"Miles chegou prar mim e disse, 'toque como se você não soubesse como tocar guitarra' (...) Comecei a dedilhar a melodia e quando olhei, Miles estava adorando (...) Fiquei abismado, porque tocávamos apenas uma nota, sol, e ele transformou isso em algo especial."
John McLaughlin, guitarrista
Curiosamente exatamente na chamada fase elétrica da carreira de Miles Davis, o meste nos apresentava um disco 'silencioso'. "In a Silent Way" de 1969, apesar de inegavelmente apresentar mais elementos rock, um incremento de guitarras e órgãos elétricos, é um disco de uma sutileza e leveza quase inexplicáveis. Um álbum cujos vazios são quase tão importantes quanto os cheios. Onde a sugestão de uma nota, de um acorde, compõe a música de uma maneira quase tão fundamental quanto o próprio instrumento.
Com o estilo e sofisticação característicos de sua obra, Miles nos conduz numa incrível viagem no vácuo acompanhada pelo som de uma magnífica banda cheia de improvisações e de seu trumpete inigualável. Basicamente com apenas duas canções que se repetem sob variações ao longo do disco, o mestre hipnotiza-nos com suas improvisações improváveis, com sua nota fora de hora, com seu trumpete tocado no nada da música ou com a música esperando por uma nota que simplesmente não aparece, mas está lá.
Só mesmo um grande gênio como Miles Davis para nos proporcionar um disco de rock com música límpida, calma e... silenciosa, e “In a Silent Way”, uma daquelas obras únicas e inigualávies na história da música, consegue isso.
Silêncio! Ouçam...
2. "In a Silent Way/It's About That Time" (Joe Zawinul, Miles Davis) – 19:52 "In a Silent Way" (Joe Zawinul) – 4:11 "It's About That Time" (Miles Davis) – 11:27 "In a Silent Way" (Joe Zawinul) – 4:14
"O violão de Nick sempre foi perfeito, sua voz era
sempre perfeita".
Joe Boyd, produtor musical
"Existe algo místico sobre Nick Drake, pois ele gravou
apenas três discos e não é muito conhecido. Mas há algo mágico em sua música,
uma espécie de fragilidade que muitos podem reconhecer".
Paul Weller
"Eu não acho que tencionava ser uma estrela, mas creio que ele sentiu que tinha algo a dizer às pessoas de sua própria geração, que poderia torná-las mais felizes, e ele sentiu que não havia conseguido".
Molly Drake, mãe de Nick Drake
O ano de 1969 é talvez o mais abundante da história da música moderna. Na música clássica e de vanguarda, John Cage, Dimitri Shostakovitch e sir. Maxwell Davies produziam obras referenciais como a “HPSCHD”, “Sinfonia nº 14” e “Vesalii Icones”, respectivamente. No jazz, Miles Davis trazia o duo de discos que abriria as portas para o fusion, “Bitches Brew” e “In A Silent Way”, e Manfred Eicher lançava na Alemanha o revolucionário selo ECM. No Brasil, já exportador da bossa nova, o Tropicalismo erigia seus mais pungentes manifestos ainda hoje em processo de assimilação. Se foi assim para estes gêneros, imagine para o rock! Tudo culminava naquele último ano da efervescente década de 60. A segunda geração do pós-guerra, os baby boomers, deparava-se com a emergência de uma nova sociedade num mundo em transformação, o que se expressava nas artes de maneira avassaladoramente criativa, sendo a música, especialmente o rock, a principal delas.
São deste ano, só para se ter ideia, o Festival de Woodstock, a pintura musical-impressionista “Astral Weeks”, de Van Morrison, os dois primeiros da Led Zeppelin, começo do metal/hard rock, o grito da denúncia Black Power “Stand!”, da Sly & Family Stone, a paulada inicial do punk da MC5 e da The Stooges e a perfeição do “canto do cisne” beatle, “Abbey Road”. Mais do que os dois anos anteriores, também fartos, a sensação que se tinha em 1969 era a de que se findava um ciclo sem acabá-lo. Talvez por isso a angústia gerada em artistas e músicos em simbolizá-lo, em registrá-lo, em guardá-lo para a posteridade. Uma dessas mentes impactadas pelo contexto sociocultural da época é o cantor e compositor britânico-birmanês Nick Drake. É dele um dos históricos trabalhos cunhados naquele fatídico 1969 e que está completando 50 anos de lançamento: “Five Leaves Left”.
Capaz de unir a postura transgressora do rock com a tradição dos trovadores medievais, Drake traz em seu folk uma poesia ora arcadista ora romântica. Isso aliado a uma sonoridade altamente expressiva e penetrante, reforçado por um canto sóbrio, na medida exata. Tudo numa atmosfera cult que nem Dylan e nem Donovan conseguiram atingir. Ainda, bom gosto absoluto nos arranjos de Harry Robinson e Robert Kirby, os quais, sintonizados com os gostos de Drake, traziam como referência a atmosfera vanguardista da Velvet Underground, o barroco da Beach Boys de “Pet Sounds” e o primor melódico dos mestres do folk e do blues.
Clássica sessão de fotos de Keith Morris em 1969 mostra o alto e elegante Drake
O clima sombrio e peculiar da música de Drake era fruto do gênio de um jovem alto, elegante e bonito, porém tímido e antissociável. Em contrapartida, absolutamente inventivo e capaz. Além de praticar vários esportes na adolescência, desde cedo mostrava habilidades musicais. Tocava clarinete, saxofone, piano e, com muita desenvoltura, o violão, seu instrumento-base. É do pinho que Drake tira preciosidades como “Time Has Told Me”, cuja combinação com a guitarra folk abre “Five...” numa declaração bastante confessional e sobre a passagem do tempo, tema recorrente na obra do músico: “O tempo me disse/ Você é um achado raro/ Uma cura problemática/ Para uma mente problemática”. Das mais lindas canções daquele ano – talvez da década de 60, como uma “Blackbird”, "Blowin' in the Wind" ou “Little Wing” – “River Man” é tão melancólica e potente, que parece o escorrer de uma lágrima mansa. As cordas intensificam o sentimentalismo dos versos entoados com rara candura sobre uma sofrida personagem Betty: “Estou indo ver o homem do rio/ Indo dizer a ele tudo que eu puder/ Sobre o plano/ Pra quando desabrocharem as violetas”.
Outra de “beleza sombria e arrepiante”, como classificou o crítico musical Richie Unterberger, vem na sequência. É “Three Hours”, um country de ares dark cujo baixo acústico mantém um tom grave enquanto o violão dedilha um riff variante, quase improvisado. As cordas orquestradas por Kirby carregam na intensidade para fazer cama à voz seca e contida de Drake, lembrando temas como “She’s Leaving Home”, dos Beatles, e aquilo que Morrissey repetiria quase duas décadas mais tarde com a igualmente arrebatada “Angel, Angel, Down We Go Together” – inclusive no final repentino.
A habilidade de criar afinações diferenciadas para o violão aparecem muito claramente em “Way To Blue”, outra cortante, e o country-rock “'Cello Song”, que tem um acompanhamento interessantíssimo de congas e, como o título indica, de um violoncelo. “The Thoughts Of Mary Jane” é, assim como “River...”, mais uma canção introspectiva que versa sobre um alter ego feminino: “Quem pode saber/ Os pensamentos de Mary Jane/ Porque ela voa/ Ou vai lá pra chuva/ Onde ela esteve/ E quem ela viu/ Na sua jornada para as estrelas”.
“Man In A Shed”, um blues “piano bar”, é cantado tão delicadamente que a voz quase se dissolve em meio ao som dos instrumentos, cujo arranjo privilegia, com muito bom gosto e economia, apenas o piano, um baixo acústico e o violão de Drake. Não dá pra dizer que seja alegre, mas é com certeza a mais animada do disco, com o arejamento jazzístico que outro contemporâneo de Drake, Tim Buckey, também apresentaria naquele mesmo ano em “Happy Sad”.
A fossa retorna, no entanto, com mais uma balada sangrenta: “Fruit Tree”. Novamente autobiográfica, como o tema de abertura, de certa forma prevê a trajetória curta que o homem/artista Nick Drake teria: “Fama é uma árvore frutífera/ Tão estática/ Que pode nunca florescer/ Até que os ramos encontrem o chão/ Alguns homens de renome/ Podem nunca encontrar um caminho/ Até que o tempo voe/ Além do dia de sua morte”. Mais uma vez o arranjo de Kirby dá cores especiais à composição sem competir com o violão cristalino de Drake, intenção esta obtida pelo produtor Joe Boyd: “Quando você ouve os álbuns dele uma das coisas que são extraordinárias é o violão, porque soa tão limpo e forte, e todas as notas são equilibradas. É muito raro isso, pois é muito complicado".
Um final digno para um disco sem ressalvas, “Saturday Sun”, a única do disco com bateria – cuja leves batidas ainda têm o acompanhamento de um elegante vibrafone –, traz em sua poesia novamente a questão do tempo emocional e a relação de seu autor com o mundo externo, revelando os elementos naturais quase como personagens: “O sol de sábado/ veio cedo em uma manhã/ Em um céu tão limpo e azul/ O sol de sábado/ veio sem aviso/ Então ninguém soube o que fazer “. E, pessimista, conclui, sua única maneira possível: “E o sol de sábado/ Se tornou a chuva de domingo/ Então o domingo cobriu o sol de sábado/ No sol de sábado/ E entristeceu-se por um dia que se foi”. De arrepiar.
Depois dessas dez obras-primas escritas para “Five...”, Drake se reclusaria cada vez mais e registaria apenas outras 21 canções, as quais compõem os discos “Bryter Layter”, de um ano depois, e "Pink Moon", de 1971. Apenas três álbuns, que, com o tempo, entraram para a história, visto que todos figuram entre os 500 Discos de Todos os Tempos da Rolling Stone, mesma consideração dada pelo livro “1001 Albums You Must Hear Before You Die”, do jornalista Robert Dimery. Que o digam Robert Smith, Paul Weller, Peter Buck, David Silvian e Renato Russo, fãs que o reverenciam e justificam a essencialidade de 100% de sua obra. A morte prematura, em 1974, aos 26 anos, por overdose, não impediu que, ao contrário dos próprios versos pessimistas, Drake se transformasse em um “homem de renome”. Desconfia-se, contudo, que tenha, na verdade, cometido suicídio - ou, talvez ainda pior, não tenha se importado em perder a vida. Como um tardio poeta romântico, o sensível e deslocado Drake morria antes do tempo para que sua obra fosse reconhecida. Fatídico, mas tragicamente procedente. Como o próprio ano de 1969: uma incompletude que não tem o que tirar nem por.
Parece estranho, mas à medida que vai se conhecendo mais a música de artistas do mundo pop, mais se conhece não as obras deles, mas sim a de Brian Eno. Profundamente influente sobre uma importante parcela de nomes referenciais do pop-rock nas últimas quase cinco décadas, Eno tem traços visíveis do seu trabalho refletidos nos de ícones como David Bowie, U2, Robert Wyatt, David Byrne, Massive Attack, Björk, Beck, entre outros. Seja na Roxy Music, nos discos solo precursores do pop anos 80 (“Taking Tiger Mountain” e “Here Comes the Warm Jets”) ou nos de ambient music, sua linguagem, que une num só tempo música a artes visuais e cênicas, formando um espectro sonoro-sensorial único, está presente em quase tudo que se ouviu em termos de música pop dos anos 70 em diante por influência direta ou indireta. Eno, mais que um músico, um “cientista”, como se autoclassifica, ditou o que é moderno ou não até hoje. Pois a grande síntese de todas essas pontas – da vanguarda ao folk, passando pelo blues, rock, progressivo, jazz e eletrônica – está em “Before and After Science”, disco que completa 40 anos em 2017.
O álbum, produzido pelo próprio autor em conjunto com Rhett Davies, antecipa e/ou reafirma uma série de conceitos utilizados por ele em produções a outros artistas e trabalhos solo. A concepção dos dois “movimentos” da obra é uma delas. A exemplo do que fizera em “Low” e “Heroes”, de Bowie (naquele mesmo 1977) e, três anos depois, em “Remain in Light”, do Talking Heads, “Before...” tem uma narrativa muito clara: um “lado A” agitado, num tom acima, e um “B” onde desacelera o ritmo e vai gradativamente baixando a tonalidade. Como uma sinfonia iniciada em alegro, o disco começa com o embalo afro-pop da estupenda “No One Receiving”. Eno comanda tudo tocando piano e cantando, além de fazer os efeitos de guitarra e manipular os sintetizadores e a programação de ritmo – as batidas que reverberam de tempos em tempos. Junto com ele está nada mais nada menos que Phil Collins na bateria, marcando o ritmo com maestria, e Paul Rudolph, que se esmera no baixo e na rhythm guitar, ao estilo Nile Rodgers. Para fechar o time, Davies no agogô e o exótico stick. Com seu tradicional canto tribal no refrão, que inspirou diretamente muita gente, é muito parecida em conceito e sonoridade com o que Eno dirigiria pouco tempo depois junto aos Heads (“I Zimbra” e “Born Under Punches”, ambas também faixas de abertura em discos produzidos por ele para a banda). Um começo arrasador.
Como é de sua especialidade, a segunda, “Backwater”, é um rock estilo anos 50 tomado de texturas eletrônicas, o que lhe confere certo precursionismo da new wave. E mais interessante: feita só com sintetizadores da época, todos ainda muito por evoluir, a sonoridade de “Backwater” jamais datou mesmo com a evidente defasagem tecnológica em relação à hoje, em que se pode fazer isso com menor risco de soar artificial. Afora isso, Eno está cantando muito bem, com voz inteira e potente. O próprio repetiria essa fórmula de canção em seu disco duo com John Cale (“Wrong Way Up”, 1989) na faixa “Crime in the Desert” e daria o “caminho das pedras” para o U2 em "The Wanderer”, cantada por Johnny Cash em “Zooropa” (1993).
A veia africana aparece noutro formato agora, mais brasileiro e “sambístico”. Trata-se de "Kurt's Rejoinder", um proto-samba eletrônico que traz novamente a profusão de estilos como essência. O amigo Wyatt aparece para fazer soar o timbal, que se soma, na percussão, com a bateria de Dave Mattacks. Pois este é um dos detalhes de “Kurt’s...”: parece um samba muito percussivo, mas a maior parte de sua timbrística está nos teclados de Eno e no baixo com delay de Percy Jones. Outro fator interessante da faixa são suas incursões de gravações e interferências, as mesmas que Eno exploraria com os Heads em “Remain...” numa das canções precursoras do sample na música pop, “Once in a Lifetime” – expediente, aliás que Eno e David Byrne usariam bastante no álbum dos dois, “My Life in the Bush of Ghosts de 1981, servindo de exemplo para outros vários artistas, como Malcom McLaren em seu aclamado “Duck Rock”.
Quebrando o ritmo quase de carnaval, a linda e introspectiva instrumental "Energy Fools the Magician" traz uma atmosfera de jazz fusion, lembrando bastante Miles Davis de “In a Silent Way” e “Bitches Brew”. Phil Collins está mais uma vez muito bem na bateria, marcando o tempo no prato mas sem deixar de executar viradas inteligentes. "Energy…” funciona como uma breve passagem para outra seção agitada, a que fecha o “1º movimento” do disco. Mas desta vez o ritmo não é de batucada e nem de new wave, mas sim o pop-rock exemplar de "King's Lead Hat". Primorosa em produção e mixagem, é daqueles exemplos de rock escrito na guitarra, ao melhor estilo hard rock. Eno e o craque Phil Manzanera dividem a rhythm guitar, mas é outro mestre do instrumento, Robert Fripp, quem comanda o solo. Com efeitos de teclados e de mesa, “King’s...”, em sua união de eletrônico e pós-punk, afina-se com o que ele e Bowie faziam naquele mesmo fatídico ano em temas referenciais como “Heroes”, “Beauty and the Beast”, “Funtime” e “Be my Wife”, influenciado grupos como Joy Division, The Cure e Bauhaus (estes últimos, que gravariam em 1982 “Third Uncle”, de Eno). Além disso, antecipa outro estilo musical que ganharia o mainstream anos mais tarde com as bandas New Order, Depeche Mode, Eurythmics, Ultarvox e outros: o synthpop.
Se a vigorosa “King’s...” termina a primeira parte de “Before...” lá no alto, o segundo ato já inicia mais leve com a melodiosa "Here He Comes". Com a bela voz de Eno cantando em overdub desde que os acordes da guitarra de Manzanera anunciam a largada, embora a melodia guarde certo embalo, já dá mostras que a rotação foi alterada para menos. O moog e o sintetizador de Eno conferem-lhe o clima espacial que se adensará na sequência em "Julie With...", esta, sim, totalmente ambient. Enquanto canta os belos versos com suavidade (“Estou em mar aberto/ Apenas vagando à medida que as horas andam lentamente/ Julie com sua blusa aberta/ Está olhando para o céu vazio...”), os teclados e sintetizadores desenham uma melodia cristalina como o céu limpo a que se refere na letra. Afora do baixo de Rudolph, Eno toca todos os outros instrumentos, inclusive a guitarra do curto mas belo solo, fazendo lembrar Fripp.
Mais uma especial (e espacial) do disco é "By This River", parceria dele com os krautrocks Moebius e Rodelius, mais conhecidos como a banda Cluster. O trio, que naquele ano havia gravado um trabalho em conjunto, o clássico “Cluster & Eno”, deixou guardada essa outra joia. De riff espiral marcado no piano, é sem dúvida a mais clássica do repertório, remetendo às bagatelas românticas, mas também à síntese formal do minimalismo. Nova instrumental, a ambient "Through Hollow Lands" é uma homenagem ao amigo e parceiro Harold Budd, com quem Eno fez diversos trabalhos desde aquela época. Não à toa, a música traz o clima introspectivo e contemplativo de Budd que tanto confere com este lado da musicalidade de Eno, neoclássico e new age.
Se como numa obra clássica “Before...” inicia com o allegro de “No One...”, prossegue variando allegretto e presto e em "Julie With..."/"By This River"/"Through...” encontra características de lento e de adagietto, "Spider and I", de ares litúrgicos e caráter emotivo, é o finale desta grande peça num andamento adagio. E se “No One...” começa arrasando, “ “Spider...” é um desfecho digno.
O crítico musical da Rolling Stone Joe Fernbacher diz que “Before...” é o álbum perfeito da carreira de Eno. Faz sentido, pois, ativamente participante do que estava sendo produzindo de inovador naquele momento, como “The Idiot”, de Iggy Pop, “Vernal Equinox”, de Jon Hassell, e os já citados “Low” e “Heroes”, de Bowie – todas obras de 1977 e responsáveis por alguma sonoridade que ditaria as mentes musicais nas décadas seguintes –, Eno resumiu a sua contribuição para uma nova cara da música pop em “Before...”. "Apesar do formato pop do álbum”, disse outro crítico, David Ross Smith, “o som deste álbum é único e distante do mainstream". Compreendendo todas as suas vertentes musicais e artísticas, Eno compõe um trabalho que alia o agradável e o denso, o popular e o complexo, a vanguarda e o pop. Ao ouvir o disco, pode-se dizer sem erro que a música pop divide-se, literalmente, em “antes e depois da ciência”, a ciência inventada por este alquimista dos sons chamado Brian Eno.
capa de "Tutu", álbum da
popularização definitivada obra de Miles
Aproveitando bem minha estada no Rio, pude conferir no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB RJ), em companhia de meu irmão e editor deste blog, a ótima exposição “Queremos Miles”, sobre a vida e obra do músico de jazz norte-americano Miles Davis (1926-1991). A mostra, que vai somente até 28 de setembro, recupera (quase) toda a biografia do talvez maior gênio do jazz mundial em todos os tempos, um verdadeiro escultor de sons e revolucionário da música do século XX ao lado de alguns outros poucos como Stockhausen, Tom Jobim, Stravinskye Beatles.
Miles ainda menino
Organizada pela Cité de la Musique de Paris, a exposição – cujo título em português, embora a tradução literal, perde em significado, uma vez que o original, “We Want Miles”, faz menção também ao nome de um disco de Miles Davis –, resgata de forma cronológica a biografia deste influente artista que, disco após disco, antecipava e inventava novas tendências, novos estilos, revolucionando a arte moderna e influenciado gerações. O recorte pega desde o seu nascimento, na sulista de St. Louis, trazendo fotos dele quando pequeno com sua família, até o período final de sua carreira, demarcado por sua última obra-prima dentre as várias que produziu em quase 50 anos de vida artística: o álbum “Tutu”, de 1986, marco da criação do hoje popularizado jazz lounge. Da fase inicial, estão o encontro com Charlie Parker e Dizzie Gillespie, o “nascimento do cool”, em 1948, e os admiráveis títulos pelo selo Prestige nos anos 50, para o qual gravou seis obras-primas com o quinteto que incluía nomes como John Coltrane, Red Garland e Sonny Rollins.
Os instrumentos da banda dos anos 70
Multimeios, a abrangente mostra contém um rico acervo de aproximadamente 300 itens entre fotografias raras, capas de LP's, vídeos de apresentações em TV e shows, roupas e vários instrumentos utilizados por ele e por suas célebres bandas, além de partituras, documentos de registro de gravações em estúdio, quadros (belíssimos!) pintados pelo próprio Miles e até o manuscrito original do texto do pianista Bill Evans da contracapa do clássico álbum “Kind of Blue”, de 1959, o disco de jazz mais vendido da história e considerado por muitos insuperável no gênero. E, claro, muita música! Em cada canto, em cada ilha que se entrava pode-se escutar algumas das maravilhas de Miles. Às vezes, nem percebia que me apressava em ver determinada coisa, atraído pelo som de uma “All Blues”, “Pharaoh's Dance” ou “Nuit sur les Champs-Élysées“.
Painel com o estilo Miles dos anos 80
A personalidade camaleônica de Miles Davis, que nunca teve medo de mudar e progredir ao longo dos anos fica evidente, principalmente no aspecto visual: os finíssimos trajes bem cortados que vestia nos anos 40 e 50, transformariam-se, nos 60 e 70, na estética psicodélica da juventude. Igualmente, a bem elaborada curadoria de Vincent Bessières soube destacar muito bem os pontos impostantes da obra de Miles, como a fascinante trilha sonora do filme “Ascensor para o Cadafalso”, de 1957, a parceria com o pianista e maestro Gil Evans, que gerou os históricos “Miles Ahead” e “Porgy and Bess” (1957 e 59, respectivamente), ou as salas especiais dos discos clássicos:"Kind of Blue", sobre o qual comentei aqui neste blog tempo atrás; “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, ambos de 1969 e marcos do jazz fusion;"A Tribute to Jack Johnson" (1971), a memorável trilha para o documentário sobre o boxeador a quem Miles tanto admirava; e “On the Corner”, de 1972, quando Miles introduziu de vez o som do funk que vinha dos guetos americanos em sua música. A única falha, por assim dizer, é a não inclusão do seu último disco, o póstumo “Doo-Bop”, de 1991. Sei que os puristas torcem a cara para este trabalho por sua mistura de hip-hop com jazz, o que aparentemente motivou a organização da mostra a não referi-lo – evidenciando a menor importância a que geralmente lhe atribuem. Eu, particularmente, gosto bastante deste disco não só por sua qualidade musical como por sua importância dentro da música pop diante do que se faria a partir de então no mundo do entretenimento. Quando os norte-americanos do Us3 surgiram com aquele seu jazz-rap em 1993, embora tenha gostado da banda, não segui o estardalhaço em torno do grupo como sendo algo revolucionário justamente por já ter escutado tudo aquilo em “Doo-Bop”. A justificativa dos críticos é a de que os produtores que finalizaram “Doo-Bop” o teriam feito sem a qualidade que Miles imprimiria se estivesse vivo. Sinceramente, acredito que, se o músico tivesse morrido depois da feitura do álbum, o conteúdo seria praticamente o mesmo e muitos dos detratores certamente o louvariam hoje (talvez até mais do que o disco merecesse). Preconceito ou não, falta de critério ou não, o fato é que, até por seu caráter póstumo, considero este momento importante na biografia do artista, por isso a falta dentro da exposição. Mas, entre tantos acertos que “Queremos Miles” traz, isso é o de menos. Mais fácil eu pegar meu “Doo-Bop” e me deliciar sozinho em casa.
********************* Queremos Miles Até 28 de Setembro Local: Térreo e 1º andar | CCBB RJ Horário: Terça a domingo, das 9h às 21h
"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock
É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível.
No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.
Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.
Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.
Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe.
Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.
Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.
Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.
Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.
Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo.
Já escrevi sobre o saxofonista Wayne Shorter e o pianista e tecladista Herbie Hancock para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mais de uma vez. De Shorter, sobre o hipnotizante "Night Dreamer",
afora "The Sidewinder", no qual integra a banda de Lee Morgan. De Hancock, falei
do suingado "Empyrean Isles" e do esplendoroso "Maiden Voyage", além de outras
menções invariavelmente merecedoras. Porém, tanto um artista quanto outro tem,
principalmente nos anos 60, vários discos (se não todos dessa época) que podem
figurar numa lista de essenciais. Suas produções, seja como band leaders ou em participações, são
extremamente ricas e fecundas. Outro trabalho dessa leva e de suma importância
tanto quanto estes ou até mais em certo aspecto é o por mim já citado neste
blog "Speak No Evil", de 1965. Aqui,
com Shorter à frente, o amigo Hancock assume o piano junto com o primoroso acompanhamento
de outros três mestres: o do baixo acústico, Ron Carter, o do trompete, Freddie Hubbard, e o da bateria, Elvin Jones. Às vésperas de finalmente assisti-los ao
vivo pela primeira vez – e os dois numa vez só! –, acho digno relembrar uma das
icônicas parcerias entre essas duas lendas vivas do jazz.
A começar pela enigmática capa de Reid Miles (para mim a melhor arte de
todos os tempos da discografia jazz norte-americana),“Speak no Evil”é puro
refinamento. Seja nas composições, nos arranjos, nas harmonias, nos estilos de
tocar. E é um dos mais felizes momentos de comunhão entre esses músicos, todos filhos
musicais de Miles Davis, porém, ainda mais, no que se refere a Shorter e
Hancock, duas figuras basais para o jazz contemporâneo que seguiriam mudando em
vários momentos a cara da música moderna. Aqui, a revolução já estava em plena combustão.
As seis composições de Shorter presentes no disco ajudaram a definir um novo
estilo dentro do jazz naqueles meados de anos 60, numa fusão da força muscular
concentrada do hard bop com os
intervalos surpreendentes e melodias muitas vezes suspensas sobre o compasso. O
resultado disso foi a cunhagem de um novo ”Birth of the Cool", uma mistura
ímpar de contenção e liberdade que criou um contraste marcante entre temas
arejados e outros de uma tensão calculadamente equilibrada.
“Witch Hunt”, com o início marcante do duo entre Shorter e Hubbard,
começa na melhor atmosfera cool, algo
sinalizado pelo piano de Hancock, que se mantém num tom moderado. O sax dá a
largada exercitando um solo de pura consciência de ritmo e variações.
Equilíbrio nas tensões e distensões. Sua exatidão remete ao piano de Thelonious
Monk. Seu som é tão amplo e perfeitamente pronunciado que mal se percebe quando
o trompete entra. Sensação que, no entanto, logo se corrige: é Hubbard quem está
no solando agora. Acelerando e intensificando, ele imprime um leve desnorteio
àquele cosmos mas, igualmente inteligente, não deixa escapar o tema. A emoção é
captada com ainda mais astúcia por Hancock, que desmancha os dedos sobre o
piano. Claro e denso ao mesmo tempo. Tudo isso desenhado pelo dedilhado
trasteado de Carter. Ao final, no último chorus,
Shorter estoura com parcimônia o agudo do sax enquanto o restante se mantém,
demonstrando mais uma vez o controle conceitual do álbum em seu casamento de
leveza e energia.
Agora é Hancock quem dá os primeiros acordes, mostrando que, mesmo num
projeto de Shorter, parceiros como ele têm participação fundamental. O pianista
determina o andamento lento e elegante de ”Fee-Fi-Fo-Fum”. Carter segura um
blues de alta capacidade de leitura melódica. Que tema charmoso! O riff, em chorus, é repetido uma vez e, quando
parece que vai se diluir, um rolo em crescendo de Jones sinaliza para Hubbard,
que já salta em uma nota aguda para depois compor um solo emotivo. Shorter
acata a mesma ideia, ora repetindo o tema, ora injetando mais respiros entre uma
frase e outra. Porém, tomado pela emotividade, há o momento em que a acentua a
seu modo, gerando ostinati típicos de
seu estilo. Após uma breve participação de quem começou tudo aquilo, Hancock, o
chorus é repetido com a mais alta
precisão, desfechando com o tradicional titilar nos pratos de ataque.
A cadência leve de ”Fee-Fi-Fo-Fum” é pega emprestada para o tema
seguinte, “Dance Cadaverous”. No entanto, não em um clima ameno mas, sim, num muito
mais denso e etéreo, trazendo ao cool
uma nova dimensão de sobriedade. Hancock dispara acordes que se dispersam dos
sopros, acima deles, enevoando o ambiente. Jones, de pura sensibilidade, usa baquetas
de madeira quase apenas nos pratos e o chipô; quando muito, na caixa. Já Carter
entrega ao ar ressonâncias estendidas. Mas é Hancock quem norteia a melodia. Nada
mais natural, então, do que ele mesmo começar solando. É de seu dedilhar e da
textura do piano que se constitui a essência fantasiosa da canção, o que Hancock
elabora em variadas cores, seja remetendo ao classicismo de um Gershwin, dando pinceladas
do atonalismo de vanguarda europeia ou se apropriando da sutiliza romântica de
Chopin. A personalidade lírica e ao mesmo tempo “cadavérica” do tema dá a
Shorter argumento suficiente para este transitar entre dissonâncias e relevos
no improviso. Música levemente perturbadora – ou seria instigantemente
deliciosa?
Mais emblemática ainda é a faixa-título, em que Shorter e Hubbard já
largam arrebatados e impecavelmente sintonizados. Eles executam um riff em tempo 4/4 no qual ainda brincam
com a extensão do acorde e o perfil sonoro, mantendo e variando a intensidade
do corpo do som até sua queda e iniciarem um novo ataque. Como se não bastasse,
o restante da banda também se esmera. Jones, bluesy por demais; Carter, preciso, preenchendo os espaços; e
Hancock: ah, Hancock! Que maestria! Se em ”Fee-Fi-Fo-Fum” e “Dance Cadaverous”
sua contribuição é claramente notada, em “Speak No Evil” ele voa. Figuras
soltas, oníricas, encadeamentos, glissandos, quase à parte do restante dos
companheiros. Nos improvisos, os solistas expandem a coloração sobre a base
modal, cada um a seu jeito: Shorter, buscando a pureza dos sons, pautado por
uma brandura inquieta; Hubbard, criativo como sempre, repetindo frases de seus
mestres; e, por fim, Hancock, ágil e impermanente, delicadamente impiedoso.
Mais uma balada doce e sensível, “Infant Eyes” se constrói a partir dos
primeiros acordes do piano, o qual chama o sax para fazer-se conhecer a
melodia. Sopros extensos e sentidos, como deve ser um bom tema romântico.
Shorter o conduz sem pressa por quase 5 min dos 6’54 da faixa, entre riff e improviso, os quais, difusos, se
diluem. Única sem solo de Hubbard, nela cabe a Hancock quebrar a fala
enfeitiçada de Shorter, o que não dura muito tempo, pois o líder, sedento por
expor o sentimento de seu sax, volta para dar os últimos acordes. “Wild Flower”,
com algo de oriental como sugere a capa, desfecha na mesma atmosfera elegante
de todo o álbum: sobriedade e coração. Repetindo a ordem, primeiro Shorter,
depois, Hubbard e, por último, Hancock, todos sob a base rítmica e harmônica
cunhada por Carter e Jones. Terminava ali a sessão registrada no Natal de 1964
nos estúdios Van Gelder, em Nova York, e posta em acetado meses depois.
A fase era tão boa que somente aquele ano de 1965 contaria com outros
três discos igualmente antológicos de Wayne Shorter: “The Soothsayer”, “Et
Cetera” e “The All Seeing Eye”. Hancock, igualmente, estava voando baixo,
compondo discos solo, trilhas, fundindo a música pop ao jazz de maneira
inseparável. A dupla voltaria a se encontrar em vários outros projetos, fosse nos
sessentistas “Adam’s Apple” e “Schizophrenia”, de Shorter, fosse compondo a
banda de Miles (“Smiles”, "In a Silent Way", “Big Fun”, “Water Babies”, entre
outros), nos discos da V.S.O.P. ou nos trabalhos de Milton Nascimento (“Native
Dancer”, “Courage”, “Raça”). A última vez que entraram juntos num estúdio foi
para o disco-duo “1 + 1”, de 1997 e, agora, afinados como são há meio século,
retomam a parceria para uma turnê que passa pelo Brasil. Nada mais pertinente,
portanto, que ouvir – ou reouvir, àqueles que conhecem – uma das obras-primas
em que ambos trabalharam juntos. Speak no
evil: only, listen.
Pessoal
que acompanha meus textos andava reclamando que eu só falava de
discos de música pop e deixava o jazz – em tese, minha
especialidade – de lado. Hoje, resolvi resgatar um disco dos meus
19 tenros anos. Mas, pra começar, uma historinha. A década de 70 no
jazz foi pródiga em manifestações das mais variadas. O selo ECM
surgiu e floresceu, o jazz alemão se desenvolveu e o fusion
tomou conta das paradas e das mentes do novo público que veio do
rock querendo algo mais do que três acordes. A culpa toda é de Miles Davis que, em 1969, lançou os discos "In a Silent Way" e o
seminal “Bitches Brew”. Em suas bandas, circulavam nomes que
iriam montar seus próprios trabalhos durante a década. Entre eles, Chick Corea, com seu “Return to Forever”, Joe Zawinul e Wayne Shorter, com o Weather Report, e o guitarrista inglês John
McLaughlin com a Mahavishnu Orchestra. À exceção de Zawinul,
que fez dos teclados e do som elétrico a base de seus trabalhos,
todos os outros mesclaram as sonoridades acústicas com as elétricas
em suas criações.
No
final dos anos 70, McLaughlin montou mais um de seus grupos, a One
Truth Band, trazendo o violinista L.Shankar da Índia, o
percussionista brasileiro Alyrio Lima e mais os americanos Stu
Goldberg nos teclados, Fernando Saunders no baixo elétrico e Tony
Smith na bateria. Com esta turma, gravou o disco “Electric
Dreams”, com o qual excursionou pelo mundo e, por incrível que
pareça aos mais jovens, esteve em Porto Alegre, no Gigantinho,
dividindo o palco com Egberto Gismonti & Academia de Danças.
Nesta ocasião, eu estava mergulhado totalmente no fusion e
não perdi a oportunidade de ver este espetáculo. Além de mim,
cinco mil testemunhas adoraram o que viram. Numa nota pessoal, em
2010, estive em Bremen, na Alemanha, para ver um festival de jazz, a
convite do Instituto Goethe, e a abertura era feita por McLaughlin e
seu grupo. No final, fui conversar com ele no backstage e o
guitarrista acabou me confessando que foi “o pior som que jamais
teve em um palco”. Que currículo, hein? Mas o que interessa é o
disco “Electric Dreams”, de John McLaughlin & The One Truth
Band.
A
viagem inicia com “Guardian Angel”, praticamente uma vinheta de
McLaughin no violão, Goldberg ao piano e Shankar no violino. Tão
breve que dá vontade de ouvir novamente. Depois, vem “Miles
Davis”, a homenagem de McLaughlin ao trompetista que havia lhe dado
de presente uma das músicas de “Bitches Brew”. Uma faixa
balançada com os teclados de Goldberg, a bateria de Smith e a
percussão de Alyrio fazendo o pano de fundo para os arroubos
virtuosísticos de Saunders e da guitarra de McLaughlin. Depois de
uma improvisação coletiva ao estilo dos discos elétricos de MD, a
música vira uma funkeira no clima dos trabalhos posteriores do
trompetista. Isso que estávamos em 1979. McLaughlin já esteve
prevendo o que viria na volta de Miles aos gramados.
“Electric
Dreams, Electric Sighs” começa com a guitarra improvisando sob uma
cama de teclados. O clima de balada se instala com o tema da canção,
sob o qual Shankar faz seu solo, o tecladista usa o Fender Rhodes
para as harmonias e o mini-moog para o solo e o guitarrista
larga seu instrumento e faz uma tentativa no banjo, muito bem
sucedida, aliás. Pena que ele não seguiu em frente com seus
experimentos “banjísticos”. Depois, ele retoma a guitarra para
encerrar a música.
A
faixa que fecha o lado 1 do LP é a preferida da casa: “Desire and
the Conforter”, que inicia com o triângulo de Alyrio junto ao
Rhodes de Goldberg, aos quais se juntam os pratos de Smith e o solo
de baixo elétrico fretless de Saunders. Aos quase dois
minutos, a música dá uma guinada e a guitarra de McLaughlin e o
violino de Shankar introduzem uma batida funkeada que dá segmento a
um rodízio de solos do mini-moog de Goldberg, da guitarra do
líder e do violino de Shankar. E quando todo mundo achava que a
composição terminaria aí, uma levada jazzística de Smith surge
quase do nada para carregar mais um solo de Mac com Alyrio pontuando
com seus caxixis, chocalhos, guiros e outros bichos mais. Até a
funkeira recomeçar para o final da música no qual o percussionista
brasileiro vai regulando dizendo: “segura, rapaziada, segura,
não deixa cair...”.
O Lado
2 abre com “Love and Understanding”, uma viagem mística de
McLaughlin com o violão fazendo uma base para um lindo solo de
violino. Aos poucos, os teclados tomam conta, juntamente com a
guitarra. E aí, a surpresa: o baterista Tony
Smith começa a cantar: “Love and
Understanding / Understanding love”,
seguido pelo baixista Saunders entoando: “Love
is hard to stand it... You can hear the secret sound / to be found /
so let’s see, let’s see, let’s see..”.
Pura doideira cósmica, recheada com solos em uníssono de
McLaughlin e Shankar. Até o clima místico voltar. E Smith e
Saunders continuarem cantando que “o amor é compreensão”. Nem
todo mundo concorda...
“Singing
Earth” é mais uma vinheta, agora a cargo dos teclados de Goldberg.
Quando prestamos a atenção, ela terminou. Mas a pauleira jazz-rock
vem com força total com “The Dark Prince”, faixa que poderia
estar nos dois primeiros discos da Mahavishnu Orchestra, “The Inner
Mounting Flame” ou “Birds of Fire”, sem dúvida alguma. Depois
da apresentação do tema, os solos tomam conta, com McLaughlin
mostrando aquelas notas rapidíssimas, bem ao seu estilo. Na
sequência, Stu Goldberg faz um solo de Fender Rhodes e depois de
mini-moog. Quebradeira fusion pra ninguém botar
defeito.
Pra
fechar o disco, uma balada com andamento de valsa chamada “The
Unknown Dissident”, que começa com os policiais do governo
circulando e procurando o dissidente desconhecido. Logo, McLaughlin
mostra a melodia na guitarra, seguido pelo convidado David Sanborn no
sax alto, que passa a solar. Quando o guitarrista voltar a tocar, faz
uma variação do tema principal. Assim como Sanborn, que reaparece
dividindo o espaço dos solos com o líder. No final, os dois
apresentam o tema. E os efeitos especiais retornam com uma porta
sendo aberta, o dissidente sendo levado pelos guardas, ouvindo-se os
passos até o tiro final.
Qualquer
um que vier contestar, dizendo que este não é dos melhores discos
de John McLaughlin, vou devolver a contestação. Esse é um dos meus
discos favoritos, ponto final. Ninguém tem de gostar. Só eu. E eu
gosto muito. Você também pode gostar.
............................
Uma
nota da época: Alyrio, entendiado no quarto de hotel, foi dar um
passeio no centro de Porto Alegre. Ao chegar na atual Esquina
Democrática, deparou-se com a loja Scarpini, “o joalheiro da
metrópole”, como dizia a propaganda. Não teve dúvidas: entrou e
pediu para ver os diamantes. Os atendentes ficaram cabreiros e
botaram o olho no rapaz. Este não pensou duas vezes e engoliu um dos
diamantes. Vigiado, Alyrio foi denunciado e a polícia foi chamada
para resolver o caso. Que teve sua solução na delegacia com um
laxante... Para quem não acredita, a saudosa Folha da Tarde publicou
esta história inclusive com foto do malfadado percussionista.
******************************
FAIXAS:
1. Guardian Angels – 0:51
2. Miles Davis – 4:54
3. Electric Dreams, Electric Sighs – 6:57
4. Desire and the Comforter – 7:34
5. Love and Understanding – 6:36
6. Singing Earth (Stu Goldberg) – 0:37
7. The Dark Prince – 5:15
8. The Unknown Dissident – 6:16
Todas
as composições de McLaughlin, exceto indicada
“CHAPELEIRO: Se você conhecesse o Tempo tão
bem quanto eu conheço você não falaria em gastá-lo, como uma coisa.
Ele é
alguém.
ALICE: Não sei o que você quer dizer.
CHAPELEIRO: É claro que você não sabe!
Eu
diria até mesmo que você nunca falou com o Tempo!
ALICE: Talvez não, mas sei que devo marcar
o tempo
quando aprendo música.”
trecho de “Alice no País das
Maravilhas”,
de Lewis Carroll
Depois de “Blow By Blow” do Jeff Beck, meu preferido, apresento pra
vocês mais um favoritíssimo da casa: “The Mad Hatter”, do pianista e tecladista
norte-americano Chick Corea. Como sempre, um pouquinho de história: em 1978,
aos 37 anos, Armando Anthony Corea já tinha uma longa estrada na música. Tocou
com os percussionistas Mongo Santamaria e Willie Bobo, com o flautista Herbie
Mann e com o sax tenor Stan Getz. Gravou seus primeiros discos solo na metade
dos anos 60 e mergulhou de cabeça na sonoridade free daqueles tempos.
Em 1968, foi convidado por Miles Davis a substituir Herbie Hancock em
sua banda. Participou dos seminais discos "In a Silent Way"e “Bitches Brew”.
Paralelamente, tinha os grupos Circle – com e sem o multiinstrumentista Anrhony
Braxton – e a primeira encarnação do Return to Forever, da qual participavam os
brasileiros Airto Moreira e Flora Purim, além de Joe Farrell e Stanley Clarke.
Após dois discos com esta formação, Corea foi com tudo pro fusion, trazendo para a banda, primeiro o guitarrista Bill Connors,
e depois descobrindo um jovem de 19 anos, Al Di Meola.
Neste tempo todo, Corea fazia projetos especiais para a gravadora ECM,
como discos de piano solo, duetos com o vibrafonista Gary Burton e trios com
Dave Holland e Barry Altschul. Em 1976, sentindo a necessidade de misturar a
linguagem acústica de seus discos da ECM com o fusion, muito em moda na época,
Corea fez uma trilogia de discos temáticos onde estas preocupações tomam a
forma de música: “The Leprechaun”, baseado nas histórias de duendes, e “My
Spanish Heart”, onde ele se debruça sobre a Espanha e seus sons, ambos de 76, e
“The Mad Hatter”, de 78. Na minha opinião, este terceiro é provavelmente o
trabalho em que Corea consegue mesclar as duas linguagens – e o acento erudito
com quinteto de cordas – com sucesso total, musicalmente falando.
Baseado no clássico livro de Lewis Carroll, "Alice no País das Maravilhas", a chave para entender o disco está na capa com Corea vestido de
Chapeleiro Maluco. A viagem inicia aí. Em termos musicais, "The Mad
Hatter" começa com Corea pilotando seus teclados em “The Woods”. Com moogs, mini-moogs, sintetizadores,
pianos elétricos e outros bichos, ele consegue reproduzir os sons de uma
floresta, com sapos, grilos e insetos, dando uma prévia do que virá pela
frente, a mistura de clássico com moderno. “Tweedle Dee” segue na mesma trilha,
fazendo uso das cordas e dos sopros (três trompetes e um trombone), pode-se
verificar com clareza a influência de Bela Bártok em sua música. Na música
seguinte, “The Trial”, temos a primeira aparição da exímia cantora e
tecladista, além de mulher de Corea, Gayle Moran (que havia participado da
segunda formação da Mahavishnu Orchestra, ao lado de John McLaughlin e Jean-Luc
Ponty). No julgamento do Rei de Copas, retirado diretamente do livro de
Carroll, Gayle canta com acento lírico: “Who’ll
stole the tarts / Was it the king of Hearts?”.
O principal momento jazzístico do disco acontece com “Humpty Dumpty”,
uma preferida dos músicos de Porto Alegre. Com um quarteto básico de jazz,
Corea consegue performances extraordinárias de seus colegas Joe Farrell no sax
tenor, Eddie Gomez no baixo acústico e Steve Gadd na bateria. Em meio a todos
aqueles teclados, cordas e sopros, é interessante ouvir o contraste de um grupo
acústico tocando um hard-bop
clássico. Cada músico dá seu showzinho particular, mas preste atenção no som de
baixo de Gomez. Madeira pura!
O lado 1 do LP termina com “Prelude to Falling Alice”, onde o tema é
tocado ao piano e “Falling Alice”, quando o pianista e compositor usa de todo o
arsenal sonoro para contar a queda de Alice. Gayle Moran canta o tema
principal, acompanhada pelas cordas e pelos sopros. Nesta música, temos a
primeira aparição de Herbie Hancock no piano elétrico, fazendo a harmonia para
o solo de mini-moog de Corea. Neste
período, ele e Corea começam a gravar duos de pianos. Destaque também para o
sax tenor de Farrell, um talento subestimado do jazz. Como estamos no tempo do
LP, há um fechamento musical da história pra que as coisas comecem de novo no
lado 2.
Ao virar o disco, “Tweedle Dum” reprisa o tema de “Tweedle Dee” numa
espécie de introdução da melhor faixa do disco, “Dear Alice”. Com 13 min e 7
seg, a música é uma espécie de tour de
force de todos os envolvidos. Pra começar com Eddie Gomez fazendo a melodia
no baixo acústico e Corea fazendo pequenos comentários ao piano acústico.
Durante 2min e 46seg, o baixista conduz a música com seu solo, à medida que
Gadd vai entrando aos poucos com acentos rítmicos na bateria. Moran entra para
cantar o tema principal e aí temos Farrell brilhando no solo de flauta,
secondado pelo quinteto de cordas e pelos sopros. Depois, Chick mostra toda sua
destreza e musicalidade ao piano. Tudo isso com Gadd dando seu show à parte e
mostrando porque é um dos bateristas mais cultuados do mundo. Na época, ele deu
uma entrevista dizendo que pedia as partituras de piano de Corea e estudava em
casa antes de gravar. Esta preocupação deu resultado: em algumas passagens de
"Dear Alice", os dois instrumentos parecem uma coisa só. Esta música
sozinha valeria o disco inteiro, tamanha a musicalidade que Corea e seus
músicos atingem, sem falar no arranjo perfeito que contrapõe as cordas e os
sopros.
Para encerrar o disco, "The Mad Hatter Rhapsody" com Corea no
mini-moog e Hancock em sua segunda
aparição no piano elétrico. O encontro destas duas feras é sensacional.
Enquanto Corea sola, Hancock faz harmonias diferenciadas no Fender Rhodes.
Nesta faixa, Hancock consegue tirar Gadd da bateria e coloca seu fiel escudeiro
Harvey Mason, que dá um suingue todo especial à faixa. Depois que os dois
tecladistas demonstram toda a sua qualidade, vem um interlúdio com o tema
principal tocado pela flauta e pelos sopros. Claro que a latinidade não poderia
ficar de fora e uma passagem de uma salsa estilizada com teclados e Gadd no cowbell fazem a cama para o tema final
onde volta Gayle Moran para apoteose final. Um disco maravilhoso. Quem não tem,
procure nas lojas ou na internet.