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sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Aum - "Belorizonte" (1983)

 

"Dedicado a Belo Horizonte"
Dedicatória da contracapa do disco

Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...

Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.

A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.  

Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.

Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”. 

Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).

Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges.  Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.

O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.

“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.

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FAIXAS:
01. "Tema pra Malu" (Taquinho) - 5:12
02. "Serra do Curral" Marcio) - 2:55
03. "Belo Horizonte" (Aum) - 9:36
04. "Nas Nuvens" (Betinho) - 3:58
05. "4:15" (Marcio) - 4:15
06. "Tice" (Betinho) - 7:20

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Milton Nascimento & Criolo - "Existe Amor" (2020)



"Criolo é um dos artistas mais criativos com quem já convivi na vida. Conheço poucas pessoas que conseguem fazer letra e música do jeito que ele faz." 
Milton Nascimento

“Milton é um ser de luz. Isso não se explica, apenas, se sente.” 
Criolo

Milton Nascimento, além de ser um dos gênios vivos da música mundial, celebrado por gente do calibre de Wayne Shorter, Caetano Veloso, Elis Regina, Herbie Hancock e Esperanza Spalding, é conhecido pela generosidade. Tanto é que seus pares costumeiros, como Wagner Tiso ou Lô Borges, ou esporádicos, como Chico Buarque e Gilberto Gil, o elegem como o melhor parceiro para se escrever música. Generoso, porém, exigente. Não é qualquer um que coassina ou divide com ele o palco ou os microfones – quanto mais, autorias. Criolo, no entanto, está neste seleto time. Desde 2005, quando escreveram a primeira canção juntos, “Dez Anjos”, para o disco “Estratosférica”, de Gal Costa, o rapper paulista entrou para o panteão de compositores a comungarem arte com Bituca como os já citados Chico, Caetano e Gil, bem como os célebres Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô e Márcio Borges e outros privilegiados. O EP “Existe Amor”, produzido por Daniel Ganjaman, deste ano, já chega com o peso de ratificar esse encontro de duas gerações como o mais representativo da MPB na década. Obra essencial para a sustentação da sanidade brasileira, sagazmente contradiz os versos do próprio Criolo para lançar um sopro de esperança e resistência em meio a um caos sanitário, político e econômico que vive o Brasil.

Encontro de gerações e de almas
O impacto é forte, o que não quer dizer que, para isso, tenha-se usado toda a tonelagem. Afinal, o experiente Milton sabe muito bem que tamanho não é documento. Afeito aos formatos mais enxutos de obras sonoras, mesmo tendo lançado uma série de álbuns extensos na carreira – como os duplos “Clube da Esquina I” e “II”, “Milagre dos Peixes – Ao Vivo” e “Txai” –, o mineiro nunca deixou de apostar em compactos e EP’s. Foi assim com o emblemático “Milton & Chico”, de 1977, que trazia apenas duas faixas, as obras-primas “O Sal da Terra” e “1º de Maio”, ou com o também marcante “RPM Milton”, de 1987, quando o experiente músico soube extrair da banda de Paulo Ricardo o melhor que esta guardava já em um período pré-dissolução. Agora, com Criolo, no entanto, o tratamento ganhou ainda maior requinte.

A começar pela sensibilidade inequívoca do pianista pernambucano Amaro Freitas, um dos maiores talentos da MPB/Jazz brasileira dos últimos anos, convidado para tocar e assinar o arranjo de duas das quatro do projeto: a clássica “Cais” (de Milton e Ronaldo, escrita em 1971) e a música a qual se tira sabiamente o controverso título, “Não Existe Amor em SP” (esta, de Criolo, do seu “Nó na Orelha”, de 2011). Amaro dá uma coloração que une nitidez e abstratismo, mas em tons introspectivos, oníricos, que reinventam canções já eternizadas no cancioneiro brasileiro. Mais do que regravações, tomam caráter de ressignificação, principalmente, “Não Existe...”, cuja mensagem deliberadamente crítica de Criolo à sociedade e ao mundo materialista é endossada pelo canto incomparável de Milton.

Não apenas estas duas, mas existe ainda mais amor em “Existe Amor”. Além das duas gravadas com o toque virtuoso de Amaro Freitas, o disco apresenta duas gravações feitas pelos artistas em 2018 com regência de Arthur Verocai, outra lenda da música brasileira, compositor, arranjador e maestro carioca presente em obras memoráveis da MPB como “Por que é Proibido Pisar na Grama”, de Jorge Ben (1971), e “Pra Aquietar”, de Luiz Melodia (1973), além de seus próprios trabalhos solo, considerados cult no Brasil e no exterior. Dessa safra, Milton e Criolo regravam com a fineza dos arranjos de Verocai a já citada “Dez Anjos” e “O Tambor”, esta, parceria dos dois últimos, originalmente registada no último álbum de Verocai, “No Voo do Urubu”, de 2016. Se com Criolo a relação é mais recente, com Milton os caminhos de Verocai se cruzaram já no final dos anos 60, quando participaram do movimento Músicanossa junto de outros compositores como Roberto Menescal e Marcos Valle. Ou seja: tudo em casa, conexões certas em todos os pontos. Outras duas preciosidades que, embora difiram do arranjo contemplativo e da textura pianística das primeiras, em nada destoam no conjunto da obra, formando um disco curto, mas 100% assertivo. Um novo clássico da música brasileira.

Além da qualidade musical, a reunião também tem méritos humanistas. A venda do EP pretende arrecadar projeto R$ 1 milhão para um projeto em conjunto com a agência AKQA e o Coala.Lab para ajudar pessoas durante a pandemia do Coronavírus. Milton, em depoimento sobre a atual situação do país e o desafio cidadão deste momento, falou: “E, diante desse cenário que se mostra cada dia mais absurdo, precisamos fazer a nossa parte, urgente.” O parceiro, por sua vez, engrossa o coro: “'Arte cria energia para a luta contra quem fomenta o mal”. Ao que depender dos dois, a chama da elaboração crítica fará com que os justos sobrevivam a tamanho obscurantismo e perversidade do Brasil atual. Ao contrário de todo o mar de negatividade que se impõem, eles nos dão um lugar - de fala e de escuta. Essa "SP" real e imaginária que representa a todos. A rebeldia, a não aceitação, a insubmissão como maior prova de amor. É a negação dos versos originais ("Não existe amor") como um chamado positivo de salvamento ("Existe Amor"). Por sorte, ele ainda existe em todas as “SP’s” simbólicas a que Milton e Criolo nos loteiam.

