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quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

João Gilberto - "João Gilberto" (1973)



“Melhor do que o silêncio, só João.”
Caetano Veloso



"João Gilberto", de 1973, não é tão importante quanto “Getz/Gilberto” (1964), obra-prima e definitiva difusora da bossa nova para o mundo; não sustenta a idolatria e o pioneirismo de “Chega de Saudade” (1958), precursor de todo o movimento e referência a TODOS os artistas de MPB a partir de então; nem é tão clássico quanto “Amoroso” (1977), cujo repertório escolhido a dedo traz orquestrações que se harmonizam à voz e ao violão com assombroso requinte. Mas “João Gilberto” é, certamente, o mais João Gilberto dos João Gilberto. Mínimo, detalhista, preciso, econômico, delicado. Perfeito.
De fato, é difícil apontar apenas um disco de João como fundamental. Sua obra é um verdadeiro evangelho de toda a música popular brasileira moderna. E isso se reafirma a cada esporádica gravação que faz. Seu estilo revisita toda a tradição do samba, de Nazareth ao batuque do morro. Moderno e tradicional ao mesmo tempo, o modo de cantar de João passeia com naturalidade de Orlando Silva a Chet Baker, passando por Mário Reis, Carlos Gardel, Vicente Celestino, Cartola, Bola de Nieve e Elizeth Cardoso num lance. Isso tudo aliado a uma técnica inovadora de tocar e, mais do que isso, de estruturar a melodia.
Até o advento da bossa nova, as notas dissonantes nunca haviam sido empregadas em música popular em nenhum lugar do mundo com tamanha exatidão e consciência e em sintonia perfeita (mesmo quando “fora” do compasso, coisa comum em João) como as que consegue extrair de seu violão. Toda essa gama de referências poderia muito bem virar uma salada sonora ininteligível; mas nas mãos e no gogó dele se cristalizaram no mínimo, no volume baixo e apenas audível, no controle absoluto da voz e dos silêncios. Num acorde tão bem elaborado e executado que vale por uma escola de samba inteira.
O que dizer, então, do álbum? Para começar, nada mais, nada menos, talvez a mais bela gravação da mais bela música já composta nesses pagos tupiniquins: “Águas de Março”, de  Tom Jobim .
Já está ali a tônica do disco: voz e violão perfeitamente modulados – a ponto de se escutar os trastes do violão, a respiração e a umidade da língua – acompanhados de uma econômica percussão. Nada mais (e precisa?). A harmonia feita sobre esta melodia indefectível é de uma beleza tamanha que chega a me fugir à compreensão. Faz-me lembrar o que o fã incondicional Caetano Veloso  diz sobre o ídolo: “ninguém consegue mudar tanto mudando tão pouco”. É, de fato, complexo e mínimo como um traçado de Niemeyer, como uma remoinhante de Van Gogh, como um solo de  Miles Davis .
Na sequência, “Undiú”, das raras composições do próprio João e uma de suas mais inspiradas. Trata-se de um samba-de-roda meio baião Gonzaga, meio valsa minimalista, meio canto de pescadores a la Caymmi, em que João articula, com uma afinação incrível, alguns fonemas sem sentido sintático, mas repletos de sentido melódico. Em seguida, o baiano verte outro clássico da MPB. Ou melhor: o reelabora. “Na Baixa do Sapateiro”, de Ary Barroso, vira uma peça instrumental tão bem arranjada e executada que sua partitura poderia muito bem servir como o 13º Estudo para Violão de Villa-Lobos.
Em “Avarandado” e “Eu Vim da Bahia”, dos então “novos baianos” Caetano Veloso e Gilberto Gil , respectivamente, o “velho baiano” tem a coragem de gravar os amigos conterrâneos recém retornados do exílio – ou seja, ainda sob vigília pelo governo militar. Mas João nem quis saber. E as duas músicas são lindas: “Avarandado”, brejeira e apaixonada, e “Eu vim...”, aquele samba radiante e colorido cheio de África-Brasil por todas as notas como só Gil sabe fazer.
Entre as que mais escuto estão “Falsa Baiana” e “Eu Quero um Samba”, tomadas de “requebros e maneiras”, de um swing pleno e natural. Aí vem “Valsa” ou “Bebel” ou “Como São Lindos os Youguis”, outra de autoria de João composta para a filha, a hoje mundialmente conhecida Bebel Gilberto, à época com 6 anos. É uma bela “valsa de ninar”, sem letra, só cantarolada. Imagino que os “Youguis” do subtítulo deviam fazer muito sentido para aquela criança (tanto que os considerava “lindos”). Mas que privilégio ser ninada com uma maravilha dessas, hein? Só podia virar cantora.
A triste “É Preciso Perdoar” e o divertido samba-crônica “Izaura”, a única em que divide os vocais – o que o fez muito bem com Miúcha, mãe de Bebel e então esposa –, fecham este disco inigualável dentro da música brasileira por sua simplicidade e coesão. Seria ridículo dizer que aqui João Gilberto atinge a maturidade musical, pois se trata de um artista que já nasceu maduro. Mas faz sentido pensar que, nesses idos, início dos 70, a bossa nova teve tempo de ser criada, exportada e assimilada por tropicalistas e outrem, a ponto de suas notas dissonantes se integrarem ao som dos imbecis. Tom, Vinícius e ele já haviam entrado para a história pela criação de um estilo musical tão rico que somente meia dúzia de jazzistas, roqueiros e eruditos da vanguarda conseguiram tal feito no século XX. Então, era hora de pegar o banquinho, o violão, aquele amor e 10 canções selecionadas com primor como João sempre soube fazer. Tudo isso para quê? Para ensinar ao mundo como se ouve o silêncio.

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FAIXAS:
1 - "Águas de Março" (Tom Jobim) – 5:23
2 - "Undiú" (João Gilberto) – 6:37
3 - "Na Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso) – 4:43
4 - "Avarandado" (Caetano Veloso) – 4:29
5 - "Falsa Baiana" (Geraldo Pereira) – 3:45
6 - "Eu Quero um Samba" (Janet de Almeida, Haroldo Barbosa) – 4:46
7 - "Eu Vim da Bahia" (Gilberto Gil) – 5:52
8 - "Valsa (Como são Lindos os Youguis)" (João Gilberto) – 3:19
9 - "É Preciso Perdoar" (Alcivando Luz, Carlos Coqueijo) – 5:08
10 - "Izaura" (Roberto Roberti, Herivelto Martins) – 5:28

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Ouça:
João Gilberto 1973



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Gilberto Gil - "Gilberto Gil" (1969)




“Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço
Que a Bahia já me deu régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu
Aquele abraço
Pra você que me esqueceu:
aquele abraço.”


