Uma das missões de minha profissão, a de jornalista, é a de, a partir de
meu filtro capacitado e abalizado, informar as pessoas daquilo que não lhes está
evidente, ajudando-as a se elucidar e formar opinião. Quando se trata de
assuntos envolvendo cultura e arte, não é diferente. Levar-lhes o “não óbvio”,
aquilo que não conhecem, pois o que já conhecem não precisa, certo? Não exatamente.
Há tanta confusão de informação no ar (e nas redes) que o “óbvio”, por
desconhecimento ou falta de critério, mistura-se com o irrelevante ou passa até
a ser relegado. Os melhores filmes franceses de todos os tempos, por exemplo: numa
recente lista, vi apontados títulos queridinhos como “O Fabuloso Destino de
Amélie Poulin” e “Intocáveis” como sendo indispensáveis, enquanto que não
figuraram nada de Jean Vigo ou Michel Carné. Ora, convenhamos! E olha que
não estou nem falando de obras de cineastas menos conhecidos, mas igualmente merecedores,
como Sacha Guitry ou Julien Duvivier – mas aí, seria exigir demais.
O cinema francês é um dos mais ricos e referenciais da cinematografia
mundial, desde os irmãos Lumière até as escolas e movimentos que este promoveu
ao longo do tempo, como o Realismo Poético, o Cinema Vérité e a revolucionária Nouvelle
Vague. Nada contra os bons “Intocáveis” ou “Amélie Poulin” – este último, aliás,
se tivesse que escolher um de Jeunet, preferiria “Delicatessen” ou “Ladrão de
Sonhos”. Porém, basta conhecer um pouco da história do cinema do país de Victor
Hugo para enxergar o rico e numeroso universo de produções relevantes para além
desses sucessos recentes. O pioneirismo, as inovações estilísticas, as contribuições
técnicas e teóricas se deram em vários momentos da história da sétima arte.
Definitivamente, o cinema francês não deve ser reduzido a uma amostra que nem
de longe reproduza seu tamanho e importância.
Por conta disso, elaborei uma lista de 20 títulos realmente essenciais
para se compreender e admirar o cinema francês. Óbvios para mim, mas a quem não
conhece ou se enreda em avaliações mal ajuizadas, talvez não. Afora a
criteriosa tarefa de selecionar os mais relevantes entre tantos títulos ótimos,
elencá-los foi delicioso. Estão aqui mencionados, sem ordem de preferência,
clássicos que determinaram épocas, obras-primas consagradas do cinema mundial e
filmes que cumpriram papéis além do próprio cinema: tornaram-se ícones da arte
e da cultura do século XX, como “Acossado”, “A Regra do Jogo” ou “A Nós a
Liberdade. A ideia foi a de constar um de cada grande realizador, embora alguns
(Truffaut e Resnais, por exemplo) inevitavelmente haja mais tendo em vista a indispensabilidade
das realizações citadas. Também, dentro da lógica de informar a partir de meu
filtro pessoal, se perceberão toques de meu entendimento próprio. De Carné,
optei por incluir “Os Visitantes da Noite” e não o consagrado “O Boulevard do
Crime”; De Buñuel, “O Discreto Charme da Burguesia” a “Bela da Tarde”; De Godard,
“Je Vous Salue, Marie” a algum dos cult-movies
dos anos 60, como “Pierre Le Fou” ou “Alphaville”. Crítica pessoal pura, mas
que em nada prejudica a representatividade da seleção como um todo.
Claro, ficou de fora uma enormidade de coisas, como “Lacombe Lucien”,
de Malle, “Orfeu Negro”, de Camus, “Eu, um Negro”, de Rouch, “A Bele e a Fera”,
de Cocteau, ou “Napoleon”, de Gance. Privilegiou-se os essencialmente
franceses, por isso não aparecem co-produções como “O Último Tango em Paris” ou
“A Comilança”. Também não entraram nada de Maurice Pialat, Eric Rohmer,
Costa-Gavras, Jacques Demy, Jacques Rivette... Paciência. Além da impossível
unanimidade de listas, uma como esta, que represente algo tão relevante e robusto,
incorreria em incompletude. Uma coisa é certa: não perdemos tempo com
irrelevâncias. Ah, isso não. Voilà!
