Que feio, Prince! Certamente deixando muitos fãs roxos de raiva
E não é que o anãozinho de Minneapolis deu uma de Tim Maia? Furou, deu cano, deu cachorro!
Soube ontem e fiquei extremamente surpreso. Lamentável. Simplesmente acabou com o Festival. Não que não tenha boas atrações, mas convenhamos que um PRINCE, é de outro nível. E o pior de tudo é que não deu nem satisfação alguma sobre o motivo. Muita filhadaputice, hein! Tão em cima da hora e sem explicações.O resultado, certamente será um bocado de decepção por parte dos fãs e um certo prejuízo aos organizadores. Com a desistência, a grande atração passa a ser a americana Macy Gray que agora, mais do que nunca, vai ter que se virar para segurar a peteca.
Prince com essa, cai um pouco no meu conceito no que diz respeito a caráter, mas ainda goza plenamente dele como músico. Um dos grandes gênios da música dos últimos tempos pena que faça dessas.
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O Festival Back2Black acontece na estação Leopoldina, aqui no Rio e hoje tem:
no palco Oi Estação Oumou Sangaré e Chaka Kahn;
no Palco Grande (substituindo Prince) Jorge Benjor; no Palco Circo Eduardo Christoph com Diogo Reis, e Badenov;
Em época que aliança pelo Brasil significa glorificar um três-oitão em nome de Deus, a gente vem pra glorificar, sim, Vossa Santidade, a boa-música. O programa de hoje vai ter de Robert Johnson a The Beatles, de Milton Nascimento a The Cure, de Criolo a Sarah Vaughan, de Moreno Veloso a The Sugarcubes. Também falaremos sobre a perda de Henry Sobel, teremos um novo “Sete-List” e, claro, “Palavra, Lê” com letra de música ao final. Haja consagração pra glorificar tanta coisa boa! Este é o Música da Cabeça de hoje, às 21h, no altar santo da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e aliança pelo certo: Daniel Rodrigues.
Ganhei
de presente de minha amada Leocádia Costa o último CD do projeto
Partimpim, de Adriana Calcanhoto: o “Partimpim Tlês” (isso
mesmo, três com “L”, bem queridinho e infantil). Como esperado,
um encanto de disco. Assim como os dois primeiros, o já fundamental
“Adriana Partimpim”, de 2004, e “Partimpim 2”, lançado
somente cinco anos depois, o novo da série traz canções infantis
(ou não) para crianças (ou não) com muita poesia e numa roupagem
ao mesmo tempo lúdica e arrojada, tendo em vista os arranjos
primorosos que vão do intimismo à vanguarda.
Tudo é muito
artesanal, mas não que se exima de usar toda uma parafernália
tecnológica e uma produção caprichadíssima. A banda, por exemplo,
conta com nada menos que craques como Kassin, Moreno Veloso, Domenico
e Berna Ceppas. Enfim, um projeto que já dura nove anos e que tem
como diferencial não subestimar a inteligência dos pequenos. A
instrumentação rebuscada, o primor das harmonias, o alto nível dos
autores e parceiros (que vão desde Augusto de Campos e Ferreira
Gullar até Péricles Cavalcanti e Arnaldo Antunes, tudo mostra o
quanto este público merece, sim, não só Xuxa ou coisa pior.
Mas
o disco? Repleto de pérolas do cancioneiro infantil ou, melhor
ainda, identificadas com muita sensibilidade por Adriana como sendo
também música que criança pode ouvir. Por que não? É o caso da
sacada de “Taj Mahal”, deJorge Bencompositor cujas letras, de
fato, sempre tiveram um quê de infantil. Também é o que acontece
com a ecológica “Passaredo”, de Chico Buarque e Francis Hime, e
a mais surpreendente e brilhante delas: “Lindo Lago do Amor”, hit
de Gonzaguinha nos anos 80 mas que nunca havia sido identificada como
podendo ser também para os pequenos ouvintes. Tem ainda, ao
contrário do primeiro da série, que só continha músicas de outros
compositores, canções próprias de Adriana – tal como já
ocorrera a partir do segundo volume. Destas, “Salada Russa”,
parceria com Paula Toller, é um verdadeiro barato com sua letra
inteligente que brinca com divertidas e inteligentes antífrases
(despertando, inclusive, a curiosidade nas crianças sobre as figuras
de linguagem).
Das
inéditas, também tem a graciosa “Criança Crionça”, do poeta
concretista Augusto de Campos e seu filho, o compositor Cid Campos –
que conta com a participação especialíssima nos créditos do
ronronar da gatinha de Adriana, a Sofia; a poética e etérea “Por
que os Peixes Falam Francês?”; e a fofa canção-de-ninar “Também
Vocês”, feita, como diz na dedicatória, para Lucinda Verissimo
cantar para seu avô (Luís Fernando Veríssimo).
Destaques
ainda para “De Onde Vem o Baião”, de Gilberto Gil (feita
originalmente para Gal Costa que a gravou em 1978), e o clássico da
bossa-nova “O Pato”, que há tempos estava caindo de maduro para
Adriana gravar no Patimpim.