Foi tudo meio no susto. Por conta do nefasto AI-5, os militares endureciam no limite máximo a repressão a comunistas, subversivos e a todo mundo que lhes incomodava. E isso incluía – ora por serem comunistas, ora subversivos, ora incomodativos (ora os três) – muitos artistas. Mesmo sem alcance mental muitas vezes para entender o que reprimiam, os milicos achavam melhor, por via das dúvidas, manter quem fosse calado. Foi o que aconteceu com Gilberto Gil  que, em 1969, junto com seu companheiro de Tropicália, Caetano Veloso  foi “convidado” a se retirar do Brasil. O destino foi Londres, onde, ativo e com senso de oportunidade, Gil se tornou mais cosmopolita do que já era. Mas não foi Londres que lhe fez assim. O gênio tropicalista saíra de terras brasileiras com um já vasto repertório que o colocava, já naquela época, entre os grandes criadores da música mundial. E o pouco falado disco produzido por ele a toque de caixa antes de se mandar embora é, visto hoje, ano em que o artista completa 70 anos, um de seus melhores e mais marcantes trabalhos, moderno do início ao fim.
 A começar pelo repertório, tudo foi, de fato, meio no susto. Sem muito tempo para dar critério à escolha das faixas, Gil apanhou o violão e gravou tudo num talagaço só. Registrou 12 delas às vésperas de viajar, desde composições suas a inspiradas regravações, como “17 Léguas e Meia”, de Humberto Teixeira, e “2001”, de Tom Zé e Rita Lee. Nove delas foram escolhidas,  resultando numa playlist magnífica com o que havia de mais pulsante na MPB da época. O violão de Gil, musical e absurdamente rítmico, é simplesmente fumegante: consegue evocar numa coisa só a África, a tradição indígena, a cidade moderna, o rock estrangeiro, a influência barroca, o Brasil rural. “Cérebro Eletrônico”, rock filosófico que abre o disco em alto ritmo (“Cérebro eletrônico nenhum me dá socorro em meu caminho inevitável para a morte”), e “Volks-Volkswagen Blue”, blues eletrificado no melhor estilo Bob Dylan, são exemplos claros de sua batida poderosa e vigor de interpretação.
Mas nem tudo foi tão assim de sobressalto. O produtor Manuel Berembein pegou as masters gravadas por Gil e largou na mão do ensandecido Lanny Gordin, nas guitarras, Wilson das Neves, bateria, Sérgio Barroso, baixo, e do maestro Chiquinho de Moraes nos teclados, o qual também fez as orquestrações. Aí, o “estrago” se completou. Criativos e psicodélicos à altura do autor, eles deram o corpo que faltava para que o álbum não fosse apenas acústico, mas, sim, um marco da fusão do rock com a MPB. Tropicalismo puro. O resultado é uma simbiose perfeita, como se todos tivessem tocando juntos e ainda escolhido o melhor take para cada faixa.
 Muito influenciado por Jimmi Hendrix à época, Gil passou pelas notas de seu violão e seu modo de cantar essa atmosfera rocker para o restante da banda, que eleva volume e distorção a todo o momento. “A Voz do Vivo”, de Caetano, mostra bem isso. Sob um riff super distorcido de Lenny, ruídos espaciais e uma batida funkeada, lembra (ou melhor, antecipa!) a psicodelia do rock inglês dos anos 90. O ritmo e a até o jeito de cantar meio insolente, abafado sob a massa sonora, lembra Primal Scream do "Screamadelica" (1991). Outra que antevê algo que seria aclamado três décadas depois é “Vitrines”, tecnicamente mais deficitária mas parecidíssima em ideia, letra e construção melódica com as “músicas de plástico” de Beck em “Odelay” (1994).
“Futurível” é outra ótima e também bastante vanguarda, com uma letra inteligente inspirada nos autores de ficção científica da época (Orwell, Bradbury) que critica o processo de massificação cultural que robotiza o ser humano (“O mutante é mais feliz/ Porque na nova mutação/ A felicidade é feita de metal”). Finaliza o disco o bate-papo hiperfilosófico entre Gil e o artista plástico Rogério Duarte (autor da capa, por sinal) sobre existência, cultura e infinitude, um mosaico sonoro com cara de “Revolution 9” dos Beatles
Mas a grande joia é justamente o hit do disco, o partido-alto dedicado, não à toa, às três gerações-chave do samba (Dorival CaymmiJoão Gilberto e Caetano Veloso: “Aquele Abraço”. O “até breve” de Gil para os brasileiros era uma mensagem direta e sem medo aos militares, que o expulsavam de sua terra, dedicando uma homenagem ao Rio de Janeiro, símbolo tropical(ista!) de “bossa” e “palhoça”, de “mata” e “mulata”. Alegre e amorosa, mas forte, lúcida e de alto comprometimento pessoal. Gil não manda dizer: diz abertamente e com propriedade. Ao mesmo tempo, manda um abraço para “todo o povo brasileiro”. Um dos maiores sambas e uma das melhores canções da MPB de todos os tempos, é um hino, um manifesto que conseguiu não ser barrado pela censura, tamanha sua força e identificação com o público.
Tudo precisamente instintivo – ou instintivamente preciso, como preferirem. Afinal, mesmo que no susto, não é por acaso que um disco como esse sai como saiu. Não com Gil.

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FAIXAS:
01. Cérebro Eletrônico (Gilberto Gil)
02. Volks-Volkswagem-Blue (Gil)
03. Aquele Abraço (Gil)
04. 17 légua e meia (Humberto Teixeira)
05. A voz do vivo (Caetano Veloso)
06. Vitrines (Gil)
07. 2001 (Rita Lee/Tom Zé)
08. Futurível (Gil)
09. Objeto semi-identificado (Gil/ Rogério Duprat/ Rogério Duarte)

Bonus Tracks da versão em CD:
10. Omão Laô (Gil)
11. Aquele Abraço - versão integral (Gil)
12. Com medo, com Pedro (Gil)
13. Cultura e Civilização (Gil)
14. Queremos Guerra - com Jorge Ben e Caetano Veloso (Ben)

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Ouça:


segunda-feira, 5 de junho de 2023

Caetano Veloso - Tim Music - Praia de Copacabana - Rio de Janeiro /RJ (27/05/2023)



Fiquei longe, leitores.
Tava com a filha e não quis adentrar a multidão.
Já tive a oportunidade de assistir a uma série de grandes artistas brasileiros, de graça, em eventos patrocinados ou iniciativas públicas de prefeituras. Em Porto Alegre, vi Gilberto Gil, Jorge Benjor, já aqui no Rio vi Jards Macalé, Erasmo Carlos, Hamilton de Hollanda, vi Paulinho da Viola lá e aqui, João  Bosco também em ambas as cidades, no entanto, nunca havia tido a ocasião de assistir a um show de Caetano Veloso. E eis que em mais um desses eventos de iniciativa privada, se afigurou a chance. Num evento promovido pela operadora Tim, na praia de Copacabana, o músico baiano foi uma das principais atrações e, como não  poderia deixar de ser, estive presente.

Caetano é muito carisma, é muita doçura, muita poesia e entregou um show à altura de sua grandeza. Embora não tão conhecida do grande público, "Meu Coco", que abriu a apresentação, não decepcionou ninguém, provocando uma calorosa recepção e uma entusiasmada reação do grande público espalhado pela areia da praia. Para minha agradável surpresa, o músico executou a fantástica "You Don't Know Me", de seu lendário álbum "Transa", de 1972. Os trabalhos seguiram com diversos sucessos que cativaram o público e fizeram todo mundo cantar: "Qualquer Coisa", "Um Índio", "Tigresa", "Baby", "Cajuína"... A escolha por tocar Sampa, homenagem tão reverencial à cidade "rival" foi, na minha opinião, algo de um gosto um tanto duvidoso em meio a uma festa tão carioca, mas, em meio à  praia, em plena Cidade Maravilhosa, Caetano compensou a "gafe" com a carioquíssima "Menino do Rio".
"Reconvexo" agitou a galera e fez todo mundo cantar junto, "Odara" pareceu passar uma energia toda especial e fez o corpo de todo mundo ficar meio odara, e Caetano se despediu com vibrante "A Luz de Tieta" deixando, ao final, somente as vozes do público entoando o refrão.
Belíssima apresentação. Emocionada e emocionante. Em tempo consegui vê-lo ao vivo! Brincando, brincando,  o cara já  tem 80 anos e... sem querer secar ninguém (Deus me livre!) Ninguém vive pra sempre.
Mas o que tínhamos lá era um " de 80 anos mas ainda cheio de energia e vivacidade Já  posso dizer, com toda a satisfação e orgulho: eu vi, ao vivo, Caetano Veloso.

Um dos momentos mais marcantes e emocionantes do show.
"A Luz de Tieta" só na voz da galera.



