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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Iggy Pop - "Brick by Brick" (1990)


 

"Trabalhar com David Bowie é um prazer, mas uma tortura também. Ele é um músico incrível e um grande produtor, tem ideias excelentes, mas os álbuns acabam soando 50% Bowie e 50% Iggy. Eu queria um disco apenas com ideias minhas."
Iggy Pop

"Esta canção tem a melhor letra que já ouvi."
Butt-Head, da série Beavis & Butt-Head, sobre “Butt Town”

O camaleão é um réptil capaz de fazer com que sua pele mude de aspecto. Não à toa, este era o apelido de David Bowie pela incrível capacidade que este teve de se transformar com total desenvoltura em diversos personagens, como Ziggy Stardust, Major Tom e Alladin Sane. Porém, outra espécie também é mestre em camuflagem e disfarces: a iguana. Muito próximo de Bowie desde os anos 70, Iggy Pop merece, com certeza, esta alcunha. Não somente pela derivação nominal, afinal, quem surfou pela garage band, pelo punk, hard rock, industrial, pós-punk, new wave, heavy metal e por aí vai, só pode mesmo ser considerado um ser de várias aparências. O eterno líder da Stooges e dono de uma obra que perpassa tudo o que foi produzido no rock desde os anos 60 tem estofo para isso. Em 1990, após pouco mais de 20 anos de carreira, o junkie provocativo tornava-se um homem maduro (humm... talvez, nem tanto) e realiza o disco que melhor resume a sua extensa e variante trajetória: “Brick by Brick”, que completa 30 anos de lançamento em 2020.

No entanto, dúvidas quanto ao talento de Iggy Pop pairavam àquela época. Ele vinha de um novo sucesso em anos após alguns de ostracismo com “Blah Blah Blah”, de 1986, coescrito e produzido por Bowie. Sua gravadora de então, A&M, queria repetir a fórmula, mas o que o rebelde Iggy fez, ao lado do sex pistol Steve Jones, foi, sim, um álbum que pode ser classificado como “Cold Metal”, o representativo título da faixa inicial de “Instintic”, de 1988. O preço por seguir os próprios instintos custou caro a Iggy, que foi dispensado do selo. Foi então que o veterano roqueiro olhou para si e percebeu que algo estava errado. No espelho, James Osterberg viu, na verdade, um artista prestes a completar duas décadas de carreira sem ter, de fato, uma obra inteiramente sua com respeito de crítica e público. Iggy deu-se conta que todos os seus êxitos até então haviam sido divididos com outros: na Stooges, com o restante do grupo; nos discos de Berlim dos anos 70 e em “Blah...”, com Bowie; em “Kill City”, de 1977, com James Williamson, fora outros exemplos. Por incrível que parecesse, o cara inventou o punk, que liderou uma das bandas mais revolucionárias do rock, que colaborou para o engendro da música pop dos anos 80 era ainda olhado de soslaio. Foi com este ímpeto, então, que, desejoso de virar uma importante página, ele assina com a Virgin para realizar um trabalho essencialmente seu.

Produzido pelo experiente Don Was (Bob Dylan, Rolling Stones, George Clinton e outros papas da música pop), “Brick...” é rock ‘n’ roll em sua melhor acepção: jovem, pulsante e melodioso. A começar, tem na sua sonoridade forte e impactante, a exemplo de grandes discos do rock como “Album” da PIL e os clássicos da Led Zeppelin, um de seus trunfos. Igualmente, parte da banda que acompanha o cantor é formada por Slash, na guitarra, de Duffy McKagan, no baixo, nada mais, nada menos do que a “cozinha” da então mais celebrada banda da época, a Guns n’ Roses, além de outros ótimos músicos como o baterista Kenny Aronoff, o guitarrista Waddy Wachtel e o tecladista Jamie Muhoberac. Isso, aliado ao apuro da mesa de som, potencializava a intensidade do que se ouvia. Garantida a parte técnica, vinha, então, o principal: a qualidade das criações. Nunca Iggy Pop compusera tão bem, nunca estivera tão afiado em suas melodias e no canto, capaz de variar da mais rascante vociferação ao elegante barítono.

Com o parceiro de várias jornadas Bowie: Iggy busca a emancipação artística

Se em discos anteriores Iggy às vezes se ressentia de coesão na obra, como os bons mas inconstantes “Party” (1981) e “New Values” (1979), em “Brick...” ele mantém o alto nível do início ao fim. E olha que se trata de um disco extenso! Mas Mr. Osterberg estava realmente em grande fase e imbuído de pretensões maiores, o que prova na canção de abertura: a clássica “Home”. Rock puro: riff simples e inteligente; refrão que gruda no ouvido; pegada de hard rock de acompanhar o ritmo batendo a cabeça; vocal matador; guitarras enérgicas; bateria pesada. Não poderia começar melhor. Já na virada da primeira faixa para a segunda, a grandiosa balada “Main Street Eyes” – das melhores não só do disco como do cancioneiro de Iggy –, percebe-se outra sacada da produção: interligadas – tal os álbuns de Stevie Wonder ou o mitológico “Sgt. Peppers”, dos Beatles –, as músicas se colam umas às outras, dando ainda mais inteireza à obra. 

Assim é com I Won't Crap Out”, na sequência (noutra ótima performance dele e da banda), e aquele que é certamente o maior hit da carreira de Iggy Pop: “Candy”. Dividindo os vocais com Kate Pearson (B52’s), a música estourou à época com seu videoclipe (28ª posição na Billboard e quinta na parada de rock) e ajudou o disco a vender de 500 mil de cópias. Como classifica o jornalista Fábio Massari, trata-se de um “perfect pop”. Tudo no lugar: melodia envolvente, refrão perfeito, conjugação de voz masculina e feminina e construção harmônica irretocável. Um clássico do rock, reconhecível até por quem não sabe quem é Iggy Pop e que, ao chamar Kate para contrapor a voz, “deu a morta” para a R.E.M. um ano depois fazer o mesmo na divertida e de semelhante sucesso “Shiny Happy People”.

