Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Capital Inicial. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Capital Inicial. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Os Paralamas do Sucesso - "D" (1987)



“’D’ é um instantâneo de uma banda lidando com uma recém-conquistada consagração em plena forma. O disco não encerra um ciclo artístico, pelo contrário, coloca possibilidades sobre a mesa, exala total frescor e antecipa as direções que o grupo seguiria, profundamente transformado por este aceno ao Brasil. Jamais eles seriam os mesmos.” Carlos Eduardo Lima, jornalista e historiador

Desde muito cedo tive uma ligação especial com Os Paralamas do Sucesso. Quando comecei a gostar de música, nos anos 80, ali pelos 7, 8 anos, era o Paralamas, entre os grupos surgidos no rock brazuca da época, que mais me faziam a cabeça. Gostava, claro, da Legião Urbana, dos Titãs, do RPM, do Capital Inicial e de outras. Mas o power trio formado por Herbert Vianna (guitarra e vocais), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria) me transmitia algo a mais. Talvez já antevisse o meu gosto – que mais crescido passaria a tomar lugar igualmente especial em meu imaginário musical – pelos ritmos latinos e brasileiros, aos quais cedo souberam mesclar a seu rock potente e melódico. Tanto é fato essa ligação forte com a banda que o meu primeiro disco que ganhei, no Natal de 1986, foi um cassete de “Selvagem?”, daquele ano, disco no qual o Paralamas consolidava o discurso social e seu estilo de rock tomado de reggae e ska jamaicanos, mas também conectado com os ritmos Brasil e a América Latina.

Sucesso nas rádios, uma apresentação histórica no primeiro Rock in Rio e três discos lançados deram ao grupo a maturidade suficiente para os levar ao Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Acompanhada do hoje “quarto Paralama”, o não à toa chamado João Fera, que estreava com eles nos teclados, a banda desembarcava no festival mais democrático e amplo do jazz mundial, repetindo o feito de outros brasileiros que marcaram época por lá, como Elis Regina, Gilberto Gil e João Gilberto. Se no passado estes foram os responsáveis por difundir a MPB na Europa, agora era a vez da mais completa banda do rock brasileiro dos anos 80 mostrar o que esta geração tinha de melhor. O resultado disso é o brilhante disco “D”, registro ao vivo que está completando 30 anos.

Com os quatro tocando tudo e mais um pouco sobre o palco, “D” tem repertório muito bem escolhido, valorizando, obviamente, a safra do último trabalho em estúdio, mas também incluindo hits, material novo e até surpresas. De “Selvagem?”, há as versões irrepreensíveis da filosófica “O Homem” (“O homem traz em si a santidade e o pecado/ Lutando no seu íntimo/ Sem que nenhum dos dois prevaleça...”) e do reggae-punk “Selvagem”, tão político e cru que poderia muito bem ser uma canção dos Titãs – tanto tem semelhança, que Herbert canta incidentalmente durante a execução "Polícia", clássico deles.

Ainda referentes à turnê do recente álbum, outras duas: "A Novidade", que reproduz o reggae suingado da original, imbatível diante das outras duas versões ao vivo que a música ganhou anos depois: uma, com o coautor, Gil, em 1994, num reggae arrastado, e a meio ragga, que os Paralamas gravariam em “Vâmo Batè Lata”, de 1995. Além disso, o primor da letra de Gil - com quem a parceria já denotava a intencionalidade de maior diversidade sonora da banda - merece sempre destaque: lírica, reflexiva, surrealista: “A novidade era o máximo/ Do paradoxo estendido na areia/ Alguns a desejar seus beijos de deusa/ Outros a desejar seu rabo pra ceia”. A segunda é a salsa pop "Alagados", um dos hits da época que, na esteira da MPB de protesto dos anos 70, denunciava as condições indignas de vida dos miseráveis, seja da vila dos Alagados, em Salvador, das favelas cariocas ("a cidade que tem braços abertos num cartão-postal") ou de Trenchtown, na Jamaica, tão próxima do Brasil em cultura e miséria. Não por acaso, neste número, Herbert cita versos de "De Frente Pro Crime", um dos sambas-denúncia de João Bosco e Aldir Blanc escritos nos anos 70.

“D”, porém, guarda também surpresas. Uma delas é a que abre o disco: o arrasador reggae "Será Que Vai Chover?” em sua primeira execução pública e cuja inspiração em Jorge Benjor é inequívoca, seja em “Chove Chuva” ou “Que Maravilha”. A presença espiritual do Babulina se confirma mais adiante durante o show, quando o trio manda uma interpretação histórica de "Charles, Anjo 45", comprovando o que a banda já sabia muito bem fazer desde seu primeiro disco: versar outros artistas.

Não faltaram, igualmente, os sucessos, como uma matadora "Ska" (com a participação do “abóbora selvagem” e amigo George Israel no sax), "Óculos" e "Meu Erro", esta última, que fecha este memorável show d'Os Paralamas do Sucesso em solo suíço. A banda lançaria ainda mais sete álbuns ao vivo ao logo da carreira. Porém, mesmo três décadas decorridas, nenhum se equipara à qualidade, pegada e espírito de “D”. Com os rapazes no auge, esta apresentação simbolizou o merecido reconhecimento à geração do rock brasileiro dos anos 80 no mundo. Em uma época de alta efervescência no universo do pop-rock, com gente do calibre de U2, The Cure, Sting, Madonna, Duran Duran, Bon Jovi, Prince, entre outros, em plena forma, o BRock mostrava que também merecia atenção pela originalidade inimitável da música feita no Brasil.

Os Paralamas do Sucesso - "Ska" 
(ao vivo em Montreux, 1987)



*******************


FAIXAS:
1. "Será Que Vai Chover?" (Herbert Vianna)
2. "Alagados" (Música incidental "De Frente Pro Crime" - João Bosco, Aldir Blanc) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
3. "Ska" (Herbert Vianna)
4. "Óculos" (Herbert Vianna)
5. "O Homem" (Bi Ribeiro, Herbert Vianna)
6. "Selvagem" (Música incidental: "Polícia" - Toni Bellotto) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
7. "Charles, Anjo 45" (Jorge Ben)
8. "A Novidade" (Bi Ribeiro, João Barone, Gilberto Gil, Herbert Vianna)
9. "Meu Erro" (Herbert Vianna)


**********************
OUÇA O DISCO


Daniel Rodrigues

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Legião Urbana - “Que País é Este?” (1987)

 

“E depois do começo o que vier vai começar ser o fim...”

Nos últimos dias do mês de novembro, fez 35 anos do lançamento do terceiro disco da banda brasiliense Legião Urbana, “Que País é Este?”. Eu já morava em Aracaju, vindo de Brasília, quando o disco chegou às lojas e as canções começaram a tocar nas rádios. Particularmente, gosto das nove faixas: “Que País é Este?”, “Conexão Amazônica”, “Tédio (com T bem grande pra você)”, “Depois do Começo”, “Química”, “Eu Sei”, “Faroeste Caboclo”, “Angra Dos Reis” e “Mais do Mesmo”. 

“Das favelas, do senado, sujeira para todo lado...”