Cly Reis

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Caetano Veloso – Teatro do SESI – Porto Alegre/RS (19/07/2014)



Caetano abrindo o show em Porto Alegre
(foto: Leocádia Costa)
Um show de Caetano Veloso, para mim, é mais do que um show: é a confirmação de todo um paradigma de percepções e ideologias. Vê-lo no palco é deparar-me com uma série de conceitos e formas muito pessoais de enxergar a vida, que se confirmam e dialogam com sua obra grandiosa e impactante. Há exatos 22 anos, com 13 de idade, já havia tido essa experiência numa apresentação da turnê do disco “Circuladô”, um dos melhores da carreira de Caetano. À época, em parceria com Arto Lindsay e Peter Scherer (os Ambitious Lovers), Caê tinha em sua banda Jacques Morelenbaum, Luiz Brasil, Dadi, Marcelo Costa, Marcos Amma e Wellington Soares, que davam ao espetáculo, numa sonoridade cheia e moderna, uma roupagem proto-world music – ao estilo da forjada por Ruyichi Sakamoto e pelos próprios Ambitious Lovers nos anos 80.

Pois, desta vez, nada de sonoridade “rebuscada”, de banda numerosa, de complexidade timbrística, de pop étnico-modernista. No palco, para o show do CD "Abraçaço", apenas ele ao violão e a competentíssima banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarras), Marcelo Callado (baixo e teclados/efeitos eletrônicos) e Ricardo Dias Gomes (bateria e percussão). Uma formação simples e com a secura e objetividade do rock, o suficiente para um show espetacular. E mais do que isso: tão conectado com a contemporaneidade como sempre esteve este baiano, um artista fundamental para a formação de tudo o que há de mais inovador e sintonizado há 50 anos. A maior prova disso já estava na abertura, com o petardo “A Bossa Nova é Foda”. Não me venham com o tributo retrô do Daft Punk ao Chic em “Get Lucky” ou muito menos “Reflektor”, da saudada “nenhuma novidade” Arcade Fire. A brasileira “A Bossa Nova...” é de longe a melhor música de 2013. (coisa que muito tupiniquim vira-latas, que nem no futebol mais vence, jamais se sentiria merecedor.)

Embora o público do teatro fosse bem heterogêneo em idade, a abertura rock ‘n’ roll os pegou, se não desavisados, ainda um tanto frios e aguardando, em sua maioria, os clássicos. Que não tardaram em aparecer. Num deslocamento temporal de 48 anos, Caetano vai de uma canção do último trabalho para retrazer uma de seu debut, a obra-prima “Coração Vagabundo” (de “Domingo”, gravado em parceria com Gal Costa, em 1966). Além da ligação temática entre ambas, visto que trazem a bossa nova de João/Tom/Vinícius em seu cerne (na rock, em palavra; na samba, em forma), estava evidente ali a versatilidade da banda. Dentro da concepção harmônica proposta por Caetano, o trio executa com perfeição tanto uma quanto a outra, visto que “Coração Vagabundo” não ficara agressiva nem perdera a expressividade melancólica original.

O show é uma aula de escolha de repertório, composto por obras novas e antigas e outras bem pescadas. Aliás, comento frequentemente que artistas como ele, donos de obras extensas, profícuas e multirreferenciadas como um Gilberto GilChico BuarquePaul McCartney ou Stevie Wonder, têm o privilégio de poderem exercitar infinitas variações de set list, valendo-se tanto de músicas de sua autoria de diversas épocas como também composições de outros que dialoguem com aquele projeto. Foi assim que Caetano seguiu o show, intercalando faixas do ótimo "Abraçaço" (sobre o qual já escrevi aqui no blog), como a excelente faixa-título, o empolgante samba-reggae “Parabéns” e a “graciliana” “O Império da Lei”, com aquelas preferidas da galera. Foi o caso da breve mas emocionante execução de “Alguém Cantando”, originalmente na voz de seu filho, Moreno Veloso, no álbum “Bicho”, de 1977, e que só a tinha escutado com Caetano numa cena do filme “O Mandarim”, do Júlio Bressane, quando o autor a canta à capella.

Exemplo perfeito desse encadeamento bem pensado entre os números foi a trinca iniciada com a épica “Um Comunista”, do novo disco, que ganha ao vivo ainda mais dramaticidade ao contar, em forma de “biografia emotiva”, a trajetória do revolucionário baiano Carlos Marighella pelo olhar de Caetano, conterrâneo e admirador. O tema e a carga emocional desta desembocam na ainda mais grandiosa “Triste Bahia”, clássica adaptação do poema de Gregório de Matos feita por Caetano para seu célebre álbum "Transa", de 1972. O público, claro, delira com essa, tocada com muita competência pela banda, que consegue repetir/adaptar todas as variações rítmicas e harmônicas que a complexa melodia suscita. Pra finalizar o conjunto de três temas, outra nova: “Estou triste”, a deprimida canção que transportou a tristeza da Bahia para o Rio de Janeiro (“O lugar mais frio do Rio é o meu quarto”).

A festa seguiu para todos os gostos. Num palco onde só se viam cavaletes com quadros de construtivistas-minimalistas, a bela iluminação ressaltava o que interessava: a música. A expressividade do gestual longilíneo de Caetano se adensa no seu canto absolutamente afinado e bem pronunciado. Vieram, assim, na sequência, também “Odeio” e “Homem”, ambas de pegada bem rock e do início da parceria com a banda Cê; a romântica “Quando o galo cantou”, cuja execução ao vivo pareceu trazer-lhe com mais vivacidade a beleza da poesia; e a “matadora” “Funk Melódico”, das melhores e mais conceituais de "Abraçaço", em que Pedro Sá dá um show na guitarra. Sá, aliás, é, como em todo bom show de rock, quem sustenta a banda. Isso fica evidente na feliz recuperação de “De Noite na Cama”, tal qual a versão original que Caetano compusera para Erasmo Carlos em 1971. Isso se nota ainda mais na regravação de outra clássica: “Eclipse Oculto”, um pop a la Blitz, de 1984, que, agora, ganha peso e distorção, dando quase para “pogueá-la”.

Caê e banda mandando
um Abraçaço para a galera
(foto: Tita Strapazzon)
As fantásticas “Reconvexo” (imortalizada na voz da irmã Maria Bethânia), com sua poesia forte e altamente pessoal, e a picante “Você não entende nada” aplacaram de vez o coração de fãs como eu. Esta última, de tão querida que é na versão do disco “Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo”, chegou a ser cantada pela plateia no momento do refrão com os versos de “Cotidiano”, de Chico, que se intermeia com a de Caetano naquela apresentação de 1972. No palco, Caetano cantava: “Eu quero que você venha comigo”, e o público replicava: “Todo dia, todo dia”. Demais.

No bis, um erro e um acerto. Acerto por que ele abriu com nada mais, nada menos que “Nine Out of Ten”, outra clássica do "Transa". O erro? Pegar uma música em inglês, que não são todos que acompanham, justo para essa volta ao palco, o que esfriou um pouquinho a animação da saída em alto estilo com “Eu quero...”. Mas nada demais para um repertório tão lindo e tão significativo, biográfico em muitos dos casos, pois a música de Caetano conta a história de muitos momentos da vida de várias gerações. É por se identificar com isso que digo ser seu show mais do que uma mera apresentação. Ouvir Caetano, e assim tão proximamente, é um encontro comigo mesmo através do milagre dos sons. Foi assim em 1992, e agora novamente em 2014. Ali naquele palco, naquela objetividade e clareza rocker que permeia a proposta desse show, estavam muito mais do que somente ele e a banda. Estavam vivos a Rádio Nacional, a herança ibérica, a influência árabe no Ocidente, o sincretismo, o jazz, a filosofia, a contracultura, o barroco, o morro. A bossa nova. Tudo numa total harmonia e simbiose – algo que reflete minha forma de enxergar o mundo.