Unindo a experiência de um já dinossauro do rock com um poder de sintetizar suas melhores referências, Iggy revela joias, como as pesadas "Butt Town", com sua letra desbocada e crítica, e "Neon Forest", onde faz as vezes de Neil Young. Também, as melodiosas "Moonlight Lady" e a faixa-título, puxadas no violão e na sua bela voz grave, bem como a animada “Stary Night”. Don Was, que manja da coisa, intercala-as, dando à evolução do disco equilíbrio e garantindo que o ouvinte experimente todas as sensações: da intensidade à leveza, da agressividade à doçura. Por falar em intensidade, o que dizer, então, do heavy “Pussy Power”, em que, resgatando o peso do seu disco imediatamente anterior, faz uma provocativa ovação ao “poder da buceta”. Iggy Pop sendo Iggy Pop.

Mas não é apenas isso que Iggy tinha para rechaçar de vez a desconfiança dos críticos. O Iguana revela outras facetas, sempre pautado no melhor rock que poucos como ele são capazes de fazer. Novas aulas de como compor um bom rock ‘n’ roll: "The Undefeated" – daquelas que viram clássicos instantâneos, emocionante no coro final entoando: “Nós somos os invictos/ Sempre invictos/ Agora!” –; "Something Wild" e a parceria com Slash "My Baby Wants To Rock And Roll". Não precisa dizer que esta última saiu um exemplar à altura de dois músicos que escreveram hinos rockers como “No Fun” e “Sweet Child O’Mine”. 

O disco termina com outra balada, "Livin' On The Edge Of The Night", do premiado músico Jay Rifkin, que figura na trilha de “Chuva Negra”, filme de sucesso de Ridley Scott e estrelado por Michael Douglas e Andy Garcia, das poucas que não têm autoria do próprio Iggy entre as 14 faixas de um disco irreparável. Iggy Pop, finalmente, consegue ser ele mesmo sendo os vários Iggy Pop que há dentro de sua alma versátil e liberta. E se havia alguma dúvida de que tinha competência de produzir uma obra autoral sem a ajuda dos parceiros, “Brick...” é a prova cabal. Literalmente, não deixa “pedra sobre pedra” e nem muito menos “tijolo por tijolo”.

**********

Clipe de "Candy" - Iggy Pop e Kate Pierson


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FAIXAS:
1. "Home" – 4:00
2. "Main Street Eyes" – 3:41
3. "I Won't Crap Out" – 4:02
4. "Candy"(partic.: Kate Pierson) – 4:13
5. "Butt Town" – 3:34
6. "The Undefeated" – 5:05
7. "Moonlight Lady" – 3:30
8. "Something Wild" (John Hiatt) – 4:01
9. "Neon Forest" – 7:05
10. "Starry Night" – 4:05
11. "Pussy Power" – 2:47
12. "My Baby Wants To Rock And Roll" (Iggy Pop/Slash) – 4:46
13. "Brick By Brick" – 3:30
14. "Livin' On The Edge Of The Night" (Jay Rifkin) – 3:07
Todas as músicas de autoria de Iggy Pop, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2019



O pessoal de Liverpool tá imbatível.
E não estou falando do time de Salah, Firmino e Mané.
Sei que já devia ter feito, o ano já começou e, por sinal está quase no final do primeiro mês, mas vida de blogueiro não se limita ao blog e até então não tinha dado tempo de fazer os levantamentos, retrospectos, somatórios e estatísticas para o Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que sempre temos todo o início de ano aqui no ClyBlog. O ano que passou trouxe, além dos discos destacados por nós integrantes do blog, como de costume participações de convidados, com destaque para a resenha de Waldemar Falcão, para o lendário segundo disco de Zé Ramalho, "A Peleja do Diabo com o Dono do Céu", de 1979, do qual nosso convidado até mesmo participou, fazendo de seu texto um depoimento inestimável em relação a tudo que envolveu a obra e o artista naquele momento.
Na nossa tradicional atualização dos discos que pintaram por aqui no último ano, lá na frente, entre os artistas que têm mais obras citadas na nossa seção, entre os internacionais, Os Rapazes de Liverpool finalmente assumiram a liderança, uma vez que, nem Bowie nem Stones, que dividiam a dianteira com eles, tiveram novos discos incluídos nos A.F., mas é bom abrir o olho porque os alemães do Kraftwerk, considerado por muitos o outro nome mais influente na música de todos os tempos, botaram mais um disco na roda esse ano e subiram para o segundo degrau do pódio. Já pelo lado nacional, não houve mudança lá na frente e o destaque ficou com as estreias de Airto MoreiraTribalistas e o já citado Zé Ramalho.
Entre os países, os Estados Unidos se mantém à frente com boa folga, e, na disputa pela prata, os ingleses, com um bom número de artistas emplacando álbuns fundamentais, aproxima-se perigosamente dos brasileiros. Quanto às décadas, os anos 70 continuam mandando no pedaço, mas falando em anos, especificamente, ainda é o de 1986, que põe mais discos na nossa lista.
No ano atual, já temos um Álbum Fundamental mas que não entra para a contabilidade do ano passado. A expectativa para 2019 é se os Beatles confirmarão sua liderança e se, no Brasil, alguém vai desbancar Jorge Ben, que reina absoluto há um bom tempo na lista nacional.

