Acordei com uma vontade de saber como eu ia E como ia meu mundo Descobri que além de ser um anjo eu tenho cinco inimigos Preciso de uma casa para minha velhice
Porém preciso de dinheiro pra fazer investimentos Preciso às vezes ser durão Pois eu sou muito sentimental meu amor Preciso falar com alguém que precise de alguém Prá falar também Preciso mandar um cartão postal para o exterior Prá meu amigo Big Joney Preciso falar com aquela menina de rosa Pois preciso de inspiração Preciso ver uma vitória do meu time Se for possível vê-lo campeão Preciso ter fé em Deus E me cuidar e olhar minha família Preciso de carinho, pois eu quero ser compreendido Preciso saber que dia e hora ela passa por aqui E se ela ainda gosta de mim
Preciso saber urgentemente Porque é proibido pisar na grama
******************************* Jorge Ben (do álbum “Negro é Lindo”, de 1971)
No
início deste ano, numa das vezes que fui à Bahia a trabalho, peguei
um táxi do aeroporto de Salvador com destino a Feira de Santana com
um taxista incomum. Um senhor de uns 50 anos, Sr. Gelson, que adorava
e conhecia muito bem música africana (e de vários países: Angola,
Congo, Mali, Nigéria, entre outros). Papo vai, papo vem e, além de
aprender com ele, fiquei sabendo que em Salvador havia lojas de
música que o supriam de parte deste exótico material fonográfico.
Guardei a informação para quando retornasse à capital baiana.
Pois,
desta vez viajando a passeio por Salvador, descobri uma cidade que
respira música – o que, vocês devem imaginar, gerou uma forte
identificação a alguém que, como eu, anda ininterruptamente com
várias músicas na cabeça durante o dia. E não demorou muito para
que o cheiro de loja de discos me atraísse. Em plana Praça da Sé,
centrão da cidade, está lá a Planet Music, comandada pelo
diletante Ademar, sujeito boa-praça que não poupava em deslacrar
qualquer CD e colocá-lo para o cliente escutar, mesmo que fosse pra
passar rapidamente cada faixa (atitude quase inimaginável no
comércio de Porto Alegre). Pois, seguindo o bom gosto do dono, a
Planet Music é rica em títulos e muito bem selecionada, além de os
preços serem bem aceitáveis.
Entrei,
percorri algumas fileiras enquanto tocava (alto) um axé-music
qualquer, corriqueiro por lá. Leocádia entrou em seguida. Até que
Ademar, de dedo nervoso, para a música pela metade e troca por nada menos que “Saci Pererê”, da Black Rio. Conquistou-me de vez.
Levei junto com esses outros CD’s que aqui comento:
“Saci
Pererê” – Banda Black Rio (1980): Clássico segundo álbum
deste que é dos meus grupos brasileiros preferidos. Além da gostosa
faixa-título, presente de Gilberto Gil, tem Aldir e João Bosco (“Profissionalismo
É Isso Aí”), Zé Rodrix (“Amor Natural”) e composições dos
integrantes da banda. Nem a ausência de Cristovão Bastos nos
teclados fez Oberdan e Cia. baixarem a qualidade, que, depois do
célebre instrumental "Maria Fumaça", se aventuram nos vocais e
mandam muito bem.
“Marinheiro
Só” – Clementina de Jesus (1973): Produzido por Caetano Veloso e Milton Miranda, é talvez o mais bem acabado trabalho desta
negra que alçou ao mundo da música já idosa por providencia de
Hermínio Bello de Carvalho, que a descobriu cantando num bar. Toda a
ancestralidade antropológica africana pode ser sentida em sambas
(“Essa nêga pede mais”, “Madrugada”), maxixes (“Marinheiro
Só”) e cantos religiosos (“Taratá”, “5 Cantos Religiosos”).
“Nada
Como um Dia Após o Outro Dia” – Racionais MC’s (2002): O
sucessor de “Sobrevivendo no Inferno” é um disco longo demais
(pecado dos duplos), por isso é irregular. Mas inquestionavelmente a
banda avançou em estilo e discurso, o que faz com que seus dois
volumes, “Chora Agora” e “Ri Depois”, tragam verdadeiras
joias do rap e da música nacional no início dos 2000. Espetaculares
“Vida Loka” 1 e 2, “Jesus Chorou” e “Vivão e vivendo”.
Figura entre os 100 maiores discos da música brasileira da história
segundo a Rolling Stone.
“Negro
é Lindo” – Jorge Ben (1971): Embora o Babulina tenha outros
VÁRIOS discos preferidos da discoteca, pois produziu absurdamente
bem principalmente do final dos anos 60 até meados de 70, este não
fica pra trás, até porque a “cozinha” é do espetacular Trio
Mocotó. Traz a poética e sensível "Porque é proibido pisar na grama", a bela canção-homenagem “Cassius Marcellus Clay”,
parceria com Toquinho, e aqueles sambas-rock sempre inspirados
(“Cigana”, “Comanche” e “Zula”) como só Ben sabe fazer.
“Força
Bruta” – Jorge Ben (1970): Também com o Trio Mocotó, é o
mais experimental trabalho de Ben. Ele, Parahyba, Nereu e Fritz estão
soltos e se divertindo ao executar os temas ao vivo no estúdio. Não
é dos meus preferidos, até porque Ben tem muito mais discos
maravilhosos, mas só por “O telefone tocou novamente” (meu toque
de celular!), “Charles Jr.” e “Mulher brasileira” já valia.
Ainda por cima, inicia arrasando com “Oba, lá Vem Ela",
daqueles começos de disco empolgantes.
“O q Faço é Música” – Jards Macalé (1998): Se Cristovão
Bastos não estava mais com a Black Rio, aqui seu papel é
fundamental. Talvez o grande disco de Macalé – ao menos, o seu
mais maduro –, "O Q Faço é Música" já mereceu ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do Clyblog, feita por Cly Reis. Eu, que gosto um monte também,
não me contive e comentei no próprio blog, que está logo abaixo da
resenha.
"Criolo é um dos artistas mais criativos com quem já convivi na vida. Conheço poucas pessoas que conseguem fazer letra e música do jeito que ele faz." Milton Nascimento “Milton é um ser de luz. Isso não se explica, apenas, se sente.” Criolo
Milton Nascimento, além de ser um dos gênios vivos da música mundial, celebrado por gente do calibre de Wayne Shorter, Caetano Veloso, Elis Regina, Herbie Hancock e Esperanza Spalding, é conhecido pela generosidade. Tanto é que seus pares costumeiros, como Wagner Tiso ou Lô Borges, ou esporádicos, como Chico Buarque e Gilberto Gil, o elegem como o melhor parceiro para se escrever música. Generoso, porém, exigente. Não é qualquer um que coassina ou divide com ele o palco ou os microfones – quanto mais, autorias. Criolo, no entanto, está neste seleto time. Desde 2005, quando escreveram a primeira canção juntos, “Dez Anjos”, para o disco “Estratosférica”, de Gal Costa, o rapper paulista entrou para o panteão de compositores a comungarem arte com Bituca como os já citados Chico, Caetano e Gil, bem como os célebres Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô e Márcio Borges e outros privilegiados. O EP “Existe Amor”, produzido por Daniel Ganjaman, deste ano, já chega com o peso de ratificar esse encontro de duas gerações como o mais representativo da MPB na década. Obra essencial para a sustentação da sanidade brasileira, sagazmente contradiz os versos do próprio Criolo para lançar um sopro de esperança e resistência em meio a um caos sanitário, político e econômico que vive o Brasil.
Encontro de gerações e de almas
O impacto é forte, o que não quer dizer que, para isso, tenha-se usado toda a tonelagem. Afinal, o experiente Milton sabe muito bem que tamanho não é documento. Afeito aos formatos mais enxutos de obras sonoras, mesmo tendo lançado uma série de álbuns extensos na carreira – como os duplos “Clube da Esquina I” e “II”, “Milagre dos Peixes – Ao Vivo” e “Txai” –, o mineiro nunca deixou de apostar em compactos e EP’s. Foi assim com o emblemático “Milton & Chico”, de 1977, que trazia apenas duas faixas, as obras-primas “O Sal da Terra” e “1º de Maio”, ou com o também marcante “RPM Milton”, de 1987, quando o experiente músico soube extrair da banda de Paulo Ricardo o melhor que esta guardava já em um período pré-dissolução. Agora, com Criolo, no entanto, o tratamento ganhou ainda maior requinte.
A começar pela sensibilidade inequívoca do pianista pernambucano Amaro Freitas, um dos maiores talentos da MPB/Jazz brasileira dos últimos anos, convidado para tocar e assinar o arranjo de duas das quatro do projeto: a clássica “Cais” (de Milton e Ronaldo, escrita em 1971) e a música a qual se tira sabiamente o controverso título, “Não Existe Amor em SP” (esta, de Criolo, do seu “Nó na Orelha”, de 2011). Amaro dá uma coloração que une nitidez e abstratismo, mas em tons introspectivos, oníricos, que reinventam canções já eternizadas no cancioneiro brasileiro. Mais do que regravações, tomam caráter de ressignificação, principalmente, “Não Existe...”, cuja mensagem deliberadamente crítica de Criolo à sociedade e ao mundo materialista é endossada pelo canto incomparável de Milton.
Não apenas estas duas, mas existe ainda mais amor em “Existe Amor”. Além das duas gravadas com o toque virtuoso de Amaro Freitas, o disco apresenta duas gravações feitas pelos artistas em 2018 com regência de Arthur Verocai, outra lenda da música brasileira, compositor, arranjador e maestro carioca presente em obras memoráveis da MPB como “Por que é Proibido Pisar na Grama”, de Jorge Ben (1971), e “Pra Aquietar”, de Luiz Melodia (1973), além de seus próprios trabalhos solo, considerados cult no Brasil e no exterior. Dessa safra, Milton e Criolo regravam com a fineza dos arranjos de Verocai a já citada “Dez Anjos” e “O Tambor”, esta, parceria dos dois últimos, originalmente registada no último álbum de Verocai, “No Voo do Urubu”, de 2016. Se com Criolo a relação é mais recente, com Milton os caminhos de Verocai se cruzaram já no final dos anos 60, quando participaram do movimento Músicanossa junto de outros compositores como Roberto Menescal e Marcos Valle. Ou seja: tudo em casa, conexões certas em todos os pontos. Outras duas preciosidades que, embora difiram do arranjo contemplativo e da textura pianística das primeiras, em nada destoam no conjunto da obra, formando um disco curto, mas 100% assertivo. Um novo clássico da música brasileira.
Além da qualidade musical, a reunião também tem méritos humanistas. A venda do EP pretende arrecadar projeto R$ 1 milhão para um projeto em conjunto com a agência AKQA e o Coala.Lab para ajudar pessoas durante a pandemia do Coronavírus. Milton, em depoimento sobre a atual situação do país e o desafio cidadão deste momento, falou: “E, diante desse cenário que se mostra cada dia mais absurdo, precisamos fazer a nossa parte, urgente.” O parceiro, por sua vez, engrossa o coro: “'Arte cria energia para a luta contra quem fomenta o mal”. Ao que depender dos dois, a chama da elaboração crítica fará com que os justos sobrevivam a tamanho obscurantismo e perversidade do Brasil atual. Ao contrário de todo o mar de negatividade que se impõem, eles nos dão um lugar - de fala e de escuta. Essa "SP" real e imaginária que representa a todos. A rebeldia, a não aceitação, a insubmissão como maior prova de amor. É a negação dos versos originais ("Não existe amor") como um chamado positivo de salvamento ("Existe Amor"). Por sorte, ele ainda existe em todas as “SP’s” simbólicas a que Milton e Criolo nos loteiam.