O CD
desfecha em tom leve e quase “soninho” com Dorival Caymmi e sua
“Acalanto”, autor que também mereceu outra homenagem com a
maravilhosa “Tia Nastácia”, feita originalmente para a trilha
sonora do Sítio do Pica-Pau Amarelo da Globo, nos anos 70. Esse é o
melhor exemplo de que Adriana Calcanhoto, que assumiu o sobrenome
Partimpim até nos créditos, pegou pra si a responsabilidade de
seguir adiante com a tradição de trilhas para criança inteligentes
como se fizera tempo atrás em obras referenciais como "Plunct Plact Zum!!!", “O Grande Circo Místico” ou “Arca de
Noé” mas que, em tempos de progressiva imbecilidade da sociedade,
vinha se estabelecendo. Ainda bem que a Adriana (a Partimpim!) está aqui
para salvar a nós e à criançada. Longa vida a Adriana, seja a
Partimpim ou a Calcanhoto.
Raul seria o primeiro a dizer ironicamente: “Tá tudo pronto aqui, é só vir pegar”. Enquanto o Brasil se entrega pros EUA sem contrapartida, aqui a gente se entrega é para a música. E de cabeça! No programa de hoje muitos motivos para nos atirarmos assim, de olhos fechados: John Lennon, Gilberto Gil, Guilherme Arantes, Moreno Veloso, Björk, Novos Baianos e mais. Os quadros “Música de Fato” e “Palavra, Lê”, claro, estarão presentes, bem como um “Cabeça dos Outros”, o móvel desta semana. No Música da Cabeça não precisa nem bater na porta: é só chegar e entrar. O endereço vocês já sabem: rua Rádio Elétrica, nº 21h. Produção, apresentação e contrapartida: Daniel Rodrigues.
Quem disse que as tintas também não emitem sons? Quando a gente fala de Mark Rothko, artista letão que completaria 120 anos, não há como duvidar. É o que o MDC desta semana prova com todas as tintas. Nossa paleta também traz cores de Milton Nascimento, The Beatles, Moreno Veloso, Erasmo Carlos, Nirvana e outros. A verinssage abre às 21h na expositiva Rádio Elétrica. Produção e apresentação sobre tela: Daniel Rodrigues.
Caetano abrindo o show em Porto Alegre (foto: Leocádia Costa)
Um
show de Caetano Veloso, para mim, é mais do que um show: é a
confirmação de todo um paradigma de percepções e ideologias.
Vê-lo no palco é deparar-me com uma série de conceitos e formas
muito pessoais de enxergar a vida, que se confirmam e dialogam com
sua obra grandiosa e impactante. Há exatos 22 anos, com 13 de idade,
já havia tido essa experiência numa apresentação da turnê do
disco “Circuladô”, um dos melhores da carreira de Caetano. À
época, em parceria com Arto Lindsay e Peter Scherer (os Ambitious Lovers), Caê tinha em sua banda Jacques
Morelenbaum, Luiz Brasil, Dadi, Marcelo Costa, Marcos Amma e
Wellington Soares, que davam ao espetáculo, numa sonoridade
cheia e moderna, uma roupagem proto-world music – ao estilo da
forjada por Ruyichi Sakamoto e pelos próprios Ambitious Lovers nos
anos 80.
Pois,
desta vez, nada de sonoridade “rebuscada”, de banda numerosa, de
complexidade timbrística, de pop étnico-modernista. No palco, para
o show do CD "Abraçaço", apenas ele ao violão e a
competentíssima banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarras),
Marcelo Callado (baixo e teclados/efeitos eletrônicos) e Ricardo
Dias Gomes (bateria e percussão). Uma formação simples e com a
secura e objetividade do rock, o suficiente para um show espetacular.
E mais do que isso: tão conectado com a contemporaneidade como
sempre esteve este baiano, um artista fundamental para a formação
de tudo o que há de mais inovador e sintonizado há 50 anos. A maior
prova disso já estava na abertura, com o petardo “A Bossa Nova é
Foda”. Não me venham com o tributo retrô do Daft Punk ao Chic em
“Get Lucky” ou muito menos “Reflektor”, da saudada “nenhuma
novidade” Arcade Fire. A brasileira “A Bossa Nova...” é de
longe a melhor música de 2013. (coisa que muito tupiniquim
vira-latas, que nem no futebol mais vence, jamais se sentiria
merecedor.)
Embora
o público do teatro fosse bem heterogêneo em idade, a abertura rock
‘n’ roll os pegou, se não desavisados, ainda um tanto frios e
aguardando, em sua maioria, os clássicos. Que não tardaram em
aparecer. Num deslocamento temporal de 48 anos, Caetano vai de uma
canção do último trabalho para retrazer uma de seu debut, a
obra-prima “Coração Vagabundo” (de “Domingo”, gravado em
parceria com Gal Costa, em 1966). Além da ligação temática entre
ambas, visto que trazem a bossa nova de João/Tom/Vinícius em seu
cerne (na rock, em palavra; na samba, em forma), estava evidente ali
a versatilidade da banda. Dentro da concepção harmônica proposta
por Caetano, o trio executa com perfeição tanto uma quanto a outra,
visto que “Coração Vagabundo” não ficara agressiva nem perdera
a expressividade melancólica original.