Vamos conferir então como ficaram as coisas por aqui depois deste último ano:


PLACAR POR ARTISTA INTERNACIONAL (GERAL)

  • The Beatles: 6 álbuns
  • David Bowie, Kraftwerk e Rolling Sones: 5 álbuns cada
  • Miles Davis, Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin e Pink Floyd: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, John Coltrane, Van Morrison, Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, Wayne Shorter, John Cale* e Bob Dylan: 3 álbuns cada
  • Björk, The Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Lee Morgan, Lou Reed, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, R.E.M., Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum de Brian Eno com JohnCale ¨Wrong Way Out"


PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Jorge Ben: 5 álbuns*
  • Gilberto Gil*, Tim Maia e Caetano Veloso: 4 álbuns*
  • Chico Buarque, Legião Urbana, Titãs e Engenheiros do Hawaii: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**, Gal Costa, João Bosco, João Gilberto***, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão e Sepultura: todos com 2 álbuns 
*contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas" 
*** Contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"


PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 2
  • anos 40: -
  • anos 50: 15
  • anos 60: 84
  • anos 70: 125
  • anos 80: 104
  • anos 90: 77
  • anos 2000: 12
  • anos 2010: 13

*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 21 álbuns
  • 1985: 17 álbuns
  • 1976 e 1969: 16 álbuns cada
  • 1967, 1968 e 1977: 15 álbuns cada
  • 1971 e 1973: 14 álbuns
  • 1972, 1975, 1979 e 1991: 13 álbuns
  • 1965 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1970, 1987,1989 e 1994: 11 álbuns cada
  • 1966, 1978 e 1980: 10 álbuns cada


PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 155 obras de artistas*
  • Brasil: 121 obras
  • Inglaterra: 110 obras
  • Alemanha: 9 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica, Islândia, País de Gales: 2 cada
  • País de Gales, Itália, Hungria, Suíça, França e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país



C.R.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Música da Cabeça - Programa #122


Agosto é mês de cachorro louco? Então haja loucura pra começar o mês defendendo o Xingu, comemorando o aniversário de Caetano Veloso ou lembrando dos 50 anos do primeiro disco da The Stooges. Tudo isso e mais um montão de coisas loucas e importantes vão estar no Música da Cabeça desta quarta, como Black Alien, Jamiroquai, Gal Costa, Kraftwerk, Cyndi Lauper e mais. Se liga no MDC de hoje, então, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues - sem antirrábica.


sexta-feira, 5 de julho de 2019

Nick Drake - "Five Leaves Left" (1969)



"O violão de Nick sempre foi perfeito, sua voz era sempre perfeita".
Joe Boyd, produtor musical

"Existe algo místico sobre Nick Drake, pois ele gravou apenas três discos e não é muito conhecido. Mas há algo mágico em sua música, uma espécie de fragilidade que muitos podem reconhecer".
Paul Weller

"Eu não acho que tencionava ser uma estrela, mas creio que ele sentiu que tinha algo a dizer às pessoas de sua própria geração, que poderia torná-las mais felizes, e ele sentiu que não havia conseguido".
Molly Drake, mãe de Nick Drake

O ano de 1969 é talvez o mais abundante da história da música moderna. Na música clássica e de vanguarda, John Cage, Dimitri Shostakovitch e sir. Maxwell Davies produziam obras referenciais como a “HPSCHD”, “Sinfonia nº 14” e “Vesalii Icones”, respectivamente. No jazz, Miles Davis trazia o duo de discos que abriria as portas para o fusion, “Bitches Brew” e “In A Silent Way”, e Manfred Eicher lançava na Alemanha o revolucionário selo ECM. No Brasil, já exportador da bossa nova, o Tropicalismo erigia seus mais pungentes manifestos ainda hoje em processo de assimilação. Se foi assim para estes gêneros, imagine para o rock! Tudo culminava naquele último ano da efervescente década de 60. A segunda geração do pós-guerra, os baby boomers, deparava-se com a emergência de uma nova sociedade num mundo em transformação, o que se expressava nas artes de maneira avassaladoramente criativa, sendo a música, especialmente o rock, a principal delas.

São deste ano, só para se ter ideia, o Festival de Woodstock, a pintura musical-impressionista “Astral Weeks”, de Van Morrison, os dois primeiros da Led Zeppelin, começo do metal/hard rock, o grito da denúncia Black Power “Stand!”, da Sly & Family Stone, a paulada inicial do punk da MC5 e da The Stooges e a perfeição do “canto do cisne” beatle, “Abbey Road”. Mais do que os dois anos anteriores, também fartos, a sensação que se tinha em 1969 era a de que se findava um ciclo sem acabá-lo. Talvez por isso a angústia gerada em artistas e músicos em simbolizá-lo, em registrá-lo, em guardá-lo para a posteridade. Uma dessas mentes impactadas pelo contexto sociocultural da época é o cantor e compositor britânico-birmanês Nick Drake. É dele um dos históricos trabalhos cunhados naquele fatídico 1969 e que está completando 50 anos de lançamento: “Five Leaves Left”.

Capaz de unir a postura transgressora do rock com a tradição dos trovadores medievais, Drake traz em seu folk uma poesia ora arcadista ora romântica. Isso aliado a uma sonoridade altamente expressiva e penetrante, reforçado por um canto sóbrio, na medida exata. Tudo numa atmosfera cult que nem Dylan e nem Donovan conseguiram atingir. Ainda, bom gosto absoluto nos arranjos de Harry Robinson e Robert Kirby, os quais, sintonizados com os gostos de Drake, traziam como referência a atmosfera vanguardista da Velvet Underground, o barroco da Beach Boys de “Pet Sounds” e o primor melódico dos mestres do folk e do blues.

Clássica sessão de fotos de Keith Morris em 1969
mostra o alto e elegante Drake
O clima sombrio e peculiar da música de Drake era fruto do gênio de um jovem alto, elegante e bonito, porém tímido e antissociável. Em contrapartida, absolutamente inventivo e capaz. Além de praticar vários esportes na adolescência, desde cedo mostrava habilidades musicais. Tocava clarinete, saxofone, piano e, com muita desenvoltura, o violão, seu instrumento-base. É do pinho que Drake tira preciosidades como “Time Has Told Me”, cuja combinação com a guitarra folk abre “Five...” numa declaração bastante confessional e sobre a passagem do tempo, tema recorrente na obra do músico: “O tempo me disse/ Você é um achado raro/ Uma cura problemática/ Para uma mente problemática”. Das mais lindas canções daquele ano – talvez da década de 60, como uma “Blackbird”, "Blowin' in the Wind" ou “Little Wing”  – “River Man” é tão melancólica e potente, que parece o escorrer de uma lágrima mansa. As cordas intensificam o sentimentalismo dos versos entoados com rara candura sobre uma sofrida personagem Betty: “Estou indo ver o homem do rio/ Indo dizer a ele tudo que eu puder/ Sobre o plano/ Pra quando desabrocharem as violetas”.