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FAIXAS:

1. "Cais" (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) - participação: Amaro Freitas - 6:03
2. "Dez Anjos" (Milton/Criolo) - 4:53
3. "Não Existe Amor em SP" (Criolo) - participação: Amaro Freitas - 5:48
4. "O Tambor" (Arthur Verocai/Criolo) - 3:25


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Vídeo de "Cais", com Milton Nascimento, Criolo e Amaro Freitas


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Herbie Hancock e Wayne Shorter - Brasil Jazz Fest - Vivo Rio - Rio de Janeiro (01/04/2016)



A permanente reinvenção
por Daniel Rodrigues

As lendas vivas do jazz apaludidas de pé pelo Vivo Rio.
foto: Leocádia Costa
No final do longo documentário “Jazz”, que soma mais de 12 horas de registros e documentação, Ken Burns, seu realizador, lança o questionamento de que rumos o jazz tomaria no futuro. Entre promessas e incertezas, um dos argumentos era o de que o estilo sempre soube se reinventar, e que seus artífices têm gravado em seu espírito essa incumbência. Não que se trate da criação de um novo gênero no jazz, mas o que se viu no Vivo Rio na noite do último dia 1º de abril foi, certamente, fruto dessa alma inquieta e pulsante dos verdadeiros jazzistas. Herbie Hancock e Wayne Shorter, justamente dois dos músicos mais revolucionários do jazz e da música moderna do século XX, subiram ao palco para justificar que o estilo ainda tem muito, mas muito fôlego em ternos de criação e improviso.

Em apenas sete números, presenciou-se dois músicos completamente absorvidos por sua arte. Mesmo num espaço amplo e lotado (não apenas de fãs, mas infelizmente também de protoadmiradores que, claro, não tiveram paciência para apreciar o que estava acontecendo), Hancock e Shorter exibiram uma apresentação intimista. Altamente concentrados em cada nota, em cada ataque, em cada hesitação para, aí sim, entrar no tempo certo que sua emoção diz. Hancock, mais vivaz, era quem comandava a harmonia, fosse em seu piano de cauda, em seu teclado Korg ou no sintetizador, do qual extraía climas em loops e efeitos não raro desconcertantes. Shorter, um pouco fechado no início (intimidado não é o mais adequado ou provável), soltou-se de tal forma que foi ele quem, por outro lado, conduziu a emoção do público em vários momentos. Os improvisos são econômicos e nunca extensos; às vezes, quase lacônicos. Há quem possa lhe atribuir à idade avançada e a inevitável perda de capacidade pulmonar (82 anos, enquanto Hancock, mesmo também vovô, tem sete a menos), mas a sensação nítida que me ficou foi a de um Shorter ainda mais dominador dos tempos e das figuras sonoras que cria. Muitas vezes, foi possível ver Miles Davis no palco, o mestre que ensinou à dupla a arte do essencial – embora ambos tenham aprendido também a intempestividade do free-jazz.

Aliás, uma reelaboração do free-jazz talvez seja uma definição possível para o show apresentado pelos jazzistas norte-americanos. Entretanto, a classificação não é assim tão simplória, visto que não deixaram de lado as vivências do fusion, da música clássica, da vanguarda erudita e, por que não, do próprio jazz que lhes formou, o hard bop e o modal, que tanto dominam. Em meio a improvisos e construções baseadas nessa premissa, houve momentos de viagens cósmicas, motivados pelo piano e teclado transcendentes de Hancock, e da mais fina delicadeza, seja no dedilhado sensível ou nas frases budistas do sax soprano de Shorter. Uma montanha-russa de emoções.

O que se viu foi, de fato, duas entidades, duas velhas entidades da música em pleno exercício de liberdade, como amadores cheios de vida. Propondo um conteúdo denso e hermético, com altas cargas de musicalidade, Hancock e Shorter tiveram a jovial e admirável coragem de inovar. Com aplausos garantidos somente pelo que representam, eles podiam muito bem tocar para a galera apenas os clássicos, quando muito intercalando algum tema mais “difícil” para facilitar a deglutição do público. Não. Eles seguiram o caminho de seus corações e da arte que tanto respeitam e militam. Entraram e fizeram aquilo que se propunham, que faz sentido para eles. E se fizer sentido para alguém do público, que bom: intenção atingida. No meu caso, foi mais do que plenamente. A honestidade deles era tanta que até mesmos no meio de solos engendrados ali, no calor do improviso, era possível identificar seus estilos, seus modos e até referenciar a alguns temas do passado em que tocaram juntos, como “The All Seeing Eye”, composição de Shorter de 1965, na abertura do show.

O bis não poderia ter sido melhor: no mesmo clima free, a dupla lançou "Encontros e Despedidas", de Fernando Brant e Milton Nascimento – este último, na plateia prestigiando os amigos como já o vi fazendo. O riff da canção se funde ao próprio solo do saxofone, diluindo-se nos acordes e no andamento. Se por um lado esse número foi o único respiro àqueles que esperavam standarts cantaroláveis para contar aos amigos que ouviram a música que conheceram no Youtube, o clássico da MPB (e do jazz moderno mundial) fechou com a mesma dignidade de toda a apresentação: com densidão e alma. Herbie Hancock e Wayne Shorter nos presentearam com uma celebração do jazz em seu estado essencial: o da permanente reinvenção.

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Enterprise de sons e timbres
por Paulo Moreira

Herbie manipulando os teclados e sntetizadores.
foto: Leocádia Costa
Foi um começo de luxo! O Vivo Rio esteve completamente lotado para ver a abertura do Brasil Jazz Fest com Herbie Hancock e Wayne Shorter. O zum-zum vinha de São Paulo: eles não tocam nenhum hit. Nem "Cantaloupe Island", nem "Footprints". Nem música reconhecível. "É só viagem...". Por mais de 70 minutos – e com direito a DOIS bis – Herbie & Wayne transportaram a plateia para um outro universo. Um outro estágio. Basicamente fazendo uso de um piano e um sax soprano - e intervenções esporádicas de um teclado - os veteranos músicos mostraram que a idade avançada (Herbie tem 75 anos e Wayne 82!) não é sinônimo de acomodação. Ambos tiveram a coragem de apostar no desconhecido e nas habilidades técnicas e de feeling para nos carregar a outro patamar sensitivo-musical.

Percebendo o convite, os presentes embarcaram nesta Enterprise de sons e timbres e se deixou viajar no cosmos musical sem precisar de gasolina. Até mesmo as eventuais explorações do teclado foram digeridas pelo público. Em certo momento, Herbie & Wayne me lembraram outra parceria de piano e sax soprano que também se utilizou do free-jazz como base nas improvisações: Mal Waldron & Steve Lacy, que tocaram no início dos anos 2000 no falecido e saudoso Chivas Jazz Festival.

Como bônus, Wayne troca de palheta em pleno palco e ataca de "Encontros e Despedidas", de Milton Nascimento, que estava na plateia, brincando com a melodia e fazendo um jogo de gato-e-rato com citações de músicas do repertório do amigo brasileiro. A reação do público foi tão carinhosa que Hancock, ao final, espantado, perguntou se tinha sido divertido. Claro que foi, seu Herbert. Quem esteve lá compreendeu que grandes instrumentistas e criadores estão sempre de olho no futuro. Mesmo tendo uma bagagem de 50 e tantos anos de serviços prestados à música dos Séculos XX e XXI.