Este LP foi composto por canções escritas entre os anos de 1978 e mil 1987, da época que o Renato Russo e os irmãos Fê e Flávio Lemos (Capital Inicial) formavam a banda Aborto Elétrico. Excetuando-se “Mais do Mesmo” e “Angra dos Reis”, que foram compostas após o disco “Dois”, da Legião Urbana, de 1986. 

“... A noite acabou talvez tenhamos que fugir sem você...”

Aqui abro parêntese para uma curiosidade pessoal: de 1978 até 1987, foi justamente o tempo em que morei em Brasília, vindo de Fortaleza com quatro para cinco anos e depois indo para Sergipe com 13 para 14 anos. O mais frustrante disso, é que mesmo morando na cidade na época em que a banda surgiu, e sendo muito fã, eu nunca consegui assistir ao show ao vivo deles. Lembro de um que teve, antes daquele de junho de 1988, que nunca acabou, acho que foi em 1986, pouco depois do lançamento do “Dois”, que minha mãe cortou meu barato e não me deixou ir com a galera lá da quadra. E em Aracaju eles nunca vieram tocar... 

“... Andar a pé na chuva às vezes eu me amarro, não tenho gasolina, também não tenho carro...”

Neste disco, a banda retorna ao som mais furioso e punk que a impulsionou no primeiro álbum, já que o disco “Dois”, outro grande sucesso, tinha uma linha mais melodiosa. A banda também consegue captar exatamente os anseios da juventude da época. Política, problemas sociais, solidão e rebeldia dão o tom das letras de Renato Russo, sempre poéticas e melancólicas. 

“... Intrigas intelectuais rolando em mesa de bar...” 

O álbum foi um grande sucesso de vendas e foi contemplado com disco de diamante. Este LP também marcou por ser a última participação do baixo contundente de Renato Rocha na banda. 

“Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel...” 

No ano de 2010, numa enquete realizada pela revista Veja, o LP ganhou como melhor disco de rock brasileiro dos anos 80, seguido de “Cabeça Dinossauro”, do Titãs, e “Vamos Invadir sua Praia”, do Ultraje a Rigor

“Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão, você tem quer passar no vestibular..." 

Sem dúvida alguma, duas canções marcaram bastante este disco. A representativa “Que país é este?”, que virou um hino de protesto e a é épica e bobdyliana “Faroeste Caboclo”. Quem nunca cantou esta última, a plenos pulmões, ao lado dos amigos, todo exibido por saber de cor a extensa letra, não viveu completamente aquela época. 

“Ele queria sair para ver o mar e as coisas que ele via na televisão...”.

Ouça no volume máximo!

“Se fosse só sentir saudade, mas tem sempre algo mais...”.

************

FAIXAS:
1. "Que País É Este" - 2:57
2. "Conexão Amazônica" (Renato Russo/ Fê Lemos) - 4:37
3. "Tédio (Com Um T Bem Grande Pra Você)" - 2:32
4. "Depois do Começo" - 3:13
5. "Química" - 2:19
6. "Eu Sei" - 3:10
7. "Faroeste Caboclo" - 9:04
8. "Angra dos Reis" (Renato Russo/ Renato Rocha/ Marcelo Bonfá) - 5:00
9. "Mais do Mesmo" (Dado Villa-Lobos/ Renato Russo/ Renato Rocha/ Marcelo Bonfá) - 3:18
Todas as composições de autoria de Renato Russo, exceto indicadas

************

OUÇA O DISCO

por Jowilton Amaral da Costa


segunda-feira, 16 de abril de 2018

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 10 ANOS DO CLYBLOG - Nei Lisboa - "Hein?!" (1988)




Causou espanto e surpresa quando, em meados dos anos 80, Nei Lisboa se declarou fã dos Engenheiros do Hawaii! “Carecas da Jamaica”, o disco, tinha até uma parceria dele com Humberto Gessinger (ainda que Nei ressalve hoje: “Peraí! Só metade do refrão de ‘Deixa o Bicho’ é dele!”). Além disso, dividia com o Gessinger os vocais da faixa-título. E havia ainda uma versão cool de “Toda Forma de Poder”, hit do primeiro LP dos Engenheiros.

Mas não seria só isso que teriam em comum. Logo Humberto e Carlos Maltz, com a saída do baixista Marcelo Pitz da banda, convidam Augustinho Licks pra vaga. Surpreendentemente, Augusto topa. E Nei se sente bastante traído – fato agravado por alguns incidentes desagradáveis em shows dos Engenheiros para os quais fora convidado a dar uma canja. 

Nei se via sem seu maior parceiro, num momento bem importante de sua carreira, de definições.

É quando, em julho de 1988, ainda contratado da EMI, Nei começa a gravar disco novo. O LP se chamaria “Hein?!” e, acreditavam todos, finalmente o projetaria nacionalmente. Ao menos era a aposta de quem acompanhava seu repertório daquele momento e o cruzava com o cenário de entressafra da MPB e do rock. No ano anterior, Vitor Ramil e Bebeto Alves haviam lançado seus discos mais populares até então,” Tango” e “Pegadas”, respectivamente. Mas faltava ainda um cara que transcendesse esse sucesso local pra pegar o Brasil pelo rabo.

As fichas locais estavam todas nele.

Só que, num intervalo das sessões, Nei volta ao Rio Grande do Sul e resolve passear na serra gaúcha com a namorada e uns amigos. E o imponderável age: um acidente de carro, perto da cidade de Nova Petrópolis. Leila, a namorada, morre.

Nada mais fez sentido. Termina o disco, é verdade. Que é, segundo muitos, seu melhor trabalho. Mas o astral era radicalmente oposto ao que tinha sido pensado. Era pra ser um LP debochado e irônico. Saiu amargo e doído.

Até a banda era das melhores e mais enxutas que ele já reuniu, com Pedro Tagliani – da banda instrumental Raiz de Pedra - no posto que fora de Augustinho, mais a cozinha de Renato Mujeiko e Fernando Paiva. Paiva logo depois se radicaria em Viena, onde se firmaria como grande instrumentista, e Pedro iria pra Munique com seu grupo. Os três juntos dão uma dinâmica e um senso de equilíbrio que resulta num disco com um raro colorido de vazios e espaços recortados por frases instrumentais inesperadas.

Alem dos três, gravados ao vivo no estúdio, pouco mais: Glauco Sagebin tocando piano e órgão numas poucas faixas, o violão de Nei em outras. Tudo mínimo, tudo cru e tudo muito sofisticado. Bem diferente dos trabalhos anteriores. Tanto que, ao contrário deles, é absolutamente atemporal. Você ouvia em 1988 e era atual. Você ouve hoje e segue contemporâneo.

Parte dos méritos disso são do produtor Mayrton Bahia, famoso pelos discos da Legião Urbana – outros que também resistem bem ao tempo (ao contrário de Reinaldo Barriga, o preferido pelo rock gaúcho de então, cujos trabalhos soam hoje retratos de época).