Outra de “beleza sombria e arrepiante”, como classificou o crítico musical Richie Unterberger,  vem na sequência. É “Three Hours”, um country de ares dark cujo baixo acústico mantém um tom grave enquanto o violão dedilha um riff variante, quase improvisado. As cordas orquestradas por Kirby carregam na intensidade para fazer cama à voz seca e contida de Drake, lembrando temas como “She’s Leaving Home”, dos Beatles, e aquilo que Morrissey repetiria quase duas décadas mais tarde com a igualmente arrebatada “Angel, Angel, Down We Go Together” – inclusive no final repentino.

A habilidade de criar afinações diferenciadas para o violão aparecem muito claramente em “Way To Blue”, outra cortante, e o country-rock “'Cello Song”, que tem um acompanhamento interessantíssimo de congas e, como o título indica, de um violoncelo. “The Thoughts Of Mary Jane” é, assim como “River...”, mais uma canção introspectiva que versa sobre um alter ego feminino: “Quem pode saber/ Os pensamentos de Mary Jane/ Porque ela voa/ Ou vai lá pra chuva/ Onde ela esteve/ E quem ela viu/ Na sua jornada para as estrelas”.

“Man In A Shed”, um blues “piano bar”, é cantado tão delicadamente que a voz quase se dissolve em meio ao som dos instrumentos, cujo arranjo privilegia, com muito bom gosto e economia, apenas o piano, um baixo acústico e o violão de Drake. Não dá pra dizer que seja alegre, mas é com certeza a mais animada do disco, com o arejamento jazzístico que outro contemporâneo de Drake, Tim Buckey, também apresentaria naquele mesmo ano em “Happy Sad”.

A fossa retorna, no entanto, com mais uma balada sangrenta: “Fruit Tree”. Novamente autobiográfica, como o tema de abertura, de certa forma prevê a trajetória curta que o homem/artista Nick Drake teria: “Fama é uma árvore frutífera/ Tão estática/ Que pode nunca florescer/ Até que os ramos encontrem o chão/ Alguns homens de renome/ Podem nunca encontrar um caminho/ Até que o tempo voe/ Além do dia de sua morte”. Mais uma vez o arranjo de Kirby dá cores especiais à composição sem competir com o violão cristalino de Drake, intenção esta obtida pelo produtor Joe Boyd: “Quando você ouve os álbuns dele uma das coisas que são extraordinárias é o violão, porque soa tão limpo e forte, e todas as notas são equilibradas. É muito raro isso, pois é muito complicado".

Um final digno para um disco sem ressalvas, “Saturday Sun”, a única do disco com bateria – cuja leves batidas ainda têm o acompanhamento de um elegante vibrafone –, traz em sua poesia novamente a questão do tempo emocional e a relação de seu autor com o mundo externo, revelando os elementos naturais quase como personagens: “O sol de sábado/ veio cedo em uma manhã/ Em um céu tão limpo e azul/ O sol de sábado/ veio sem aviso/ Então ninguém soube o que fazer “. E, pessimista, conclui, sua única maneira possível: “E o sol de sábado/ Se tornou a chuva de domingo/ Então o domingo cobriu o sol de sábado/ No sol de sábado/ E entristeceu-se por um dia que se foi”. De arrepiar.

Depois dessas dez obras-primas escritas para “Five...”, Drake se reclusaria cada vez mais e registaria apenas outras 21 canções, as quais compõem os discos “Bryter Layter”, de um ano depois, e "Pink Moon", de 1971. Apenas três álbuns, que, com o tempo, entraram para a história, visto que todos figuram entre os 500 Discos de Todos os Tempos da Rolling Stone, mesma consideração dada pelo livro “1001 Albums You Must Hear Before You Die”, do jornalista Robert Dimery. Que o digam Robert Smith, Paul Weller, Peter Buck, David Silvian e Renato Russo, fãs que o reverenciam e justificam a essencialidade de 100% de sua obra. A morte prematura, em 1974, aos 26 anos, por overdose, não impediu que, ao contrário dos próprios versos pessimistas, Drake se transformasse em um “homem de renome”. Desconfia-se, contudo, que tenha, na verdade, cometido suicídio - ou, talvez ainda pior, não tenha se importado em perder a vida. Como um tardio poeta romântico, o sensível e deslocado Drake morria antes do tempo para que sua obra fosse reconhecida. Fatídico, mas tragicamente procedente. Como o próprio ano de 1969: uma incompletude que não tem o que tirar nem por.

******************
FAIXAS:
1. Time Has Told Me - 3:56
2. River Man - 4:28
3. Three Hours - 6:01
4. Day Is Done - 2:22
5. Way To Blue - 3:05
6. 'Cello Song - 3:58
7. The Thoughts Of Mary Jane - 3:12
8. Man In A Shed - 3:49
9. Fruit Tree - 4:42
10. Saturday Sun - 4:00
Todas as composições de autoria de Nick Drake

