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foto: Doris de Oliveira - fototeca Cioma Breitman
Museu Joaquim José Felizardo - Pref. mun. de Porto Alegre
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O
Naval foi e sempre será o bar da minha infância. Encravado em pleno
Mercado Público de Porto Alegre, centro histórico da cidade, o típico boteco,
aberto nos longínquos anos de 1907, é parte essencial da história de
porto-alegrenses como eu, tendo em vista sua tradição e notoriedade. Aquele
pé-direito altíssimo; as portas de madeira estilo português; o piso de lajotas
intercalando preto e branco; o cheiro de trago no ar; as mesas de madeira com
plástico grosso por cima; os porta-retratos com fotos antigas; os afrescos do
teto; o enorme cartaz acima das cabeças com a imagem de um navio; as
fotografias pitorescas nas paredes; o ar que parecia tomado por uma neblina de satisfação.
Tudo ali me encantava desde quando, guri, levado por meu pai e, muitas vezes,
juntamente com meu irmão, comecei a frequentar o bar Naval. Ia a vários outros
com meu pai, mas ao Naval era especial. Não era sempre. Às vezes, no dia de
pagamento de meu pai, funcionário da prefeitura, saíamos da repartição dele na
Borges de Medeiros e rumávamos direto para lá, felizes. E mesmo com essa
frequência menos assídua era incrível como sempre me senti em casa, tal como se
o bar fosse uma extensão da minha.
Aquela aura do local me dava impressão de que, ao adentrar pela porta,
fosse pela de dentro do Mercado, fosse pela da calçada, que dá para a rua,
saíamos do resto do mundo para entrar, exclusivamente, no Naval, como
navegantes num barco solto no meio do mar. A percepção de criança fazia com
que, inclusive, eu nunca atinasse exatamente de qual dos quatro lados do
Mercado Público se entrava para acessá-lo. Parecia que era pelo lado do
Guaíba... mas, não, era pelo Largo... ou pelo lado da Prefeitura...? Afora a
justificativa do senso de direção ainda em desenvolvimento em uma criança como
eu, não posso deixar de pensar hoje que a entrada para aquele museu boêmio era,
na verdade, imaginária.
A melhor parte para nós eram as comidas. Comida de boteco típica,
daquelas suculentas, sempre com o mesmo gosto anos a fio. Tínhamos nossos pratos
prediletos: as almôndegas gigantes, espetacularmente bem fritas, e a chuleta de
porco, um respeitável bife cujo sabor especial era um verdadeiro segredo. Tinha
também uma pimenta maravilhosa, a melhor que já comi na vida, feira na casa,
que só passei a apreciar mais velho, pois era muito forte para meu paladar
naquela época.
Não bastasse todo esse espírito, ainda o aspecto humano era de total
acolhimento por parte dos garçons, que, na minha mente infantil, estavam ali
desde sempre (e, quem sabe, não estavam?). Paulo Naval, um português de olhar
entre o arguto e o carinhoso cujo nome resume a simbiose de sua existência com
o local, visto que ele e o bar eram parte da mesma coisa; e Mauro, tipo turco
dono de olhos verdes intimidadores até o momento em que abria seu sorriso largo
e receptivo. Ambos eram amigos de meu pai, a quem tratavam como verdadeira
deferência. No entanto e até por isso, Paulo chamava-o, com uma permissividade
cúmplice de quem sabia de muita safadeza de meu pai, de “negro sem-vergonha”. O
local sempre recebeu desde cidadãos comuns até personalidades, como Lupicínio
Rodrigues, Carlos Gardel, Túlio Piva, Elis Regina, Glênio Peres, Leonel Brizola,
Jânio Quadros, Olívio Dutra. Mas não havia distinção: podia ser político, conhecido,
operário, personalidade, artista, zé-niguém, jovem, ancião, bicha, vesgo. Independia:
anônimos ou famosos, todos os
clientes eram tratados com o maior dos respeitos e atenção, e, alguns, como meu
pai, pessoa comumente querida aonde ia (ainda mais nas rodas de birita e
botecos da vida), ganhavam, sim, uma atenção especial.
Episódio clássico que mostra essa afetuosidade foi a ocasião em que meu
pai, num dos tais dias de pagamento, pegou todo seu ordenado e se atirou para o
Naval, sozinho. Lá, tomou todas a ponto de não ter condições de voltar para
casa tamanho o porre. Tentou dar uns passos, mas caiu em plena rua. Pois então
que o Paulo, sabendo que o pai tinha recém recebido o salário e que estava com
este todo sacado dentro da bolsa, tomou a liberdade de abri-la e guardar o
dinheiro consigo. Depois, chamou um taxi, pagou do seu bolso o taxista e mandou
meu pai pra casa. No dia seguinte, já refeito do pileque, meu pai voltou ao bar
para resgatar seu pertence, agradecer e pagar o taxi. Paulo não aceitou o
dinheiro. Meu pai sempre se emocionava ao se lembrar desse ato de pura amizade,
tanto pela consideração que tiveram com ele, rara para com um cliente, quanto
pela ética de como agiram.
Por essas e outras, não à toa o Naval me parecia algo realmente poético.
E Paulo Naval era um poeta de mão cheia, autor do livro "O Garçom e o Cliente - No Balcão do Naval" cujo
lançamento ocorreu em pleno bar num concorrido coquetel. Recordo de uma vez
que, sentados numa das mesas, ele, orgulhoso, de avental enxovalhado e paninho
branco úmido na mão, recitou uma de suas obras. Momento inesquecível para mim.