Além disso, estava ali a faixa-título, uma espécie de continuação de “Verão em Calcutá”, glosando o mesmo mote em versos ainda mais cínicos com relação ao circo do showbizz. E cutucando diretamente Titãs, Raul Seixas, e, também, os Engenheiros:

"Comprei uma guitarra usada, alguma namorada me passou batom.
Durou um tempo, até foi bom.
Mas quando eu disse que era o Rei, tirou o copo da minha mão e disse:
Hey! Hein?!?! Meu amigo, não se desfaça nessa fama, todo esse mundo do rock´n´roll é ruim de cama! Eles querem diversão e bolo, eles querem tudo e mais um pouco, eles querem krig-há-bandolo e champanhe. Eles querem frases nos jornais, eles querem parecer sinceros demais. (...) Eles querem te fazer de tolo, e eu também!"

 Mas o disco não é só isso. Era também um trabalho de amor. Só que, quando aconteceu o acidente, nem todas as letras estavam terminadas. Era preciso, por exemplo, escrever a última estrofe de “Baladas”. Que saiu assim: 


"Só, muito além do jardim, viajo atrás de sombras.
Não sei a quem chamar.
Mas sei que ela diria ao acordar:
Tudo bem. Você me arrasou, meu bem, e qualquer dia desses eu como as tuas bolas. Mas agora esqueça o drama na sacola... Não puxe o cobertor! Não tape o sol que resta nessa dor! Foi bom: não durou.
Oh, mama! Não vale a pena pagar um centavo, um retalho de prazer...
Oh, mama! Eu quero morrer... bem velhinho, assim, sozinho, ali, bebendo vinho  e olhando a bunda de alguém."  

Evidentemente não houve nem alma nem ânimo pra trabalhar a divulgação. Uma terrível entrevista no programa de Jô Soares é a pá de cal nas suas relações já estremecidas com a gravadora: “No momento em que aconteceu o acidente, perdeu completamente o sentido aquele jogo que ao natural já se pode considerar medíocre: dono de gravadora, rádios FMs, essa rede que compõe o mercado, a indústria cultural. E que tu és obrigado a participar, te interessar, te preocupar e agir dentro disso se tu queres ‘tar no páreo da Música Popular Brasileira. Tudo isso, ao natural, já pode parecer medíocre. E naquele instante pra mim não valia um ovo. Eu queria era chutar o balde. E foi o que eu fiz em muitos instantes. No Jô foi um.”, disse Nei posteriormente.

A lápide foi sua recusa em gravar a versão de “Hey Jude”, dos Beatles, a tábua de salvação oferecida pela gravadora. Nei disse que até topava*, desde que ele escrevesse a sua versão da letra, em português. Bateram pé na versão dos anos 60, de Rossini Pinto. Não houve acordo.

Comprovando a tese dos caras, a canção virou um big hit na voz da segunda opção de artista pra gravá-la, Kiko Zambianchi. Durante muito tempo, o pessoal romantizou o lance. Mas atualmente Nei fala disso com crua sinceridade: “Meu público básico era todo daqui. Dez, 20 mil pessoas. Universitários, classe média. Que não aceitariam de jeito nenhum me ouvir cantar uma bosta daquelas. Ia jogar minha carreira pelo ralo. Não foi um gesto de ‘Isso é ruim, eu não quero cantar’, mas sim um gesto de ‘Isso é ruim e vai fuder com a minha carreira’. Cantar, em si, não ia me doer tanto.” 

Nei também estava certo. Assim como virou um sucesso, “Hey Jude” parou ali a carreira de Kiko, que só voltou a ser comentado 15 anos depois, tocando com o Capital Inicial.

trecho do livro inédito de Arthur de Faria

********

FAIXAS:

1. Zen - 00:30
2. No Fundo - 3:30
3. Nem Por Força - 4:12
4. A Fábula (Dos Três Poréns) - 3:50
5. Faxineira - 2:30
6. Baladas - 4:28
7. Rima Rica / Frase Feita - 4:07
9. Fim Do Dia - 3:40
9. Telhados De Paris - 5:20
10. Teletransporte Nº 4 - 3:03

********

OUÇA O DISCO:
Nei Lisboa - Hein?!




Arthur de Faria é músico, compositor e arranjador. Produziu 27 discos, escreveu 35 trilhas para cinema e teatro, integra o Duo Deno, a Surdomundo Imposible Orchestra, o espetáculo Música de Cena e Música Menor – duo com o argentino Omar Giammarco. Por 20 anos liderou o Arthur de Faria & Seu Conjunto, com quem lançou cinco de seus oito discos e tocou em meia dúzia de países. Jornalista e mestre em Literatura Brasileira, ministra cursos sobre música popular brasileira no Brasil, Argentina e Uruguay, trabalha há 20 anos em rádio, publicou dezenas de ensaios, artigos, livros e fascículos sobre música popular e dedica-se há três décadas a pesquisa sobre a história da música de Porto Alegre.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Meu Babaca Favorito


Em tempos de idolatrias tão efêmeras, edificadas sobre méritos mínimos, e cancelamentos quase automáticos motivados pelo primeiro deslize, posicionamento ou frase mal colocada de um ídolo que, não muito tempo atrás, era elevado à condição de semideus, pessoas com um pouco mais de critério, de apego a suas influências e referências, têm uma certa resistência em, simplesmente, adotar o tão usual procedimento vigente de CANCELAR uma personalidade que, de alguma forma sempre admirou e que fora seu referencial, por mais que este faça por merecer um belo "block" por conta de procedimentos, atitudes, declarações, que revelam uma pessoa diferente daquela que se imaginava ou que demonstrava ser.
Os caras se esforçam pra fazer merda, cagar pela boca, demonstrar o quanto são desprezíveis, pessoas que a gente não aceitaria no nosso meio social, mas aí a gente pensa no que já fizeram de fantástico na sua arte, o quanto foram (e são) importantes pr'a gente, o quanto os admiramos, e não conseguimos, meramente, virar as costas e dizer que não os admiramos mais. E aí que com muito esforço, colocamos seu trabalho, sua figura, suas músicas, suas letras, acima de tudo e, separamos o ser-humano de sua obra. Só assim mesmo pra aguentar uns, ó, que, vou te contar...
Muitos desses, os mais recentes, já tinham seu espaço para dizer o que pensavam, tiveram microfone, seus próprios álbuns, palco, livros, espaço na imprensa, mas com a ascensão das mídias sociais, uma verdadeira terra-de-ninguém, onde todo mundo tem opinião formada sobre tudo mesmo, muitas vezes, sem qualquer embasamento ou informação, pareceram encorajados a assumir posições, que não são decepcionantes por serem divergentes da minha ou de determinado segmento, mas sim por serem lamentáveis do ponto de vista humano.
Listamos, aqui, alguns dessas criaturas que a gente só não "cancela" porque não dá pra deixar de lado o que já fizeram e, cá entre nós, porque a gente adora esses caras mesmo. Mas que estão pedindo, estão...
Uns são de hoje, outros tem histórias que vem de muito tempo, uns se revelaram por conta da pandemia, outros revelaram preferências políticas bem preocupantes, enfim, tem um monte nessa barca, mas aqui vamos pegar apenas alguns desses "caraterzinhos" duvidosos, que a gente sabe que são uns idiotas, uns babacas, mas que odiamos amar.