- “Viagem à Lua”, de Georges Méliès (“Le Voyage dans la lune”, 1902)
- “A Nós a Liberdade”, de René Clair (“À Nous la Liberté”, 1931)
- “Zero de Conduta”, de Jean Vigo (“Zéro de conduite”, 1933)
Poster original de
"Zero de Conduta"
- “A Regra do Jogo”, de Jean Renoir (“La Regle Du Jeu”, 1939)
- “Os Visitantes da Noite”, de Michael Carné (“Les Visiteurs du Soir“,
1942)
- “Orfeu”, de Jean Cocteau (“Orphée”, 1950)
A visão de Cocteau para a
saga de Orfeu
- “As Diabólicas” (“Les Diaboliques”), de Henri-Georges Cluzot (1955)
- “Meu Tio”, Jacques Tati (“Mon Oncle”, 1958)
- “Os Incompreendidos”, de François Truffaut (“Les 400 Coups”, 1959)
Cena do revolucionário
"Os Incompreendidos"
- “Os Primos”, de Claude Chabrol (“Les Cousins”, 1959)
- “Hiroshima, Moun Amour”, de Alain Resnais (1959)
- “Acossado”, de Jean-Luc Godard (“À bout de souffle”, 1960)
- “O Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais (“L'Année dernière à
Marienbad”, 1961)
- ‘Jules et Jim”, de François Truffaut (1962)
- “Cleo das 5 às 7”, de Agnès Varda (“Cléo de 5 à 7”, 1962)
- “La Jetée”, de Chris
Marker (1962)
As impressionantes foos de Marker
que compõe a narrativa de "La Jetée"
- “Trinta Anos Esta Noite”, de Louis Malle (“Le feu follet”, 1963)
- “O Discreto Charme da Burguesia”, de Luis Buñuel (“Le charme discret
de la bourgeoisie”, 1972)
- “Je Vous Salue, Marie”, de Jean Luc Godard (1985)
"Je Vous Salue, Marie", a produção
mais recente da lista
junto com Betty Blue
- “Betty Blue”, de
Jean-Jacques Beineix (“37° le Matin”, 1986)
Este é um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que bem pode ser também um Claquete, pois filme e trilha estão totalmente conectados, uma vez que imagem e som não existiriam um sem o outro. Esse conceito integral tão típico das artes cênicas e visuais só poderia vir de artistas que souberam antever o que hoje é chamado de arte contemporânea. Sim, antever, afinal estamos falando de uma obra datada de 1924. A música? A peça “Entr’acte”, do compositor vanguardista francês Erik Satie. O filme correspondente é outra joia, dirigida pelo cineasta René Clair, o mesmo de clássicos do cinema mundial “A Nós a Liberdade” (1931), a “versão europeia” de “Tempos Modernos”, de Chaplin.
Clair chamou Satie para um desafio a que os dois, inquietos como eram, se instigaram. A proposta era a seguinte: o pintor e poeta Francis Picabia, desgostoso com os companheiros de dadaísmo, quis cutucar, igualmente, os surrealistas. Redigiu, então, um balé para o grupo Ballets Suédois, que estrearia em Paris, em pleno Théâtre des Champs-Élysées. O jocoso nome da produção dizia tudo: “Relâche”, o aviso que se colocava na porta dos cinemas quando as sessões eram suspensas. Isso ainda não era nada: no dia da avant-première, um dos cartazes do espetáculo trazia um aviso provocativo ao público: “Se você não gostar, o caixa lhe venderá apitos por dois centavos.” Pois o balé, com apitaços de vaia ou não, conteria dois atos e, no intervalo, seria apresentado um curta-metragem dirigido por Clair cuja trilha, assim como a de todo o espetáculo, coube a Satie. O resultado dessa química foi tão afrontosa que a música do filme se destaca a dos dois movimentos da dança, sendo inclusive desvinculada deles. Ou seja, um deboche homérico, uma vez que justamente a programação secundária (momento de dispersão e que exige menor concentração do público) é a mais representativa de todo o programa, pondo-se acima do principal.