Depois de tudo isso, bastava acabar com um número gostoso e pegajoso nos ouvidos. Foi o que fez Caê ao finalizar o show com “Luz de Tieta” (e nem aí ele diz SOMENTE isso, pois que tal música recupera Jorge Amado e o “lirismo documental” de sua geração: Caymmi, Verger, Caribé...). Show daqueles que se sai com a sensação de terem valido cada centavo, com Caetano mostrando porque, aos 72 anos, consegue ser um dos artistas mais inquietos da música mundial. Mesmo que muito tupiniquim nem ouse admitir isso.




fotos: Leocádia Costa e Tita Strapazzon


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Caetano Veloso - Teatro da Ospa - Porto Alegre (1992)


O conhecimento que adquiri sobre cultura é, hoje, para um adulto de 42 anos, bem mais assimilável diante dos olhos alheios do que quando eu era jovem. Naquela época, meu gosto e entendimento por cinema e música causavam espanto, visto que não correspondiam com o de muito adulto, quanto menos ao de outros jovens da minha idade. Como um guri de 13 anos, negro e de classe média é capaz de gostar (e entender!) daquilo que somente a classe média alta (e branca) detém? Enfim, não se escapa ileso disso no Brasil. Considerando a devida bagagem adquirida de lá para cá, posso dizer que, na juventude, já me mostrava interessado e conhecedor de muita coisa – principalmente, em comparação a pessoas então da minha idade, muito mais preocupados em ter grana para gastar na balada do fim de semana. Eu, um ET entre meus pares, queria saber mesmo era de filmes e de música. Meus gastos se voltavam a locadoras, discos e a conhecer coisas.

Caso de Caetano Veloso, a quem havia descoberto fazia alguns anos mas que, naquele 1992, completando 50 anos de vida, se revelava fortemente a mim através do seu então novo disco, “Circuladô”. Pela MTV, via seguidamente o ótimo clipe da música de trabalho “Fora da Ordem”. Mas, principalmente, minha curiosidade se despertava por causa da antenada Rádio Ipanema. Pela rádio, minha escola musical-cultural, ouvia não apenas esta música, mas também outras joias daquele disco, como a pedrada crítico-social “O Cu do Mundo”. Fui atrás do disco, óbvio. Adquiri-o em K7, trabalho que se tornou, até hoje, um dos meus preferidos de Caetano e sobre o qual já falei aqui no blog. Assim. quando o baiano anunciou que vinha a Porto Alegre para a turnê do álbum, não pestanejei. Sem ninguém tão empolgado quanto eu para ir ao show, fui sozinho.

Seria o primeiro sem a companhia de ninguém, nem pais, nem irmão, nem amigo. Só eu. Era comum ir às sessões especiais de cinema sozinho, mas a um show, que acabaria tarde da noite, nunca. E longe de onde era minha casa, na zona Sudeste de Porto Alegre. De ônibus, por cerca de 1 hora, me desloquei até o alto do Bom Fim/Independência em direção ao antigo e hoje desativado Teatro da Ospa, onde ocorreria o show. Com a devida preocupação de minha mãe, fui. Lembro que tinha fila Av. Independência afora, passando pela frente da casa da Cruz Vermelha, uma novidade para mim, que não frequentava aquelas imediações. Já ali, minha figura impressionava aqueles que assistiriam junto comigo dali a algumas horas o memorável show de Caetano. Lembro-me claramente que um senhor de meia-idade, de óculos e provavelmente fã do músico desde quando era adolescente, perguntou a mim com admiração que idade eu tinha.

Caetano e a grande banda comandada por Jaques Morelenbaum
Já lá dentro, na plateia superior esquerda, num bom lugar para quem não tinha dinheiro suficiente para pagar o valor para se assistir lá de baixo, posso dizer que foi naquela feita que me deparei pela primeira vez com a maestria do pessoal dessa geração (ele, Chico, Paul, Milton, Stevie, Bethânia, Stones, Gil, etc.). Não apenas a qualidade musical, mas a maestria de saber montar set-lists. Cruzes! “Circuladô”, o disco, já trazia músicas que garantem uma apresentação de alto nível se entremeadas com sucessos antigos e outras canções mais populares, o que normalmente se faz repertórios de shows. Mas essa “turma” sabe ir além disso. Caetano e sua ótima banda (Luiz Brasil, guitarra, violão e Synthaxe; Marcos Amma e Welington Soares, percussões; Dadi, baixo; Marcelo Costa, bateria; e Jaques Morelenbaum, cello, além da produção do show) articulam um show cujo encadeamento das músicas é tão bem construído que virou, não à toa, referência na obra do próprio Caetano. 

Equilibrando hits, clássicos, versões, textos, letra de idiomas diferentes e releituras suas e de outros compositores, além das faixas do disco que motivava a turnê, o show é uma sequência de tirar o fôlego de qualquer fã ou aspirante a isso, como eu o era ali. Momentos mais enérgicos, outros, mais cândidos; outros, ainda, mais populares ou mais conceituais. Mas sem jamais perder o ritmo narrativo. Aliás, como não se embasbacar com uma sequência inicial como esta?: Abre-se com a clássica “A Tua Presença” num novo e magnífico arranjo; engata uma versão bossa-nova “banquinho-violão” de “Black or White”, de Michael Jackson, expediente que o próprio Caetano já inovara poucos anos antes ao fazer o mesmo com “Billie Jean”, também autoria do Rei do Pop, mas que, ali no show, pegava todo mundo de surpresa; e uma virada sem pausa para um rock minimalista com o texto inédito “Os Americanos”, este, não cantado, mas lido por seu autor, que, além da qualidade inequívoca de compositor, é também um escritor de mão cheia.
Não lembro bem onde entrava no show “Fora da Ordem”, mas com certeza era na primeira metade em se tratando de música de trabalho do disco novo. O fato é que, logo em seguida, emenda-se outra sequência incrível e inesperada: a linda “Um Índio” – em uma versão melhor que a original dos Doces Bárbaros –, a novelística "Queixa" e uma assombrosa "Mano a Mano", clássico tango de Carlos Gardel com Morelenbaum ao cello e Caetano apavorando no vocal. Mas não terminava aí: só na voz e violão, vêm uma trinca com a assertividade dissonante de "Chega de Saudade"; uma surpreendente versão de "Disseram que eu Voltei Americanizada", do repertório de Carmen Miranda; e “Quando eu Penso na Bahia", em que Caetano torna Ary Barroso muito caymmiano.

A bela arte da capa do disco ao vivo,
que fazia cenário para o show visto
na Ospa
Intercalando um que outro dos ótimos temas de “Circuladô” – como “A Terceira Margem do Rio" (das raras dele e de Milton Nascimento), “Itapuã” e a já citada “O Cu do Mundo” –, Caetano traria ainda outras pérolas consagradas (“Você é Linda”, “Os Mais Doces Bárbaros", “Sampa”) e mais surpresas. Uma delas, é a versão para "Oceano", então recente sucesso de Djavan que emocionou a galera. Outra: uma estupenda versão para “Jokerman”, de Bob Dylan, ponto alto do show e que lhe confere o começo de uma segunda e derradeira parte. Mas não terminava ali (Caramba!). Tinha mais coelhos naquela cartola, pois o espetáculo trazia também duas revelações. Primeiro, a de que a querida “O Leãozinho” havia sido escrita, nos anos 70, justamente para um dos integrantes daquela banda, Dadi, o que resultou numa execução desta somente com o seu contrabaixo acompanhando a voz de Caetano. A outra revelação também é relativa aos anos 70, mas consideravelmente mais melancólica visto que resultante dos reflexos da Ditadura Militar. Antecipando o que traria em seu livro-ensaio “Verdade Tropical”, de 1997, Caetano conta para a plateia, antes de cantar “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”, que Roberto e Erasmo Carlos a escreverem em sua homenagem, e que conheceu a canção recém-composta numa visita de Roberto a ele e Gil no exílio, em Londres, ocasião aquela em que se emocionou muito.