******************
OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

domingo, 13 de janeiro de 2019

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2018




Abre o olho, Babulina, porque Caê tá chegando
e o Síndico tá chamando pra briga.
O ano de 2018 foi especial por ter sido o que marcou os 10 anos do ClyBlog e para comemorar isso tivemos uma série de convidados escrevendo sobre seus discos favoritos nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Já abrimos o ano com o especial de número 400 da seção, com o convidado Michel Pozzebon, e ao longo do ano tivemos as mais ricas e valorosas participações de convidados que deram suas brilhantes contribuições para o nosso blog, como foi o caso de Ticiano Paludo, Samir Alhazred, Arthur de Faria, Helson Trindade, Rodrigo Lemos e Lucio Brancato. A todos eles, nossos sinceros agradecimentos.
Além disso, foi ano de Copa do Mundo e, como temos feito, unimos música e futebol em publicações espaciais onde o artista ou sua obra tivesse alguma relação com o esporte mais amado do mundo, como foi o caso do apaixonado por futebol Bob Marley, dO Rappa cujas letrar volta e meia remetem a futebol e do Iron Maiden, cujo baixista é quase um hooligan e que já tentou inclusive jogar no seu time de coração.
Isto colocado, como sempre fazemos, todo ano, vamos àquela repassada na nossa seção de grandes discos atualizando os números e verificando aqueles que têm mais discos indicados, países com maior número de representantes, os anos e as décadas que mais se destacam em número de grandes obras citadas e o que mais mereça destaque neste ano que passou nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, como, por exemplo, o fato de 2018 ter sido um ano de muitas estreias nos AF's. Muitos artistas que, por sua biografia, importância em sua época, seu segmento ou no cenário musical geral, já deviam ter dado as caras por aqui há muito tempo, apareceram pela primeira vez neste ano, como é o caso de nomes como Bob Marley, que foi um dos nossos AF ClyBola, da diva Aretha Franklin, do Kiss, T-Rex e do lendário Queen que fez seu debut por aqui. Por outro lado, poucos se repetiram e, assim, especialmente nos internacionais, as posições de cima não se alteraram muito, apenas com o Iron Maiden e os Kinks entrando para o time dos que têm três álbuns fundamentais e aproximando-se do pessoal com quatro álbuns (Who, Floyd, Kraftwerk...) e um pouco mais dos líderes Beatles, Stones e Bowie que seguem na ponta com cinco discos cada.
Nos nacionais a movimentação também não foi grande mas dois artistas deram uma emoção à "disputa pela liderança": com um disco de Caetano Veloso e um de Tim Maia, poderíamos tê-los empatados na ponta com Gilberto Gil e Jorge Ben. Mas isso se, lá no início do ano, o Babulina não tivesse colocado mais um entre os fundamentais e garantido sua posição no topo entre os brasucas.
Na disputa por países, ainda que os norte-americanos ainda mantenham um boa vantagem na liderança, em 2018 os ingleses fizeram quase o dobro de indicações que os yankees e diminuíram um pouco a desvantagem para os brasileiros que haviam se distanciado no ano anterior
No que diz respeito a épocas, a marcante década de 70 continua liderando, acompanhada, com uma distância bem confortável, pela década de 80. Só que quando falamos em anos, é o de 1986 que manda, com nada menos que 20 discos, seguido pelo seu ano anterior, o de 1985 e o ano de 1976, cada um com 16 álbuns na nossa lista.
O ano que entra promete movimentação nos placares, especialmente de artistas, tanto nacionais quanto internacionais, uma vez que a vantagem dos líderes é pequena e quem vem logo atrás não tá pra brincadeira. 
As comemorações dos dez anos acabaram mas não é por isso que não continuaremos tendo participações especias nos AF. Além das habituais colaborações de Paulo Moreira, Leocádia Costa, Lucio Agacê, com certeza teremos durante ao ano a contribuição de amigos tão apaixonados por música quanto nós e que sabem que os álbuns de suas coleções e de seus corações são simplesmente fundamentais.

Vamos conferir então como ficaram as coisas por aqui depois deste último ano:


PLACAR POR ARTISTA INTERNACIONAL (GERAL)

  • The Beatles, David Bowie  e The Rolling Stones: 5 álbuns cada
  • Kraftwerk, Miles Davis, Talking Heads, The Who e Pink Floyd: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Smiths, Led Zeppelin, John Coltrane, Van Morrison, Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, John Cale* e Bob Dylan: 3 álbuns cada
  • Björk, The Beach Boys, Brian Eno*, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Lee Morgan, Lou Reed, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, R.E.M., Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Velvet Underground e Wayne Shorter: todos com 2 álbuns
*contando com o álbum de Brian Eno com JohnCale ¨Wrong Way Out"


PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Jorge Ben: 5 álbuns*
  • Gilberto Gil*, Tim Maia e Caetano Veloso: 4 álbuns*
  • Chico Buarque, Legião Urbana, Titãs e Engenheiros do Hawaii: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**, Gal Costa, João Bosco, João Gilberto***, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão e Sepultura: todos com 2 álbuns 
*contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas" 
*** Contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"


PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 2
  • anos 40: -
  • anos 50: 15
  • anos 60: 79
  • anos 70: 117
  • anos 80: 100
  • anos 90: 75
  • anos 2000: 11
  • anos 2010: 11

*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 21 álbuns
  • 1976 e 1985: 16 álbuns cada
  • 1968 e 1977: 15 álbuns cada
  • 1967: 14 álbuns
  • 1971, 1972, 1973 e 1991: 13 álbuns
  • 1965, 1969, 1975, 1979 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1970, 1987 e 1989: 11 álbuns cada
  • 1966 e 1980: 10 álbuns cada


PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 146 obras de artistas*
  • Brasil: 116 obras
  • Inglaterra: 102 obras
  • Alemanha: 8 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica e Islândia: 2 cada
  • País de Gales, Itália, Hungria, Suíça e França: 1 cada

*artista oriundo daquele país




C.R.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Blue Cheer - "Vincebus Eruptum" (1968)



"O que fazemos é apenas
pegar o blues e distorcê-lo
até deixá-lo irreconhecível."
Dickie Peterson,
vocalista