Tal índole de ruptura e escárnio são típicos de Satie, um inclassificável compositor em constante mutação ao longo dos tempos. Ele já havia, àquela altura, composto obras marcantes para a história evolutiva da música europeia (“Relâche” é seu último trabalho antes de morrer, em 1925), como o tríptico “Gymnopédies” (1888) – com seus incomuns 18 compassos contínuos de apenas seis (!) notas, sem desenvolvimento nem transição, apenas um instante prolongado – e outras inovadoras peças, como o balé “circense-surrealista” “Parade”, que causou furor em 1917. Influenciado pela música de Debussy, Ravel e Stravinsky, bem como pelos modernistas franceses do Les Six, misturava o ragtime americano e a sonoridade fútil do teatro de variedades ao clima do cotidiano de uma Paris em efervescência cultural – deste o esoterismo ocultista até o populismo dos cabarés. Satie circulava por todas as correntes (dadaísmo, futurismo, surrealismo, cubismo, expressionismo, simultaneísmo) sem, contudo, filiar-se a nenhuma delas. Em “Entr’acte”, compõe uma peça totalmente despojada, sem cadência nem compasso definido: apenas marcação de ritmo e harmonia, relegando a segundo plano a melodia. O motivo sonoro, maldito feito uma engenhoca que se estragou naquele ponto, vai e volta, mecanicamente, doentiamente. “Entr’acte” é, assim, a gênese do minimalismo. A repetição e as cacofonias incômodas ao ouvido mostram o quanto Satie prenunciava os tempos esquizofrênicos da sociedade pós-moderna, em que a emoção vira produto e o homem vira máquina. Evidente esta analogia na sequência do funeral, em que todos os convidados, parecendo bestas, estão fora do tempo, até que o próprio caixão dá no pé e todos passam, simbolicamente, a correr atrás da morte. Aqui, Satie faz uma paródia da “Marcha Fúnebre” de Chopin, em que sua escrita para piano, rítmica e sem firulas, revela a influência da música de dance-hall e da vida urbana moderna.
Como na trilogia “Quatsi”, da dupla Godfrey Reggio-Philip Glass, “Entr’acte” é um filme-música (ou a música-filme, tanto faz). Dura pouco mais de 20 minutos, suficientes para entrar para a história da música no século XX e marcar o movimento surrealista no cinema, tendo sido produzido, inclusive, cinco anos antes de “Um Cão Andaluz”, de Luís Buñuel e Salvador Dalí (não é de se estranhar que a estreia de ambos os filmes tenha rendido enorme bafafá na sociedade parisiense da época). Ali já estavam, porém, vivas, as inovações técnicas (câmera na mão, efeitos de luz e lente, sobreposições, distorções visuais, enquadramentos incomuns) e conceituais (roteiro não-linear, narrativa poética, descompasso temporal da ação/personagem, desconstrução psicológica do palco-cenário) que marcariam o cinema avant-garde. O curta foi influência direta para o brasileiro Mário Peixoto em sua obra-prima “Limite” (1930) e para o “cinema de poesia”, que vai da Pier-Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard a Júlio Bressane.