Tá certo é esse cachorro!
Eric Clapton - "Clapton é Deus". A inscrição frequentemente vista em muros de Londres nos anos 60, quando o guitarrista inglês hipnotizava os fãs com sua técnica e habilidade, está longe de ser verdade. Ao contrário, hoje, muitos fãs preferem ver o diabo do que o gênio da guitarra.
Recentes declarações de Eric Clapton, acerca da situação da Covid-19 e do isolamento, comparando os protocolos de segurança à escravidão, reforçadas pela gravação de uma canção anti-lockdown, "Stand and Deliver", de Van Morrison, por sinal, outro que tem se revelado um grandíssimo feladaputa, provocaram indignação entre seus admiradores e de quebra ainda tiraram alguns velhos esqueletos do armário. Os atuais posicionamentos de Clapton fizeram com que pessoas lembrassem de um episódio em 1976 em que ele, durante um show em Birmingham, "convocou" os estrangeiros e imigrantes a se retirarem do país. Na ocasião, Clapton disse, se dirigindo ao público, “Vamos impedir o Reino Unido de virar uma colônia negra. Expulsem os estrangeiros, mantenham a Inglaterra branca. Os negros, árabes e jamaicanos não pertencem a este país e nós não os queremos aqui (...) “Precisamos deixar claro que eles não são bem-vindos. A Inglaterra é um país para brancos, o que está acontecendo conosco?” . Pois é... Clapton pode até ser um deus na guitarra, mas passa longe de ser um santo.
Ao que parece, até seus amigos músicos perderam a paciência e não aguentam mais tanta baboseira, uma vez que o lendário guitarrista tem reclamado de se sentir abandonado pelos colegas do meio musical.
Toma!
Mas não adianta: tem como odiar o cara que fez "Layla", "Cocaine", "Crossroads" e outras tantas maravilhas? Não, né?


Roberto sendo homenageado
pelos militares, nos anos 70
.
Roberto Carlos - Sabe aquele cara que sempre que se fala dele tem aquele asterisco ao lado do nome? Sim, esse cara é ele. As coisas que depõe contra o Rei não são de hoje e não são relacionadas com pandemia, isolamento, redes sociais nem nada tão atual, mas acompanham sua figura pública já de bastante tempo e, de certa forma, embora seja inegável sua contribuição para a música brasileira e seu talento para composições, nunca conseguimos perdoá-lo totalmente.
O problema de Roberto Carlos, na verdade, foi mais seu silêncio do que o que teria dito. Enquanto seus colegas do meio cultural, musical, das artes bradavam contra a ditadura militar no Brasil, sofrendo suas consequências de censura, prisões e exílios, Roberto, confortável e convenientemente não só não se manifestava em relação ao regime e as reprimendas sofridas pelos colegas e continuava, simplesmente, gravando suas canções alienadas com temas românticos ou de "curtição", como ainda não se esforçava em esconder uma proximidade com os generais e até mesmo era agraciado com comendas e homenagens pelos tiranos governantes brasileiros daquele nefasto período da nossa história.
Como se não bastasse, Roberto é conhecido no meio artístico por seu comportamento egoísta, mesquinho e antiético, sabotando outros artistas, reivindicando vantagens e benefícios junto a produtoras, gravadores, emissoras, etc., e, como se diz popularmente, "puxando o tapete" de colegas de profissão. Tim Maia foi um exemplo de um que, depois de ter sido parceiro de banda, ter convivido junto, foi ignorado e menosprezado por Roberto, assim que o Rei começou a estourar nas paradas de sucesso e tornar-se o fenômeno que veio a ser. O anglo-brasileiro Ritchie, sucesso nos anos 80, é outro que teria sofrido pelas mãos de Roberto que, segundo se sabe, e é confirmado por outros artistas, teria "mandado" a gravadora boicotar o sucesso de Ritchie, dificultando a distribuição do material do músico, sua participação em eventos e programas e negligenciando a divulgação em rádios do material do próprio contratado.
Mas não dá pra ignorar o tamanho desse cara na música brasileira, a qualidade de suas composições e a quantidade de grandes e inesquecíveis canções com que ele nos brindou. Se sua atividade no microfone, no estúdio, nos palcos é incontestável e proporcionou a todos nós momentos mágicos em músicas como "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos", "Emoções", os DETALHES das suas atuações nos bastidores, de alguma forma sempre mancharão um pouco seu nome, pois, como diz aquela canção, são coisas muito grandes pra esquecer.


Não se orgulhar mais de ter usado
camiseta do MST, tudo bem, mas Bolsonaro?
Lobão - O cara foi, simplesmente, uma espécie de símbolo da democracia da geração rock dos anos 80. Tinha a Plebe Rude que era contundente, tinha a Legião que se posicionava com ênfase e inteligência, o Capital Inicial correndo por fora mas ainda assim engajado, mas o Lobão era o cara que gritava. Ele participava de comício, ele fazia música que avacalhava o Sarney, chamava a galera pra votar consciente, tocava o hino nacional na guitarra, ao melhor estilo Hendrix, em pleno Globo de Ouro, na maior emissora de TV do país... e tudo isso pra quê? Pra acabar apoiando o Bolsonaro. Putaquiuparil
Ele alega ter se decepcionado com a esquerda, se arrependido de ter votado no PT, ter perdido a confiança em quem governou o país e acabou em tribunais respondendo por corrupção... Ok, Lobão. Mas daí a apoiar a eleição de uma criatura, visivelmente, incapaz, limitada e mal-intencionada como o atual presidente brasileiro, é muita ignorância, ingenuidade ou burrice. Um cara que tinha tudo pra dar errado, não apresentou nenhuma proposta durante a campanha se apoiando somente em um montão de bravatas e, por isso mesmo fugiu dos debates como o diabo da cruz; baseou sua campanha em notícias falsas; destilou ódio e preconceitos contra negros, indígenas, homossexuais, além de manifestar contumaz desprezo pela classe artística, da qual, exatamente o senhor João Luiz Woerdenbag, mais conhecido como Lobão, faz parte, não podia dar outra coisa senão o que deu.
Faz parte do meio artístico mas, a bem da verdade, por outro lado, também faz parte de uma classe-média alta elitista, mimada que, nos anos 80, recém saída da ditadura, via seus filhos, rebeldes sem causa, lutarem sem saber bem pelo quê, por causas como diretas, igualdade social, contra a fome, muito mais pelo embalo e pela modinha, do que por qualquer convicção. Tudo uns filhinho de papai que, na hora que perceberam que estavam perdendo privilégios, deixaram cair a máscara.
Lobão até se arrependeu - pelo menos é o que ele diz. Mas agora, depois de ajudar a eleger aquele ser ignóbil que ocupa a cadeira da presidência, aí já é tarde e já condenou o país a um retrocesso vai ser duro de reverter. Quando criaturas como Lobão, Roger, do Ultraje, Paula Toller, Rodolpho do Raimundos, mostram esse tipo de atitude, de posicionamento de caráter, eu tenho que dar razão para a aquela música que um cara muito legal do rock nacional dos anos '80 compôs: O rock errou.