Ta aí uma banda que eu sempre curti pra caramba e há muito tempo vinha querendo falar dela aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. O Blue Cheer foi mais uma daquelas que eu conheci graças à Discoteca Básica da extinta revista Bizz (depois Showbizz), mais especificamente grças à curiosidade do meu irmão e co-editor daqui do ClyBlog, o Daniel Rodrigues, que sempre procurava comprar ou gravar os discos que saíam naquela seção. De vez em quando me aparecia com umas coisas que não me agradavam muito, outras eu só fui apreciar mais tarde, mas o Blue Cheer sempre me impressionou por aquele peso todo. O legal no som dos caras é que parecia funcionar quase como uma espécie de ponte entre alguns subgêneros e, de maneira espantosa, antecipava outros: psicodélica, meio garage-rock, tinha elementos de blues, prenunciava o metal, antevia o hard rock e  o inspiraria o punk. O resultado dessa fusão toda e desse pioneirismo era um som explosivo e arrebatador que pode ser comprovado em sua plenitude em seu excelente trabalho de estreia, o bombástico "Vincebus Eruptum" de 1968.
Já para começar, pegam o clássico do rock'n roll de Eddie Cochrane, "Summertime Blues" acrescentam nitroglicerina tornando-a ruidosa, retumbante, estrepitosa e acima de tudo, fantástica. O clássico de B.B. King, "Rock Me Baby", transforma-se num blues psicodélico de estrutura irregular e mutante;  a longa "Doctor Please" com sua distorção ensurdecedora e vocais ensandecidos é um dos momentos mais pesados dos disco. "Out of Focus" lembra aqueles blues quebrados e malucos de Bo Diddley; e Parchment Farm" tem uma bateria alta, estourando, vocais rasgados e solos absolutamente selvagens. "Second Time Around" finaliza o disco numa anarquia sonora que lembra "European Son" do Velvet Underground e prenunciava a sujeira sônica dos Stooges, com destaque para o riif insistente e repetido do bom Leigh Stephens, os vocais gritados de Dickie Peterson e um solo irado do baterista Paul Whaley.
Considerado por muitos o primeiro disco de heavy metal, "Vincebus Eruptum" tem apenas seis faixas e pouco mais de 30 minutos mas é duração o suficiente para para não deixar pedra sobre pedra. Em 1968, quando as coisas já começavam a se ensaiar para uma sonoridade mais vigorosa, poderosa e minimalista, "Vincebus Eruptum" era a peça que faltava para dar encaminhamento a tudo de pesado que viria a partir dali.
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FAIXAS:
  1. "Summertime Blues" (Eddie Cochran) – 3:47
  2. "Rock Me Baby" (Josea/B.B. King) – 4:22
  3. "Doctor Please" (Dickie Peterson) – 7:53
  4. "Out of Focus" (Peterson) – 3:58
  5. "Parchment Farm" (Mose Allison) – 5:49
  6. "Second Time Around" (Peterson) – 6:17

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Ouça:


Cly Reis

terça-feira, 23 de maio de 2017

The Stooges – “Fun House” (1970)



"Em Fun House, tentamos fazer um som mais 
parecido com a banda original antes do primeiro 
álbum – uma coisa mais livre, improvisada.” 
Scott Asheton


“Os Stooges são originais. Eles têm espírito.” 
Miles Davis


O script da carreira de qualquer artista da música pop é o de, à medida que sua obra avança, a sonoridade e o estilo irem se aperfeiçoando. Embora depois possa fazer incorrer numa amenização ou até perda do viço inicial, isso acontece porque uma banda ou cantor do rock faz muitas vezes do jeito que dá o primeiro disco. O debut, por conta disso, acaba ou deixando a desejar em relação ao que ainda se virá a produzir ou, pela falta de recurso, não consegue expressar com completude as qualidades que já se tem – o que caberá, aí, aos discos seguintes mostrarem. Afinal de contas, todos querem melhorar com o tempo, certo? Errado em se tratando de The Stooges.

A avassaladora estreia no disco homônimo, de 1969, trazia a secura e a energia do punk, porém encapsulado pela minuciosa produção do craque John Cale. O ex-Velvet Underground conseguira tornar consideravelmente pop – mas sem perder o vigor – o baixo feroz de Dave Alexander, as guitarras barulhentas de Ron Asheton e a bateria alta de seu irmão Scott Asheton. Isso, claro, sem falar na intensidade irrefreável do vocalista e líder Iggy Pop, o mais alucinado front band do rock norte-americano à época. Uma banda normal chegaria à lógica conclusão: “Galera, deu certo a receita do nosso primeiro trabalho. Vamos melhorar no nosso próximo disco?”. Bem, como disse, não se trata de um grupo comum. Oriundos da cena underground de Detroit, os Stooges encarnavam uma massa de jovens deslocados, sem emprego e desvalorizados. Eram verdadeiros transgressores vindos de baixo para lutar contra o sistema. Então, por melhor que tenha sido a experiência com Cale, eles eram mais toscos que aquilo. Tanto que propositadamente deram um “passo atrás” em seu segundo e, para muitos, melhor álbum: “Fun House”, de 1970.

“Fun House” é daqueles acontecimentos em que se confundem vida e arte. A contestação típica do rock ‘n’ roll toma a forma mais punk que poderia: com niilismo e sarcasmo. Disponibilizando um orçamento mais modesto do que da primeira vez, a gravadora Elektra chamou para dar um jeito naquela gurizada outro tarimbado produtor Don Galucci (lendário, aos 14 anos tocara órgão na versão de "Louie, Louie", da garage band Kingsmen, sucesso em 1963). Afinal, o primeiro disco, mesmo cultuado, vendera mal e a turma só queria saber mesmo era de se chapar e de putaria. A genial resolução veio da cabeça de Galucci: por que não registrar, então, EXATAMENTE isso? “Se é de sexo, drogas e rock ‘n’ roll que os Stooges entendem, vamos colocá-los a fazer o que sabem”. 

Reproduzindo a atmosfera selvagem e performática dos shows da banda e da própria Fun House – a casa em que todos viviam entre picos de heroína, sexo, confusões e muita música –, eles entraram no estúdio em Los Angeles para tocar ao vivo. E de forma a se sentirem totalmente ambientados, com o aparato usado durante os shows. Iggy se pintando de tinta, trocando roupas, esfarrapando outras ou se lambuzando com cobertura de bolo, cujo branco se misturava ao vermelho do sangue que tirava de si mesmo cortando-se com cacos de vidro. Para completar, depois das sessões de gravação, a “Casa dos Prazeres” se transformava num motel onde orgias e drogas, em looping, geravam o conteúdo musical e conceitual que compõe o disco.

O resultado é uma sonoridade consideravelmente mais tosca do que a do primeiro disco, com a cara de som de garagem que queriam, onde prevalecem a guitarra em altíssimo volume; um baixo grave e permanentemente presente; uma bateria que parece uma lata sendo socada; e... Iggy. Ah! Iggy estava mais junkie e ensandecido do que nunca, o que se nota tanto nos vocais quanto nas letras. Perceptível isso na estupenda faixa de abertura, “Down on the Street”. Um cartão de visitas furioso, cru, liricamente violento. “Descendo a rua onde os rostos brilham/ Flutuando ao redor dela cabisbaixo/ Visualizando coisas bonitas/ Sem muros!/ Sem muros! Sem muros!...” Um dos melhores riffs de todo o cancioneiro punk-rock.

“Loose” segue no embalo “from hell”, mandando ver noutro riff matador da guitarra de Ron, enquanto ele mesmo executa noutra guitarra distorções que emporcalham o fundo. “Eu levei uma gravação de músicas lindas/ Agora as mostro pra você direto do inferno”, dizem os versos. O início da faixa, clássico, com a virada de Scott e os gritos de Iggy, virou sample da Chico Science & Nação Zumbi na faixa "Manguetown", de “Afrociberdelia” (1997).

Uma das músicas que melhor traduzem o clima de “Fun House” é a pogueda "T.V. Eye", gíria inventada pela irmã de Ron e Scott, Kathy, que significa algo como “Interesse sexual”. Um reflexo direto das noitadas da banda e do conhecido sex appeal de Iggy, àquelas alturas um símbolo sexual da cena. Scott parece que vai furar a caixa tamanha força das batidas, repetidas energicamente. O baixo de Dave está destacado sobre todo o resto, fazendo evoluções inteligentes sobre a base. A guitarra rasga o ar, mais rosnando do que outra coisa, haja vista que é do baixo que se percebe o riff. Iggy, por sua vez, é um caso à parte. Que performance! O número não começa: irrompe! O Iguana solta um grito literalmente animalesco, que chega a dar um susto em quem escuta. Sexo. Drogas. Rock ‘n’ roll. Na veia! “Vê aquela gata?/ Sim, eu a quero/ Você vê aquela gata?/ Sim eu quero você/ Ela está com um T.V. Eye sobre mim...” Importante não só para aqueles que viam nos Stooges uma referência, como Richard Hell, Ramones, Suicide, Dead Boys e outros, mas também dentro do repertório da banda, “T.V. Eye” inspiraria pelo menos duas canções de cunho altamente apimentado do disco seguinte da banda, “Raw Power”: “Penetration” e “Shake Appeal”.

“Dirt”, conforme o próprio Scott define, “é um exemplo perfeito de como era nossa atitude: ‘Foda-se toda essa merda! Somos lixo e não nos importamos.’” São 7 min lisérgicos sobre uma base 1x5 cuja batida cadenciada e a linha do baixo abrem campo para a guitarra literalmente sujar o ambiente com distorções de wah wah e muita viagem sonora. Isso sobre as frases soltas, gritadas, destroçadas de Iggy, que dizem a certa altura: “Ooh, eu estive sujo/ E eu não me importo/ Porque eu estou queimando por dentro/ Eu sou apenas um anseio interior/ E eu sou o fogo da vida”. 

Se o pessimismo de “Dirt” dizia que os sentimentos eram todos suplantados diante da realidade irremediavelmente imunda daquele início de década (Guerra do Vietnã, ditaduras nas Américas, reflexos de 1968, crise do petróleo, desemprego, inflação), o que salvava era extravasar por meio das emoções mais instintivas. “1970”, outro petardo punk – cuja métrica propositadamente lembra a de “1969”, do disco anterior –, fala que os loucos sábados à noite daquela época eram, afinal, a escapatória: o prazer carnal: “Linda gata/ Alimente o meu amor a noite toda/ Até eu explodir/ Toda a noite até que eu exploda/ Eu me sinto bem/ Baby, oh baby, queime meu coração”. Para completar a sonoridade de uma das grandes faixas do disco e de todo o repertório da banda, o sax de Steve Mackay, tão enlouquecido que, dissonante e estridente, lembra o dos “loucões” do free-jazz Ornette Coleman e Albert Ayler.

A faixa-título, um blues ruidoso e quebrado, tem uma bateria martelada e a guitarra solando desde o início junto com o sax – e claro, também dos gemidos e urros de Iggy. O baixo, que de início segura a base, passa a ter o acompanhamento de Ron e Mackay por um tempo, mas logo em seguida estes desvirtuam novamente e passam a solar cada um para um lado. O vocal de Iggy é extraordinário, capaz de impor seu belo timbre a serviço da mais assustadora insanidade. “Iggy era perigoso”, declarou certa vez o amigo e empresário da banda à época Danny Fields.

Fechando esse soco sonoro que é “Fun House”, "L.A. Blues", como não poderia deixar de ser, mais um soco. Quase 5 min de gritos lancinantes, improvisos, distorções, microfonias, dissonâncias. O blues mais sórdido que se pode ter notícia. É possível enxergar a performance de Iggy e Cia. somente ouvindo-os. Conforme conta Alan Vega, do Suicide, no livro “Mate-me, Por Favor – A História sem Censura do Punk”, Iggy Pop “não era teatral, era teatro. Alice Cooper era teatral, ele tinha todo o aparato, mas com Iggy não era encenação. Era a coisa real”. Neste sentido, “Fun House” soa tão honesto que não pode ser considerado um retrocesso, mas, sim, uma obra genuína. Ao contrário da maioria, os Stooges precisavam regressar para serem eles mesmos. Tamanha originalidade faz com que o disco, presente entre os primeiros em qualquer lista de melhores da história do rock e dos anos 70, seja cultuado por toda a geração desde que foi lançado – e não apenas de roqueiros, haja vista que o jazzista Miles Davis, pai do cool jazz, era fã declarado da banda.