Para mim, que conhecia de cabo a rabo “Circuladô”, ficou claro por que, de todas, tanto“Ela Ela”, arranjada e tocada em estúdio com Arto Lindsay, como “Lindeza”, com Ryuichi Sakamoto aos teclados, igualmente sui generis, cada qual com suas particulares performances irreproduzíveis à altura sem esses músicos específicos, não se executaram. Além de compreensíveis ausências, ambas nem de longe fizeram falta ao show, que, antes de tudo, foi um show de repertório. Tão marcante foi tal apresentação, que se tornou o primeiro de uma série de discos ao vivo de Caetano, o CD duplo “Circuladô Vivo”, algo que passou a acontecer com regularidade a partir de então após cada disco de estúdio lançado. A qualidade técnica da gravação, que se tornava disponível à época no Brasil pós-Collor, certamente colaborou para isso. Porém, antes de qualquer coisa, o tratamento dado pela também iniciante parceria entre Caetano com Jaques Morelenbaum é crucial para o sucesso do álbum ao vivo, um dos mais celebrados da carreira de Caetano. Se no estúdio os Ambitious Lovers Arto e Peter Scherer vinham numa ótima tabelinha com o baiano desde “O Estrangeiro”, de 1989, o que se adensaria em “Circuladô”, no palco, era a mão versátil do maestro líder da Banda Nova de Tom Jobim que ditava a musicalidade. Por influência dele, "Terra" (que ficou de fora do CD, assim como outra clássica, "Baby"), talvez a melhor melodia de Caetano, ganhou no show a talvez sua melhor versão das várias que o autor já registrara ao longo da carreira.

Não tenho idade para ter ido a shows célebres de Caetano em Porto Alegre, como o da turnê do disco “Cinema Transcendental”, em 1979, ou o de 1972, no Araújo Vianna, de onde, após encantar a plateia, partiu com figurino e tudo rumo ao histórico e único encontro que teve com Lupicínio Rodrigues, no Se Acaso Você Chegasse, na Cidade Baixa. Mas a ver pela repercussão que este show de 1992 teve, tanto com o lançamento e sucesso do CD ao vivo como também de um especial para a TV Manchete e um documentário dirigidos por Walter Salles Jr. e José Henrique Fonseca – à época, em VHS –, era impossível Caetano não conquistar de vez aquele pré-adolescente da periferia porto-alegrense, que, encantado com o que vira, nem se abalou por andar sozinho tarde da noite de volta para casa. Aliás, ele nem lembra como e quando chegou em casa. Mas que chegou, chegou – para alívio de sua mãe. Se não, ele não estaria aqui agora, redigindo este texto recordado da grande noite em que viu Caetano Veloso pela primeira vez ao vivo.

Show "Circuladô Vivo" (1992)

Documentário "Circuladô Vivo" (1992)


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Xande de Pilares - “Xande Canta Caetano” (2023)

 

“Quando não genocidam as nossas crianças elas crescem e têm grandes chances de se tornar, no futuro, um Xande de Pilares, por exemplo. Que estupendo cantor ele se confirma neste álbum que não me canso de ouvir”.
Ricardo Aleixo, poeta, músico e ativista negro

"Canto e imagino que todo o povo, toda 'gente quer ser feliz, gente quer respirar ar pelo nariz' e levar a paz." 
Xande de Pilares, em carta aberta sobre “Xande canta Caetano”


O povo preto não pode nunca deixar de estar alerta. Mãe Bernadete, Moa, Amarildo, Júlio César, Genivaldo, Moïse, Sandro. Marielle Franco. Seja pela força do Estado, seja pelo braço armado do Estado, seja pela conivência do Estado, seja pela incompetência do Estado. No Brasil, o genocídio negro vem de séculos, desde os navios tumbeiros. E quando crias negras nem sequer têm a chance de conhecerem a vida? João Pedro, Heloísa, Miguel, Eloá, Thiago, Ágatha, Maria Eduarda, Kauã, Alice, Emilly, Rebecca. Chacinados da Candelária.

Acontece que, há séculos também, este mesmo povo preto massacrado e açoitado, embora submetido à pior das condições humanas, a escravidão e o aniquilamento, resiste. Resiste e dança, tal como um personagem essencial para esta análise um dia disse: "com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei". 

Alexandre Silva de Assis, ou Xande de Pilares, nascido no suburbano Morro da Chacrinha e que leva no nome outro bairro pobre da Zona Norte do Rio de Janeiro, é fruto deste milagre da resistência. Criado nas rodas de samba de Ramos, Cachambi, Madureira, Pilares – o Pagode do Boleiro, o da Beira do Rio, o Pagofone, o da Geci, o Compasso da Vila, o Risco de Vida, a Adega do Sambola –, chegou ao estrelato aos 22 com o Grupo Revelação na onda pagodeira dos anos 90. Sobreviveu e se desenvolveu. Solo, lançou, entre outros, discos com títulos nada despropositados: “Esse Menino Sou Eu” e “Perseverança”. Aos 53, então, Xande valeu-se da desatenção do sistema racista para cunhar um disco que já nasce, assim como ele e seus milhões de irmãos, valoroso e celebrável. “Xande Canta Caetano” é daquelas raras obras que não precisam da permissão do tempo para se tornarem essenciais. Já vem ao mundo assim.

Vários motivos levam o disco a ser especial. A começar pelo homenageado, cuja gigantesca e assombrosa obra em tamanho e importância garante um set-list de alta qualidade. Segundo: a ideia surgiu de um convite do próprio Caetano Veloso, aceita com certo temor pela responsabilidade por parte de Xande, mas assumida com reverência, respeito e entrega pelo mesmo. Terceiro, a ousadia de trazer para o seu chão, o samba, até mesmo aquilo que não é samba na roupagem original. E quarto e principal: o primoroso resultado final. São apenas 10 faixas, que levam o canto emocionado e gabaritado de Xande para canções do baiano – muitas delas, clássicos do cancioneiro brasileiro – em versões personalíssimas e inspiradas.

Xande demonstra ser um grande fã de Caetano já na escalação do repertório. Uma seleção de quem conhece a fundo aquilo a que está se dedicando. Mas sobretudo e artisticamente falando, um entendimento do que se conecta com ele como intérprete. Fora o fato de ser um disco de duração curta e exata – como os da MPB dos velhos tempos do long player, incluindo os de Caetano –, o repertório torna-se um dos diferenciais do disco. Xande optou por músicas não óbvias do farto cancioneiro caetaneno, mesmo podendo recorrer a uma maior facilidade. Não seria nenhum crime, por exemplo, aproveitar sambas consagrados como “Desde que o Samba é Samba”, "Saudosismo", “Sampa” ou “Sem Samba não Dá”. Ou, quem sabe, sambas convictos do compositor: "Festa Imodesta", "A Voz do Morto", "Samba em Paz", "Força de Imaginação", esta parceria com a "dona do samba" D. Ivone Lara? Diminuiria a margem de erro. Mas não. Xande ousou – e acertou. A se ver pela surpreendente escolha de “Muito Romântico”, que abre o disco numa tocante versão da canção feita para a voz perfeita de Roberto Carlos em 1977 e gravada pelo autor apenas posteriormente. Samba puxado no cavaquinho, instrumento-base de Xande aprendido naquelas tais rodas de samba de outrora, nos botequins da vida. No talento trazido acorrentado da África pelos ancestrais, dos batuques sincréticos na senzala.

Pois outro jovem preto que driblou o sistema genocida é corresponsável por este feito: Ângelo Vitor Simplício da Silva, mais conhecido como Pretinho da Serrinha. Igualmente rebento dos pagodes da vida, das quadras de escola de samba, do ouvido absoluto e do talento nato. Pretinho é quem, além de produzir o disco com a mais alta competência e tocar nada menos que 24 instrumentos nas gravações, assina todos os arranjos, estes capazes de operar o milagre de fazer com que músicas de estruturas rítmicas variadas soem naturalmente sambas tal tivessem sido assim desde sempre. “Luz do Sol”, o emocionante tema escrito por Caetano para a trilha sonora do filme “Índia, A Filha do Sol”, de 1982, de uma balada melancólica vira, simplesmente, um samba-canção de muito bom gosto na tradição de Cartola e Paulinho da Viola.

E o que dizer de “Qualquer Coisa”, que, de portenha, passa a ganhar ares de sambolero com direito a bandolim de Hamilton de Holanda? Até mesmo o hit “Tigresa”, outro não-samba originalmente, é vestido por uma elegante roupagem em que Xande desfila extensão vocal e fraseados num samba lânguido e sensual. Palmas, aliás, para outro preto: Diogo Gomes – mais uma de história linda de superação e perseverança –, que capricha no arranjo de metais.

videoclipe de "Tigresa", da Araguaia Filmes

Assim como “Tigresa”, “Alegria, Alegria” é outro clássico inconteste de Caetano relido no álbum. Porém, ainda mais improvável achar samba naquela marchinha psicodélica. Pois Xande/Pretinho conseguiram, e com louvor. Das melhores do álbum, um dos hinos do movimento tropicalista, defendida pelo autor no memorável Festival da Canção de 1967, transforma-se em um misto de samba rural e afoxé em que o violão do craque Carlinhos 7 Cordas prevalece. Xande, cuja memória ainda preserva da infância as festas da Folia de Reis nas comunidades em que viveu, evidencia neste samba raiz uma atmosfera que talvez até Caetano nem percebera que sua música continha.

Outra nada óbvia – e mostra do quanto Xande caprichou na pesquisa interna à música do homenageado – é “Diamante Verdadeiro”, composta por Caetano para a mana Maria Bethânia e que abre o disco de maior sucesso da carreira dela, “Álibi”, de 1978. Como se encarnasse Moreira da Silva, Xande faz o diamante reluzir verdadeiramente como um samba-de-breque. Na sequência, para uma das mais pessoais e bonitas de todo o repertório de Caetano, “Trilhos Urbanos”, o que poderia ser equivocado se torna ainda mais assertivo. Resgatando no marcante som dos atabaques e do cavaquinho o xirê de candomblé e o samba-de-roda do Recôncavo Baiano, terra-natal de Caetano, a dupla Xande e Pretinho constrói uma das mais belas músicas de todo o disco e, quiçá, da década no Brasil. O bom-senso não recomendaria que o incomum “refrão de assovio” da original de Caetano fosse reproduzido. A solução? Um coro feminino cantarolando a melodia de “Retirantes”, de Caymmi, que faz remeter imediatamente à célebre canção-tema da novela “Escrava Isaura”, presente na memória afetiva de todo brasileiro. Sacada de mestres, astúcia de uma raça que sobrevive com graça para além das desgraças.

Formando a tríade com os maiores cantores da MPB presenteados por Caetano com sua criatividade ímpar, Xande, que passara por Roberto e Bethânia, agora chega a vez de Gal Costa, mencionada na faixa anterior por seu canto de "Balancê". E fazendo jus a um repertório pinçado com sensibilidade, ele versa ainda “O Amor”, que Caetano, sobre a poesia revolucionária do poeta russo Maiakovski, deu para a voz cristalina de Gal em 1981. A mais samba, mas nem por isso menos desafiadora, é “Lua de São Jorge”, uma reverência a ao guerreiro Ogum em ritmo de pagode. Salgueirense, Xande celebra também a escola a qual pertence, devota do mesmo santo, tão vermelha e branca quanto ele. Não à toa os metais e o agogô desenham toda a melodia, afinal, está se falando do “senhor da metalurgia”.

Mas ainda mais revolucionária é a que encerra: “Gente”, o grito humanista mais pungente de Caetano. Difícil escutá-la e não ir às lágrimas, como ocorreu com o próprio Caetano ao ouvi-la pela primeira vez. Xande, com sua história pessoal e representatividade, cantando em clima de samba-enredo essa ode às pessoas simples, apropriando-se dela, reverbera em muitas dimensões do tecido social brasileiro. “Gente pobre arrancando a vida com a mão”. Quanto potência e significado versos como estes ganham ao saírem de sua boca: “Não, meu nêgo, não traia nunca essa força, não/ Essa força que mora em seu coração”.

“Xande Canta Caetano” é, sem pestanejar, o melhor álbum lançado no Brasil em 2023, um presente aos brasileiros para um festivo ano em que o país se livrou do fascismo e vislumbrou novamente a esperança na democracia, no respeito ao outro e no amor. Brasileiros como Ricardo Aleixo, Jorge Furtado, Pena Schmidt, Martha Medeiros, Nizan Guanaes e Moysés Mendes pensam o mesmo. Na mesma lógica de enumerar nomes como na música "Gente", podem-se adicionar tranquilamente a Francisco, Zezé, Gildásio, Renata, Agripino, Dolores ou João, como a poética sugere, outros nomes, tal Pretinho, tal Diogo. Tal Xande. Foi deixarem o negro existir, deu nisso: amor e arte, as armas contra a iniquidade capazes de transformar o mundo. Afinal, gente é pra brilhar como brilha Alexandre Silva de Assis. Não pra morrer de fome, de bala ou pela invisibilidade.

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videoclipe de "Gente", da Araguaia Filmes


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FAIXAS:
1. “Muito Romântico” - 3:16
2. “Luz do Sol” - 3:44
3. “Qualquer Coisa” (participação: Hamilton de Holanda) - 3:00
4. “Tigresa” - 3:59
5. “Alegria, Alegria” - 2:56
6. “Diamante Verdadeiro” - 3:14
7. “Trilhos Urbanos” (Música incidental: “Retirantes”, Dorival Caymmi) - 3:22
8. “Lua de São Jorge” - 3:01
9. “O Amor” (Caetano Veloso / Ney Costa Santos / Vladimir Maiakovski) - 3:37
10. “Gente” - 3:55
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

“Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil (2020)


"Quando eu me encontrava preso/
Na cela de uma cadeia."
Versos iniciais de "Terra"

Quase ao fechar das cortinas de 2020 assisti, finalmente, uma elogiada produção deste ano sobre um dos artistas que mais admiro: “Narciso em Férias”, documentário com e sobre a vivência de Caetano Veloso dos 54 dias da prisão entre 1968 e 69 durante a ditadura militar. Dirigido pela dupla Renato Terra e Ricardo Calil – afeita a documentários sobre artistas da música brasileira, visto que têm na bagagem os ótimos “Uma Noite em 67”, de 2010, e “Eu Sou Carlos Imperial”, de 2016 –, o filme traz coisas boas e outras nem tanto, embora as qualidades superem os problemas.

O projeto, motivado pelo recente descobrimento dos documentos com os interrogatórios concedidos por Caetano ao exército, que o havia prendido em dezembro de 1968 – quatro dias depois da instituição do AI5 – por causa de uma apresentação supostamente difamadora na boate Sucata, no Rio de Janeiro, é por si admirável. O formato também. Basicamente, composto por depoimentos de um Caetano filmado de frente (apenas com variações de plano/profundidade), fotografia fria, poucos cortes e cenografia tão seca como uma prisão: uma cadeira escura sem braços e a figura do entrevistado engolida por um cenário cinza, opressor, monocromático e sem respiro, semelhante à cela sem janela que Caetano descreve quando recorda os dias de solitária.

As falas extensas, respeitando o fluxo de raciocínio de Caetano, tem o ganho de, semiologicamente, simbolizarem o marasmo e a opressão do tempo de encarceramento. É a voz dele e silêncios apenas. Mas em termos de conteúdo passam longe de serem monótonas. Pelo contrário, visto que carregadas de detalhes, ponderações, emotividade e surpresas, A própria música, diretamente ligada à sua figura, é quase ausente, servindo muito bem para amarrar os três "blocos" que o filme forja com bastante sensibilidade. No entanto, os diretores-entrevistadores, fora do enquadramento mas de frente para Caetano, pecam ao deixar o curso da conversa correr em alguns momentos. Num deles, bem nas primeiras declarações, Caetano menciona algumas vezes "a gente" ao referir-se a quem estava junto com ele no momento da prisão em São Paulo. Não é muito difícil de se suspeitar - ainda mais sendo ele uma personalidade famosa e essa história já ter sido contada em outras ocasiões - que se está falando de Gilberto Gil. Mas até mesmo eu, que tenho intimidade com a biografia de ambos, fiquei em dúvida dessa suposta afirmativa. Afinal, estava assistindo um documentário que podia trazer revelações novas. 

Não eram. Nem mesmo uma tática narrativa, visto que a resposta confirmativa do mais provável veio sem nenhum requinte. Espera-se que, uma vez escolhido um formato como este, que todas as informações que se precise saber estejam expostas e ordenadas. Igualmente, que os entrevistadores ajudem a conduzir o andamento quando necessário. Cinema não é jornalismo, sei, mas quando o primeiro busca fazer as vezes do segundo, há de se lhe respeitar um dos princípios básicos, que é o da não presunção do conhecimento por parte do receptor. Naquele ponto, ainda mais em se tratando do começo do filme, quando o espectador ainda está se familiarizando com a narrativa, soou como uma leve lacuna, até certo descuido.

Noutra sutil inconsistência, Caetano fala e toca um pedaço de uma das três músicas presentes no filme, "Irene" (as outras são "Terra", também autoria dele, e "Hey Jude", dos Beatles, todas fortemente ligadas à experiência da prisão). O que não se diz (e nem se questiona a Caetano na hora certa) é que a canção foi composta dentro das grades, o que apenas se supõe uma vez que, noutro trecho mais adiante, o músico relata que lhe foi negado o pedido feito pela então esposa Dedé aos militares para que lhe permitissem ter um violão na cadeia. Ou seja, ele inventou a melodia só na imaginação e a guardou na cabeça. Este fator, se tornado mais claro, seria bastante contributivo à obra, haja vista que é a única música escrita por ele em tal condição e ainda mais em se tratando de um artista que, mesmo com a reclusão brutal e injusta, tentou com todas as forças manter-se lúcido e íntegro.

Caetano Veloso cantando "Hey Jude", dos Beatles

Aliás, a integridade do baiano é exaltada por ele próprio não com afetação, mas com a consciência de um homem experiente revivendo aquele episódio traumático. Os próprios documentos, a que Caetano há pouco havia tomado conhecimento da existência, visto que por muito tempo confinados à confidencialidade, evidenciam essa integridade. Mesmo não criticando abertamente o regime militar durante os depoimentos aos oficiais (o que seria, se não suicídio, no mínimo uma autoincitação à tortura), também não deixa de se posicionar, por exemplo, quando perguntado da inocência do amigo e parceiro Rogério Duarte, vítima muito mais séria do que ele das barbaridades do regime. Poderia ter lhe comprometido, mas por sorte, não.

De tudo, é evidente que a grande força de “Narciso...” está, justamente, nos depoimentos de Caetano. A lucidez e a memória do autor de “Alegria Alegria” são admiráveis a um senhor de quase 80 anos, pois possibilitam montar um documento fundamental para se entender o nefasto período de ditadura no Brasil de alguém ainda vivo e nestas condições de discernimento. Há outros registros dele ao longo dos mais de 50 anos que dividem o episódio em questão do filme, como entrevistas, filmes e livros. Porém, nenhum se concentra tanto e tão bem neste recorte específico, o que garante ao filme uma saudável concisão.

Enquadreamento, fotografia,
cenário e figurino frios para
lembrar os dias de "férias
forçadas" do "Narciso"
Mais do que ser conciso, entretanto, “Narciso...” é também incisivo. Há lances comoventes, como quando Caetano emociona-se ao rever um exemplar da mesma revista que Dedé lhe apresentou na cadeia do batalhão de paraquedistas em Deodoro, no Rio, trazendo notícias sobre a chegada do homem à Lua (e que motivaria a criação da música “Terra” anos depois). Ou quando relembra do militar negro e conterrâneo seu que, sensibilizado com a situação, autorizou que ele e a esposa tivessem encontros íntimos na cela. Mas a construção narrativa pensada por Terra e Calil é, certamente, a grande responsável por tal contundência. Ao concentrar a ação em quase 100% da fita em praticamente a mesma imagem de Caetano, deixando para o final apenas um pequeno percentual que quebra a linearidade a qual os diretores acostumaram os olhos do espectador por mais de uma hora, dão, assim, a devida carga de suspense ao tão mencionado interrogatório, que Caetano conta ter sido o motivo de sua captura, mas que demorou meses para acontecer. Valendo-se de um expediente fílmico bastante interessante, que é o de gerar expectativa a algum elemento onipresente, quando finalmente o trazem à tela é quase como se estivessem dando-lhe um caráter de personagem até então escondido.

Mas o que havia realmente motivado a prisão? Caetano conta, por exemplo, que um oficial mais intelectualizado chamou-lhe à sua sala somente para discursar-lhe que foi, inconsciente ou conscientemente, a subversão do tropicalismo que o levara ao cárcere. Para ele, nas entrelinhas tropicalistas estava a verdadeira mensagem de rebeldia contra o governo militar. E Caetano diz-se obrigado a concordar. O motivo da prisão, aliás, por muitos anos nebuloso, fica mais bem explicado também no documentário por conta da revelação dos tais documentos, uma vez que está registrado com todas as letras que foi o jornalista Randal Juliano, da TV Record, quem dedurou aos militares que Caê e Gil haviam cantado o hino nacional na boate Sucata com uma letra “subversiva”. Provavelmente, este se referia a “Tropicália”, o tema-manifesto do movimento tropicalista que, em sua estrutura e abordagem inovadoras, expõe o Brasil daqueles novos tempos: com suas belezas (“A Banda”, “a bossa”, “Carmem Miranda”) e mazelas (“a palhoça”, “a criança feia e morta”). Ou seja: com ufanismo, mas também com crítica. 

O que me soa – e que talvez até escape a Caetano por mais leonino que este seja – é que Juliano ouviu, sim, o hino nacional. Na sua mentalidade conservadora e mal resolvida, a música, em letra e em música, fez-lhe identificar o nacionalismo de um hino mesmo que jamais pronunciados os versos oficiais, visto que foi provado ser mentira a acusação. Este é o lado inconsciente. No consciente, Juliano ofendeu-se com os versos, aí sim, da própria canção, a parte crítica que nenhum intransigente quer aceitar. Perversa ou desavisadamente, o fato é que Juliano fez um elogio a “Tropicália” e ao movimento que a turma de Caetano e Gil formaram. Tanta subversão que acabaria por levá-los à prisão por razões inconscientes ou não.

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trailer de "Narciso em Férias"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 11 de março de 2021

João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia - "Brasil" (1981)

Brasil com "H"

 

Quatro capas de "Brasil", lançado por Warner, Philips,
Universal e em edição conjunta com 
o disco
imediatamente anterior de João, "Amoroso"

"Quando dizem que João é o grande mestre inventor da bossa nova, não é gratuita essa denominação. Ele, com essa capacidade aglutinadora de vários elementos musicais para uma direção especial, foi o grande inventor desse conjunto extraordinário". 
Gilberto Gil

"Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira". 
Maria Bethânia

"A bossa nova tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado". 
Caetano Veloso

Definir um povo através da música nem sempre é uma tarefa fácil. Países como Portugal e seu fado ou a Argentina com o famoso tango talvez sejam afortunados por conseguirem essa identidade sonora, o que certamente lhes é favorecido pelas pequenas dimensões territoriais e a formação social uniforme – resultante, não raro, de alguma dose de tragédia. Porém, esse aspecto ganha complexidade quando o povo em questão é diverso e a jurisdição bem maior, tal como ocorre com os continentais Estados Unidos e Brasil. Assim como os norte-americanos tem tanto o jazz quanto o country, o rock ou o blues, o Brasil, obviamente, não é só samba. O Sul da milonga difere brutalmente do Nordeste do baião, do forró e do maracatu, igual ao carimbó do Norte ou o sertanejo do Centro-Sul. O que dizer então, quando se aprecia as peculiaridades culturais – e musicais, por consequência – entre os estados? A riqueza mestiça de Minas, o balanço leve da Bahia, a realeza malandra carioca, a dureza concreta de São Paulo...