O show
é uma aula de escolha de repertório, composto por obras novas e
antigas e outras bem pescadas. Aliás, comento frequentemente que
artistas como ele, donos de obras extensas, profícuas e
multirreferenciadas como um Gilberto Gil, Chico Buarque, Paul McCartney ou Stevie Wonder, têm o privilégio de poderem exercitar
infinitas variações de set list, valendo-se tanto de músicas
de sua autoria de diversas épocas como também composições de
outros que dialoguem com aquele projeto. Foi assim que Caetano seguiu
o show, intercalando faixas do ótimo "Abraçaço" (sobre o qual
já escrevi aqui no blog), como a excelente faixa-título, o
empolgante samba-reggae “Parabéns” e a “graciliana” “O
Império da Lei”, com aquelas preferidas da galera. Foi o caso da
breve mas emocionante execução de “Alguém Cantando”,
originalmente na voz de seu filho, Moreno Veloso, no álbum “Bicho”,
de 1977, e que só a tinha escutado com Caetano numa cena do filme “O
Mandarim”, do Júlio Bressane, quando o autor a canta à
capella.
Exemplo
perfeito desse encadeamento bem pensado entre os números foi a
trinca iniciada com a épica “Um Comunista”, do novo disco, que
ganha ao vivo ainda mais dramaticidade ao contar, em forma de
“biografia emotiva”, a trajetória do revolucionário baiano
Carlos Marighella pelo olhar de Caetano, conterrâneo e admirador. O
tema e a carga emocional desta desembocam na ainda mais grandiosa
“Triste Bahia”, clássica adaptação do poema de Gregório de
Matos feita por Caetano para seu célebre álbum "Transa", de
1972. O público, claro, delira com essa, tocada com muita
competência pela banda, que consegue repetir/adaptar todas as
variações rítmicas e harmônicas que a complexa melodia suscita.
Pra finalizar o conjunto de três temas, outra nova: “Estou
triste”, a deprimida canção que transportou a tristeza da Bahia
para o Rio de Janeiro (“O lugar mais frio do Rio é o meu
quarto”).
A
festa seguiu para todos os gostos. Num palco onde só se viam
cavaletes com quadros de construtivistas-minimalistas, a bela
iluminação ressaltava o que interessava: a música. A
expressividade do gestual longilíneo de Caetano se adensa no seu
canto absolutamente afinado e bem pronunciado. Vieram, assim, na
sequência, também “Odeio” e “Homem”, ambas de pegada bem
rock e do início da parceria com a banda Cê; a romântica “Quando
o galo cantou”, cuja execução ao vivo pareceu trazer-lhe com mais
vivacidade a beleza da poesia; e a “matadora” “Funk Melódico”,
das melhores e mais conceituais de "Abraçaço", em que Pedro Sá
dá um show na guitarra. Sá, aliás, é, como em todo bom show de
rock, quem sustenta a banda. Isso fica evidente na feliz recuperação
de “De Noite na Cama”, tal qual a versão original que Caetano
compusera para Erasmo Carlos em 1971. Isso se nota ainda mais na
regravação de outra clássica: “Eclipse Oculto”, um pop a la
Blitz, de 1984, que, agora, ganha peso e distorção, dando quase
para “pogueá-la”.
Caê e banda mandando
um Abraçaço para a galera
(foto: Tita Strapazzon)
As
fantásticas “Reconvexo” (imortalizada na voz da irmã Maria Bethânia), com sua poesia forte e altamente pessoal, e a picante
“Você não entende nada” aplacaram de vez o coração de fãs
como eu. Esta última, de tão querida que é na versão do disco
“Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo”, chegou a ser cantada pela
plateia no momento do refrão com os versos de “Cotidiano”, de
Chico, que se intermeia com a de Caetano naquela apresentação de
1972. No palco, Caetano cantava: “Eu quero que você venha
comigo”, e o público replicava: “Todo dia, todo dia”.
Demais.
No
bis, um erro e um acerto. Acerto por que ele abriu com nada mais,
nada menos que “Nine Out of Ten”, outra clássica do "Transa".
O erro? Pegar uma música em inglês, que não são todos que
acompanham, justo para essa volta ao palco, o que esfriou um
pouquinho a animação da saída em alto estilo com “Eu quero...”.
Mas nada demais para um repertório tão lindo e tão significativo,
biográfico em muitos dos casos, pois a música de Caetano conta a
história de muitos momentos da vida de várias gerações. É por se
identificar com isso que digo ser seu show mais do que uma mera
apresentação. Ouvir Caetano, e assim tão proximamente, é um
encontro comigo mesmo através do milagre dos sons. Foi assim em
1992, e agora novamente em 2014. Ali naquele palco, naquela
objetividade e clareza rocker que permeia a proposta desse
show, estavam muito mais do que somente ele e a banda. Estavam vivos
a Rádio Nacional, a herança ibérica, a influência árabe no
Ocidente, o sincretismo, o jazz, a filosofia, a contracultura, o
barroco, o morro. A bossa nova. Tudo numa total harmonia e simbiose –
algo que reflete minha forma de enxergar o mundo.
