O conhecimento que adquiri sobre cultura é, hoje, para um adulto de 42 anos, bem mais assimilável diante dos olhos alheios do que quando eu era jovem. Naquela época, meu gosto e entendimento por cinema e música causavam espanto, visto que não correspondiam com o de muito adulto, quanto menos ao de outros jovens da minha idade. Como um guri de 13 anos, negro e de classe média é capaz de gostar (e entender!) daquilo que somente a classe média alta (e branca) detém? Enfim, não se escapa ileso disso no Brasil. Considerando a devida bagagem adquirida de lá para cá, posso dizer que, na juventude, já me mostrava interessado e conhecedor de muita coisa – principalmente, em comparação a pessoas então da minha idade, muito mais preocupados em ter grana para gastar na balada do fim de semana. Eu, um ET entre meus pares, queria saber mesmo era de filmes e de música. Meus gastos se voltavam a locadoras, discos e a conhecer coisas.
Caso de Caetano Veloso, a quem havia descoberto fazia alguns anos mas que, naquele 1992, completando 50 anos de vida, se revelava fortemente a mim através do seu então novo disco, “Circuladô”. Pela MTV, via seguidamente o ótimo clipe da música de trabalho “Fora da Ordem”. Mas, principalmente, minha curiosidade se despertava por causa da antenada Rádio Ipanema. Pela rádio, minha escola musical-cultural, ouvia não apenas esta música, mas também outras joias daquele disco, como a pedrada crítico-social “O Cu do Mundo”. Fui atrás do disco, óbvio. Adquiri-o em K7, trabalho que se tornou, até hoje, um dos meus preferidos de Caetano e sobre o qual já falei aqui no blog. Assim. quando o baiano anunciou que vinha a Porto Alegre para a turnê do álbum, não pestanejei. Sem ninguém tão empolgado quanto eu para ir ao show, fui sozinho.
Seria o primeiro sem a companhia de ninguém, nem pais, nem irmão, nem amigo. Só eu. Era comum ir às sessões especiais de cinema sozinho, mas a um show, que acabaria tarde da noite, nunca. E longe de onde era minha casa, na zona Sudeste de Porto Alegre. De ônibus, por cerca de 1 hora, me desloquei até o alto do Bom Fim/Independência em direção ao antigo e hoje desativado Teatro da Ospa, onde ocorreria o show. Com a devida preocupação de minha mãe, fui. Lembro que tinha fila Av. Independência afora, passando pela frente da casa da Cruz Vermelha, uma novidade para mim, que não frequentava aquelas imediações. Já ali, minha figura impressionava aqueles que assistiriam junto comigo dali a algumas horas o memorável show de Caetano. Lembro-me claramente que um senhor de meia-idade, de óculos e provavelmente fã do músico desde quando era adolescente, perguntou a mim com admiração que idade eu tinha.
Caetano e a grande banda comandada por Jaques Morelenbaum
Já lá dentro, na plateia superior esquerda, num bom lugar para quem não tinha dinheiro suficiente para pagar o valor para se assistir lá de baixo, posso dizer que foi naquela feita que me deparei pela primeira vez com a maestria do pessoal dessa geração (ele, Chico, Paul, Milton, Stevie, Bethânia, Stones, Gil, etc.). Não apenas a qualidade musical, mas a maestria de saber montar set-lists. Cruzes! “Circuladô”, o disco, já trazia músicas que garantem uma apresentação de alto nível se entremeadas com sucessos antigos e outras canções mais populares, o que normalmente se faz repertórios de shows. Mas essa “turma” sabe ir além disso. Caetano e sua ótima banda (Luiz Brasil, guitarra, violão e Synthaxe; Marcos Amma e Welington Soares, percussões; Dadi, baixo; Marcelo Costa, bateria; e Jaques Morelenbaum, cello, além da produção do show) articulam um show cujo encadeamento das músicas é tão bem construído que virou, não à toa, referência na obra do próprio Caetano.