O cara que bradava contra o sistema...  
John Lydon - O Rei dos Punks, o cara que gritava por anarquia, que bradava contra o poder, contra a caquética monarquia britânica, quem diria..., apoia Donald Trump. Pois é. Preferências políticas à parte, de direita, esquerda, democratas, republicanos, liberais, socialistas, já estar cansado das "bobagens intelectuais" da esquerda, como o próprio Lydon afirma, tudo bem, a gente entende, mas, agora, um cara que já simbolizou a atitude contra o poder, contra o opressor, daí a se manifestar, veementemente, a favor de uma pessoa elitista, odiosa, arrogante, egoísta, megalomaníaca, racista, xenófoba, um negacionista que, por conta de sua ignorância, falta de humanismo e empatia, ignorou a presente pandemia e, por conta de seu discurso, sua falta de ações efetivas, condenou milhares de seus compatriotas (e, por tabela, outros tantos milhões, indiretamente, pelo mundo afora) à morte, é inaceitável.
Como se não bastasse apoiar abertamente um maluco egocêntrico e considerá-lo a "última esperança e o verdadeiro representante da classe operária (???), o ex-líder dos Sex Pistols, vêm dando indesculpáveis demonstrações de intolerância e racismo. Além de "passar pano" no episódio de George Floyd, dizendo que existem policiais brancos ruins mas que aquilo teria sido apenas um episódio isolado, e ter ofendido com injúrias racistas o integrante da banda Block Party, Kele Okereke, durante um festival, diante de pessoas que confirmam o incidente, Joãozinho Podre ainda vem afirmando e reafirmando que os jovens ingleses que participam de manifestações contra o racismo são uns "mimadinhos" que, segundo ele, "têm merda na cabeça". Tá certo que a simpatia nunca foi mesmo uma marca forte na vida de John Lydon, mas agora com essas ele não se ajuda a que continuemos tendo algum respeito por ele ou pelo que já representou.
"Eu posso estar certo, eu posso estar errado", era o que ele mesmo cantava, já nos tempos de PIL, e creio que, diante das últimas atitudes não é muito difícil constatar qual das alternativas prevaleceu.


Morrissey exibindo, sem pudor,
 seu apoio à direita britânica.
Morrissey - O que mais me dói ver o lixo humano que se tornou. Morrissey era uma espécie de amigo, o cara que a gente ouvia porque parecia que sentia como a gente e exprimia suas dores, seus problemas, suas angústias, da maneira como gostaríamos de manifestar, com sinceridade, sem medo de se expôr, como um ser humano que só quer ser amado. Pois bem..., como é que essa pessoa se tornou esse ser deplorável que temos acompanhado ultimamente é algo misterioso para mim. Talvez nem tanto. Se formos prestar atenção alguns sinais já vinham sendo dados mas, nós fãs, nem levávamos em consideração, tipo, "Morrissey não é assim", ou passávamos um pano, bem bonito, justificando por alguma descontextualização ou má interpretação. Achávamos graça das declarações mal-educadas do ídolo, classificando como uma acidez típica dos gênios, quando efetivamente, deveríamos estar preocupados com o que aquilo representava.
Na verdade, aquele "England is mine...", de "Still Ill", ainda da época do The Smiths, já era um indicativo e eu é que não entendia totalmente... As coisas começaram a ficar mais claras em "National Front of Disco", canção de 1998, uma evidente alusão à Frente Nacional, partido de extrema direita inglês, contestada por alguns mas que, naquele momento, muita gente (inclusive eu) preferiu interpretar como uma "figura" compositiva dentro do contexto poético da música. Só que de uns tempos pra cá, Moz resolveu confirmar publicamente o que insistíamos em negar: tornara-se (se é que em algum momento não fora) um fascista de direita, racista, xenófobo e desprezível. Depois de usar, durante a turnê de seu álbum "Low in the High School", um broche do partido For Britain (foto), de perfil excludente e xenófobo, o cantor reafirmou em um programa de TV norte americano seu apoio às plataformas do partido e ainda, durante a entrevista, minimizou, e até ridicularizou o racismo, afirmando que, atualmente, a expressão é sem sentido e que uma pessoa será acusada de racista, nos dias de hoje, simplesmente, por discordar da opinião dos outros. No balaio de disparates, Morrissey ainda comparou a suposta perseguição que a imprensa impõe a ele, e o boicote que alega sofrer de gravadoras e da mídia ao nazismo e, a propósito de Terceiro Reich, de quebra, afirmou que Hitler seria de esquerda. 
Ah, e tem a que chineses são uma "subespécie", que fronteiras são coisas maravilhosas e foram feitas para serem respeitadas" (sobre imigrantes), que Obama, na verdade, era "branco por dentro", tem a de expulsar fãs do próprio show acusando-os de terem sido mandados pela imprensa, a de sugerir que a criança assediada por Kevin Spacey sabia o que estava fazendo ao ir para o quarto com um homem adulto... Olha..., eu não sei como eu ainda ouço as músicas dê-se cara! Pra falar a verdade, hoje, sempre que eu tenho vontade de ouvir alguma coisa dos Smiths ou de sua carreira solo, eu penso, "Eu vou ouvir esse merda?". Aí eu, a muito custo, separo o homem do artista e lembro do que ele mesmo falou em uma de suas letras: "Não se esqueça das canções que lhe fizeram chorar/ e das canções que salvaram sua vida"
Aí ele me convence e eu o ouço mais uma vez.
(Por enquanto...).


