Caetano Veloso). Neste caso, aceitou-se como exceção quando uma delas é instrumental e a outra cantada, mas desde que pertençam a um mesmo artista e que este as tenha composto para um mesmo projeto.

Igualmente, não se incluem canções “reprise” ou de letra mesmo que diferentes entre si, mas que se tratam de duas partes da mesma, nem mesmo versões para idioma diferente do original feita por outro artista. Músicas “irmãs”, tipo “Blue Monday” e “586”, da New Order, ou “Crush with Eyeliner” e “I Took Your Name”, da REM, não cabem, nem muito menos aquelas que samplearam a “alma” do tema que a inspirou, como o rap norte-americano costuma fazer. Essas todas ficam de fora – quem sabe, guardam-se para uma futura outra lista...

Do blues ao samba, do industrial a soul, do shoegaze ao psicodelismo. Têm dobradinhas bem interessantes e variadas.


1. "João Coragem"/ "Padre Cícero" - Tim Maia
Em 1970, Tim estava gravando seu disco de estreia quando Nelson Motta aparece no estúdio e fica maravilhado com "Padre Cícero". Tanto que pediu para Tim e Cassiano alterarem a letra para a música entrar na trilha da primeira novela da Rede Globo, "João Coragem".

2. "Sister Midnight"/ "Red Money" - David Bowie
A fase berlinense rendeu coisas maravilhosas e simbióticas para Bowie. "Sister Midnight", composta por ele e Iggy Pop para abrir "The Idiot", de Iggy, de 1977, serviu para o próprio Bowie finalizar sua própria trilogia na capital alemã dois anos depois com outro título e letra.

O mestre da "preguiça" baiana sabia muito bem fazer sambas geniais com pouquíssimos versos, quando não quase repetidos. Aqui, o que Caymmi repete é a parte instrumental idêntica a ambas, mas com melodias de voz e letras totalmente diferentes entre si.

"Strange Brew", que abre o cláscico disco "Disreali Gears", de 1967, é tão boa que dá vontade de reescutá-la. Não precisa, pois Clapton/Bruce/Baker a põem no fim do disco, só que com outro nome e letra. 


5. "Mã""Nave Maria" – Tom Zé
Uma mais percussiva, a outra mais world music, mas ambas de abertura de seus discos "Estudando o Samba", 1976, e "Nave Maria", 1984) e sobre o genial riff do baiano de Irará.

6. "Teenage Lust"/ "Heat" - Jesus & Mary Chain
"Teenage Lust" é um clássico da banda que coroa uma fase inspirada, marcada pelo disco "Honey's Dead", de 1992. "Heat", por sua vez, está na coletânea de B-sides "Stoned and Detoned", de um ano depois.

Vindo de Moz, artista que produz muito, não seria estranho haver esse tipo de repetição. No caso, "Alma Matters", hit do disco "Maladjusted", de 1997, tem como sombra "Nobody..,", da coletânea "My Early Burglary Years", de 1998.

8. "Waiting""Do You do It?" – Madonna
No talvez melhor disco de Madonna, "Erotica" (1992), a ousadia de pôr um mesmo tema duas vezes, sendo a segunda cantada não por ela, mas pelos rappers Mark Goodman e Dave Murphy.

9. "Pocket Calculator"/ "Dentaku" – Kraftwerk
Totalmente iguais, não fosse uma ser cantada em inglês e a outra em japonês. Aí os alemães conseguiram fazer, pro disco "Computer World", de 1981, duas obras totalmente diferentes sendo a mesma coisa.

Quase iguais, não fosse o título e algumas partes da letra. Mesmo estando no mesmo disco, o clássico "Pet Sounds", de 1966, é tão bonita que não há nenhum problema em "reouvi-la" com pouca diferença entre uma e outra.

11. "Os Escravos de Jó"/ "Caxangá" – Milton Nascimento
A censura, que comeu praticamente todas as letras de "Milagre dos Peixes", de 1973, inclusive "Os Escravos de Jó", parceria de Milton com Fernando Brant, já havia abrandado um pouco anos depois quando Elis Regina gravou "Caxangá" e depois o próprio Milton.

12. "Graveyard""Another" – P.I.L.
A instrumental "Graveyard", de "Metal Box" (1979), é, literalmente, a "Outra" em "Commercial Zone", disco de sobras de estúdio da mesma época. Coisas da cabeça conceitual de John Lydon e sua Public Image Ltd..