A Paris daquele início de século XX dava todos os elementos para essa ebulição criativa. A Cidade-Luz fervia em sua beomia noturna. Estavam lá a esta época algumas das mais inteligentes cabeças das artes em todas as frentes: Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Coco Chanel, Stravinsky, Marcel Duchamp. Jean Renoir, Jean Cocteau, Man Ray, Gertrude Stein, David Milhaud e os próprios Buñuel, Dalí, Clair e Satie. Com tanta produção, os rótulos empregados eram os mais diversos. “Entr’acte”, um típico produto consciente do entre-Guerras, capta esse espírito de diversidade, homogeneizando todas as vertentes. O filme é uma alegoria irônica e pessimista do futuro, como a antecipação das apropriações ideológico-simbólicas da publicidade (a bailarina em slow-motion vista em total contraplongê que vai e volta com a função de “encantar os olhos”), a erotização da violência através do artefato militar (o canhão “varão” que desencadeia a desordem no início do filme) e a fragilidade e a vigília da vida moderna em época de olhos digitais e mídia a la big brother (os dois homens manipulando a cidade em um tabuleiro feito marionete). Já a música, inegavelmente dadaísta, traduz isso a seu jeito: tal como Satie inaugurara em “Parade” sete anos antes, uma nova arte de colagem sonora é criada: melodias interrompidas quando ainda mal começaram, dissonâncias em abundância, ritmos entrelaçados e sobrepostos, ataques inesperados e paradas fora do tempo, fugas quebradas que “homenageiam” um passado já desfeito. Wagner, ópera italiana, escola austríaca, romantismo, classicismo: “nunca mais!”, bradava.
Havia quem criticasse Satie por suas miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e uma total ausência de virtuosismo instrumental, reduzindo-o a um compositor de fracos recursos técnicos. Se o era, é mais louvável ainda, pois sua criatividade e capacidade transformadora são tamanhas que não é exagero dizer que ele é um dos precursores do espírito “faça você mesmo”, o grito dos punks, estes, os revolucionários roqueiros do fin de siècle. O fato é que uma obra tão significativa como “Entr’acte” exerceu influência direta na vanguarda pós-Segunda Guerra, tanto no meio erudito quanto no jazz e no rock. Para citar quatro exemplos expressivos: Terry Riley, em seu eletro-minimalista “A Rainbow in Curved Air”, de 1969; a mente “saudavelmente doentia” de Syd Barrett em “The Piper at the Gates of Down”, do Pink Floyd, do mesmo ano; as primeiras obras de Glass, tanto “Music in 14 Parts” (1971-74) quanto “Music with Changing Parts” (1971); e a maestrina jazzista Carla Bley em “Musique Mecanique” (1978). Se tamanho alcance não é digno de elogio, é, no mínimo, reflexo da recorrente contradição que caracterizaria os ilógicos e amorais tempos de hoje. Tempos, aliás, aos quais Satie já se fazia pertencer mesmo não vivendo neles. E para que precisaria?
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O CD traz ainda a íntegra de “Relâche”, com seus dois movimentos interpostos por “Entr’acte”, e a obra “Trois Morceaux en Forme de Poire” – que contém a conhecida peça “Maniere de commencement” e “Ragtime Parade”, arranjo posterior ao balé “Parade” escrito por Hans Ourdine –, todos em versão para piano. No vídeo, a trilha de “Entr’acte” é arranjada para orquestra, com regência de Henri Sauguet, de 1967.