Cly Reis

sexta-feira, 11 de abril de 2014

“Antonio Dias – Potência da Pintura” – Fundação Iberê Camargo – Porto Alegre/RS







"Estudos pictóricos de antônio Dias"
Estivemos Leocádia Costa e eu numa das exposições daquelas que nos dissemos: “não podemos deixar de ir”. Pois a referida mostra é “Potência da Pintura”, do artista plástico paraibano Antonio Dias, que está na Fundação Iberê Camargo até 18 de maio. Vimos obras deste craque da arte contemporânea em dois momentos quando estivemos no Rio de Janeiro em 2013: na grande (e até dispersiva) mostra coletiva “O Colecionador”, no MAR (Museu de Artes do Rio de Janeiro), no Rio, e na sucinta (mas bela) exposição "Biografia Incompleta", no MAC (Museu de Arte Contemporânea), em Niterói, a qual me motivou a escrever sobre à época. Portanto, a oportunidade de rever Antonio Dias e numa individual na nossa cidade é um programa dos que consideramos imperdíveis. 
De fato, valeu a pena a visita. Com curadoria do crítico e historiador Paulo Sergio Duarte, apresenta um recorte da produção mais recente de Dias. São pinturas e esculturas produzidas entre 1999 e 2011 que revelam os questionamentos atuais do artista, que se volta com força para as questões pictóricas do pigmento, do plano e da composição. Porém, não deixando de lado a ideia de tridimensionalidade (característicos de sua produção dos anos 60 e 70, mais conhecida pelo público), uma vez que usa elementos da estrutura de objetos bidimensionais de forma sutil em quadros e esculturas que se descolam do tempo, do simples “aqui e agora”, reelaborando outra (e talvez improvável) dimensão temporal. As linhas dos quadros, impositivamente retas, se conjugam entre si ora para trás, ora para frente, criando duas ou até três “camadas” de tempo, encaixando-se, sobrepondo-se, desafiando-se umas às outras.
"Gigante dormindo e cachorro latindo"
No texto do curador, este questiona com perspicácia o “valor” cronológico da recentidade das obras de Dias, subjetivando tal aspecto: “O que temos diante de nossos olhos não é uma acumulação de trabalho, nem a acumulação de um patrimônio tal como o capital de um portfólio de aplicações nas bolsas de valores; o que temos é o resultado mais recente de uma luta simbólica entre a matéria e o pensamento que atravessou muitas brigas até chegar a esse ponto; esse é o trabalho do artista”.
Criada na geração de artistas dos anos 50/60 que reelaboraram a maneira de ver a modernidade e seus ícones: sexo, violência, capitalismo, tecnologia, segregação político-social, indústria cultural e outros (antevendo, aliás, com olhar bastante mordaz a pós-modernidade), Antonio Dias segue com seu olhar perspicaz sobre o funcionamento desequilibrado da sociedade atual – basta verificar o precário equilíbrio das latas na obra “Duas Torres” (2002), que, embora não seja brilhante em termos de execução, remete claramente à fácil sujeição dos seres humanos ao perigo vista nos ataques terroristas do 11 de Setembro.
Em termos de técnica, são interessantíssimas as texturas e sensações pictóricas distintas e até díspares (do vermelho-sangue puro à psicodelia hi-tech e a aparência envelhecida). Já as pequenas esculturas em bronze e cerâmica (“Gigante dormindo e cachorro latindo” e “O bem e o mal”, por exemplo) dão-nos a verdadeira noção da vacuidade da era “big brother”: casas que, sem telhado, abertas à devassidão da privacidade, nos abrigam a espiar as formas desproporcionais de objetos e seres soltos no vazio e na secura monótona da vida alheia.
Passado, presente e futuro dialogando
em um possível equilíbrio
Se tais obras refletem o pensamento crítico de Dias, não poderia faltar o sarcasmo que marca toda a boa geração de artistas plásticos a qual ele pertence (leia-se: Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, Rogério Duarte e outros). O artista usa seu humor de maneira mais aguda na obra saborosamente intitulada “Seu marido”. Embora deslocada do restante da mostra (foi colocada no átrio da Fundação, inclusive, longe quatro andares das restantes), constitui-se num retrato divertido e crítico do homem contemporâneo. Trata-se de um boneco cujas formas de cabeça, pernas, braços, tronco e rabo (?!) se indistinguem: todas repetem o mesmo formato de uma espécie de bastão amarelo e peludo. Aparentemente apático, de tempos em tempos o “bicho” desperta, sacudindo-se todo de forma patética e despropositada por alguns instantes, até que volta àquela insossa imobilidade inicial.

Seria este sacolejo estúpido o único movimento possível da defasada figura do macho doméstico nos dias de hoje? Forte suposição. Com meu respeito a todas as senhoras: qualquer semelhança conceitual (e, quem sabe, até corpórea...) com seus homens de dentro de casa não é mera coincidência. 

******************************************************************
Eu e "Seu Marido"


SERVIÇO:

exposição: "Antonio Dias – Potência da Pintura"
onde: Fundação Iberê Camargo  (Av. Padre Cacique, 2000 – Porto Alegre/RS)
até: 18 de maio de 2014
horário: terça a domingo, das 12h às 19h, quintas até as 21h (entrada gratuita)
Curadoria: Paulo Sergio Duarte













sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Aum - "Belorizonte" (1983)

 

"Dedicado a Belo Horizonte"
Dedicatória da contracapa do disco

Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...

Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.

A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.  

Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.

Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”. 

Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).

Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges.  Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.

O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.

“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.

********

FAIXAS:
01. "Tema pra Malu" (Taquinho) - 5:12
02. "Serra do Curral" Marcio) - 2:55
03. "Belo Horizonte" (Aum) - 9:36
04. "Nas Nuvens" (Betinho) - 3:58
05. "4:15" (Marcio) - 4:15
06. "Tice" (Betinho) - 7:20

********
OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

"Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar - L&PM Editores (1977)


"Queres saber da ema fugaz?
Queres? 
Então é muito pouco. 
Queres saber dos bois empalhados? Da tia de Pelotas? 
Da Carta de Punta Del Este? Da queda do cruzeiro? 
Do Banco da Província? 
Do Simca Chambord? Das Cestas de Natal Amaral? 
Do considerável número de populares bradando viva Jânio? 
Queres saber de tudo? 
Queres? 
Então paga."
parágrafo inicial de 
"Mês de Cães Danados"




"Viajante chega a Porto Alegre procedente de São Paulo. Procura na Rua da Ladeira um homem que conta histórias (falarias em mendigo, paulista? Eu não falaria). Mediante (atenção!) pagamento, viajante paulista terá visão, sucinta e não desprovida de interesse, do agosto de 1961 - mês, na expressão do narrador, de cães danados. Paralelamente narrador contará algo de sua vida - interessante infância, batalhas na cidade de Pelotas, aventuras na capital. Mediante pagamento adicional poderá descrever cenas de sexo (sublinha esta palavra, paulista, no original; se for impresso, quero-a em itálico. Ah, ris. Teu nome é Sátiro?). Narrador mencionará ema fugaz, Simca Chambord, Cestas de Natal Amaral, considerável número de populares bradando viva Jânio, muro de Berlim, machine-gun, Bois Empalhados, Letras da Legalidade, Fayacal Khautz (...)"
Este resumo que o próprio narrador do livro repassa com seu interlocutor, já alguns dias após a primeira visita, é exatamente o que precisamos para introduzir o excelente "Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar., livro em que os eventos que antecederam e culminaram na renúncia de Jânio Quadros e na posse de João Goulart, naquele agosto de 1961,  eu que são narrados, mediante uma substancial contribuição em sua lata de doce de Pelotas, por um mendigo tagarela, instalado na ladeira da Rua General Câmara, em Porto Alegre.
Numa confusão de informações, entre lembranças de infância, personagens reais e fantásticos, relatos dispensáveis, slogans publicitários, manchetes de jornais da época, o tresloucado morador de rua vai contando a um curioso, provavelmente paulista pelo sotaque, que chega todos os dias para ouvir dele toda a história de como saiu da condição de um promissor estudante de direito, filho de um latifundiário do Sul do Estado, à situação de miséria, abandonado e esquecido, com uma perna deformada, numa calçada no Centro da cidade, ali pertinho do Palácio do governo do Estado.
Num espaço de duas semanas, desde o início das visitas do paulista, todos os dias, em sua narração atropelada, confusa, o miserável, que se identifica como Mário Picucha, intercalando fatos de sua história pessoal com o contexto político e social daquele momento, vai revelando um pouco mais sobre aqueles dias de 1961, até chegar à data em que, com muito esforço do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, foi garantida a posse de seu genro, o então vice-presidente da República, João Goulart, mesmo diante de uma enorme resistência das elites, de empresários e latifundiários, que temiam por uma ameaça 'comunista'.
Aparentemente a história toda do indigente soa sem pé nem cabeça mas, em meio a todo aquele desvario em que menciona ema fugaz, tordilho doido, machine-gun, bois empalhados, Cavaleiro Rolando, talvez haja algo mais. A cada dia surge um elemento novo, algo mais relevante e, parece que seu assíduo visitante espera exatamente por algo mais consistente na história. Por isso continua indo, por isso vai todos os dias, por isso coloca um dinheiro na lata. O que aquele mendigo tem a contar de tão importante daquele agosto de 1961?
Moacyr Scliar, um dos maiores escritores gaúchos e um dos grandes nomes da literatura nacional, num formato muito livre e despojado, conduz a história com total domínio e precisão mesmo quando, eventualmente, achamos que aquela conversa de maluco não está levando a lugar nenhum ou que há muita informação inútil no que sai da boca de seu personagem narrador. "Mês de Cães Danados" é uma leitura agradabilíssima, contagiante, atraente. O relato do protagonista em primeira pessoa, é ágil, inquietante, e a disposição dos capítulos, em formato diário, no período das idas do misterioso visitante à Rua da Ladeira, garantem uma dinâmica estimulante e um constante interesse do leitor. Um relato de um histórico agosto em uma leitura que dá gosto.



