Cantar, Recantar
“Quando eu subo no
palco,
com esse som, os músicos, o repertório,
com tudo que ele representa pra
mim e pras pessoas,
é uma emoção muito forte.
É como uma entidade que me toma,
me arrebata. É o meu momento e também
é meu encontro com Caetano,
que sempre
gera alguma coisa forte, big-bang.”
Gal Costa
Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho.
Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também
cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde
“Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi em vão: assim como o mencionado LP
dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o
norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela
dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e
Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o
colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros
compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o
obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do
“mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova
obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” –
abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do
restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão.
Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de
onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que
poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico e texturado
de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis,
um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno,
ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro,
que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock
“Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial
eletro-monofonia “Neguinho”, um Nine Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo
quanto que remete também ao krautrock
de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e
ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”,
ou ainda: “Neguinho quer justiça e
harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga
tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal”
de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello
e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami
Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano
consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo
dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo
estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no
repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por
remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma
embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heroico da MPB não ficam só em Gal, mas em
Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o
histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme
Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos, agora é o jovem Kassin (ao
lado da banda escolhida por Caetano: Pedro Baby, guitarras, e Domenico, bateria
e eletrônicos,) que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra
autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com "Lindoneia", do Tropicália 1
(1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária
(não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete, Nara
Leão).
À época do lançamento, notou-se certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez,
não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal
interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente
parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois até mesmo os que
elogiaram, acostumados a criticá-lo sem fundamento, não parecem saber por que o
fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de
interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco
comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia
experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul”
(1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira
com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do
Tropicália 2 (1993).
O fato é que “Recanto” é demais. Certa vez, outro colaborador deste
blog, Lúcio Agacê, ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a
“finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha produzindo
se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é alguém
que está sempre se renovando. Se comparado com a fraca Gal que veio
degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90, isso é
plenamente verdade. Mas tropicalista é tropicalista. E se compará-la àqueles seus
primeiros idos, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e,
principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente.
Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de
“Recanto” recupera a daquela época - mesmo com quase 40 anos de atraso.
Num ano de 2012 que teve um ótimo Chico Buarque, um surpreendente
Criolo e um elogiado Lenine, também houve uma nova Gal recantando-se. Antes
tarde do que nunca.
"Recanto Escuro" - Gal Costa
FAIXAS:
1. Recanto Escuro - 3:51
2. Cara do Mundo - 2:52
3. Autotune Autoerótico - 3:40
4. Tudo Dói - 2:41
5. Neguinho - 5:35
6. O Menino - 4:28
7. Madre Deus - 3:35
8. Mansidão - 3:32
9. Sexo e Dinheiro - 3:40
10. Miami Maculelê - 4:06
11. Segunda - 3:49
todas as composições de Caetano
Veloso
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