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I. Trois Morceaux en forme de poire: 1. Maniere de commencement - 4:05 2. Prolongation de meme - 0:47 3. Lentement - 1:27 4. Enlevé - 2:43 5. Brutal - 2:12 6. En plus - 2:21 7. Redite - 1:31 8. Ragtime Parade - 2:33 II. Relâche - Premier Acte: 9. Ouverture - 1:09 10. Projection - 0:42 11. Rideau - 0:24 12. Entrée de la Femme - 1:14 13. "Musique" - 0:37 14. Entrée de l'Hommes - 0:38 15. Danse de la Porte tournante - 0:54 16. Entrée des Hommes - 0:39 17. Danse des Hommes - 0:42 18. Danse de la Femme - 1:04 19. Final - 1:15 III. Entr'acte: 20. Cheminées, ballons qui explosent - 1:29 21. Gants de boxe et allumettes - 0:42 22. Prises d'air, jeux d'echecs et bateaux sur les toits - 0:57 23. La Danseuse et figures dans l'eau - 0:42 24. Chasseur; et début de l'enterrement - 1:25 25. Marche fúnebre - 0:51 26. Cortege au ralenti - 1:35 27. La Poursuite - 1:10 28. Chute du cerceuil et sortie de Borlin - 1:00 29. Final (écran crevé et fin) - 1:05 IV. Relâche - Deuxieme Acte: 30. Musique de Rentrée - 0:56 31. Rentrée des Hommes - 0:54 32. Rentrée de la Femme - 1:15 33. Les Hommes se dévetissent - 0:34 34. Danse de l'Homme et de la Femme - 1:13 35. Les Hommes reganent leur place et retrouvent leurs pardessus - 0:51 36. Danse de la Brouette - 1:21 37. Danse de la Couronne - 0:57 38. La Danseur depose la Couronne sur la tete d'une specatrice - 0:46 39. La Femme rejoint son fauteuil - 1:05 40. Petite Danse Finale (la Queue du Chien) – 0:43
"Como se estivesse escrito em minha alma de mim para você."
Verso da letra de "Tangled Up in Blue"
A intenção deste texto não é falar sobre “Blood on the Tracks”. Assim como outros vários discos de Bob Dylan, esta obra-prima merece estar entre os fundamentais de qualquer discoteca rock como “Desire”, “Besament Tapes”, “Planet Waves”, “The Freewheelin' Bob Dylan” ou os aqui já resenhados “Blonde on Blonde”, "Bringing It All Back Home" e "Highway 61 Revisited".
Na verdade, é quase irrelevante comentar que “Blood...” é considerado por muitos o seu melhor trabalho; que, confessional, foi escrito sob a dor dilacerante de um casamento desfeito; que a "cozinha" que lhe acompanha é a clássica The Band; ou que traz algumas das melhores letras e arranjos da carreira de Dylan, da lindeza de sua faixa de abertura, "Tangled Up in Blue"; da emocionante balada arrependida “If You See Her, Say Hello”, uma das mais belas do cancioneiro rock; do blues infalível "Meet Me in the Morning"; do desfecho primordial de “Buckets of Tears”. Não, este texto não se propõe a falar sobre o óbvio. Pelo menos, não a esta obviedade. Quero falar, sim, sobre quando Bob Dylan me salvou. O que não é nenhuma novidade, visto que o Nobel de Literatura 2016 faz isso a uma geração inteira. Voz da cultura beatnik, foi vital para o ativismo social na década de 60 por causas mundiais como os Direitos Civis, o armamento nuclear e a Guerra do Vietnã. Também, o artista que mais do que ninguém, mais que Jean Cocteau, Jim Morrison ou Bertold Brecht, aproximou a literatura e a poesia da música.
Mas, para chegar a Dylan, tenho que falar antes sobre outro grande músico do século XX a quem também atribuo minha salvação: Henri Mancini. Impossível desvincular essa história, entretanto, de outra figura aparentemente nada a ver com esses dois, pois homem da política e longe de minha consideração: Alceu Collares. Todos a seu modo me levaram a mim mesmo e a “Blood...”. Mas voltemos à metade dos anos 90, quando eu era um jovem recém saído do 1º Grau do Ensino Fundamental. Como para muitos estudantes brasileiros diante desta etapa, tinha eu que escolher o que fazer da vida. Ano de 1994. Governador do Rio Grande do Sul àquela época, Collares, havia nomeado a igualmente incompetente esposa Neusa Canabarro para o comando da Secretaria de Educação do Estado. Ela, por sua vez, instituíra um sistema indigno e desumano de seleção e ingresso de alunos egressos para o 2º Grau que obrigava as famílias de alunos a formarem constrangedoras e quilométricas filas à porta de escolas estaduais semanas antes para, depois de noites e dias de chuva, frio, sol e perigos de violência, mendigar uma vaga.