Cly Reis

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

“Pequeno Cidadão” - Arnaldo Antunes, Antonio Pinto, Edgar Scandurra e Ticiana Barros (2009)




“É sinal de educação
Fazer sua obrigação
Para ter o seu direito
de pequeno cidadão”.
refrão da música "Pequeno Cidadão"




Por um bom tempo, parecia que os memoráveis especiais de música infantil da Globo, os quais geralmente viravam LP’s de grande sucesso de público e vendas, tinham terminado. Do final dos anos 80 até a entrada do século XXI, estes ricos especiais como "A Arca de Noé" ou “Pirlimpimpim” sumiram das telas e das lojas – à exceção de “Castelo Rá-Tim-Bum”, único resistente dos anos 90. No mesmo período, não tão coincidentemente assim, os pequenos passaram a ficar cada vez mais emburrecidos pela computadorização limitadora do conteúdo educativo-cultural, desassistidos pelo desleixo das escolas e perdidos entre a superproteção e o desinteresse da “nova família” brasileira de classe média. Espaço para a criatividade, para o exercício do lúdico, para a valorização das coisas bonitas da vida – amigos, família, natureza, arte – restaram escanteados. Para que lançar produtos que elevam essas coisas “do passado”, já que não tem consumidor para tal? Resultado: desvalorização e consequente idiotização da criança.

A salvação veio a pouco mais de 10 anos pelas mãos dos paulistas da geração anos 80 – alguns dos responsáveis por, na minha infância/adolescência, fazerem-me aprender a gostar de música. São eles os criadores de um dos melhores exemplos de uma nova visão da condição infantil: “Pequeno Cidadão”. Desde este primeiro CD do conjunto, lançado em 2009, reúnem pais músicos e “mais um monte de filhos”, como eles mesmos dizem. Os protagonistas são alguns dos principais nomes da música brasileira daquela década para cá: o ex-Titã Arnaldo Antunes, o cabeça do Ira! Edgar Scandurra, a ex-Gang 90 Ticiana Barros e o multi-instrumentista Antonio Pinto (autor de várias e ótimas trilhas sonoras de filmes como “Cidade de Deus”, “Central do Brasil” e “Colateral”).

O grupo faz um som baseado no rock mas que investe também na psicodelia e nos ritmos brasileiros, passando pelo pop, funk e eletrônico. Conceitualmente, “Pequeno Cidadão” encerra a ideia de uma educação infanto-juvenil comprometida com o ser humano e com o planeta, sem perder o lado legal da brincadeira e da modernidade – ou seja, sem deixar esse “comprometimento” virar uma coisa chata e somente pró-forma. As músicas trazem como temas coisas normais (ou que deveriam ser normais) do universo infantil: alegrias, dúvidas, bichos, desafios, tristezas e aquilo que move a todos (ou deveria mover): amor. Afinal, criança não precisa de música bobinha: ela pode muito bem curtir um rock ‘n’ roll com poesia que lhe faça pensar. Multiplataforma e ativo, “Pequeno Cidadão” é, no entanto, mais do que apenas só música: o projeto conta com um segundo CD (2012), um precioso DVD de animações de todas as faixas do primeiro volume e quatro livros temáticos, além de jornal online e várias ações culturais que promovem em São Paulo. Tudo com ilustrações de Jimmy Leroy, que dá uma assinatura plástica muito peculiar em todos os materiais.

Uma das lindas artes de Jimmy Leroy.
Pontapé inicial do projeto, este CD começa pela faixa que lhe dá nome e que, de certa forma, o sintetiza, pois expressa a ideia de formar uma criança com responsabilidades mas a deixando ser aquilo que ela é: criança. E como Vinícius de Moraes ensinou: não duvidando da inteligência delas. Arnaldo, acostumado a escrever para esse público desde os Titãs, pratica isso se valendo de figuras de linguagem como anáforas, repetições no início de cada frase, e, principalmente, de anástrofes – e aí está já uma das sacadas pedagógicas da turma: mostrar para a criança a riqueza da língua portuguesa. A anástrofe é um caso especial dentro de nossa gramática, pois usa a inversão de maneira incomum: trocando sujeito e predicado, surpreende com a lógica que forma. Na letra, tudo que é brincadeira vira dever e vice-versa, estabelecendo uma dialética de correlação e não de condicionamento entre ambos. Por exemplo, o verso “Agora pode fazer a lição” ganha sentido de um consenso entre pais e filhos e não de obrigação como geralmente se entende daquilo que não é diversão. Em contrapartida, “Agora tem que jogar videogame” passa a ter a ideia de um convite à brincadeira, rejeitando o famigerado “tenke” imposto pelos mais velhos. Além de tudo, a música é um rock embalado e pegajoso, cujo gostoso refrão o resume clara e brilhantemente: “É sinal de educação/ Fazer sua obrigação/ Para ter o seu direito de pequeno cidadão”.

Antonio Pinto, coautor da primeira faixa, assina com Ticiana uma das mais lindas canções (infantis? De amor? Da música brasileira deste século?) do álbum: “O Sol e a Lua”. A música emociona a mim e a muitas pessoas que conheço, sejam crianças ou adultos. É um pop-rock cantado por ele e por um dos meninos, além do coro das crianças no refrão e das recitações na voz grave de Arnaldo. Voltada para os mais crescidinhos, fala sobre um acontecimento que ocorre com todo mundo na pré-adolescência: o amor não retribuído, aqui personificando nos dois astros. Apaixonado, o Sol pediu a Lua em casamento e disse que lhe amava há muito tempo, mas a Lua respondeu que seu coração não pertencia a ninguém, pois ela só servia para inspirar os casais, “dos grandes poetas aos mais normais”. O Astro-Rei, claro, ficou na fossa. Desesperado, foi pedir ajuda até para o Vento, que, apressado, nem parou para lhe escutar. Foi então que: “O Sol sem saber mais o que fazer/ Tanto amor pra dar/ E começou a chorar/ E a derreter/ E começou a chover, e a molhar/ E a escurecer”. E não é assim mesmo que nos sentimos quando ficamos tristes por amor: derretidos e sem brilho? No final, o consolo dito na delicadeza da voz infantil: “Se a Lua não te quer, tudo bem/ Você é lindo, cara/ E seu brilho vai muito mais além/ Um dia você vai encontrar alguém que com certeza vai te amar também”. Poesia da maior singeleza.

