Posso dizer que estive muito próximo de Monarco desde
bastante tempo. Certamente não tanto quanto os amigos, parceiros, moradores da
comunidade de Madureira ou Oswaldo Cruz, dos portelenses que tinham o
privilégio de conviver com ele. Mas meu contato com o mestre, que nos deixou no
último dezembro, certamente foi muito maior do que para com muitos artistas que
admiro mas que, como acontece na maioria dos casos, uma admiração somente à
distância. Por isso, arrisco em afirmar que estive, pelo menos três vezes, quando não a metros, por um fio de distância de Monarco. Tão próximo que seria possível ouvir-lhe, como um bumbo de samba, a batida do coração.
Primeira vez que o vi presencialmente foi em 2014 quando este,
juntamente com a Velha Guarda da Portela, presenteou Porto Alegre em uma
apresentação ao vivo – e de graça – em pleno parque da Redenção para a
celebração dos 80 da UFRGS. Já havia ficado um tanto frustrado em 2010 quando, com minha mãe, fui á quadra do bloco Cordão da Bola Preta, no Rio de Janeiro, para uma feijoada em que tocaria a Velha Guarda da Portela, mas ele foi um dos ausentes. Na Redenção, no entanto, a alegria foi completa. Que momento histórico aquele! Lembro que foi uma
sexta-feira, em que Leocádia e eu saímos de nossos compromissos e rumamos
direto para o local do show, próximo ao espelho d’água. Com seu barítono em
dia, mesmo com os mesmos 80 anos da universidade que o convidara, o baluarte,
acompanhado das pastoras e de uma competente banda, fez sua escola do coração tomar
conta do parque com sambas clássicos de sua autoria e de outros bambas como ele
tanto da Portela quanto de outras agremiações.
Aliás, abrindo um parêntese aqui: igual a ele, talvez não
tenha existido. Hildemar Diniz cruzou praticamente todos os momentos
importantes nos últimos 70 anos do samba carioca e da Portela, agremiação da qual
tinha apenas 10 anos menos. Monarco conviveu e cambiou com os principais nomes
da sua comunidade e do samba carioca: Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Candeia,
Natal, Cartola, Manacéia, Nelson Sargento, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Paulinho da Viola,
Tia Vicentina, Dona Ivone Lara, Casquinha, Áurea Maria, Surica entre tantos outros. Uma simbiose
que muitos não tiveram talento, nem perseverança e nem tempo de vida para
tanto. Presidente de Hora da escola, Monarco tinha mais do que somente um
título honorário mas sem propósito prático. Era quase como um cacique, um pai
de santo, um líder religioso, uma majestade cujo respeito foi conquistado durante a vida e a quem todos recorriam
para pedir-lhe a benção. A autoridade de um monarca do samba.
Mas voltando às minhas vezes com Monarco, a segunda em que o
vi bem de perto foi dois anos depois do show em Porto Alegre numa apresentação
no CCBB do Rio de Janeiro celebrando os 100 anos do samba, quando, além de
Leocádia, ainda tive o prazer da companhia de minha mãe, que, sempre antenada
na programação cultural carioca, nos levou àquele deleitoso momento que contava
também com a participação de Nei Lopes. O velho mas lúcido Monarco, então com apenas 18 anos menos que o próprio samba, não só
cantou como contou histórias, o que fazia com maestria tanto quanto seus
sambas, verdadeiras crônicas cotidianas.
Da discografia de Monarco, no entanto, “Terreiro”, seu segundo dos sete
solo, de 1980, é talvez o mais especial. Com os companheiros de Velha Guarda, mas
também outros craques como Mestre Marçal, Valdir 7 Cordas e o filho e parceiro
Mauro Diniz, o disco desfila em azul e branco sambas de todas as épocas invariavelmente
com a maestria de sua interpretação. Nas composições, as elegantes melodias de nuanças eruditas se
juntam às letras que namoram com a melhor poesia parnasiana de um “sambista-historiador”,
como definiu Sérgio Cabral. Dos temas do próprio Monarco tem “Homenagem À Velha
Guarda” (“Vi os sambistas de fato/ Manacéia e Lonato e outros mais/ Juro que
fiquei boquiaberto/ Nunca me senti tão perto/ Da Portela dos tempos atrás”), “Você
Pensa Que Eu Me Apaixonei” (com Alcides), “Proposta Amorosa” e a clássica “Passado
de Glória” (“A Mangueira de Cartola, velhos tempos do apogeu/ O Estácio de
Ismael, dizendo que o samba era seu/ Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos
só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”), daquelas que não podem faltar em qualquer
apresentação da Velha Guarda.
No disco tem também espaço para outras escolas que não só a
Portela: “Silenciar a Mangueira”, numa interpretação inédita do amigo Cartola que
morreria naquele mesmo ano, e “Estácio de Sá Glória do Samba”, em que Monarco,
como era de sua natureza, deixa o clubismo de lado e homenageia uma das
comunidades fundadoras do carnaval carioca. Prevalecem, no entanto, as
composições de portelenses como ele. A linda “Chuva” (Hortêncio Rocha), a lírica
“Conselho de Vadio” (Alvarenga) e a ufanista “Feliz Eu Vivo no Morro”
(Josias/Pernambuco/Chatim). Tão bom quanto, o pot-pourri “Temporal” (Tia Doca), “Mulher
Vai Procurar Teu Dono” (Rufino), “Caco Velho” (Caetano), e “Serei Teu Ioiô”
(Paulo da Portela/Monarco) é uma mostra mais do que perfeita da grandiosidade
poética e melódica da turma de Madureira.
Fora isso, as audições, tantas e tantas. “Tudo Azul”, da Velha Guarda da Portela, de 1999, furei de tanto ouvir. E quantos sambas, quantas joias da nossa cultura! “Lenço”, “O Quitandeiro”, “Coração em Desalinho”, "Obrigado pelas Flores", “Portela Desde Que Eu Nasci”, “Ingratidão”, “Agora é Tarde”, “De Paulo a Paulinho”, “Pobre Passarinho”... Ah, tanta beleza, que se for falar mais de Monarco, hoje eu não vou terminar.
Ah, mas faltou falar da terceira ocasião em que me vi junto a
Monarco. Pois bem: embora mais longe fisicamente, foi a vez em que, curiosamente, tive-lhe
mais perto. No início de 2019, minha irmã Kaká Reis, produtora cultural,
trabalhava com o velho bamba e, por ideia de meu outro irmão e coeditor do blog, Cly Reis, arranjou-me
para meu programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, uma entrevista com Monarco,
com quem ela estaria em São Paulo para um show. Kaká não apenas viabilizou a
conversa e a gravação como mediou a entrevista a partir das questões que
cuidadosamente elaborei. No camarim, horas antes de subir ao palco, Monarco,
com toda sua simpatia e sabedoria, prestou-lhe(me) uma entrevista deliciosa,
que marcou a centésima edição do meu programa. A se considerar que irmãos são
nós mesmos em outro corpo, posso dizer que estive, sim, com Monarco. Bem próximo,
a seu lado, falando com ele. A centímetros do coração. E ele – como sempre fez
através de sua obra grandiosa – falando comigo.
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FAIXAS:
Daniel Rodrigues