Embora já tivesse certa noção de que a Comunicação era meu caminho, a curto prazo não via como algo a seguir. Filho de uma família de classe média pobre e da periferia, queria fazer o 2º Grau e, assim que possível, começar a trabalhar concomitantemente. Para isso, então, melhor era ver um curso técnico, que dava melhores perspectivas para esse plano. Havia uma escola pública que oferecia curso técnico de Publicidade, algo na área que me interessava, mas a procura a este curso, sabia-se, era extremamente disputada e as vagas eram poucas. Fora que, morando longe dessa escola, localizada noutro extremo da cidade, a logística imposta pela política estadual dificultava-nos ainda mais. Outra alternativa era a chamada Informática, algo hoje tão embrenhado na vida social mas que recém começava a surgir no Brasil naqueles idos. Revoltado com a condição desrespeitosa à sempre desfavorecida classe média daquele sistema educacional vigente, e diante da obrigação da escolha para que escola ir, neguei-me a colocar a mim e a minha família naquela situação de infinitas, insalubres, perigosas e aflitivas filas. Não podendo optar por algo mais a fim comigo, e nem mais tendo ao alcance vaga sequer em Informática, o jeito foi deslocar-me para mais longe e pegar o que viesse. Foi então que, por essas coisas que adolescentes não sabem medir, ingressei num curso de Eletrônica como se isso tivesse algum fio de relação com Informática – a qual, por si, já era uma segunda alternativa.
Óbvio que, no transcorrer do curso, as diferenças entre um ser das humanas como eu e um curso essencialmente das exatas como o de Eletrônica apareceram e ficaram cada vez mais evidentes. Afora os discos em casa, estava muito, muito longe de Dylan. Não via a hora de finalizar os três anos exigidos e partir para um cursinho pré-vestibular.
Consegui, em parte, no entanto, o que me propunha: trabalhar enquanto estudava, o que se deu dentro da própria escola, pois assumi, no contraturno, um estágio no almoxarifado do laboratório. Foi ali, numa noite fortuita, que um dos meus salvadores surgiu. Acompanhava o trabalho de dois alunos, que desenvolviam seu trabalho de conclusão conjunto, fornecendo-lhes os materiais necessários. Já cansados de tanto raciocinarem sobre diodos e transistores, lá pelas tantas começaram a falar sobre assuntos diversos para desanuviar. Em determinado momento, um deles, que gostava de música, quis fazer uma referência ao autor do tema da Pantera Cor-de-Rosa, que ele sabia, mas não se recordava do nome. Foi, então, que eu, de forma extremamente natural, pois era uma informação comum para mim, despretensiosamente ajudei-lhe: "Henri Mancini". A conversa terminou ali, pois o espanto do rapaz foi tamanho que chocou não somente a ele quanto a mim mesmo. Era-lhe tão improvável que o estagiário de almoxarifado soubesse com tanta facilidade quem era o autor de clássicos como "Blue Moon" e "Peter Gunn", que aquela informação não poderia ser descartada por mim. Eu estava gritantemente no lugar errado e meu primeiro salvador, Henri Mancini, me ajudava a tomar o rumo que a vida escolhera.
Corrigida a rota, fiz o pré-vestibular e entrei na faculdade de Jornalismo da PUCRS em 1999, onde pude confirmar categoricamente a assertividade da minha escolha profissional. Entre muitas lembranças, amigos e momentos inesquecíveis daquele tempo, um me marcou. E é aí que entra meu outro salvador. Se naquele episódio do laboratório de Eletrônica o ocorrido com Mancini transcorreu num dia qualquer do qual não guardo com exatidão, neste caso, a lembrança tem dia e ano certos: 24 de maio de 2001. Aniversário de 60 anos de Dylan.