Na esteira de meu pai, eu e meus irmãos também éramos muito queridos lá.
Lembro da primeira vez que fomos com minha irmã, ainda uma criança de uns 4 ou
5 anos, sob os olhos arregalados de minha mãe, que permitiu o passeio com a
pequena mas não sem certo receio. Mas deu tudo certo. Engraçado que, por conta
daqueles dias de calor louco de Porto Alegre, misturado ao cansaço de sair cedo
de casa conosco, ela acabou dormindo profundamente em nosso colo, chegando a
ficar com o corpo todo mole. Parecia uma boneca de pano, pois, além de não
acordar, precisava ser segurada permanentemente para não desmoronar. Naquele
dia, Paulo e Mauro, felizes com a ilustre visita como se fosse a de uma familiar
sua, bateram uma foto dela ainda acordada, tomando uma Mirinda de garrafa. Essa
foto foi parar na parede do bar, ficando ali desde então.
Os anos se passaram. Cresci, a dinâmica de minha vida se alterou e,
nesse meio tempo, entre outras mudanças, meu pai, motivo de meu contato
primeiro com o Naval, foi para o outro plano. Mesmo assim, sempre procurei com
uma frequência até parecida com a que tinha na infância dar uma passada por lá,
fosse para sentar e comer, levar algo pronto para casa ou apenas dar um alô
para o Paulo e o Mauro. Sentia-me, no fundo, com certa responsabilidade de
manter a herança emocional de meu pai para com eles. Via-os nessas ocasiões, e
era muito bom. Mas os anos de casa e a rotina religiosamente diária já os havia
desgastado. Normal. Envelhecidos, mantinham a mesma simpatia e sorriso aberto, fazendo
as mesmas perguntas a cada vez que eu ia (em que eu e meu irmão trabalhávamos, se
eu ou meu irmão que é arquiteto, como estavam minha mãe e minha irmã, essas
coisas de gente afeita a ti). No entanto, era perceptível que estavam cansados
e que aquele cenário se alteraria, mas eu, talvez por apego ao sentimento de
magia alimentado desde a infância, nem pensei em cogitar.
Mas as mudanças, de fato, ocorreram. Outro dia, dando voltas no Mercado
Público, resolvi, como de costume, visitar os amigos Paulo e Mauro. Fui tomado
de surpresa quando cheguei à porta do Naval. O local, todo reformado, agora
tinha límpidas paredes brancas, arquitetura requintada e ar totalmente
asséptico. Descaracterização própria de uma protomodernidade ignorantemente desmemoriada.
A foto de minha irmã não estava mais lá, assim como os porta-retratos velhos, o
cartaz do navio e tampouco a névoa de prazer. Até a porta que dava pra rua
havia virado uma simplória janela. Dava pra ver que uma conceituada consultoria
empresarial havia agido ali implacavelmente e passado o rodo em tudo que fosse
nostálgico e não-moderno, deixando o local com cara não de botequim do Mercado
Público de Porto Alegre, mas com cara de boteco bacaninha da Vila Madalena
paulista. E, eu, com cara de bobo.
Perguntei a um garçom, um loiro baixinho, onde estavam o Sr. Paulo e o.
Sr. Mauro. “Se aposentaram”, respondeu, olhando-me com uma expressão de estranhamento
desdenhoso como se eu fosse um navegante errante em águas alheias. Mas meu desapontamento
era a maior prova de que, na verdade, era ele o deslocado. Aquela indiferença
modernosa e acéfala, que valoriza apenas o novo e cuja falta de alcance nem se
presta a procurar no passado sentidos para o hoje, era o maior sinal da ação
desrespeitosa desses tempos atuais. De fato, tudo que não fosse jovem tinha
ficado para trás ali: aquelas conversas revolucionárias ou jogadas fora,
aquelas bebedeiras homéricas ou o simples trago no fim do expediente, aqueles amores
arrebatadores ou meros galanteios, aquelas figuras pitorescas ou cidadãos
comuns, aquelas geniais ideias artísticas ou importantes acordos políticos.
Tudo isso pertenceu a um tempo espacial diferente disso que se vive no dia a
dia. Um tempo não-racional impossível de ser percebido por um simples garçom
como os de hoje, que bate ponto como um escriturário. Tive o impulso de
perguntar onde tinham posto a foto de minha irmã... mas recolhi a fala.
Agradeci e fui embora, com um fio de melancolia e resignado com um mundo que
insiste em ser muito real.
Mesmo assim, não deixei de frequentar o Naval. Volto lá de vez em
quando. A comida é outra, gostosa também. Mas incomparável. Trata-se de outro
Naval, pois “aquele” Naval, dos mocotós violentos, dos saraus de poesia, dos
bate-papos inflamados, do chope perfeitamente tirado e dos tipos elegantemente
extravagantes e encantadores, como foi meu pai, não existe mais. Perdeu-se no
horizonte do oceano de lembrança, rumando para outra dimensão de tempo e
espaço. Contudo, talvez minha paixão pelo Naval permaneça porque explique,
justamente, esta minha atemporalidade ou o sentimento de, às vezes, estar
deslocado no tempo. Assim como me acontecia quando subia à proa do Naval e me
sentava à nau, com as pernas curtinhas que não encostavam o convés do
tombadilho, para navegar longe sem sair do lugar.