Equilibrando hits, clássicos, versões, textos, letra de idiomas diferentes e releituras suas e de outros compositores, além das faixas do disco que motivava a turnê, o show é uma sequência de tirar o fôlego de qualquer fã ou aspirante a isso, como eu o era ali. Momentos mais enérgicos, outros, mais cândidos; outros, ainda, mais populares ou mais conceituais. Mas sem jamais perder o ritmo narrativo. Aliás, como não se embasbacar com uma sequência inicial como esta?: Abre-se com a clássica “A Tua Presença” num novo e magnífico arranjo; engata uma versão bossa-nova “banquinho-violão” de “Black or White”, de Michael Jackson, expediente que o próprio Caetano já inovara poucos anos antes ao fazer o mesmo com “Billie Jean”, também autoria do Rei do Pop, mas que, ali no show, pegava todo mundo de surpresa; e uma virada sem pausa para um rock minimalista com o texto inédito “Os Americanos”, este, não cantado, mas lido por seu autor, que, além da qualidade inequívoca de compositor, é também um escritor de mão cheia.
Não lembro bem onde entrava no show “Fora da Ordem”, mas com certeza era na primeira metade em se tratando de música de trabalho do disco novo. O fato é que, logo em seguida, emenda-se outra sequência incrível e inesperada: a linda “Um Índio” – em uma versão melhor que a original dos Doces Bárbaros –, a novelística "Queixa" e uma assombrosa "Mano a Mano", clássico tango de Carlos Gardel com Morelenbaum ao cello e Caetano apavorando no vocal. Mas não terminava aí: só na voz e violão, vêm uma trinca com a assertividade dissonante de "Chega de Saudade"; uma surpreendente versão de "Disseram que eu Voltei Americanizada", do repertório de Carmen Miranda; e “Quando eu Penso na Bahia", em que Caetano torna Ary Barroso muito caymmiano.
A bela arte da capa do disco ao vivo, que fazia cenário para o show visto na Ospa
Intercalando um que outro dos ótimos temas de “Circuladô” – como “A Terceira Margem do Rio" (das raras dele e de Milton Nascimento), “Itapuã” e a já citada “O Cu do Mundo” –, Caetano traria ainda outras pérolas consagradas (“Você é Linda”, “Os Mais Doces Bárbaros", “Sampa”) e mais surpresas. Uma delas, é a versão para "Oceano", então recente sucesso de Djavan que emocionou a galera. Outra: uma estupenda versão para “Jokerman”, de Bob Dylan, ponto alto do show e que lhe confere o começo de uma segunda e derradeira parte. Mas não terminava ali (Caramba!). Tinha mais coelhos naquela cartola, pois o espetáculo trazia também duas revelações. Primeiro, a de que a querida “O Leãozinho” havia sido escrita, nos anos 70, justamente para um dos integrantes daquela banda, Dadi, o que resultou numa execução desta somente com o seu contrabaixo acompanhando a voz de Caetano. A outra revelação também é relativa aos anos 70, mas consideravelmente mais melancólica visto que resultante dos reflexos da Ditadura Militar. Antecipando o que traria em seu livro-ensaio “Verdade Tropical”, de 1997, Caetano conta para a plateia, antes de cantar “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”, que Roberto e Erasmo Carlos a escreverem em sua homenagem, e que conheceu a canção recém-composta numa visita de Roberto a ele e Gil no exílio, em Londres, ocasião aquela em que se emocionou muito.
Para mim, que conhecia de cabo a rabo “Circuladô”, ficou claro por que, de todas, tanto“Ela Ela”, arranjada e tocada em estúdio com Arto Lindsay, como “Lindeza”, com Ryuichi Sakamoto aos teclados, igualmente sui generis, cada qual com suas particulares performances irreproduzíveis à altura sem esses músicos específicos, não se executaram. Além de compreensíveis ausências, ambas nem de longe fizeram falta ao show, que, antes de tudo, foi um show de repertório. Tão marcante foi tal apresentação, que se tornou o primeiro de uma série de discos ao vivo de Caetano, o CD duplo “Circuladô Vivo”, algo que passou a acontecer com regularidade a partir de então após cada disco de estúdio lançado. A qualidade técnica da gravação, que se tornava disponível à época no Brasil pós-Collor, certamente colaborou para isso. Porém, antes de qualquer coisa, o tratamento dado pela também iniciante parceria entre Caetano com Jaques Morelenbaum é crucial para o sucesso do álbum ao vivo, um dos mais celebrados da carreira de Caetano. Se no estúdio os Ambitious Lovers Arto e Peter Scherer vinham numa ótima tabelinha com o baiano desde “O Estrangeiro”, de 1989, o que se adensaria em “Circuladô”, no palco, era a mão versátil do maestro líder da Banda Nova de Tom Jobim que ditava a musicalidade. Por influência dele, "Terra" (que ficou de fora do CD, assim como outra clássica, "Baby"), talvez a melhor melodia de Caetano, ganhou no show a talvez sua melhor versão das várias que o autor já registrara ao longo da carreira.
Não tenho idade para ter ido a shows célebres de Caetano em Porto Alegre, como o da turnê do disco “Cinema Transcendental”, em 1979, ou o de 1972, no Araújo Vianna, de onde, após encantar a plateia, partiu com figurino e tudo rumo ao histórico e único encontro que teve com Lupicínio Rodrigues, no Se Acaso Você Chegasse, na Cidade Baixa. Mas a ver pela repercussão que este show de 1992 teve, tanto com o lançamento e sucesso do CD ao vivo como também de um especial para a TV Manchete e um documentário dirigidos por Walter Salles Jr. e José Henrique Fonseca – à época, em VHS –, era impossível Caetano não conquistar de vez aquele pré-adolescente da periferia porto-alegrense, que, encantado com o que vira, nem se abalou por andar sozinho tarde da noite de volta para casa. Aliás, ele nem lembra como e quando chegou em casa. Mas que chegou, chegou – para alívio de sua mãe. Se não, ele não estaria aqui agora, redigindo este texto recordado da grande noite em que viu Caetano Veloso pela primeira vez ao vivo.
Meu
amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”.
Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse
artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me
ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que
apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPM, Legião Urbana, Titãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam.
Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em
1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um
dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me
dava condições de perceber com clareza as ricas construções
melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional
de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o
mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua
obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas
versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e
“Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era,
evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais
atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular
que se apresentava à minha frente.
E
teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O
Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a
grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o
eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me
fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de
1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal
bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste
filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a
produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no
videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o
antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do
álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração
Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe),
onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz
e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de
leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões
e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente
verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão
discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem
Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu
não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de
diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava
Caetano.
“Fora
da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente
rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit
dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da
frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora
da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o
português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando
vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto.
Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse
de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A
do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje.
Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os
dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa
que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia
do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por
Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão,
Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas
essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao
repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz
a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos
populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental.
Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente
os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O
povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da
maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o
eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa
literatura.
O
próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo
destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento
'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente
admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube
restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é,
todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores
nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral
dos trovadores medievais”.
Minhas
emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais
velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional
que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas
arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o
cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível
não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol
me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”,
ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu
cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais
depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e
espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem”
e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os
versos.
Igualmente,
toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região
de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista
celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom,
ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas,
boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”),
cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos
e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná
Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas);
e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de
cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros
músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de
interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.
Dando
uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela”
carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com
Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça
avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com
sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação,
cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu
piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões
exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas
magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo
vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da
guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de
puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao
dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes
externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da
vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica”
“Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”,
de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme
“São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo
estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak,
nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia”
(1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do
memorável disco "Transa", de 1972.
Se
“Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa
Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem.
Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da
tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente
atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre
vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo
que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe
recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a
tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que
cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final,
depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de
trompete bem jazzístico.
Viro
de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a
versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”,
em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça
extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível
técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida,
“Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante
arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o
ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e,
principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o
compositor japonês mais brasileiro da world music. São os
efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção,
que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.
Tanto
quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a
professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e
com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive
minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O
significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito
parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra.
Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas”
e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim
Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no
caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa”
– ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para
o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz:
“Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/
Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades
e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e
centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado
exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um
fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter
e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou
um sinal” por ser uma “preta correta democrata social,
racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno
(mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes
como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um
erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.
O
clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e
contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima
do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras
parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de
Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa,
carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante
melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são
de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as
árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu,
ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das
águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu
tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas
em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).
Não
deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com
direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das
mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada)
Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas
na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido
sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu
do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma
aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de
libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que
descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida
que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas:
primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal
precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos
depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os
microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch
Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de
corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o
pernambucano mais norte-americano da world music.
Canção
irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria
gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e
suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão
o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para
finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos
por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano
desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de
aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e
em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas
parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô”
é tão representativo que passou a servir como referência para
outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de
repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa
resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como
os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a
musicalização de autores da literatura como tema principal do
projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco)
ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de
“Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii
et Zie”).
Quanto
a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior.
Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no
antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida.
Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade
estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto
Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se
interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver
um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração
do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto,
mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei
pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor
por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.
vídeo de"Fora da Ordem",Caetano Veloso
***************
FAIXAS:
1.
Fora da ordem
2.
Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3.
Itapuã
4.
Boas vindas
5. Ela
ela (Veloso/Arto Lindsay)
6.
Santa Clara, padroeira da televisão
7.
Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8.
Neide Candolina
9. A
terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O
cu do mundo
11,
Lindeza
todas
as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.
Caetano abrindo o show em Porto Alegre (foto: Leocádia Costa)
Um
show de Caetano Veloso, para mim, é mais do que um show: é a
confirmação de todo um paradigma de percepções e ideologias.
Vê-lo no palco é deparar-me com uma série de conceitos e formas
muito pessoais de enxergar a vida, que se confirmam e dialogam com
sua obra grandiosa e impactante. Há exatos 22 anos, com 13 de idade,
já havia tido essa experiência numa apresentação da turnê do
disco “Circuladô”, um dos melhores da carreira de Caetano. À
época, em parceria com Arto Lindsay e Peter Scherer (os Ambitious Lovers), Caê tinha em sua banda Jacques
Morelenbaum, Luiz Brasil, Dadi, Marcelo Costa, Marcos Amma e
Wellington Soares, que davam ao espetáculo, numa sonoridade
cheia e moderna, uma roupagem proto-world music – ao estilo da
forjada por Ruyichi Sakamoto e pelos próprios Ambitious Lovers nos
anos 80.
Pois,
desta vez, nada de sonoridade “rebuscada”, de banda numerosa, de
complexidade timbrística, de pop étnico-modernista. No palco, para
o show do CD "Abraçaço", apenas ele ao violão e a
competentíssima banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarras),
Marcelo Callado (baixo e teclados/efeitos eletrônicos) e Ricardo
Dias Gomes (bateria e percussão). Uma formação simples e com a
secura e objetividade do rock, o suficiente para um show espetacular.
E mais do que isso: tão conectado com a contemporaneidade como
sempre esteve este baiano, um artista fundamental para a formação
de tudo o que há de mais inovador e sintonizado há 50 anos. A maior
prova disso já estava na abertura, com o petardo “A Bossa Nova é
Foda”. Não me venham com o tributo retrô do Daft Punk ao Chic em
“Get Lucky” ou muito menos “Reflektor”, da saudada “nenhuma
novidade” Arcade Fire. A brasileira “A Bossa Nova...” é de
longe a melhor música de 2013. (coisa que muito tupiniquim
vira-latas, que nem no futebol mais vence, jamais se sentiria
merecedor.)
Embora
o público do teatro fosse bem heterogêneo em idade, a abertura rock
‘n’ roll os pegou, se não desavisados, ainda um tanto frios e
aguardando, em sua maioria, os clássicos. Que não tardaram em
aparecer. Num deslocamento temporal de 48 anos, Caetano vai de uma
canção do último trabalho para retrazer uma de seu debut, a
obra-prima “Coração Vagabundo” (de “Domingo”, gravado em
parceria com Gal Costa, em 1966). Além da ligação temática entre
ambas, visto que trazem a bossa nova de João/Tom/Vinícius em seu
cerne (na rock, em palavra; na samba, em forma), estava evidente ali
a versatilidade da banda. Dentro da concepção harmônica proposta
por Caetano, o trio executa com perfeição tanto uma quanto a outra,
visto que “Coração Vagabundo” não ficara agressiva nem perdera
a expressividade melancólica original.