Sem nenhuma combinação prévia, aquela data foi comemorada da maneira mais natural e devota que se possa imaginar. Foi absolutamente bonito e emocionante. Era uma celebração calma e solene: pelos corredores e salas de aula, as pessoas se cumprimentavam, como que celebrando um acontecimento familiar. Era como se um ente querido, um Deus, um salvador, estivesse completando mais um ciclo ao redor do sol e todos ali sabiam do tamanho simbólico disso. Não teve show, “parabéns pra você”, algazarra, nada diferente. Simplesmente, mestre Dylan fazia seis décadas e nós, cientes de que presenciávamos um momento especial, sabíamos que estávamos no lugar certo para compartilhar aquela felicidade. Para mim, assim como Mancini, Dylan não fez nenhuma força para isso: bastou-lhe a sua representativa existência.
Passadas exatas duas décadas daquela célebre noite na faculdade de Jornalismo, Dylan faz, hoje, 80. Muito trilhei depois daquele episódio, que serviu para me dar a certeza de que autoconhecer-se e ser coerente consigo é o melhor caminho. E que vale a pena correr atrás disso. Curiosamente, “Blood...”, considerado a salvação da alma do artista após o choque da separação, a mim represente também isso, porém noutros termos. Como outros álbuns dele, carregam essa força incomensurável de um artista que cumpre aquilo que os grandes são capazes: são fundamentais para o desenvolvimento da civilização, pois decifram o mistério do que somos, estabelecendo pontes entre nossas mentes e corações através de suas obras. Privilégio ter sido um dia, como milhares de outras pessoas, salvo por esse oitentão.
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FAIXAS:
1. "Tangled Up in Blue" – 5:42 2. "Simple Twist of Fate" – 4:19 3. "You're a Big Girl Now" – 4:36 4. "Idiot Wind" – 7:48 5. "You're Gonna Make Me Lonesome When You Go" – 2:55 6. "Meet Me in the Morning" – 4:22 7. "Lily, Rosemary and the Jack of Hearts" – 8:51 8. "If You See Her, Say Hello" – 4:49 9. "Shelter from the Storm" – 5:02 10. "Buckets of Rain" – 3:22 Todas as composições de autoria de Bob Dylan
Mesmo assim o machismo imperava nos estúdios e
sufocava carreiras,
salvo alguns como Clift, que assumiu
e sofreu na carne o
preço.
Eles tentaram esconder Burt,
Scott e muitos outros, nos todos sabíamos,
mas os chefões nunca se renderam,
e eu poucas vezes”.
John Ford
Dos quatro deuses rebeldes do método Lee Strasberg – Marlon Brando, James Dean, Montgomery Clift e Paul Newman –, apenas Paul era
heterossexual. Clift era gay assumido e sofreu enormes rejeições, ainda que tenha enfrentado todas elas. Depois de aconselhado por Liz Taylor, virou um
arrogante de primeira; era sua defesa pessoal. James Dean não fazia esforço
para esconder a homossexualidade: frequentava bares gays onde adorava queimar o
corpo com cigarro em trips sexuais.
Marlon Brando, esse sim: traçou de Vivian Leigh a Jean Cocteau. E mais, muito
mais. Mas estes grandes atores não seriam os pioneiros. Tyrone Power, sir
Laurence Olivier, George Cukor, Vincent Price, Errol Flynn e o músico Cole
Porter, por exemplo, sempre tiveram preferências homossexuais. Errol desfilava
com muitas namoradas e lançava cantadinhas não correspondidas à sua partner, Olivia de Havilland. Além
disso, adorava desfrutar de orgias com homens e mulheres. Seu grande parceiro
de festinhas foi Willian Holden, que não era gay, mas topava a mulherada.
Os estúdios criaram vários casamentos de fachada para seus
atores de ponta. Queriam sempre abafar os comentários da imprensa sobre suas
sexualidades. Um deles era Burt Lancaster, que foi proibido de “sair do armário”.