Se “Fun House” já representava uma devolução, os Stooges conseguiram se superar em “Raw Power”, de 1973, em que as músicas eram ainda mais furiosas e a produção foi relegada a segundo plano, tornando-o (saudavelmente!) inaudível em alguns momentos. Mais um passo em direção ao depauperamento deliberado que Iggy Pop e Stooges promoviam na indústria fonográfica, provando aquilo que os punks entenderam muito bem: no rock, menos pode muito bem ser mais.

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FAIXAS
1. "Down on the Street" – 3:43
2. "Loose" – 3:34
3. "T.V. Eye" – 4:17
4. "Dirt" – 7:03
5. "1970" ("I Feel Alright") – 5:15
6. "Fun House" – 7:47
7. "L.A. Blues" – 4:57

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OUÇA O DISCO

por Daniel Rodrigues

sábado, 29 de abril de 2017

"Mate-me Por Favor - Uma História Sem Censura do Punk", de Legs McNeil e Gillian McCain - ed. L&PM (2005)


"A primeira vez que eu vi Richard Hell,
ele entrou no CBGB's usando uma camiseta com um alvo
e as palavras "Mate-me Por Favor".
Aquilo era uma das coisas mais chocantes que eu já tinha visto."
Bob Gruen,
fotógrafo e cineasta

"Lendo 'Mate-me Por Favor' me senti como se estivesse lá...
Espere um pouco, eu estava lá.
Este livro conta como foi.
É o primeiro livro a fazê-lo."
William Burroughs,
escritor



Um dos meus livros preferidos mas que curiosamente nunca falei aqui no blog e que sempre achei que merecia deferência por ser um dos meus livros de cabeceira, é o excelente "Mate-me por favor - Uma História Sem Censura do Punk", de Legs McNeil e Gillian McCain, um retrato do punk desde seus primórdios até seus últimos suspiros contado de forma magnífica pelos personagens que fizeram essa história. Montado a partir de inúmeras entrevistas com músicos, produtores, jornalistas, empresários, fãs, groupies, roadies ou seja lá quem tivesse participado ou presenciado todo aquele alvoroço, "Mate-me por favor" consegue graças a uma organização impecável, que deve ter dado um trabalho enorme, conferir um ritmo quase de romance à série de relatos, resultando num livro empolgante de tirar o fôlego.
O livro "narra" o processo de formação do punk rock partindo ainda lá do final dos anos 60 com o The Doors e seu comportamento transgressor, Velvet Underground e sua música revolucionária; passando pela sujeira dos Stooges, a crueza do MC5, a provocação dos New York Dolls e pela sofisticação do Television; encontrando a cena norte-americana do CBGB's da qual os Ramones podem ser possivelmente considerados os principais representantes; chegando à cena londrina com Sex Pistols, Clash; e ainda dando uma passada pelo que resultou dessa trajetória toda.
A frase inconsequente e niilista que deu título ao livro escrita na camiseta  Richard Hell, como tantas outras naquele momento, é apenas um exemplo da inconformidade dos jovens naquele final de anos 70, muitas vezes não compreendida com exatidão nem por eles mesmos, mas que acabaria resultando numa identidade visual e comportamental até hoje inevitavelmente associada ao punk e que curiosamente hoje vemos com frequência em todo lugar na forma de calças rasgadas, acessórios de couro, cabelos moicanos, etc. Malcolm McLaren que o diga! Um dos que tiveram visão e deram um jeito de faturar o seu com aquela rebeldia toda. E isso também é contado lá.
As páginas de "Mate-me Por Favor" trazem e alternam momentos emocionantes, empolgantes, tensos e hilários. Gravações, shows, brigas, noitadas, excessos, putarias estão presentes na brilhante compilação de entrevistas que compõe o livro. O episódio da briga dos Dead Boys em que o baterista Johnny Blitz fora esfaqueado é tenso e dramático. "...Então vejo a camiseta e percebo que é Johnny quem está n chão (...) Estava cortado desde a porra da virilha té o pescoço e com o peito aberto de um lado a outro. Estava aberto. Ele estava... aberto", conta Michael Sticca, ex-roadie da banda. O que Iggy Pop é solto da cadeia vestido de mulher é hilário. Ray Manzareck, dos Doors, foi lá pagar a fiança: "Jim, isto é um vestido de mulher!", "Não, Ray. Devo tomar a liberdade de discosrdar. Isto é um vestido de homem.". Bem como é hilário o episódio do show em que o vocalista dos Dead Boys ganha um boquete no palco, contado por Babe Buell, a mãe da atriz Liv Tyler: "Alguém me disse para ir no CBGB's ver a melhor banda do mundo, os Dead Boys. Então fui lá uma noite quando eles estavam tocando, entro e a primeira coisa que vejo é Stiv sendo chupado no palco.". Um dos mais emocionantes, no entanto, é o que Jerry Nolan, ex-baterista dos Dolls, nos últimos dias de vida relata o show em que viu a sola furada do sapato de Elvis Presley. "Este show, embora aos 10 anos de idade, realmente mudou minha vida. Fui dominado por Elvis. Pude sentir o que é tocar música. Mas acima de tudo lembro de duas coisas daquele show: minha irmã perdendo completamente o controle e o buraco no sapato de Elvis.". Uma espécie de síntese poética do que é ser rock'n roll.
Livro que é obrigatório para amantes de música e sobretudo para os que tem especial admiração, respeito, curiosidade por aquele período, por aquele "movimento" que com toda suas limitações, sua anarquia, suas loucuras foi definidor de atitudes, comportamento e tendências, deixando um inegável e valioso legado para as gerações posteriores. Foi relançado posteriormente em versão pocket em dois volumes, sendo ainda hoje facilmente encontrado até em bancas de jornal por conta do formato prático. Ou seja, não tem desculpa pra não ter e não ler.
Um dos meus livros preferidos e frequente fonte de pesquisa, "Mate-me Por Favor" é a história do punk contada por quem esteve lá, por quem quem a viveu, inclusive os próprios autores, o que confere autenticidade e credibilidade ainda maior ao livro. Ali estão os fatos apresentados sem frescura, sem panos quentes ou papas na língua. A verdade nua, crua, suja, chapada, barulhenta e furiosa.


Cly Reis