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A Magia da Música
por Cly Reis


Hancock e Shorter em pleno improviso.
foto: Leocádia Costa
Um daqueles momentos sublimes que se vive poucas vezes na vida. A oportunidade de presenciar a apresentação de dois gênios da humanidade justificando plenamente toda a expectativa que se cria quando se fala em verdadeiras lendas da música reunidas em um palco. E digo gênios sem medo de pecar pelo exagero porque tudo o que desfilaram na noite gloriosa no palco do Vivo Rio não foi nada menos que genialidade. Numa apresentação memorável Wayne Shorter empunhando seu saxofone e Herbie Hancock comandando seu piano e eventualmente um teclado, exibiram técnica, criatividade e ousadia em números longos inspirados e cheios de improvisações quase impensáveis para nós pobres mortais. Podem ter decepcionado um pouco aos que já tivessem ido com alguma preconcepção do espetáculo e com expectativas prontas de repertório, uma vez que não tocaram seus clássicos ou suas obras mais badaladas, mas tenho certeza que todos que perceberam o verdadeiro espírito do show e que deixaram suas sensibilidades os guiarem não só não tiveram nenhum tipo de desapontamento, como, pelo contrário, ficaram gratos pela opção da dupla. Alguns foram embora cedo, é verdade, e lamento por eles, não penas por não terem entendimento para o que estava ocorrendo ali mas também pelo que perderam pois nós que ficamos pudemos nos regozijar com aquela magia que pairava no ar a ponto de quase abandonarmos nossos corpos levados pela música.
Uma noite mágica em que dois gigantes da música nos proporcionaram momentos de prazer e elevação espiritual e, em meio a este universo atualmente tão saturado de coisas pobres, repetitivas, insignificantes e descartáveis, fizeram o favor de nos lembrar porque a música é, antes de mais nada, arte.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Exposição “Visões na Coleção Ludwig” – CCBB – Belo Horizonte/MG (Agosto/2014)









Eu me escorando num dos pilares da "Ruína" de Lichtenstein

Numa rápida passagem por Belo Horizonte antes de irmos a Ouro Preto, Leocádia e eu pudemos desfrutar de algumas coisas boas da capital mineira. Conhecemos o mítico bairro Santa Tereza, berço do Clube da Esquina de Milton Nascimento, Lô Borges, Fernando Brant, Wagner Tiso e tantos outros talentos; almoçamos no colorido Mercado Central no tradicional – e concorrido – restaurante Casa Cheia; e ainda conhecemos alguns das obras de Oscar Niemeyer no Complexo da Pampulha: o Museu de Arte, a Casa de Baile e a deslumbrante Igreja São Francisco, embrionárias da arquitetura moderna.

O impactante óleo
"Cabeças Grandes"
de Picasso
Porém, para nossa surpresa e felicidade, fomos recomendados por um francês dono do hostel onde nos hospedamos a visitar uma exposição no CCBB, num lindo prédio art nouveau dos anos 20 (antigo Comando Geral das Forças Revolucionárias, durante a Revolução de 1930), na Praça da Liberdade, centrão da cidade. Até tínhamos ideia de ir a alguma exposição, mas quando ele nos mencionou que, nesta em especial, haveria obras de Andy WarholPablo Picasso e Jean-Michel Basquiat providenciamos logo de incluir em nosso roteiro. A tal mostra é "Visões na Coleção Ludwig", que reúne 70 obras provenientes do acervo do colecionador alemão Peter Ludwig, sediada no Museu Estatal Russo de São Petersburgo, e o Cly Reis já havia comentado aqui quando da passagem da mesma pelo Rio de Janeiro. Com curadoria de Evgenia Petrova e Joseph Kiblitsky, conta com obras-primas da arte pop, do neoexpressionismo alemão, do fotorrealismo e outros movimentos de arte a partir dos anos 1960 até hoje.

Boquiaberto com a obra
coassinada por
Basquiat e Warhol
Fora os já citados, havia artistas que gostamos muito e de significância para nosso universo ideológico, como o norte-americano Roy Lichtenstein, numa gigante serigrafia pop art com clara referência a Dalí e De Chirico; o alemão Joseph Beuys, cuja escultura em bronze de 1949 (“Mulher animal”) traz seu característico toque sarcástico; e o sueco Claes Ondenburg, a quem Leocádia já conhecia me apresentou a obra “Banana-splits e sorvetes de degustação”, pequena instalação em gesso, cerâmica e aço que mina tanto o consumismo quanto as indústrias bélica, alimentícia e do sexo. Com outros, vimos pela primeira vez (Robert Rauschenberg, Anselm Kiefer, Claudio Bravo, Julia Zastava e George Baselitz, por exemplo). Uns interessantes, outros, nem tanto; mas, de um modo geral, bem legal. A começar pela impressionante tela a óleo “Cabeça de criança” (1991), de Gottfried Helnwein, com 6,50m tomados de hiperrealismo, que já nos saltara aos olhos no belo pátio interno do prédio.

Escultura de Beuys,
sempre contundente
No entanto, o que realmente nos impactou foram os mestres. Já na primeira sala após a entrada, deparamo-nos com um enorme Picasso, o óleo sobre tela “Cabeças grandes”, de 1969. Emocionante, de tirar o fôlego. Tivemos certeza de estarmos diante de um feito histórico, o que até agora, de certa forma, ainda não nos recobramos. Afinal, ver um Picasso ao vivo é sempre uma experiência incrível – só havia tido essa oportunidade em apenas duas ocasiões no passado. Pintura que alia a natureza figurativo-geométrica do cubismo a uma tocante liberdade no traço e nas paletas dignas de um artista apaixonado por sua profissão e totalmente maduro (o catalão morreria dali a apenas 4 anos). A sensação de choque seguiu-nos logo ao lado: um Warhol, um retrato do próprio Ludwig, imagem, inclusive, usada na arte oficial da mostra. Uma serigrafia bem a seu estilo, com toques cubistas no corte da figura em linhas geométricas, construindo-a em blocos de cores e implicações psicológicas distintas, além de seu peculiar traço (provavelmente, em giz) pincelando algumas linhas do desenho.

As simbólicas e nefastas taças de sorvete de Ondenburg
Mais adiante, na terceira sala, ainda não refeitos do impacto de ver essas peças, assim mais um Lichtenstein, um Beuys e outros bem interessantes, uma nova maravilha: outro enorme óleo sobre tela, este fruto da parceria entre Basquiat e Warhol, de 1984, ambos já nos seus últimos anos de vida. Numa palavra: impressionante. Toda a violência, inquietação e poesia do neo-expressionismo de Basquiat, expostos sem concessões nas imagens borradas e inconclusas; nos escritos que ora se completam, ora são propositadamente rabiscados; nas figuras cadavéricas e sofridas; na referência ao grafite e à arte urbana; na repetição doentia de elementos e símbolos. Tudo isso, se mistura com naturalidade ao já mencionado traço warhiano: a combinação vermelho-azul da raiz da pop art; o uso de signos da publicidade e do cartoon. Os dois artistas conseguem realizar uma feliz junção de referências, estilos e escolas: o jovem Basquiat, com sua genialidade a serviço de uma desenfreada busca inconsciente; e Warhol, experiente, doente e muito mais vivido que o companheiro e cujas marcas que a vida impusera (boas e ruins) se transportavam para as obras dessa última grande fase de sua carreira.
A modelo Claudia Schiffer
em foto de Gunter Sachs

Visto esses, o resto era só aproveitar. Já estava garantida a visitação. Ainda tivemos a oportunidade de ver a clássica “Cleópatra Claudia Schiffer”, foto publicitário-artística do alemão Gunter Sachs que virou referência nas revistas de moda nos anos 90. Enfim, uma boa indicação que recebemos e que fazemos a quem estiver ou for à gostosa Beagá.