Acabou casando forçadamente e tendo filhos. Mesmo assim, manteve
relacionamentos com Rock Hudson e Cary Grant. E, por fim, foi um grande
ativista do movimento gay. O charmoso Cary Grant e Randolph Scott, um dos reis
do western da "era dos
estúdios", segundo seus amigos pessoais, eram casados e mantinham famílias
para despistar os estúdios e a imprensa. Chegaram a morar juntos e foram
fotografados em momentos picantes na piscina. As fotos geraram revolta dos
chefões de "Oliú", que ameaçaram suspender trabalhos de ambos os
atores que foram obrigados a se separar. Após isso, Cary tentaria suicídio com
pílulas para dormir. Já Gary Cooper, bonito e másculo, o protótipo do herói
americano, foi aconselhado por seus agentes a abandonar seu parceiro sexual sob
pena de ter sua próxima produção cancelada – que se chamaria nada menos que
"Matar ou Morrer", um dos maiores westerns da história.
Mas o caso mais polêmico foi o do ator e galã Rock Hudson.
Em 1955, ele levava uma carreira ascendente no cinema, mas a tranquilidade logo
ia dar lugar a um escândalo: uma revista especializada em fofocas publicaria
uma matéria com fontes seguras sobre a homossexualidade de Hudson. Seus agentes
não perderam tempo e casaram o ator com sua secretária – o mesmo que aconteceu
com Anthony Perkins. O casamento "falso" durou poucos anos e logo o
galã entraria para uma vida de promiscuidade sexual sem limites. Hudson
recorria às ruas todas as noites e levava para a cama até vagabundos e jovens
de toda a cidade. Era um sexo mecânico e sem erotismo. A regra de Hudson era “quanto
mais, melhor”, não importando a “qualidade”.
O resultado de tudo isso acabou vindo anos mais tarde. Em
1984, o ator foi a primeira grande celebridade do cinema americano a ser
diagnosticada com HIV. Rock Hudson faleceu em 1985 em decorrência da doença e o
fato teve uma enorme proporção. Tanto que chamou a atenção de celebridades e do
governo dos EUA, quando muitos doaram quantias milionárias para as pesquisas da
cura da AIDS, tendo Hudson como símbolo póstumo da campanha. Em 1992 e com
menos estardalhaço da imprensa, o astro tímido de “Psicose”, Tony Perkins,
sucumbiria ao HIV. Elogiado por Hitchcock e por muitos diretores, e criticado
por sua opção sexual pela MGM, ele partiria discretamente em sua casa em
Hollywood, mas não sem antes dizer em uma entrevista: "Que possamos ser livres em nossas escolhas, mesmo pagando um
preço eu prefiro ser livre." Que assim seja.
Animais Pervertidos Trogloditas Titãs Mutantes Zumbis Macacos Macaquinhos Macacos alemães sem vogais Os quem? Os os? O os? O a? A os?
Usina de força De transgressão Orquestra de luz elétrica Dura como um capacete Cegante como a sombra do cavaleiro Mortal como um aborto elétrico
Pode vir do 13º andar do elevador Ou de Springfield, Kansas, Chicago Da Browley, do ABC, da esquina de Minas Gerais ou do alto de um dirigível Led, de um avião Jefferson
Pode ser a cura, pode ser o choque Pode ser a morte dos Kennedy Ou o amor de Gene por Jezebel Por Jude, por Prudence, por Lucy, por Michelle, por Madonna Ela é a mulher!
Ou cantado pelos anjos gêmeos de Jean Cocteau Dançando com dinamite nos pés Calçando sapatos de camurça azul E vestes de veludo subterrâneo
Vinda de uma cabeça de máquina Que implode como bananas TNT Coquetel Molotóv dentro de cabeças falantes Fogo que corrói metais nos metais
Azul, azul, azul, mil azuis geram blues
O rock errou? O rock morreu? Mas seguirá e seguirá ovelha negra As sementes Essa pistola de sexos - “Rock é sexo!” É sexo, é polícia, é golfinho, é residente É a corrente de Jesus e Maria É símbolo impronunciável São cavalos loucos A inacabável nova ordem É água lamacenta que corre É pedra que rola até hoje, e continua Pelo lado selvagem, como um andarilho cadáver caminhando