Depois
de tudo isso, bastava acabar com um número gostoso e pegajoso nos
ouvidos. Foi o que fez Caê ao finalizar o show com “Luz de Tieta”
(e nem aí ele diz SOMENTE isso, pois que tal música recupera Jorge
Amado e o “lirismo documental” de sua geração: Caymmi, Verger,
Caribé...). Show daqueles que se sai com a sensação de terem
valido cada centavo, com Caetano mostrando porque, aos 72 anos,
consegue ser um dos artistas mais inquietos da música mundial. Mesmo
que muito tupiniquim nem ouse admitir isso.
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da
história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não
terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem
espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no
Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e
beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o
tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão
neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra”
do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos
aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás
desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê
A melhor tradução disso é a própria faixa-título, um hino do
que se pode chamar de “neo-africanidade”. De tocante clareza, a qual busca
bases na filosofia do geógrafo e amigo Milton Santos, a música demarca um novo
ponto de partida dos negros, cujas condições sociais, econômicas, habitacionais
e culturais enxergam, diante de muita dificuldade, um horizonte. “A refavela/
Revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente/ Efervescente/ De
uma cidade a cintilar/ A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/
Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH”. A “refavela”, assim, não
é somente o lugar de morar, mas um novo espaço ideológico até então não ocupado
pelos negros e que lhes passa ser devido. Isso, encapsulado por uma sonoridade
igualmente contemplativa, como num sereno jogo de capoeira, de notas que se
equilibram entre a suavidade da raça negra e a seriedade da situação a se
enfrentar.
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso
do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra
celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/
Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela"
A presença de King Combo faz total sentido. Aquele 1977, de
fato, foi de um “re-nascimento” da cultura negra no Brasil. Se o samba via o
gênio Cartola chegar, aos 69 anos, a seu celebrado terceiro disco solo, e uma
inspirada Clara Nunes reafirmar a brasilidade de raiz, paralelamente, a soul
music e o funk extrapolavam os limites do subúrbio e chegavam ao grande
público. Estamos falando da geração “do black jovem, do Black Rio, da nova
dança no salão”, como diz um trecho da canção “Refavela”. Sintonizado com isso,
Gil olha novamente para dentro de si, neste caso, a influência latente da bossa
nova, e redesenha o clássico "Samba do Avião" sob novas cores. As
harmonias jobinianas originais ganham, aqui, um suingue funkeado ao melhor
estilo do soul brasileiro, na linha do que faziam Banda Black Rio, Carlos Dafé, Tim Maia, King Combo e outros.
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente
ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck
ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano
sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer
decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros,
buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou
do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa
nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gilcomenta e canta"Babá Alapalá"
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FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas
“Quando eu era criança, as pessoas me perguntavam: ‘como é teu nome?’ Eu respondia: Adriana Partimpim. Meu pai até hoje só me chama de ‘Partimpim’.”
Adriana Calcanhoto
"Os artistas japoneses do grande período mudavam de nome várias vezes na vida. Amo isso!!!" Adriana Partimpim
“ADRIANA CALCANHOTO: Era possível, através da música, passar para o outro lado e adentrar o mundo fascinante dos adultos...?
ADRIANA PARTIMPIM: O disco foi feito para eu ser a criança que sou hoje e não a que já fui.
ADRIANA CALCANHOTO: Então o ‘disco infantil’...
ADRIANA PARTIMPIM: Ao invés de música para crianças, tarja que não considero exata, preferi chamar de disco de CLASSIFICAÇÃO LIVRE. Que, no fundo, é tudo o que ele mais gostaria de ser.” Trecho da entrevista que Adriana Partimpim concedeu à Adriana Calcanhoto na época do lançamento do disco
Vinicius de Moraes, depois dos vários projetos literários e musicais que encabeçou durante mais de 40 anos de vida artística, voltou seu olhar, no último deles, às crianças. Nada das mulheres, das paixões ardentes, da boemia, da praia ou dos orixás. O histórico “Arca de Noé”, em parceria com Toquinho e que envolveu vários outros artistas convidados, fez escola no Brasil no que se refere à produção cultural para os pequenos. Elevou-a – junto com outros igualmente célebres, como “Sítio do Picapau Amarelo”, “Pirilimpimpim” e “Plunct Plact Zum” – a um nível de igual qualidade ao que Vinicius fizera na bossa-nova e na literatura.
Com a morte do “Poetinha”, logo após o lançamento do primeiro volume de “Arca...”, em 1980, coincidindo com a acirrada competição televisiva dos programas infantis que tomariam os anos 80, essa proposta de oferecer alta qualidade de cultura para os baixinhos foi se esvaziando. Toquinho e Paulo Leminski bem que tentaram, mas sucumbiram a “Ilariês” e assemelhados. Parecia que não haveria jamais alguém que seguisse aquele caminho aberto por Vinicius em final de vida. Porém, passadas quase duas décadas e meia, o destino levou a gaúcho-carioca Adriana Calcanhoto a assumir esse espaço com o rico – e salvador – projeto “Adriana Partimpim”, de 2004.
A ideia de Adriana, a Calcanhoto, era antiga, de 10 anos antes. À época, ela já havia recolhido temas aos quais gostaria de propor uma nova roupagem sonora, mais solta, divertida e que agradasse tanto crianças quanto adultos. O parceiro Dé Palmeiro foi quem mais incentivou. Porém, imagina-se que deva ter contribuído em certa medida a forte ligação amorosa que Adriana passou a ter com a atriz e cineasta Suzana de Moraes, filha de Vinícius, com quem se casara quatro anos antes de “Partimpim” ser lançado. Pronto: havia juntado todo o necessário: a vontade de compor o repertório, sua experiência e qualidade artística, o apoio externo e o acolhimento emocional. Muito provavelmente, o universo viniciano dentro de casa (e do coração) contagiou Adriana ainda mais, quase que como uma bênção espiritual. O resultado é um disco com alma, diferenciado: ao mesmo tempo altamente musical, tanto no que se refere à escolha do repertório quanto em arranjos e sonoridade, mas também delicioso de se ouvir, pop no melhor sentido.
Não precisa mais de meia hora para isso. De grande experiência e rara sensibilidade, Adriana seleciona dez faixas tão certeiras que parecem, mesmo com idades de composição tão diferentes entre si, terem sido escritas para integrar somente esse disco. A beleza começa com um som de scratch de rap, seguido de uma batida de samba muito gingada e um violão digno dos melhores mestres do instrumento. É "Lição de Baião", canção do repertório de Baden Powell, gravada originalmente em 1961, e que tem a participação de ninguém menos que Louis Marcel Powell, filho e sucessor da maestria do pai nas cordas de nylon. Um barato a letra que brinca – como as crianças fazem! – com as palavras em francês e em português, construindo versos misturando os dois idiomas.
Quadrinhos que ilustram a canção "Oito Anos" (adrianapartimpim.com.br/um/)
"Oito Anos", que Paula Toller compôs para responder às inúmeras (e, não raro, capciosas) perguntas do filho Gabriel, virou um grande sucesso na voz de Partimpim. É divertidíssima em sua enumeração de indagações típicas de criança que está conhecendo o mundo. “Por que as cobras matam/ Por que o vidro embaça/ Por que você se pinta/ Por que o tempo passa”, são alguns dos versos que dão ideia da encrenca que é para uma mãe responder A própria autora comenta a respeito: "Quando cantei para o Gabriel fui mais mãe-artista que artista-mãe. Agora ouço Adriana interpretando ‘Oito anos’ como um menino esperto e adorável. Na leveza da voz dela, há espontaneidade e uma sutil implicância muito bem sacada, afinal, perguntar tanto é menos para saber a resposta do que para treinar a ferramenta perguntadora e a paciência do respondedor.”
A marchinha carnavalesca "Lig-Lig-Lig-Lé", dos anos 30, ganha um arranjo colorido em que se vale bem do clima com que Adriana orientou seus músicos: “tocaram com leveza, com delicadeza e espontaneidade, com muito humor e quase nenhuma coerência”. Querida desde a época de seu lançamento, no carnaval de 1937 (o noticiário da época a classificava como “sucesso fulminante” e “destinada a um recorde de bilheteria”), é das mais divertidas faixas do disco.
Mais do que “Oito Anos”, “Fico Assim sem Você”, na sequência, foi um verdadeiro hit de “Partimpim”, colocando o disco entre os mais vendidos da época. Versando um funk melódico de Claudinho & Buchecha – e cuja original já havia feito estrondoso sucesso nos anos 90 –, não só conquistou o grande público com sua bela melodia romântica e arranjo moderno – com a programação de ritmo funkeada, o violão bossa-nova de Adriana, bem como sua delicada voz, muito afeita à melodia da canção –, como, igualmente, prestou uma bonita homenagem à dupla carioca, desfeita tragicamente em 2002 por conta da morte de Claudinho. A letra, de certa forma, prenuncia a falta que um amigo faz ao outro caso se separassem (o que, fatalmente, ocorreu): "Avião sem asa/ Fogueira sem brasa/ Sou eu assim, sem você/ Futebol sem bola/ Piu-Piu sem Frajola/ Sou eu assim, sem você...". E o refrão não pode ser mais doce: "Eu não existo longe de você/ E a solidão é o meu pior castigo/ Eu conto as horas pra poder te ver/ Mas o relógio tá de mal comigo."
Outra delícia é "Canção da Falsa Tartaruga", em que o poeta concretista Augusto de Campos, fértil parceiro de Adriana (a Calcanhoto), e seu filho, o músico e também poeta Cid Campos, versam com muita habilidade e sensibilidade um trecho de “Alice no País das Maravilhas”, clássico do escritor britânico Lewis Carroll, de 1865. O resultado é uma canção delicada, com um refrão de notas abertas tão bonito que é impossível não cantar junto sempre que se ouve: “Quem não diz: - Ave!/ Quem não diz: - Eia!/ Quem não diz: - Opa!/ Que bela Sopa!” E por que uma sopa de uma falsa tartaruga? Ora, alguém já viu uma tartaruga de verdade fazer sopa?...
Rebuscando mais um pouco o variado conhecimento musical, Adriana traz a bossa nova meiga e melancólica “Formiga Bossa Nova”, adaptação do poema do português Alexandre O’Nell que ficara conhecida, em 1969, na voz da cantora lusa Amália Rodrigues. Outra mostra do quanto a proposta de “Partimpim” não é trazer somente temas de fácil assimilação, uma vez que abarca (também) o público infantil. Caso também de “Ser de Sagitário”, composta por Péricles Cavalcanti para sua filha, que ainda não havia nascido e que ele e sua esposa não sabiam nem que sexo teria, apenas que nasceria no começo de dezembro, ou seja, na vigência do signo de sagitário. “Você metade gente/ e metade cavalo/ Durante o fim do ano/ cruza o planetário”, diz a poética e tocante letra, fazendo uma metáfora com o centauro, símbolo do signo no zodíaco.
O poetinha Vinícius de Moraes: inspiração e bênção
Na mesma linha, outra brilhante canção de “Partimpim”: “Ciranda da Bailarina”. Se “Formiga Bossa Nova” e “Ser de Sagitário” não poupam as crianças de refletirem e aguçarem seus sentimentos, esta, clássico de Edu Lobo e Chico Buarque da trilha do balé “O Grande Circo Místico”, de 1983, vale-se da fantasia e da figura de linguagem da comparação para concluir aquilo que é óbvio, mas que nem todo mundo admite: que ninguém é perfeito. Ao dizer que só a bailarina, tão artificial quanto mítica, não tem pereba, marca de bexiga ou vacina e nem dente com comida ou casca de ferida, está se deixando claro que todo mundo é ser humano. E aí é que está a beleza! Afinal,“sala sem mobília/ Goteira na vasilha/ Problema na família/ Quem não tem?” Bela versão de Adriana em que seus violão e vocal apurados funcionam muito bem novamente. Fora que ainda lhe foi permitido finalmente dizer a ridiculamente proibida palavra “pentelho” sem o grosseiro corte da censura como ocorreu na versão original, ainda dos tempos de Ditadura.
Os craques da nova MPB Moreno Veloso, Kassin e Domênico, este último, autor de "Borboleta", canção encomendada especialmente a ele por Adriana para o disco, antecede outra das especiais de “Partimpim”: “Saiba”, que o encerra. Lindamente classificada como“uma canção para ninar adultos”, “Saiba”, de Arnaldo Antunes, fecha o disco com a mais doce e profunda poesia, pondo os baixinhos para refletirem sobre coisa séria, mas necessária - e, por que não dizer, comum. A música leva o ouvinte a pensar sobre a condição humana a partir de uma proposição óbvia, porém pouco elucubrada: a de que “todo mundo foi criança” e que o ciclo da vida, inevitavelmente, se encerra um dia. Como não ficar tocado por versos como estes? “Saiba/ Todo mundo teve infância/ Maomé já foi criança/ Arquimedes, Buda, Galileu/ e também você e eu”. A letra ainda tem a função educativa de apresentar versos e termos rebuscados, como os nomes estrangeiros Nietzsche e Sadam Hussein, ou rimas diferentes do comum: “Simone de Beauvoir” com “Fernandinho Beira-Mar” ou “Pinochet” com “você”, ambas rimas de classificação “preciosa”, um tipo raro que combina palavras de idiomas distintos. Um final emocionante e que lembra, em certa medida, as melancólicas “Menininha” e “O filho que eu quero ter”, que finalizam os dois volumes de “Arca de Noé”, respectivamente.
A brincadeira de assumir outra personalidade foi levada a sério (sic) por Adriana, a Calcanhoto, que deu vida à outra Adriana, a Partimpim. Com nome artístico independente de sua criadora, a criatura Adriana Partimpim deu tão certo, que, além deste primeiro álbum, outros dois ótimos vieram a seguir (2009 e 2012), além de dois DVD’s ao vivo igualmente imperdíveis. Mais do que isso: o projeto Partimpim pareceu simbolizar um salto qualitativo na obra e na carreira de Calcanhoto, um momento em que ela conseguiu reunir sua competência artística, estética e performática a seus mais íntimos sentimentos. E o resultado foi algo genuíno. Infantil? Adulto? Tanto faz. Como conseguira Vinícius de Moraes em “Arca...”, o trabalho das Adrianas, a Calcanhoto e a Partimpim, rompeu as fronteiras da idade dos ouvintes e da idade do tempo. Afinal, contempla, igualmente, as crianças grandes e os pequenos adultos.
Clipe de"Fico Assim sem Você"
********************************** FAIXAS: 1. "Lição de Baião" (Daniel Marechal/Jadir de Castro) - 03:16 2. "Oito Anos" (Dunga/Paula Toller) - 03:08 3. "Lig-Lig-Lig-Lé" (Oswaldo Santiago/Paulo Barbosa) - 02:38 4. "Fico Assim Sem Você" (Abdullah/Cacá Moraes) - 03:08 5. "Canção da Falsa Tartaruga" (Augusto de Campos/Cid Campos sobre texto de Lewis Carroll) - 04:07 6. "Formiga Bossa Nova" (Alain Oulman/Alexandre O'Neill) - 02:28 7. "Ciranda da Bailarina" (Chico Buarque/Edu Lobo) - 02:49 8. "Ser de Sagitário" (Péricles Cavalcanti) - 03:03 9. "Borboleta" (Domênico Lancellotti) - 02:30 10. "Saiba" (Arnaldo Antunes) - 03:01
ESPECIAL DIA DA MULHER Eles compõem. Mas a voz é delas
porDaniel Rodrigues
com colaboração dePaulo Moreira
Michael Jackson e Diana Ross: devoção à sua musa
Mestre Monarco disse certa vez que, embora a maioria quase absoluta de sambistas compositores sejam homens, nada sairia do zero sem a autoridade das pastoras. Se aquele samba inventado por eles entrasse numa roda de pagode e as cantoras da quadra não o "comprassem", ou seja, não o considerasse bom o suficiente para ser entoado, de nada valia ter gasto tutano compondo-o. Era como se nem tivesse sido escrito: pode descartar e passar para o próximo. Isso porque, segundo o ilustre membro da Velha Guarda da Portela, são as cantoras da comunidade que escolhem os sambas, que fazem passar a existir como obra de fato algo até então pertencente ao campo da imaginação. A voz masculina, afirma Monarco, não tem beleza suficiente para fazer revelar o verdadeiro mistério de um samba. A da mulher, sim.
Cale e Nico: sintonia
Talvez Monarco se surpreenda com a constatação de que seu entendimento sobra a alma da música vai além do samba e que não é apenas ele que pensa assim. Seja no rock, no pop, no jazz ou na soul music, outros compositores como ele partilham de uma ideia semelhante: a de que, por mais que se esforcem ou também saibam cantar (caso do próprio Monarco, dono de um barítono invejável), nada se iguala ao timbre feminino. Este é o que casa melhor com a melodia. Se comparar uma mesma canção cantada por um homem e por uma intérprete, na grande maioria das vezes ela é quem sairá vencendo.
A recente parceria de Gil e Roberta Sá
Isso talvez não seja facilmente explicável, mas é com certeza absorvível pelos ouvidos com naturalidade. Por que, então, o Pink Floyd poria para cantar "The Great Gig in the Sky" Clare Torry e não os próprios Gilmour ou Waters? Ou Milton Nascimento, um dos mais admirados cantores da música mundial, em chamar Alaíde Costa especialmente para interpretar "Me Deixa em Paz" em meio a 20 outras faixas cantadas por ele ou Lô Borges em “Clube da Esquina”? Ao se ouvir o resultado de apenas estes dois exemplos fica fácil entender o porquê da escolha.
Nesta linha, então, em homenagem ao Dia da Mulher, selecionamos 7 trabalhos da música em que autores homens criaram obras especialmente para as suas “musas” cantarem. De diferentes épocas, são repertórios totalmente novos, fresquinhos, dados de presente para que elas, as cantoras, apenas pusessem suas vozes. “Apenas”, aliás, é um eufemismo, visto que é por causa da voz delas que essas obras existem, pois, mais do que somente a característica sonora própria da emissão das cordas vocais, é o talento delas que preenche a música. Elas que sabem revelar o mistério. “Música” é uma palavra essencialmente feminina, e isso explica muita coisa.
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Elizeth Cardoso– “Canção do Amor Demais” (1958) Compositores: Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes
"Rua Nascimento Silva, 107/ Você ensinando pra Elizeth/ As canções de 'Canção do Amor Demais'", escreveu Tom Jobim na canção em que relembra quando, jovens, ele e o parceiro Vinicius compuseram um disco inteirinho para a então grande cantora brasileira: Elizeth Cardoso. Eram tempos de pré-bossa nova, movimento o qual este revolucionário disco, aliás, é o responsável por inaugurar. Mesmo que o gênero tenha ficado posteriormente conhecido pelo canto econômico por influência de João Gilberto e Nara Leão, o estilo classudo a la Rádio Nacional da “Divina” se encaixa perfeitamente às então novas criações da dupla, que havia feito recente sucesso compondo em parceria a trilha da peça “Orfeu da Conceição”, de 3 anos antes. Um desfile de obras-primas que, imediatamente, se transformavam em clássicos do cancioneiro brasileiro: “Estrada Branca”, “Eu não Existo sem Você”, “Modinha” e outras. O próprio João, inclusive, afia seus acordes dissonantes em duas faixas: a clássica “Chega de Saudade” e a talvez mais bela do disco “Outra Vez”.
FAIXAS 1. "Chega de Saudade" 2. "Serenata do Adeus" 3. "As Praias Desertas" 4. "Caminho de Pedra" 5. "Luciana" 6. "Janelas Abertas" 7. "Eu não Existo sem Você" 8. "Outra Vez" 9. "Medo de Amar" 10. "Estrada Branca" 11. "Vida Bela (Praia Branca)" 12. "Modinha" 13. "Canção do Amor demais" OUÇA
Dionne Warwick – “Presenting Dionne Warwick” (1963) Compositores: Burt Bacharach e Hal David
Raramente uma cantora começa uma carreira ganhando um repertório praticamente todo novo (cerca de 90% do disco) e a produção de uma das mais geniais duplas da história da música moderna: Burt Bacharach e Hal David. Mais raro ainda é merecer tamanho merecimento. Pois Dionne Warwick é esta artista. A cantora havia chamado a atenção de David e Bacharach, que estavam procurando a voz ideal para suas sentimentais baladas. Não poderia ter dado mais certo. Ela, que se tornaria uma das maiores hitmakers da música soul norte-americana – inclusive com músicas deles – emplaca já de cara sucessos como "Don't Make Me Over", "Wishin' and Hopin'", "Make It Easy on Yourself", "This Empty Place".
FAIXAS 1. "This Empty Place" 2. "Wishin' and Hopin'" 3. "I Cry Alone" 4. "Zip-a-Dee-Doo-Dah" (Ray Gilbert, Allie Wrubel) 5. "Make the Music Play" 6. "If You See Bill" (Luther Dixon) 7. "Don't Make Me Over" 8. "It's Love That Really Counts" 9. "Unlucky" (Lillian Shockley, Bobby Banks) 10. "I Smiled Yesterday" 11. "Make It Easy on Yourself" 12. "The Love of a Boy" Todas de autoria David e Bacharach,, exceto indicadas OUÇA
Nico– “The Marble Index” (1968)
Compositor: John Cale
Diferente de Dionne, Nico já era uma artista conhecida tanto como modelo, como atriz (havia feito uma ponta no cult movie “La Dolce Vita”, de Fellini) como, principalmente, por ter pertencido ao grupo que demarcaria o início do rock alternativo, a Velvet Underground, apadrinhados por Andy Wahrol e ao qual Cale era um dos cabeças ao lado de Lou Reed. Já havia, inclusive, gravado, em 1967, um disco, o cult imediato “Chelsea Girl”. Porém, coincidiu de tanto ela (que não gostara do resultado do seu primeiro disco) quanto Cale (de saída da Velvet) quererem alçar voos diferentes e explorar novas musicalidades. Totalmente composto, produzido e tocado por Cale, “Marble”, predecessor do dark, é sombrio, denso, enigmático e exótico. A voz grave de Nico, claro, colabora muito para essa poética sonora. A parceria deu tão certo que a dupla repetiria a mesma fórmula em outros dois ótimos discos: “Deserthore” (1970) e “The End” (1974).
Na segunda metade dos anos 70, quando a era disco e a black music dominavam as pistas e as paradas, foi comum a várias cantoras norte-americanas gravarem discos com esta atmosfera. Aretha Franklin fez a seu modo: para a trilha sonora de um filme inspirado na história das Supremes, chamou um dos gênios da soul, Curtis Mayfield, para lhe escrever um repertório próprio. Deu em um dos melhores discos da carreira da Rainha do Soul, álbum presente na lista dos 200 álbuns definitivos no Rock and Roll Hall of Fame. As gingadas “Jump” e “Rock With Me”, bem como as melodiosas ‘”Hooked on Your Love”, “Look into Your Heart” e a faixa-título, não poderiam ter sido compostas por ninguém menos do que o autor de “Superfly”.
Já que lembramos das Supremes, então é hora de falar da mais ilustre do conjunto vocal feminino: Diana Ross. Com uma longa discografia entre os discos com a banda e os da carreira solo, em 1985 ela ganha de presente do amigo e admirador Barry Gibb, líder da Bee Gees, baladas e canções pop esculpidas para a sua voz aguda e sentimental. De sonoridade bem AOR anos 80, o disco tem, além de Gibb, a da devoção de outro célebre músico à sua idolatrada cantora: Michael Jackson. Seu ex-parceiro de palcos, estúdios e de cinema, o autor de “Thriller” coassina a esfuziante faixa-título para a sua madrinha na música. Merecida e bonita homenagem.
A afinidade de Caetano e Gal é profunda e vem de antes de gravarem o primeiro disco de suas carreiras juntos, em 1966, “Domingo” – quando ele, aliás, compôs as primeiras músicas para a voz dela, como as célebres “Coração Vagabundo” e “Avarandado”. Ela o gravaria várias vezes durante a longa carreira, não raro com temas escritos especialmente. “Recanto”, disco que já listamos em ÁLBUNS FUNDAMENTAIS e entre os melhores da MPB dos anos 2010, é, de certa forma, a maturidade dessa relação pessoal e musical de ambos. “Recanto Escuro” e “Tudo Dói” são declarações muito subjetivas de Caetano tentando perscrutar a alma de Gal, o que vale também para o sentido inverso. Referência da música brasileira do início do século XXI, o disco, que tem a ajuda fundamental de Kassin e Moreno nos arranjos e produção, é, acima de tudo, a cumplicidade entre Caê e Gal, estes dois monstros da música, vertida em sons e palavras.
Talvez este seja o único caso entre os listados em que a cantora não está à altura do repertório que recebeu. Não que Roberta Sá não tenha qualidades: é afinada, graciosa e tem lá a sua personalidade. Mas que sua interpretação fica devendo à qualidade suprema da música do mestre Gil fica. “Giro”, no entanto, é bem apreciável, principalmente faixas como “Nem”, “Afogamento”, “Autorretratinho” e “Ela Diz que Me Ama”, em que a artista potiguar consegue reunir novamente Gil e Jorge BenJor, num samba-rock típico deste último: os contracantos, o coro masculino como o do tempo do Trio Mocotó e a batida de violão intensa, a qual Gil – conhecedor como poucos do universo do parceiro –, se encarrega de tocar.