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Visões na Coleção Ludwig
Visitação até 20 de outubro, de quarta a segunda das 9h às 21h
Local: Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte - CCBB
Praça da Liberdade, 450 – Funcionários - Belo Horizonte - MG
Ingresso: gratuito





texto:
fotos:


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Stanley Jordan & Dudu Lima Trio - 2º Festival BB Seguridade de Blues e Jazz – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (08/10/2016)



Jordan acompanhado da Dudu Lima Trio.
A estabilidade que a primavera traz ao tempo reservou um dia ensolarado no parque da Redenção para receber o 2º Festival BB Seguridade de Blues e Jazz. Após passar por São Paulo, Recife e Brasília, este interessante festival reuniu nomes nacionais e internacionais em torno de ambos os gêneros, como Hamilton de Holanda, João Maldonado Trio, O Bando, Maria Gadú e a Orleans Street Jazz Band. Estima-se que 32 mil pessoas estiveram no parque curtindo o dia com a família e os amigos. Entre estes, Leocádia e eu.
Como não dava pra passar o dia, fomos no horário que pegaríamos os dois shows que mais nos interessavam: o da banda carioca Blues Etílicos e, em seguida, do guitarrista norte-americano Stanley Jordan. Se bem que, quando apontamos no parque, ainda dava pra ouvir, mesmo que de longe, Hamilton de Holanda detonando seu bandolim. Quando nos acomodamos, já no intervalo entre uma apresentação e outra, aparecem os paulistas da Orleans Street Jazz Band tocando no meio da galera. Alto astral aquele som de jazz do sul norte-americano, com direito a tuba, trompete, trombone, sax, banjo e percussão. As melhores das boas-vindas.

Orleans Street Jazz Band no 2º Festival BB Seguridade de Blues e Jazz

Logo em seguida veio a Blues Etílicos. Embora as letras deixem a desejar, a sonoridade é do mais poderoso e original blues eletrificado. Destaque para o guitarrista Otávio Rocha e seus slides impiedosos. É ele quem segura o som de um berimbau extraído da própria guitarra na música “Dente de Ouro”, misto de baião e blues, a melhor da apresentação. Também teve participação do blueseiro gaúcho Solon Fishbone em “Puro Malte”, noutro momento muito legal em que três guitarras se somaram.
Foi então a vez de Stanley Jordan subir ao palco. Ele, que havíamos perdido de ver quando do Canoas Jazz Festival, em 2014, deu um show curto mas delicioso. Isso que o tal Dudu Lima quase pôs água no chope! O músico mineiro, baixista e líder do trio que apoiou Jordan, começou o show tocando a “Suíte BItuca”, versão jazz fusion para “Fé Cega, Faca Amolada”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, com incursões de outras melodias, como a de “Raça”, também de Milton, e “Asa Branca”, clássico de Luiz Gonzaga. Até aí, tudo bem. Acontece que quando Jordan entra definitivamente para tocarem a primeira juntos, “Clube da Esquina nº 2”, outra de Milton, esta parceria com Lô Borges. A beleza da interpretação passa a ganhar tons de exagero por parte de Dudu Lima, que se perde, sai do compasso e inventa improvisos mais ruidosos do que melódicos.
Pensamos: “Tudo bem, vai ver que estão esquentando ainda”. Veio, então, o tema seguinte, “Regina” de autoria d Dudu. Estavam os dois ali, tocando juntos quando, no meio da execução, o autor, decerto por achar a autoria motivo para tal, desce do palco para tocar no meio do público (!). Não que não possa fazer isso, mas no SEGUNDO número? E justo ele, o coadjuvante do show? Totalmente despropositado. Jordan, na sua simplicidade, ficou no palco fazendo base para o exibido lá embaixo. O bom foi que, a partir dali, tudo se rearrumou. O mestre Jordan permanece no palco para, sozinho agora, mandar ver duas suítes solo impressionantes. Uma delas é a originalmente linda “Eleanor Rigby”, clássico dos Beatles presente no terceiro álbum de Jordan, o memorável “Magic Touch”, de 1985. Um desbunde. Ele aproveita as linhas vocais, do cello e dos violinos da original de 1966 para fazer o mesmo, só que apenas na guitarra. Usando sempre das duas mãos, as quais tocam geralmente ao mesmo tempo, o característico tapping – técnica que evoluiu com ele –, a exuberante forma de Jordan tocar comove e impressiona.
A banda volta ao palco, agora trocando seu bom baterista Leandro Scio por um verdadeiro craque: o mestre Ivan Conti “Mamão”, integrante da lendária banda de jazz-soul brasileira Azymuth. Não tinha como dar errado, e até Dudu Lima, agora mais contido, passou a contribuir com seu competente baixo elétrico. Uma linda execução de “Partido Alto”, faixa do disco da Azymuth "Light As A Feather", de 1979. Mamão, com sua experiência e suingue, dá outra atmosfera para a sonoridade, um ganho que faz com que toda a banda cresça e Jordan, por sua vez, conseguisse desenvolver ainda mais sua habilidade como solista.
A formação com Mamão arrepiou em outro jazz fusion estonteante, com variações de ritmo, agilidade e performance de todos, claro, principalmente de Jordan. É o guitarrista que puxa, enfim, novamente acompanhado do trio do começo, o número final, que o público reconhece já nos primeiros acordes. É “Stairway to Heaven”, o clássico hard-rock da Led Zeppelin. Como fizera com a canção de Lennon e McCartney, nesta Jordan utiliza todas as possibilidades harmônicas criadas pelo riff de Jimmy Page, ora valendo-se da suavidade do dedilhado, ora transformando a guitarra em piano, ora roncando em palhetadas. Até sons de bandolim e viola é possível ouvir da guitarra de Jordan. Um final digno de um show que valeu a pena aguardar esses dois anos para assistir.

vídeo de “Stairway to Heaven” por Stanley Jordan e Dudu Lima Trio



Céu azul e muita gente na Redenção.

A  Orleans Street Jazz Band toca no meio do público.

A inusitada percussão da OSJB.

A Blues Etílicos mandando ver no blues eletrificado.

No telão, Jordan e Dudu solando.

Galera aproveitando o gramado e a sombra das árvores.

Olha quem veio assitir ao festival.




por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Som Imaginário - “Matança do Porco” (1973)



A capa original, em cima,
e a da reedição de 2003
“Foi uma época de muita coisa.
 Eu voltei da Europa na turnê que eu fiz com o Paulo Moura,
logo depois do show do Bituca com o ‘Clube da Esquina’.
É um disco que eu compus todo na Europa,
chamado ‘Matança do Porco’.
 Música que, inclusive, tem no disco ao vivo do Milton,
o ‘Milagre dos Peixes Ao Vivo’.
 Você vê que as ideias estavam ali.
Foi a nossa época de laboratório mesmo.
Serviu para o resto das nossas vidas.”
Wagner Tiso


Milton Nascimento foi sempre o cabeça e congregador do chamado Clube da Esquina, esse time de artistas de Minas Gerais que mudou a cara da MPB desde a conturbada segunda metade dos anos 60 de Ditadura Militar no Brasil. Em torno de Bituca – e muitas vezes até motivados por ele, como no caso de Fernando Brant e Lô Borges – se configurou a movimentação musical que trouxe novas linguagem e referências à música brasileira e até mundial se se considerar seu pioneirismo naquilo que passou a se chamar tempo depois de world musicWayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy JonesEric Clapton, Paul Simon, Carminho entendem isso muito bem. Porém, dos diversos talentos surgidos à época e/ou junto com Bituca, um deles é quase tão fundamental: o maestro Wagner Tiso. Surpreendentemente autodidata (o saxofonista e clarinetista Paulo Moura, exímio arranjador, apenas lhe deu toques sobre teoria), é naturalmente dono de um estilo de tocar piano e de orquestrar que bebe no colorido de Claude Debussy e na força expressiva de Richard Wagner, além de sua veia sacra, a qual adquiriu ainda pequeno nas igrejas do interior de Minas que frequentava. Se Milton é o símbolo do Clube da Esquina, principal compositor e propulsor da cena, Tiso é o centro harmônico, o homem que aperfeiçoou a ideia e lhe deu lastro.

Tiso, sempre muito ligado a Milton Nascimento (ambos são naturais de Três Pontas), já era o principal arranjador e regente dos trabalhos deste desde o LP “Milton”, de 1970, mesmo ano em que, juntamente com Luis Alves (baixo), Frederyko (guitarra) e Robertinho Silva (bateria) forma uma banda de apoio para o parceiro. Assim surgiu a Som Imaginário, para a qual ainda foram convocados para completar o grupo nada mais, nada menos que três craques: Tavito (violão), Zé Rodrix (voz, órgão, flautas) e Naná Vasconcelos (percussão). Um time de primeira. Além das essenciais participações nos trabalhos de Milton e na de gente do calibre de MPB-4, Marcos Valle, Gal Costa, Odair José, Sueli Costa, dentre outros, a banda mantinha também carreira própria. Depois de dois discos em que Rodrix comandava os microfones (“Som Imaginário”, de 1970, e “Nova Estrela”, de 1971) a Som Imaginário, sem este e Naná, sintetiza sua sonoridade psicodélica e até lisérgica e compõem um álbum totalmente instrumental: “Matança do Porco”, de 1973. Nele, a MPB se junta com felicidade ao rock progressivo, ao jazz e à música clássica em seis canções assinadas por Tiso em que todos os músicos se esmeram nos instrumentos. Solos magníficos, arranjos deslumbrantes e orquestrações idem, cujas regências tiveram ainda a fina colaboração de Moura, maestro Gaya e Arthur Verocai. Este último trabalho de estúdio do grupo é uma obra-prima da música instrumental no Brasil.

“Armina”, com sua melodia valseada e melancólica, não apenas abre o disco com o piano altamente erudito de Tiso como, igualmente, recorta-o todo, aparecendo em vinhetas/excertos entre os outros cinco temas durante todo o decorrer, desfechando-o também, inclusive. A canção dá o clima do álbum, cujo peso do rock, o swing do samba-jazz e a energia do fusion são ciclicamente reconduzidos à atmosfera do tema-tronco, o qual traça uma linha entre o litúrgico e o a herança modernista do folclórico bachiano de Villa-Lobos. Entretanto, na alquimia natural da Som Imaginário, de cara se ouve um potente jazz-rock de baixo-guitarra-bateria-órgão, que faz um pequeno preâmbulo para, aí sim, dar lugar ao piano de Tiso. Depois de um lindo solo, que traz delicadeza ao número, a banda retorna vigorosa – a melodia lembra “I Want You (She's So Heavy)”, dos Beatles, na parte do “She so heavyyyy...”, para ver o nível de grandioculência – para um exímio e longo solo da guitarra rasgante de Frederyko, ao estilo de John McLaughlin. Por volta de 4 minutos e meio, param todos os instrumentos elétricos para novamente ouvir-se o dedilhado acústico do piano, fazendo ressurgir a valsa tristonha.

Agora sob o som de um piano elétrico, “A 3”, extremamente moderna, sintoniza com o que Hermeto Pascoal, Airto Moreira e João Donato vinham fazendo nos Estados Unidos àquela época e embasbacando os gringos: um jazz brasileiro com ritmo, harmonias complexas e uma habilidade musical peculiar dos trópicos. Show de perícia de toda a banda, que, levados pelos teclados, ganham o acompanhamento da percussão do mestre Chico Batera e da flauta de outro professor, Danilo Caymmi. Uma curta e orquestrada “Armínia”, arregimentada por Verocai – e na qual se notam os toques de sua sofisticação harmônica, principalmente na predileção pelos metais ouvidos ao final –, antecipa “A nº 2”, que inicia como um samba cadenciado conduzido por uma linha de órgão. Vão se adicionando as melodiosas vozes dos Golden Boys, solos da guitarra e cordas, num crescendo de emoção. Até que, pouco antes dos 5 minutos, o baixo de Luis manda um groove e a música dá uma virada para um jazz-funk estupendo. Tiso troca o órgão para o Hammond; Luis e Fredera, mantendo a base em repetições ágeis; Robertinho; segurando o ritmo na variação caixa/prato de ataque. Arrasador. Digno de um “Headhunters”, de Hancock, ou “On the Corner”, de Miles Davis.

A faixa-título, que eu conheci no disco de Milton, “Milagre dos Peixes Ao Vivo” (1974), surpreendendo-me por demais já daquela feita, não perde em nada no estúdio. Aliás, até ganha, tendo em vista que os registros ao vivo da época eram deficitários tecnologicamente (o caso). Além do mais, o próprio Bituca empresta aqui a sua voz. Então: serviço completo, nada faltando. Sugestivo, o título remete ao arcaico ritual de abate de suínos típico do folclore português e que, obviamente, devido a seus requintes de crueldade, exprime algo de visceral e funesto vivido à época no Brasil de Regime Militar. Como se tratava de uma canção “sem letra”, os milicos a consideraram inofensiva e deixaram passar pela censura. Isso faz com que “Matança do Porco”, música e disco, alinhem-se, pela via de um “silêncio resistente”, a “Milagre dos Peixes” de estúdio, daquele mesmo ano de 1973, que os militares censuraram praticamente todas as letras, transformando-o, forçadamente, num álbum semi-instrumental. Este aqui é instrumental de propósito, pois não há palavras para exprimir o sentimento nefasto que se presenciava. Os sons, dados à imaginação, falam por si.

Nos mais de 11 minutos da canção “Matança do Porco”, ponto alto do disco, deságuam boa parte da musicalidade construída pela turma do Clube da Esquina. Seguindo a atmosfera erudita que domina o álbum, trata-se de um pequeno réquiem transgressor, entre o rock e o jazz. Traz o vigor de um rock progressivo, que lembra o Pink Floyd psicodélico pré-"Wish You Were Here", ainda mais pela novamente excelente performance de Frederyko debulhando a guitarra – e não deixando nada a dever a um David Gilmour. O primeiro “movimento” inicia lento com acordes 2/2 de Tiso ao piano, que exercita uma breve introdução (Kyrie e Gloria) enquanto vão entrando aos poucos os outros instrumentos até chegar na guitarra, que, distorcida, se adona do campo. São quase 5 minutos de um solo dividido em dois momentos (algo que se poderia intitular como “A Preparação”, Credo, e “A Desforra”, Sanctus) que vai num crescendo e toma uma carga emotiva tamanha com o poder de carregar consigo os outros integrantes, ao final igualmente em êxtase. Robertinho dá um show de rolos e condução; Tiso, centro da peça, lança impressionantes ataques e improvisos jazzísticos. O ritual de morte chega a seu ápice. O sangue escorre. Morte.

Valendo-se fartamente de seu conhecimento erudito, Tiso corta mais uma vez a canção para, numa fusão para um segundo ato, arregimentar a partir dali uma volumosa orquestra Odeon (conduzida por Gaya), a qual toca uma melodia triste (um Benedictus), como uma prece à ignorância humana. Entram o coro dos Golden Boys formando um cantochão gregoriano. Junto, para realçar ainda mais a beleza melancólica do tema, a guitarra volta a marcar a base e Milton soma ao coro o seu inconfundível timbre, executando vocalises arrepiantes. O final, no órgão, desfecha-a num evidente tom fúnebre de Missa dos Defuntos, até voltar ao toque quase de cantiga de roda dos primeiros acordes. Agnus Dei. Um desbunde. O porco e o cidadão brasileiro, perseguidos e sem voz, foram abatidos. “Quem é animal e quem é gente?”, fica a pergunta.

Depois de tanta magnitude, uma gostosa “Armina” com ares de bossa-nova ameniza o astral visitando Tom Jobim e Billy Blanco. “Bolero”, na sequência, é uma balada com riff bem rural escrita em parceria com Luis, Robertinho e Milton, este último de quem evidentemente partiu a ideia do violão-base tocado por Tavito, outro dos coautores. Nova mostra de habilidade dos músicos em que Tiso, principalmente, se destaca manipulando os dois pianos, assim como a flauta de Danilo Caymmi. O filho do gênio baiano é quem dá os primeiros acordes de “Mar Azul”, outro samba-jazz moderníssimo feito para os dedos de Tiso maravilharem num Hammond, tanto quanto Tavito ao violão 12 cordas. Da segunda metade para o fim, é geral o show de improvisos. Jazz brasileiro puro.

A intensidade orquestral finaliza este histórico álbum com a quarta e última seção de “Armina”, novamente com o toque de Verocai, que carrega nas cordas e metais no início para, aos poucos, verter a sonoridade para as madeiras, numa transição extremamente apurada e apenas perceptível quando a flauta entoa a última nota, haja vista que aumenta um tom para terminar não num registro suave, mas grave como deveria ser. Na capa da reedição em CD, de 2003, vê-se um plano geral de uma mesa dá bem a dimensão do período de tristeza e decadência que o País um dia se colocou: copos, garrafas de cerveja e de uísque, todos vazios, acompanham um cinzeiro lotado de cinzas e baganas e um papel surrado sobre um dos copos – que bem pode ser uma carta a um ente querido impossível de ser postada por causa do cerco da ditadura ou uma confissão de suicídio.

Naquele 1973, o enganoso “milagre brasileiro” do governo Médici escondia ainda mais as torturas, perseguições e exílios promovidos desde o AI-5, de cinco anos antes. As guerrilhas eram enfraquecidas e a população, quando não ignorante, se calava à força. Sem precisar dizer quase nenhuma palavra, “Matança do Porco” e “Milagre dos Peixes” formam um dos mais potentes libelos contra a opressão da ditadura militar no Brasil, duas sinfonias em nome da liberdade que todo brasileiro decente de então merecia. É o poder da música, é a magia dos sons. Sons capazes de despertar o imaginário de quem consegue entender o que é dito pelo coração.
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FAIXAS:
01. Armina
02. A3
03. Armina (Vinheta)
04. A n° 2
05. A Matança do Porco
06. Armina (Vinheta 2)
07. Bolero (Tiso/Milton Nascimento/ Robertinho Silva/Tavito/Luis Alves)
08. Mar Azul (Tiso/Alves)
09. Armina (Vinheta 3)
todas as músicas compostas por Wagner Tiso, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:







segunda-feira, 28 de setembro de 2020

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 90


Há cinco anos, publicávamos aqui no Clyblog uma série de três longas matérias com listas dos filmes essenciais para se entender o cinema brasileiro do século XX, fazendo um recorte de suas três principais décadas produtivas: 60, 70 e 80. Por motivos óbvios, os desfalcados anos 90 não entraram nessa primeira série, haja vista a impossibilidade de se equiparar em importância com estas outras décadas uma vez que seu esforço foi muito menos pela manutenção da qualidade obtida anteriormente do que, principalmente, pela sobrevivência do audiovisual brasileiro. A puxada de tapete do governo Collor ao destruir a exitosa Embrafilme não ofereceu nenhuma alternativa substitutiva à altura que garantisse a continuidade do trabalho de milhares de profissionais e da importante arte cinematográfica brasileira.

Porém, os anos se passaram aqui no blog e, com eles, chegamos ao final da década de 2010, em que o cinema brasileiro, devidamente retomado de seus percalços (será?!), torna a ganhar o circuito internacional com filmes não apenas bem realizados, como essenciais para a nova cinematografia mundial, caso de "Cidade de Deus", "Tropa de Elite" e, mais recentemente, “Bacurau”. Mesmo que o correto seja compreender o final da década assim que concluir o ano em que estamos, e só começar a contar uma nova década a partir de 2021, quem imaginaria que viria a Covid-19 para congelar tudo, afetando, principalmente, o setor cultural e, com ele, a produção cinematográfica? Se havia ainda alguma esperança de que novos títulos se somassem aos produzidos nos últimos 9 anos para cá, a pandemia, bastante ajudada pela política inimiga da cultura do atual governo brasileiro, forçou para que se acabasse de vez a década.

Entre a última década do século passado e a que estamos, restam, claro, os primeiros 10 anos do novo século. Vamos reconstruir, então, a essência do que foi produzido no cinema brasileiro nos últimos 30 anos, começando pelos 90. Se a recorrente falta de prioridade para com a cultura e a arte da política brasileira fez de tudo para acabar com o cinema nacional, fique esta sabendo que não conseguiu. Produções escassas, mirradas, prejudicadas, mas mesmo assim, resistentes. Deste modo, selecionamos aqui 20 títulos essenciais para entender esta década que, com todos estes percalços, ainda assim mantém qualidade suficiente para não deverem nada a títulos de outras décadas mais abastadas. Uma exceção fazemos aqui, no entanto: não apenas por contar fatalmente de menos filmes classificáveis, os anos 90 são sinônimo de “retomada” para o cinema no Brasil, fase a qual se encerraria apenas com o marco “Cidade de Deus”, de 2002, um ano depois da instituição da Ancine. Então, coerentemente com a construção histórica do novo cinema brasileiro, incluímos as produções do ano de 2000 nesta primeira listagem. A partir dali, uma nova era viria.





1 - “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”, de Carla Camurati (95): O filme de estreia de Camurati é o marco de resistência do cinema brasileiro pós-Collor, quase um manifesto, que bradava: “É possível, mesmo com toda a dificuldade, fazer cinema autoral no Brasil!”. Cheio de hiatos e desconexões (propositais ou não), tem, além desta simbologia (que já lhe seria suficiente para integrar esta lista), o mérito de trazer algumas características que se consolidariam no cinema brasileiro nas décadas seguintes: a coprodução com países estrangeiros, a linguagem cômica, a edição ágil e a abordagem crítica.






2 - “O Quatrilho”, de Fábio Barreto (95): Há quem torça o nariz para certa pasteurização do filme rodado no interior do Rio Grande do Sul sobre a obra de José Clemente Pozzenatto, mas é fato que, com ele, os Barreto reabriram as portas do Brasil para o mercado internacional com a inédita indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na história do cinema brasileiro – feito que ocorreria apenas mais duas vezes. E isso num momento em que jamais se esperaria algum reconhecimento vindo de um ainda agonizante cinema pela quebra da Embrafilme. Um bom romance, com seus méritos.





3 - “O Mandarim”, de Julio Bressane (95): Enquanto os Barreto encabeçavam uma nova investida na internacionalização do cinema brasileiro e Camurati tentava redirecionar os rumos das coisas por aqui, o bom e velho transgressor Julio Bressane aperfeiçoava seu cinema-poesia. Assim como em “Tabu”, “Brás Cubas” e os “Os Sermões”, a música é quase um personagem, neste caso, para contar a proto-biografia de Mário Reis (Fernando Eiras), mas não sem o “auxílio luxuoso” de Caetano Veloso, Chico Buarque (fazendo eles mesmos), Gilberto Gil (encarnando Sinhô) e Edu Lobo (fazendo as vezes de Tom Jobim). Tudo de forma artesanal, barata e genial.




4 - “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (96): O filme de Waltinho e Daniela tem o poder de vencer a contramaré vivida pelo cinema nacional àqueles idos a ponte de tornar-se um dos mais importantes filmes da cinematografia nacional. Tanto que está na lista da Abraccine dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Uma história sobre solidão e resgate das próprias raízes motivado justamente pelo confisco promovido pelo mesmo presidente Collor que extinguiu tanto o dinheiro do brasileiro quanto o da Embrafilme. Fotografia impecável p&b de Walter Carvalho, trilha excelente de Zé Miguel Wisnik e até dedo de Millôr Fernandes nos diálogos. Um luxo em época de vacas magras.







5 - “Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (96): Na esteira da mais revolucionária cena cultural do Brasil dos últimos 30 anos, o mangue beat, o filme marco da retomada do cinema pernambucano, retraz questões formativas da cultura nordestina (o cangaço, o “Ciclo do Recife” dos anos 20, os superoitistas dos anos 70, o sotaque, a antropomorfia) com uma roupagem moderna. Se não é necessariamente um filme bom, é altamente representativo e indispensável para se entender o cinema brasileiro de então, visto que abriu portas para a entrada de talentos de outros pernambucanos como Kleber Mendonça Filho, Cláudio Assis, Hilton Lacerda e Marcelo Lordello.







6 - “Guerra de Canudos”, de Sérgio Rezende (96): Afeito aos temas da História do Brasil, Rezende, após realizar seu grande filme, “O Homem da Capa Preta”, em 86, viu-se, assim como seus pares, totalmente descapitalizado para realizar seu trabalho. O que não foi motivo para abandonar o projeto sobre a real história do líder Antônio Conselheiro e a sangrenta guerra contra as forças do Império extraída do épico “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Wilker, que já havia protagonizado “O Homem...”, está brilhante no papel principal. Produção cara que, mesmo os justificáveis defeitos de produção, não apagam o brilho.







7 - “Tieta do Agreste”, de Cacá Diegues (96): O tarimbado Cacá foi dos que sofreu bastante com a quase inviabilização do cinema no Brasil da era Collor. Após o paupérrimo longa de episódios “Veja Esta Canção”, de 94, parecia que nunca mais viriam grandes produções de outrora como “Quilombo” ou “Xica da Silva”. Mas o sempre obstinado cineasta surpreende com um filme recheado de qualidades: texto baseado e revisado pelo próprio Jorge Amado, Sônia Braga brilhante como Tieta, Chico Anysio tornando a fazer cinema como o velho Zé Esteves, trilha de Caetano, fora outras. Uma delícia de filme.





8 - “A Ostra e o Vento”, de Walter Lima Jr. (97): Assim como Cacá e Bressane, Walter é outro experiente realizador nascido no Cinema Novo. Porém, tem como característica o empreendimento de projetos muito peculiares, como esta bela adaptação do romance de Moacir C. Lopes, que conta com roteiro dele e de Flávio Tambellini (que se tornaria um dos cineastas de vulto no cinema nacional), fotografia de Pedro Farkas, música de Wagner Tiso e a linda canção original de Chico. Lima Duarte, Castrinho e Fernando Torres excelentes, além da jovem Leandra Leal, estreando na tela grande com uma inesquecível atuação sobre um tema raramente explorado com tanta assertividade: o florescer da sexualidade feminina.






9 - “Os Matadores”, de Beto Brant (97): Fala-se muito de “O Invasor”, de 2002, mas em “Os Matadores”, primeiro longa do talentoso paulista Beto Brant, ele já introduzia sua contribuição ao cinema brasileiro com um estilo autoral, de forte apelo literário, com histórias inspiradas na realidade em diálogo com o tempo presente e onde o ator tem espaço para contribuir na narrativa. Além disso, em resposta à falta de perspectivas vivida pela classe cinematográfica brasileira no início dos anos 90, trazia um conceito “enxuto”: projetos racionalizados sob o ponto de vista da produção, com equipes de trabalho formadas por amigos, que se transformam em parceiros constantes. Na sua estreia, Brant já saiu abocanhando o prêmio de melhor direção no Festival de Cinema de Gramado.






10 - “O Que é Isso, Companheiro?”, de Bruno Barreto (97): Criado em 91 como mecanismo do incentivo à cultura, a Lei Rouanet começou a, de fato, render frutos anos depois. Após emplacar a inédita disputa ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com “O Quatrilho”, um ano depois o Brasil colocava outro candidato à estatueta: o bom “O Que...”, baseado no Best-seller biográfico de Fernando Gabeira. Novamente, são os Barreto os responsáveis pelo feito. Além das excelentes atuações de Pedro Cardoso, Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, o filme avança no espaço aberto por “Carlota Joaquina” no sentido da coprodução estrangeira, o que resulta nas participações do craque Alan Arkin no elenco e da excelente trilha do ex-Police Stewart Copeland.





11 - “Pequeno Dicionário Amoroso”, de Sandra Werneck (97): A Globo Filmes, a partir da década seguinte, vulgarizaria o estilo comédia feita com atores da emissora, lançando aos montes subproduções sem nenhuma qualidade, quanto menos pretensão cinematográfica. Mas isso ainda cabia naquele sétimo ano da década de 90, quando Sandra realizou esta comédia romântica deliciosa. Aquele final com “Futuros Amantes” do Chico é de arrebentar o coração até do mais insensível espectador. Atuações ótimas de Andrea Beltrão, Daniel Dantas, Glória Pires e Tony Ramos – estes dois últimos, que fariam dupla noutra comédia (um pouco menos) romântica “Se Eu Fosse Você” anos mais tarde.





12 - “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (98): É só deixar solto, que o sobrevivente cinema brasileiro se supera e, logo em seguida, se agiganta. Sete anos após a instituição da Lei Rouanet e minimamente restabelecido o mercado do audiovisual brasileiro, Waltinho vem com aquele que é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, certamente o melhor da década de 90. Tocante, envolvente, denunciador, poético, revelador. Um filme perfeito em tudo: fotografia, trilha, montagem, arte e, principalmente, a direção de atores. “Central...” traz algumas das mais célebres atuações do cinema brasileiro numa mesma obra: Marília Pêra, Othon Bastos, Matheus Nasctergaele, o pequeno Vinícius de Oliveira e, claro, a deusa Fernanda Montenegro, que, assim como o filme, o último concorrente ao Oscar de Filme Estrangeiro do cinema nacional, também disputou a estatueta – perdendo, junto com Meryl Streep e Cate Blanchett, para Gwyneth Paltrow. No entanto, levou Berlim de Melhor Atriz e Melhor Filme.




13 - “São Jerônimo”, de Julio Bressane (98): O hermético e experiente Bressane é original não apenas na narrativa e no seu inconfundível estilo pessoal, mas também nos temas que escolhe para filmar. Ao abordar a história do santo e obscuro intelectual do século IV autor da edição e da tradução completa da Bíblia, a chamada Vulgata, Bressane dava sua definitiva contribuição para a retomada provando que em cinema (principalmente, no Brasil) é possível conjugar estética exigente e verba exígua, poesia arrojada em prazo concentrado. Como São Jerônimo, Bressane operava milagres.




14 - “Estorvo”, de Ruy Guerra (98): Em 1991, emputecido com a vitória da velha política de Collor na primeira eleição democrática para presidente do Brasil (e a derrota da “nova” por parte do correligionário Lula), Chico Buarque lançava seu pequeno, mas potente primeiro romance, “Estorvo”, um sucesso que ganharia Jabuti. Mas para levar à tela um enredo tão subjetivo, somente alguém muito conhecedor da obra do autor de “Vai Passar”. Ninguém melhor, então, que o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, companheiro de velhos tempos de Chico, seja no teatro, na música ou no próprio cinema. O clima perturbador da obra se potencializa nas tomadas distorcidas, na câmera nervosa, na montagem ousada e até no off com a voz do próprio Ruy, cujo sotaque arrevesado impõe a estranheza que a narrativa merece. Filme difícil, mas essencial.



15 - “A Causa Secreta”, de Sérgio Bianchi (96): O cinema deste paranaense radicado em Sampa nunca fez concessões. Desde o curta “Mato Eles?”, de 1982, quando denunciava o descaso com os índios, seu discurso é apontado para a crítica e toda a narrativa se mobiliza neste sentido. Em “A Causa Secreta”, o cineasta se vale de todas as suas armas para evidenciar a podridão moral da sociedade brasileira. E o faz com alto poder mimético, numa construção narrativa incomum, atuações e situações que incomodam de tão reais e agudas. Como outros filmes da década, peca por certo – e compreensível – déficit técnico, mas supera as dificuldades com a coesão da obra, essencial para entender o país em recente caminhada democrática e todos os problemas que ainda iria demorar a se livrar.




16 - “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (99): Filho da Boca do Lixo carioca, o gaúcho Carlão, mesmo à época das famigeradas pornochanchadas dos anos 70/80, produzia com qualidade, fosse na fotografia, a qual era um ótimo técnico, fosse na própria direção. Nos anos 90, já havia realizado o emocionante “Alma Corsária”, mas nada se compara tanto em emoção quanto em acerto com “Dois Córregos”. Um romance que envolve política, história e reminiscências do próprio cineasta, que filmou cenas na praia de Cidreira, no litoral do seu estado de origem. E tem trilha magnífica de Ivan Lins pra arrematar.





17 - “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky (2000): Entramos na leva de filmes de 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. E não se poderia iniciar com um título mais emblemático que esta estreia da talentosa Laís Bodanzky. Símbolo da retomada, é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Além disso, também está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.





18 - “Tolerância”, de Carlos Gerbase (00): O Rio Grande do Sul também é um dos protagonistas dessa virada do cinema brasileiro para a modernidade, e o responsável por isso é o primeiro e melhor longa do "replicante" Gerbase. Uma “história de sexo e violência” num thriller ao estilo do cineasta: trama envolvente, roteiro impecável e atuações conduzidas pela mão de quem carrega a experiência superoitista e da cena curta-metragem, que salvou na raça o cinema brasileiro quando nenhum longa era possível de ser feito. Maitê Proença, linda, está brilhante. 






19 - “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (00): Outro marcante filme "

00", este tocante, mas ao mesmo tempo divertido e denunciador romance, marca a entrada de vez de Andrucha no mundo da tela grande, ele consagrado como diretor de videoclipes célebres de artistas da música brasileira e realizador do acanhado “Gêmeas”, de um ano antes. A trilha de Gil cumpre um papel fundamental, amarrando a narrativa tanto em suas novas e antigas composições, quanto nas versões de Gonzagão. Grande Prêmio Cinema Brasil de Filme, Fotografia, Montagem e Atriz para Regina Casé, maravilhosa, assim como seus “maridos”: Lima Duarte, Stênio Garcia e Luiz Carlos Vasconcelos.






20 - “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (00): O cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise, Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.


Daniel Rodrigues