O que abarcaria, então, um conceito minimamente consensual que representasse o ser brasileiro para dentro e para fora dos limites fronteiriços? A resposta talvez esteja justamente no gênero que efetivou esse protagonismo interna e externamente. O estilo que achou a "caixa de munição" ideal e sintética do Brasil: a bossa nova. João Gilberto, promotor da revolução ao inferir sua estética infalível de canto e instrumental (e espírito) às harmonias jobinianas já suficientemente revolucionárias, o ponto perfeito entre a tradição e o moderno, acreditava nesse poder simbólico da bossa nova. Depois do seu advento, com todos os seus protagonistas e personagens (Tom, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Antônio Maria, Carlos Lyra, Dolores Duran, entre outros) o Brasil, em recente industrialização pois ainda fortemente rural e mero exportador de matéria-prima naquela metade de século XX, nunca mais foi o mesmo. Entrou, definitivamente, no mapa da produção intelectual mundial.

Além disso, João completava 50 naquele 1981. Era hora de celebrar a própria trajetória, bem como a do estado e do país que lhe fizeram artista. Isso ajuda a explicar porque João, sem pudores, chamou para gravar consigo os conterrâneos baianos e súditos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia um disco corajosamente chamado "Brasil". A "estação primeira do Brasil", aquela que o destino quis que recebesse o navio descobridor impregnado de Velho Mundo, juntava seus mais célebres porta-vozes para cantar-lhe, o Brasil, nos seus versos. 

O autor de “Bim Bom”, em sua inteligência e sensibilidade supremas, sabia muito bem o que queria com esse projeto, que completa 40 anos de lançamento em 2021. Tanto que é ele mesmo quem assume pela primeira vez na carreira de então mais de 30 anos e onze discos gravados a própria produção do álbum. E o faz com total domínio, nada tão complicado para alguém dotado de ouvido absoluto e atento aos dedos hábeis de craques das mesas de som com quem trabalhou, como Tommy LiPumma, Aloysio de Oliveira e Creed Taylor. O repertório, escolhido a dedo, igualmente, saiu de sua cabeça, que desde os anos 50 propusera uma releitura constante e modernizante (mas também arraigada nos matizes de um Brasil complexo e multicultural) da música através das notas dissonantes. Era samba-de-roda, era batuque de morro, era bloco de escola. Mas era também o choro, a modinha, a seresta, a valsa e uma pitada da jazz norte-americano para os gringos ficarem boquiabertos com tamanha musicalidade vinda dos trópicos.

Os manos Caê e Bethânia admiram o mestre João
ao vivo exibindo sua arte: momento único
Celebrações se inauguram ao som de hinos. Não poderia ser diferente, então, que o disco começasse com aquele que é considerado o segundo símbolo musical nacional, talvez mais conhecido que o próprio hino pátrio: “Aquarela do Brasil”. O clássico de Ary Barroso – então já imortalizado em gravações como as de Francisco Alves com a orquestra de Radamés Gnatali, em 1939, ou a de Elis Regina, de 30 anos depois – ganha uma versão revestida de personalidade e elegância e que vai ditar o conceito de toda a obra. Os primeiros acordes são emitidos da espinha dorsal: o violão, instrumento que João integrou à voz na sua revolução bossa-novista ao invés de dissociar um elemento do outro como até então havia sido em música popular. Porém, desta vez ele tem correligionários para acompanhá-lo em sua magia, pois é um uníssono emocionante o que se ouve. Os famosos versos ufanistas "Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou cantar-te nos meus versos" saem das vozes de João, Gil e Caetano juntas. Quanta história e simbologia unidas! Assim, impactante, como a delicada força das águas do mar, eles intercalam-se, cada um repetindo uma vez a letra sozinho para, num final triunfante, tornarem a unir os vocais, agora acompanhados da empolgante percussão comandada por Paulinho da Costa e os teclados e sintetizadores arranjados por Johnny Mandell. A sensação ao final da faixa é que podia até ficar somente nisso, de tão completo que é. Mas tem mais.

A fórmula é repetida com igual brilhantismo em “Bahia com H”, samba dos anos 40 escolhido por motivos óbvios, e, ainda mais bairrista. “Milagre”, a versão da fantasia praieira de Caymmi, artista largamente reverenciado por todos eles, é muito mais que uma faixa, mas um acontecimento único na história da música brasileira. O trato do violão e da voz de João à rica melodia e a perfeita harmonia da canção, estarrece. Gil, cujas guias de Logunedé, Jimi Hendrix e Luiz Gonzaga carrega sempre consigo no pescoço, elabora o canto com seu gingado gracioso. Já a voz de cristal de Caetano parece acariciar as notas, joão-gilbertiando o que há de bom.

A união de vozes do trio volta para interpretar uma deliciosa versão de Haroldo Barbosa para o standart “All of Me” num jazz rebatizado nas águas de Senhor do Bonfim. Arranjo, produção, timbrística, tudo impecável. E quando João percebeu ser necessário uma voz feminina? Chamou outra baiana, claro. Mas nada de recrutar alguma falsa delas, mas sim Bethânia, que faz dueto com ele e com os parceiros de Doces Bárbaros no brejeiro samba “No Tabuleiro da Baiana”, outra de Ary Barroso. Uma única participação da poderosa voz da Abelha-Rainha, mas marcante e significativa. Aliás, como em todo o disco – e a bossa nova em si –, mínimo é mais.

A faixa de encerramento, "Cordeiro de Nanã", é um comovente mas breve canto, quase uma vinheta, para a orixá da sabedoria, a que domina os trânsitos entre a vida e a morte. Impressionante como uma canção pode ser tão singela e penetrante: pouco menos de 1 minuto e meio de uma das coisas mais bonitas da música brasileira. E com ela se encerra este sucinto mas acachapante disco: com sons que parecem misturar-se com o ar, que parecem soprados pela natureza, que parecem emergidos das águas profundas da mais velha das Yabás. Sabedoria é o que define.

Ouvir “Brasil”, indepentemente da época, faz com que, pelo menos durante sua pouco menos de meia hora, acredite-se que este é o Brasil que deu certo, seja para dentro de seus domínios como para fora dele. Os germânicos legaram ao mundo a sintaxe da música clássica, os norte-americanos forjaram o arrojado jazz, mas não é nenhum exagero dizer que o mais sofisticado dos gêneros musicais modernos tem pele mestiça e se chama bossa nova. Internamente, faz-se ainda mais provável essa tese. Há Villa-Lobos, o chorinho e a tentativa legítima do movimento Armorial de cunhar um estilo genuinamente brasileiro. Mas ninguém realizou esse sonho como João e seu violão. Seu Brasil foi a Bahia, de onde ele veio e invariavelmente voltava para lá. A Santa Bahia Imortal a qual ele ficava contente da vida em saber que era Brasil. Um Brazyl, aliás, que conheceu o Brasil. Um Brasil que foi, sim, ao Brazil. Aquele mais cosmopolita e contemporâneo, mas basicamente folclórico, popular e profundo, como as águas protegidas por Nanã Buruquê. Caetano tem razão: definitivamente, depois dos acordes dissonantes emanados do peito dos desafinados, a nossa vida nunca mais foi igual. 

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documentário "Brasil", de Rogério Sganzerla (1981)

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FAIXAS:
1. "Aquarela do Brasil (Brasil)" (Ary Barroso) - 6:34
2. "Disse Alguém (All of Me)" (Gerald Marks, Seymour Simons – versão: Haroldo Barbosa) - 5:18
3. "Bahia com H" (Denis Brean) - 5:13
4. "No Tabuleiro da Baiana" (Ary Barroso) - 4:50
5. "Milagre" (Dorival Caymmi) - 4:57
6. "Cordeiro de Nanã" (Dadinho, Mateus) - 1:20

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Daniel Rodrigues