A doce canção de ninar “Meu Anjinho”, de Ticiana (“E aqui dentro/ no escurinho/ nos braços desta canção/ vou te ninar...”), se alinha à outra das ótimas do disco, o gostoso xote “Leitinho”, a qual traz a mensagem de que “um leitinho é muito bom” pro bebê e pros pais, pois, depois, vem aquele compensador “soninho” que descansa toda a família. Impossível não lembrar-me de uma vez com minha sobrinha Luna ainda pequena, com pouco mais de um ano, quando cantei essa música para ela, sabendo que gostava e que seu pai, meu irmão, costumava cantar-lhe e pô-la para ouvirem. A surpresa pura que ela ficou quando identificou que era a mesma música que o papai cantava foi engraçado e emocionante.

A funkeada “O ‘X’” e a agitada “Sobe Desce” são pura diversão, duas brincadeiras com palavras, letras e suas sonoridades. Mais pedagógica e profunda é “Tchau, Chupeta” (de Ticiana e Arnaldo), que versa sobre uma das maiores revoluções pessoais pela qual o passamos na infância: o momento de largar o bico. O complexo tema, que especialistas há muito discutem – os limites da chamada “fase oral” e a troca (nem sempre exitosa) de um substituto simbólico do seio materno –, é colocado de uma forma absolutamente poética e lúdica, propondo à criança nesse necessário rompimento o desapego em nome de uma nova fase de vida. “Todo mundo tem seu tempo de mamar”, diz um dos versos. Graciosa, a letra lança várias suposições de forma a demonstrar à criança que a chupeta não combina mais com alguém que não é mais neném: “Já pensou uma mãe chupando chupeta?/ Já pensou um pai chupando chupeta?/ E uma vó de bobs e chupeta?/ E um vovô de bengala e chupeta?”. E a proposta para deixar a tal peta? Libertar-se dela jogando-a no mar para, enfim, poder cantar “sem uma tampa de borracha pra atrapalhar”. O assunto é tão importante e passível de desdobramentos que virou um dos livros do projeto, de 2011 (Ed. Leya).
A banda Pequeno Cidadão, com os grandes e os baixinhos.

O tom educativo segue de outras formas. Tem as ecológicas “O Uirapuru”, bossa-nova que remete à “Passaredo”, de Chico Buarque, e a “Passarim”, de Tom Jobim, revelando a beleza linguística quase despercebida pelos brasileiros do tupi-guarani; e “Sapo-Boi”, um divertido rock ‘n’ roll urbano de Scandurra cantado por seu filho Lucas: “Se eu fosse o prefeito aqui da capital/ Pegava o sapo-boi e espalhava pela marginal (...)/ A dengue não passa de um mês/ pois o mosquito é o prato da vez”. Por falar em bichos, a punk-rock “Larga a Lagartixa”, além de ser mais uma quebra de paradigma – afinal, é saudável criança também gostar de barulho –, é igualmente educativa, uma vez que a frase principal, dita da forma acelerada para acompanhar o ritmo frenético, torna-se um trava-línguas, bom exercício para a garotada treinar a dicção.

Outra das mais queridas do disco é "Bonequinha do Papai", a qual minha sobrinha Luna gosta até hoje. Tecno bem dançante, põe a meninada na pista! Alem do mais, seu premiado videoclipe, algo como um retrô-futurista com desenhos estilo anos 20 (mas com uma animação dinâmica e moderna), é uma verdadeira obra-de-arte, o qual assisti pela primeira vez no Dia Internacional da Animação, em 2010.

Mas, claro, não podia faltar o futebol, esporte tão gostado no Brasil e praticado por meninos e meninas. Identifico-me com as duas faixas que tratam desse tema por trazerem-me lembranças de tempos passados. A primeira é mais uma bossa-nova: “Futezinho na Escola”, motivadora de outro dos livros do projeto, “1 drible, 2 dribles, 3 dribles — A história do futebol e outras informações interessantes”, de Marcelo Rubens Paiva (Companhia das Letrinhas, 2014). Nela, Scandurra aborda o que a mim era um corriqueiro hábito no 1º Grau: bater uma bola com os colegas na cancha da escola antes de começar os estudos. A letra descreve com muita sensibilidade as sensações e a dinâmica de um jogo: “O último lance, vâmo logo, passa a bola/ Recebi, quase perdi pro ladrão que eu nem vi/ Chegou primeiro pedalei e passei/ Chegou o segundo e eu também driblei/ Veio o terceiro e eu fiz uma tabela/ Tô livre parceiro, vou chutar de trivela/ É gol!”. Mas tem a hora do divertimento e a do dever. Acaba-se o jogo rapidinho, pois agora é preciso correr para ir a outro compromisso: a aula de português.

Tratando ainda do esporte bretão e fechando o disco, "Carrinho por Trás" é mais uma de Scandurra e novamente um samba. Neste caso, um partido-alto. Com uma pegada carioca e eletrônica, faz-me recordar de outra época, esta, da adolescência, quando jogávamos nos campos de várzea com nosso time de amigos, a Juventus. O universo das peladas é muito bem captado pelo compositor, que pega como mote um dos polêmicos lances que acontecem nas partidas: o carrinho (segundo a definição de Rubens Paiva, extraída do livro: “o jogador se lança no gramado e, deslizando pelo chão, tenta tirar a bola do adversário, arremessando os pés na direção dele.”). Como pode acarretar em uma jogada violenta, o carrinho é mal visto, ainda mais que nem todo jogador tem boas intenções e nem todo zagueiro tem habilidade para executá-lo. Eu, da posição, tenho lá minhas dificuldades, confesso. Porém, a canção fala sobre um defensor que entende do negócio: “O carrinho é perigoso/ No mínimo um tanto suspeito/ Mas se você acerta na bola/ É aplaudido com muito respeito”. João Nogueira merecia estar vivo para gravar essa música. Como extra, ainda tem “Pererê”, com participação do cartunista e escritor Ziraldo declamando um texto seu.

Ao escutar uma obra como essa, fica a sensação de que nem tudo está perdido no que se refere a conteúdo cultural para criança. Afora “Pequeno Cidadão”, outro projeto da mesma época, Adriana Partimpim, da cantora e compositora Adriana Calcanhoto, também teve continuidade e conquistou o público. No meu círculo, percebo, inclusive, que não são poucas as crianças que gostam de um ou de outro, desde Luna até outros pequenos que conheço como Bento, Dora e Gabriel. Bom sinal. Sinal de que há uma geraçãozinha aí antenada e bem orientada. Além disso, de que existe uma consciência do valor das coisas importantes da vida (muitas vezes, as simples), que não se resumem a consumo e tecnologia. Iniciativas como estas se mostram sintonizadas com tal mentalidade. E neste Dia das Crianças, é um alento perceber gente consciente de que, para se exercer a cidadania no mundo de hoje, começa-se desde cedo.
******************

FAIXAS:
1. Pequeno Cidadão
2. O Sol e a Lua
3. Meu Anjinho
4. Futezinho na Escola
5. O ´x´
6. Tchau Chupeta
7. Sapo-boi
8. Leitinho
9. Larga a Lagartixa
10. O Uirapuru
11. Sobe Desce
12. Bonequinha do Papai
13. Carrinho Por Trás
14. Pererê (extra)

*********************** 
OUÇA O DISCO E VEJA OS CLIPES: