"Eu estava dirigindo para o meu trabalho estúpido e me vi preso em um engarrafamento gigantesco na estrada. De repente, algo novo flutuou sobre as ondas do rádio... um vocal feminino rosnado e sensual serpenteando em uma batida thumpa-thumpa... furtivo, legal... De repente a coisa toda se tornou selvagem. A cantora sibilou entre os dentes, as guitarras (soavam como 50 delas) gaguejavam e cuspiam, e a maldita coisa toda entrou em hiperdrive. A tempestade se estabeleceu em um ritmo pesado, hipnótico e caótico ao mesmo tempo, a música se agitou e se agitou e só terminou quando caiu no chão com um estrondo. Meu trabalho (e o resto do dia), desnecessário dizer, empalideceu em comparação com esse ataque auditivo. Totalmente perfeito... Eu estava apaixonado."
Dave Ehrlich, músico e produtor
A música é das poucas coisas nesse mundo capazes de me provocar paixões arrebatadoras. E que podem acontecer a qualquer momento. Se ainda é assim comigo hoje com todos os recursos e facilidades que a internet traz, imagine-se antigamente, antes da era digital, quando muita coisa era de difícil acesso, se não, impossível. Tudo era mais complicado e mágico. Podia estar a qualquer lance no rádio, na tevê, nas revistas, nos sebos, na discoteca de amigos e familiares. Pois houve um tempo, nos anos 90, em que um desses locais de pesquisa e reconhecimento eram as locadoras de CD’s. A pouca grana que dispunha de mesada ou estágios mal remunerados era boa parte reservada a gravar em K7 as coisas que vasculhava nas prateleiras das locadoras reforçando antigas paixões e descobrindo novas. Numa dessas ocasiões, lá pelos idos de 1994, uma se revelou para mim.
Logo que entrei na loja, num início de tarde de um sábado, notei que estava rodando, como sempre faziam, algo interessante, mas que não conhecia. Aliás, não conhecia, mas reconhecia ali elementos que me agradavam muito. Rock alternativo forjado nas guitarras distorcidas, base de baixo bem pronunciada, vozes masculina e feminina se intercalando, bateria forte marcando um ritmo pulsante. Algo entre o indie, o shoegaze, o dream pop, o college, o experimental e o noise rock. Era atmosférico, ruidoso, visceral, melodioso... Lembrava muito Sonic Youth, mas não era, isso eu tinha certeza. Havia algo de Lush, de My Bloody Valentine, de Pixies, mas também dava para ver que não era nenhum deles. De boas, o rapaz da loja me sanou a dúvida: “é este CD aqui”. A capa em si me chamou atenção: uma foto vintage de um camping e as letras em fonte de máquina de escrever, tipo Courier New, escrito apenas o nome do disco e da banda cujo artigo “Os” (“The”), vinha sem a letra “e”: apenas “Th". Era um detalhe, mas muito esquisito e interessante. Tudo aquilo, som, estilo, atmosfera, me cativaram imediatamente. Pronto: paixão. Deu tempo de escolher algum outro disco para levar, mas, claro, não poderia deixar de adicionar à minha sacola também “Lido”, aquele álbum do grupo de rock alternativo londrino ao qual acabava de conhecer Th’ Faith Healers, formado por Roxanne Stephen e Tom Cullinan, nos vocais e guitarras; Ben Hopkin, baixo, e Joe Dilworth, bateria.
Como grandes bandas do underground dos anos 90, a Th’ Faith Healers, tal a Whale, a The La’s e a brasileira 3 Hombres, tem uma carreira curtíssima, mas totalmente assertiva. Tanto que talvez goste até mais do segundo e último disco de estúdio deles, “Imaginary Friend”, de 1994, o qual me motivou, inclusive, a concepção de um conto literário, “Heart Fog”, baseada na música homônima, presente na antologia “Conte uma Canção – Vol. 2”, publicada em 2016 pela Multifoco. Mas “Lido”, além de estar completando 30 anos de seu obscuro lançamento, lá nos idos de 1992, guarda consigo a primazia de ser o trabalho inaugural da banda e o que me fez descobri-la. Além de, claro, merecer estar nesta lista de fundamentais, inclusive já tendo sido responsável pelo primeiro nome do Clyblog, que se chamou por um breve espaço de tempo, em 2008, pelo nome da sua última faixa, a apoteótica “Spin ½”, uma minissinfonia de guitarras altamente distorcidas de quase 10 minutos com samples que sobrevoam, batida cadenciada e loopada a e voz de Roxanne cantarolando um único verso: “Into the sea you must be in the water”. Hipnótica, sensual, inebriante, caótica, tempestuosa, onírica, algo hinduísta. Uma oração ruidosa e barulhenta de um dos melhores finais de discos do rock de todos os tempos, sem exagero.
Mas voltemos ao começo com a música que me fez vidrar na Faith Healers logo que os escutei: “This Time”. Exemplar no que se refere ao estilo da banda, tem letra curta, geralmente repetida várias vezes (“Let's do it, whereby/ this time, you die/ if not, quite soon/ maybe by this afternoon”), como um mantra nas vozes em uníssono de Roxanne e Cullinan, sobre uma massa de ruídos eletrificados. O minimalismo abre espaço para o experimentalismo e, principalmente, as melodias muito bem criadas pela banda. Pode ser um riff simples, repetido, dissonante, mas invariavelmente muito inspirado, de quem sabe o que está fazendo e explora suas bagagens musicais.
Bem produzidos por eles próprios, os Faith Healers exploram ao máximo na faixa "A Word of Advice" os detalhes do som metalizado das guitarras, enquanto as vozes, despretensiosas, cantam sem muito alarde. Isso, até a música explodir no refrão em barulho. A mixagem orgânica da gravação, sensível a qualquer ruído, dá a sensação de uma banda tocando ao vivo, inclusive na captação dos "defeitos", como o do som de um nariz aspirando o ar, o que lembra o conceito de produção de Flood para PJ Harvey em “To Bring you my Love”, de três anos mais tarde. Parecido com este trabalho de PJ também é “Hippie Hole”. Pós-punk com umas quebradas funkeadas, traz essa fórmula sintética infalível da Faith encapsulada por uma timbrística cirurgicamente suja. Nela, aliás, Roxanne canta com fúria, com o microfone rascante, longe da sutileza desafetada do começo.
Com subidas e descidas (ao paraíso da melodia e ao inferno do barulho), “Don’t Jones Me” retraz a letra sucinta que mais serve de cama para o rock livre da Faith, espécie de Can dos anos 80. Aliás, o clima é bastante parecido com esta e outras bandas da kratrock alemã, como a Neu! e a Harmonia. Não à toa eles versam a clássica alternativa “Mother Sky” da Can, a qual ouvi com os ingleses primeiro. Embora a original seja incomparável, até pela ousadia visionária dos alemães, a leitura da Faith Healers é daquelas que não deixam a desejar. Coisa de banda realmente identificada com seus ídolos, como a Living Colour fez para com “Memories Can’t Wait”, da Talking Heads, ou a Nirvana com “The Man Who Sold the World”, de David Bowie.
“Repetile Smile” e “Moona-Ina-Joona”, na sequência uma da outra, têm riffs tão consistentes quanto improváveis. Ninguém, não fosse uma banda forjada na sonoridade atípica do shoegaze e com referências muito próprias, ousaria criar. Que sonzeira! Se em “Moona...” valem-se do uníssono infalível de “This Time” e "A Word...”, em “Repetile...” é a voz sensual e cativante de Roxanne que prevalece. Ela sabe que não é uma grande cantora. Mas quem disse que é esta a intenção? Aliás, é justamente esta postura insolente roqueira que faz com que ela passeie naturalmente por diferentes formas de cantar com um lirismo espontâneo e encantador. É isso que se vê na balada "It's Easy Being You", a mais “calma” do disco (embora também não se contenham em adicionar guitarras pesadas bem ao final): um timbre jovem e solar. Porém, já na rascante “Love Song”, que de balada romântica só tem o nome, ela vai do doce à sujidade. Principalmente no refrão, quando sua garganta faz soltar gritos carregados de tesão e lamento.
Quando conheci a Th’ Faith Healers, Sonic Youth, Pixies, My Bloody Valentine, Lush, The Breeders e muitas outras bandas já eram realidade para os meus ouvidos. Tanto que ouvi-los não foi uma novidade e, sim, um reconhecimento. Neles eu ouvia todas essas bandas e conseguia entender com mais acuidade aquilo que a Velvet Underground propunha 30 anos antes – inclusive, nas dobradinhas das vozes de Cale e Reed com a de Moe Tucker. Com a Th’ Faith Healers eu descortinaria a Can, tão fundamental para o rock moderno. E descobri depois, que não fui apenas eu que me surpreendi com a Th’ Faith Healers na primeira vez que os escutei, bem como que havia uma legião de fãs escondida nos subterrâneos da internet com relatos muito parecidos com o meu. Mas o mais importante foi a descoberta de que, para mim, a Th’ Faith Healers era a banda que eu sempre gostei, mas não sabia ainda. Era como se eles já estivessem na minha vida desde sempre: bastava apenas que eu me deparasse com aquele CD rodando na locadora para que este laço nunca mais se desfizesse.
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FAIXAS:
1. "This Time" (Tom Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:09
2. "A Word of Advice" - 06:22
3. "Hippy Hole" - 03:20
4. "Don't Jones Me" - 06:18
5. "Reptile Smile" (Th' Faith Healers) - 04:57
6. "Moona-Ina-Joona" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 03:14
7. "Love Song" (Cullinan/ Th' Faith Healers) - 05:38
8. "Mother Sky" (Holger Czukay/ Michael Karoli/ Jaki Liebezeit/ Irmin Schmidt/ Damo Suzuki) - 04:17
9. "It's Easy Being You" - 02:12
10. "Spin 1/2" - 09:34
Todas as composições de autoria de Tom Cullinan, exceto indicadas
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Daniel Rodrigues