O show
é uma aula de escolha de repertório, composto por obras novas e
antigas e outras bem pescadas. Aliás, comento frequentemente que
artistas como ele, donos de obras extensas, profícuas e
multirreferenciadas como um Gilberto Gil, Chico Buarque, Paul McCartney ou Stevie Wonder, têm o privilégio de poderem exercitar
infinitas variações de set list, valendo-se tanto de músicas
de sua autoria de diversas épocas como também composições de
outros que dialoguem com aquele projeto. Foi assim que Caetano seguiu
o show, intercalando faixas do ótimo "Abraçaço" (sobre o qual
já escrevi aqui no blog), como a excelente faixa-título, o
empolgante samba-reggae “Parabéns” e a “graciliana” “O
Império da Lei”, com aquelas preferidas da galera. Foi o caso da
breve mas emocionante execução de “Alguém Cantando”,
originalmente na voz de seu filho, Moreno Veloso, no álbum “Bicho”,
de 1977, e que só a tinha escutado com Caetano numa cena do filme “O
Mandarim”, do Júlio Bressane, quando o autor a canta à
capella.
Exemplo
perfeito desse encadeamento bem pensado entre os números foi a
trinca iniciada com a épica “Um Comunista”, do novo disco, que
ganha ao vivo ainda mais dramaticidade ao contar, em forma de
“biografia emotiva”, a trajetória do revolucionário baiano
Carlos Marighella pelo olhar de Caetano, conterrâneo e admirador. O
tema e a carga emocional desta desembocam na ainda mais grandiosa
“Triste Bahia”, clássica adaptação do poema de Gregório de
Matos feita por Caetano para seu célebre álbum "Transa", de
1972. O público, claro, delira com essa, tocada com muita
competência pela banda, que consegue repetir/adaptar todas as
variações rítmicas e harmônicas que a complexa melodia suscita.
Pra finalizar o conjunto de três temas, outra nova: “Estou
triste”, a deprimida canção que transportou a tristeza da Bahia
para o Rio de Janeiro (“O lugar mais frio do Rio é o meu
quarto”).
A
festa seguiu para todos os gostos. Num palco onde só se viam
cavaletes com quadros de construtivistas-minimalistas, a bela
iluminação ressaltava o que interessava: a música. A
expressividade do gestual longilíneo de Caetano se adensa no seu
canto absolutamente afinado e bem pronunciado. Vieram, assim, na
sequência, também “Odeio” e “Homem”, ambas de pegada bem
rock e do início da parceria com a banda Cê; a romântica “Quando
o galo cantou”, cuja execução ao vivo pareceu trazer-lhe com mais
vivacidade a beleza da poesia; e a “matadora” “Funk Melódico”,
das melhores e mais conceituais de "Abraçaço", em que Pedro Sá
dá um show na guitarra. Sá, aliás, é, como em todo bom show de
rock, quem sustenta a banda. Isso fica evidente na feliz recuperação
de “De Noite na Cama”, tal qual a versão original que Caetano
compusera para Erasmo Carlos em 1971. Isso se nota ainda mais na
regravação de outra clássica: “Eclipse Oculto”, um pop a la
Blitz, de 1984, que, agora, ganha peso e distorção, dando quase
para “pogueá-la”.
Caê e banda mandando
um Abraçaço para a galera
(foto: Tita Strapazzon)
As
fantásticas “Reconvexo” (imortalizada na voz da irmã Maria Bethânia), com sua poesia forte e altamente pessoal, e a picante
“Você não entende nada” aplacaram de vez o coração de fãs
como eu. Esta última, de tão querida que é na versão do disco
“Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo”, chegou a ser cantada pela
plateia no momento do refrão com os versos de “Cotidiano”, de
Chico, que se intermeia com a de Caetano naquela apresentação de
1972. No palco, Caetano cantava: “Eu quero que você venha
comigo”, e o público replicava: “Todo dia, todo dia”.
Demais.
No
bis, um erro e um acerto. Acerto por que ele abriu com nada mais,
nada menos que “Nine Out of Ten”, outra clássica do "Transa".
O erro? Pegar uma música em inglês, que não são todos que
acompanham, justo para essa volta ao palco, o que esfriou um
pouquinho a animação da saída em alto estilo com “Eu quero...”.
Mas nada demais para um repertório tão lindo e tão significativo,
biográfico em muitos dos casos, pois a música de Caetano conta a
história de muitos momentos da vida de várias gerações. É por se
identificar com isso que digo ser seu show mais do que uma mera
apresentação. Ouvir Caetano, e assim tão proximamente, é um
encontro comigo mesmo através do milagre dos sons. Foi assim em
1992, e agora novamente em 2014. Ali naquele palco, naquela
objetividade e clareza rocker que permeia a proposta desse
show, estavam muito mais do que somente ele e a banda. Estavam vivos
a Rádio Nacional, a herança ibérica, a influência árabe no
Ocidente, o sincretismo, o jazz, a filosofia, a contracultura, o
barroco, o morro. A bossa nova. Tudo numa total harmonia e simbiose –
algo que reflete minha forma de enxergar o mundo.
Depois
de tudo isso, bastava acabar com um número gostoso e pegajoso nos
ouvidos. Foi o que fez Caê ao finalizar o show com “Luz de Tieta”
(e nem aí ele diz SOMENTE isso, pois que tal música recupera Jorge
Amado e o “lirismo documental” de sua geração: Caymmi, Verger,
Caribé...). Show daqueles que se sai com a sensação de terem
valido cada centavo, com Caetano mostrando porque, aos 72 anos,
consegue ser um dos artistas mais inquietos da música mundial. Mesmo
que muito tupiniquim nem ouse admitir isso.
“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.”
Caetano Veloso
Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem.
Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo.
“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil.
A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito.
Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso
Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious LoversPeter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).
Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”.
Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.
Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”.
Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova.
Caetano acompanhado de Brown e Moreno na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).
Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.
Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou.
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FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas
Esse assunto é tão importante aqui no blog que até mesmo temos uma seção dedicada exclusivamente a grandes representantes neste campo, os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Assim, nesta série especial dos 5 anos do clyblog, não podíamos deixar de perguntar para nossos convidados quais os 5 grandes discos que fazem suas cabeças. Os indispensáveis, os clássicos, os xodózinhos, os indiscutíveis, os do coração, os que você levaria para uma ilha deserta, enfim, aqueles discos que para estas 5 pessoas são os top 5.
Então, sem mais, com vocês, clyblog5+discos.
1Carlos "Cigana do Rock" músico (Balneário Camboriú /SC)
"Cara, são muitos.
Trampo difícil!!!"
1. "Revolver" - The Beatles (1966)
2. "Aftermath" - The Rolling Stones (1966)
3. "Original de Fábrica" - Cartolas (2007)
4. "The Kids are Alright" soundtrack - The Who (1979)
5. "Wolfmother" - Wolfmother (2005)
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2Eduardo Lattes
publicitário
(Porto Alegre /RS)
"Pensei numa lista boa sem repetir artistas. Que tal?"
Elvis é um dos ídolos de Eduardo Lattes
1. "White Album" - The Beatles (1968)
2. "Pet Sounds" - The Beach Boys (1966)
3. "From Elvis in Memphis" - Elvis Presley (1969)
4. "Houses of the Holy" - Led Zeppelin (1973)
5. "Are You Experienced" - The Jimmi Hendrix Experience (1967)
"Exile on Main Street" tem toda uma mitologia por trás de sua gravação e este é o verdadeiro caso em que esta mitologia está a serviço de um disco impecável; Jeff Beck, numa era de jazz-rock e fusion, gravou O disco do gênero. Genial!!; em "The Mad Hatter", Corea mistura Lewis Carroll com metais e cordas; Belchior se superou com "Alucinação", falando das agruras de ser artista em plena ditadura militar; e o "Abbey Road" é uma enciclopédia da pop music. Tudo o que veio depois já estava ali. "
O favorito de
Paulo Moreira
1. "Exile on Main Street" - The Rolling Stones (1972)