13.  "Jimi Renda-se"/ "Dor e Dor" – Tom Zé
A mente inquieta de Tom Zé faz com que, mais de uma vez, ele revisite a própria obra. Assim como "Mã"/"Nave Maria", a metaliguagem pega nestas duas também, de 1970 e 1972 respectivamente.

14. "Slave to the Rythmn""The Fashion Show" – Grace Jones
O disco de Grace "Slave to the Rhythm", de 1985, em si, é todo cunhado sobre a mesma base, mas estas duas não não são iguais pela letra.


15. "With no One elseAround"/ "Pra Você Voltar" – Tim Maia
Tim não tinha vergonha de reaproveitar melodias suas mais de uma vez, mas aqui ele fez melhor: uma em inglês, para o arrasador álbum de 1978, e outra na língua de Camões, um ano depois ("Reencontro"), em que até o sentido das letras são totalmente diferentes.


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+1. "À Flor da Pele""À Flor da Terra" – Chico Buarque
O título é igual, "O que Será?", eu sei, mas o fato de o subtítulo ser diferente faz, com perdão da redundância, toda a diferença. Escritas por Chico para a trilha sonora de "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1976, uma inicia o filme e outra o encerra - e as letras são totalmente distintas.


cena final do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos" - tema: "À Flor da Pele"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 13 de julho de 2020

"Low: David Bowie", de Hugo Wilcken - coleção "O Livro do Disco" - ed. Cobogó (2018)



"Quando "Low" foi lançado,
pensei que era o som do futuro."
Stephen Morris,
baterista do Joy Division/New Order,
em trecho do livro



Uma coisa interessante na coleção O Livro do Disco, é a abordagem que cada autor, pesquisador, jornalista, dá ao objeto de sua análise. Alguns são mais focados no álbum como um todo, outros na parte técnica, alguns em aspectos pessoais, outros nas motivações que levaram àquela obra, e por aí vai. No caso específico do livro "Low: David Bowie", do australiano Hugo Wilcken, que se debruça sobre o icônico álbum de Bowie, de 1977, pedra fundamental da conhecida Trilogia de Berlim, sua opção de abordagem, para meu gosto e expectativa, deixou a desejar. Hugo se detém excessivamente em aspectos externos, em elementos influencidores, em precedentes, negligenciando, de certa forma, uma análise mais completa e mais reverencial do trabalho ao qual o livro é dedicado. Para chegar a "Low", ele examina o álbum predecessor de David Bowie, "Station to Station", e o outro, produzido por ele na mesma época para Iggy Pop, "The Idiot", com demasiada atenção e espaço. Observações pertinente, é verdade, considerando a extensão das ideias destes dois álbuns para a concepção final de "Low", mas nesse preâmbulo todo, a obra em questão, só começa a ser objetivamente apreciada, exatamente na metade do livro. O autor fica muito tempo recuperando fatos, elementos, questões técnicas de "Station to Station" e quando parte efetivamente para o próprio "Low", sua análise fica compacta demais. O livro até mesmo poderia se chamar "Um estudo sobre as influências de 'Station to Station', sobre 'Low'", tamanha é a importância colocada sobre o álbum anterior dentro de uma exposição que deveria ser enfaticamente sobre aquele que motiva a publicação.  Ele fala de "Low", é claro, mas, no fim das contas, sua dissertação sobre o disco, fica apertada entre os capítulos finais e até o fim segue com comparações e referências ao disco antecessor. Ele repassa sobre todas as faixas, sim, mas brevemente e, no mais das vezes, mesmo quando demonstra sua admiração pelo álbum, o faz de forma um tanto fria e distanciada. Exceção seja feita a "Subterraneans", a última faixa do disco, a qual o escritor dedica um pouco mais de espaço e atenção, sendo que, embora reconheça todos os méritos e virtudes desta canção, na minha humilde opinião, ela sequer é uma das melhores do disco.
"Low", da coleção O Livro do Disco, que tantas vezes já me brindou com publicações dignas de colocar no ponto mais alto da prateleira, não chega a ser uma decepção mas, devo admitir, que não era o que eu esperava ou gostaria de ler. Vale como mais um material interessante sobre uma das fases e de um dos momentos mais marcantes da carreira desse notável artista.


Cly Reis

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

“BOULEZBOWIE”: Esse (esquizo)frênico mundo que une (ou separa) a vanguarda do pop

Tá sempre morrendo gente pública por aí, sei. Mas nem sempre tenho o que lamentar. Morre gente conhecida toda semana, o que não quer dizer, necessariamente, que embora conhecidas de um relativo número de pessoas (às vezes, milhares delas), sejam de fato importantes. Essa dialética é típica desses tempos descriterizados e esquizofrênicos que vivemos. Lágrimas demais ou de menos sem se saber o porquê. Mas não deixa de ser, no mínimo, questionável, ainda mais quando, em menos de uma semana, morrem duas pessoas de extrema importância e ocupantes cada um de uma dessas esferas: o quase ignoto e o altamente popular. O quase ignoto por conta do mesmo descritério e esquizofrenia que empurra as massas a rechaçarem qualquer profundidade; o outro, altamente popular e cuja comoção pela morte foi gigantesca, é às vezes reduzido a um percentual mínimo daquilo que ele mesmo representa.
De minha parte como jornalista, crítico e diletante, lamento de verdade ambas as perdas. Falo de Pierre Boulez e David Bowie.


O rocker de batuta
Boulez, o compositor, maestro, professor e ensaísta francês, desconhecido totalmente de um relativo número de pessoas, era o último representante dos compositores da vanguarda erudita da primeira metade do século XX. Junto com os contemporâneos John Cage, Kerlheinz StockhausenLuciano Berio, Edgard Varèse, Benjamim Britten e Luigi Nono, ele, seguindo a sina aberta pela tríade de Viena nos anos 10 (Schöenberg, Berg e Webern), pôs de ponta-cabeça toda a tradição musical, subvertendo todos os conceitos: tom, harmonia, métrica, instrumentalização, timbrística. Raivoso e aferrado, Boulez foi um roqueiro punk com 40 anos de antecedência ao movimento. De modos elegantes e clássicos, por dentro era um punk total, combativo até no seu meio. A mesma agressividade expressiva, a violência como método e estilo. À imbecilidade ele respondia com doses desmedidas de cerebralismo. Era sua adaga perfurante. “Acredito que a música deve ser uma histeria coletiva de palavras violentas sobre o tempo presente”, disse em 1948.
Anos atrás, quando de seu aniversário de 80 anos (morreu dia 5 de janeiro, aos 90), li um artigo que, pertinente e conscientemente, colocava “Pli selon Pli”, uma de suas mais concisas e importantes obras, ao lado de outras duas significativas revoluções na música do século XX: o nascimento da bossa-nova com “Chega de Saudade”, com João Gilberto (1958), e a não menos vanguardista “Gesang der Junglinge” (1956), obra referencial do alemão Stockhausen.
Dessa vez, Boulez foi notícia novamente, mas muita gente que passou por esta não deu bola, o que é normal. Um compositor e maestro ligado a antipopulares termos como dodecafonia, atonalismo, eletroacústica, serialismo ou música aleatória só pode mesmo não ser popular. Ser desconhecido de um grande número de pessoas era, certamente, um elogio para Boulez. O desconhecido, afinal, nunca o assustou. Pelo contrário: era-lhe combustível. De língua afiada e criatividade idem, o jovem que estudara com Messiaen, logo o mandou às favas e o confrontou ideologicamente. Fez o mesmo com outro professor, Leibowitz, sem resquício de culpa. Jamais lhe existiam mestres. Não são poucos seus manifestos ferinos e altamente intelectualizados escritos ao longo da vida onde expunha suas ideias, o que o colocaram como um importante ensaísta da arte do seu tempo.
Boulez é responsável, na longa carreira que teve, por promover pelo menos três revoluções na música mundial.  Afora as marcantes obras da juventude, as cantatas "Le visage nuptial" (revista por ele quase quatro décadas depois), "Le soleil des eaux", onde explorava os ensinamentos do dodecafonismo aprendidos com Messiaen, e da primeira obra totalmente serializada, “Polyphonie X”, para 18 instrumentos, é entre 1953 e 1957 que lança a que é considerada sua primeira obra-prima: “Le marteau sans maître” para conjunto e voz, de relativo sucesso e uma síntese surpreendente das várias correntes na música moderna, englobando os mundos sonoros do jazz be-bop, o gamelão balinês, músicas tradicionais africanas e melodias tradicionais japonesas. Até o por ele satanizado Igor Stravinsky deixou de fora as críticas que recebia e aplaudiu de pé.
Outra radical criação: a já mencionada “Pli selon Pli”, cuja “original” data do final dos anos 50. Trata-se de um concerto inspirado em poemas do poeta francês Mallarmé onde passa a explorar com veemência a ideia de “obra em movimento”. Revisto em sua estrutura e métodos nas décadas seguintes, foi ganhando novas versões à medida que o irrequieto compositor reavaliava sua linguagem, fazendo com que, por conceito, sua concepção final estivesse sempre por vir. Tal como o já mencionado João Gilberto, que reelabora incessantemente os clássicos sambas da música brasileira em seu filarmônico violão, cunhando ao longo do tempo sempre versões únicas da mesma melodia, “Pli selon Pli” “nunca” acaba. Entendimento que só poderia brotar de alguém que representou tão firmemente a geração pós-Guerra, cujas marcas ainda são sentidas mais de 100 anos de eclodida a primeira delas.
Na maturidade, quando poucos compositores eruditos de sua geração não mais se arriscavam depois de tanto inovarem nas décadas anteriores, Boulez manteve-se na ponta da vanguarda, propondo novas experimentações. Se a música eletrônica o havia decepcionado nos anos 50 por sentir-se insatisfeito com o resultado das fitas magnéticas e seu processo “inorgânico” de realização, nos 70 volta à carga para dar-lhe nova identidade. Os meticulosos resultados dessa “velha descoberta” seriam sentidos em 1980, quando compõe “Répons” (para dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica). Ali, dá luz a uma obra em que a ressonância e a espacialização dos sons criados pelo conjunto se processam todos em tempo real, inclusive os elementos eletrônicos, normalmente criada penosamente em situações controladas. Nova síntese, nova profusão de ideias.
O fato é que, como um punk, amoral e dono da sua razão, Boulez jogou-se no labirinto do desconhecido e dali tirou o magma que brotaria dos vulcões de sua criatividade pronto para queimar todas as concepções preestabelecidas. Da tensão secular, criou uma linguagem densa e lírica. Sua partida deixa uma lacuna insubstituível. Um pilar que cede. O planeta Terra não tem mais nenhum representante da original vanguarda do século XX, a geração pós-Wagner, que passa por Strauss, Mahler e Debussy. A geração que aprendeu com – ou aprendeu a contrariar – Stravinsky, Eric Satie, Bela Bártok e Maurice Ravel. O longevo Boulez ainda resistia, e agora leva consigo uma herança que, a ver por esses tempos de descritério e esquizofrenia (e desmemoriados, consequentemente), um dia possa se apagar da memória do homem. Quiçá, cheguemos ao triste dia em que serão desmentidas oficialmente as barbaridades do Holocausto que Boulez presenciou e da sua forma combateu. Quem sabe, foi bom mesmo ele não viver tanto mais para ter de presenciar isso.

vídeo "Pli Selon Pli", Pierre Boulez



A batuta do rocker
Assim como para Pierre Boulez, o desconhecido também sempre foi combustível a David Bowie. Se o maestro buscava esse estado incessantemente, de modo a não repetir-se e recriar sua obra ao longo dos tempos, Bowie, no meio do mainstream, não só fazia isso como transformava essa busca em produto “vendável”. Ninguém como ele se valeu do universo de referências estilísticas da sociedade moderna e os reelaborou como Bowie, forjando um trabalho próximo do público mas sem deixar de infundir-lhe “dificultações”. Boulez, inventor de muitas dessas complexidades formais quase sempre desconhecidas do grande público, até por isso era quase um completo desconhecido do próprio. Bowie, na outra ponta, era popular mas impunha-se uma tarefa provocativa e rara: a de propor essas “dificultações desconhecidas” e torná-las, se não conhecidas, pop e assimiláveis.
Poderia falar longamente sobre vários dos períodos que Bowie orquestrou. De Ziggy Stardust ao vilão mutante Nathan Adler de “Outside”, passando pelo “Pin Up” à fase “limpa” de artifícios de Berlim. Mas em meio à enxurrada de coisas a seu respeito escritas e ditas nos últimos dias creio que o melhor recorte para esse momento é essa contribuição da desacomodação que o artista britânico sempre trouxera. “Sou uma prateleira de frascos vazios”, disse o poeta Fernando Pessoa em seu “Livro do Desassossego”. Bowie foi esse frasco vazio, onde fazia caberem todas as possíveis referências e mitos.
Escrevi sobre Bowie em meu livro, "Anarquia na Passarela", algo que se baseia bastante na questão da moda e comportamento dos punks, mas que vale tranquilamente para tal argumentação. Reproduzo dois:
“Vindo da cultura mod londrina dos anos 60, logo foi formando um estilo próprio de dândi ultrasofisticado e exagerado que desembocaria no seu ‘cameleônico’ individualismo cênico. Bowie era uma estrela do rock que nunca é ele próprio como pessoa: ele ‘interpreta’ papéis num enorme ‘palco’ chamado show-business. Por causa deste distanciamento bretchniano que tem da cultura de massa logrou influências vitais à cena [punk].”
“Tudo em Bowie era estilo, o que se percebia na sua indumentária ultradandi, barroca e ‘camp’. Seu passado mod, os anos 50, o cinema expressionista, a Berlim ‘decadente’ e suburbana, os anos pré-nazismo, o dandismo de Brummell, a androginia, a estética dos cabarés. Tudo lhe era alimento para a formação de um estilo pessimistamente decadente, cerebral e imaginário. Criava uma mitologia na qual nada era em vão; em cada ‘máscara’ sua vinha um efeito estético e fantasioso.“
Por tudo isso, Bowie mostrou facilmente que fazer música pop simplesmente é simplório e vago. Há de se adicionar personalidade e conceito para que se produza algo significativo. Bowie entendeu isso cedo, catalisando música, estilo, comportamento e equilibrando “alta” e “baixa” cultura – ou melhor, quebrando as barreiras entre uma e outra. Entendeu que a vanguarda das artes não existe apenas para impor a “alta cultura” de modo estanque e autobajulador. É, sim, célula orgânica, viva, que, compreendida em seus símbolos e elementos, podem e devem ser assimiladas, reelaboradas e deglutidas em outros e diferentes níveis de cultura e conhecimento.
A carreira de Bowie, muito mais profunda do que apenas os (ótimos) sucessos, é sabiamente contaminada pela vanguarda. "V-2 Schneider" contém claros traços de Boulez, Stockhausen e Varèse; o solo atonal de piano de "Aladdin Sane" contém Cage e Ligeti; a trilogia berlinense (inclua-se "The Idiot", de Iggy Pop, da mesma leva), contém em sua sonoridade pós-industrial os experimentos eletroacústicos fruto de ceticismo racional do pós-Guerra; o recente “Blackstar” contém a sonoridade pós-jazz assimilada tanto por maestros quanto músicos sem formação teórica como DJ’s, roqueiros e rappers"Low" e “Heroes”, com Brian Eno, são tão estruturalmente minimalistas que o próprio “pai” do estilo, Philip Glass, homenageou a Bowie e Eno com o duo “Symphony” sobre ambos os álbuns. O jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, para quem Bowie foi um roqueiro refinado, observa que, “em meados dos anos 70, Bowie abandonou a forma ternária da estrutura pop em favor de formas semiminimalistas, caracterizadas por ataques secos e pulsações rápidas”.
É por isso que se torna tão penosa e simbólica a perda de Bowie: quem mais fará isso? É alarmante, se não desolador, que este papel nunca mais seja cumprido. Quem assumirá (compreenderá ou dará a devida importância) ao papel de unir e mimetizar essa ponte vanguarda-pop? Numa época em que streamings e mp3 circulam descontextualizados de suas obras de origem (quando esta, de fato, existe, se é que já não fora criada sem contexto algum), é salutar que um artista de quase 70 anos e 50 de carreira assombre o universo do entretenimento com o lançamento de um disco, uma obra que se constitui em si própria. Uma obra.
Walter Benjamin provavelmente ficaria instigado com esse episódio emblemático da morte de Bowie, e mais possivelmente ainda o ligaria com a já historicamente simultânea perda do pilar oposto a ele, a de Pierre Boulez. A vanguarda e o pop perderam seus calços, deixando um questionamento de dupla interpretação: a obra-de-arte na música morreu também junto com os dois? Findaram-se duas eras basais para a história da música através dos tempos? Todas as releituras de “Pli selon Pli” e o obscuro “Blackstar” darão ainda muito a se desvelar se se quiser, a depender do grau de (des)critério dos tempos (esquizo)frênicos que vierem adiante neste século XXI recém iniciado. O que se sucedeu, com a morte dos dois, talvez tenha sido um lampejo de que a arte musical esteja mais viva do que nunca. Ou, se não, é porque se enterrou de vez junto com Bowie e Boulez. Aí, será quando o desconhecido se tornará definitivamente desimportante.

video de "Blackstar", David Bowie