As cigarras já esganiçavam seu canto funesto àquela hora,
fim de tarde. O sol, forte e alaranjado naquele dia, caía agora frouxo, aguado,
por detrás do morro do Piau como que prostrado da lida do dia, cansado,
consumido de si mesmo. Justino havia piorado. E naquela luz pouca de não-sol,
então! A pior das impressões. Magro como estava, aí sim que sumia. Um risco. Desde
a noite anterior, ardera em febre, revirando os olhos, espumando a saliva, estrebuchando,
coisa horrível de se ver. Eu vi. O que eu não vi, o resto, me contaram. Tremia
dum jeito que dona Arminda só tinha visto pequena, lá nos idos de 1892, ainda no
Vapabuçu,
quando Frasino, irmão dois anos antes dela, batia os queixos tão forte que
rachou o dente de leite da frente. Ela lembra como se fosse hoje de observar
cara da mãe. Rosto afinado mais do que precisava, tanto resultado de doença
quanto de pouco de-comer. Via o sofrimento dela, tanto que só a boca sacudia. O
resto, tudo parado. Até o piscar. Mas agora, com o seu pobre Tininho ali mal à
sua frente, não é mais o “como se fosse hoje”: é o hoje. Fosse assim, seria
lembrança. Doída, mas passada. Mas não era. Era, sim, desta feita, num filho.
Já vira Justino passar por sérias ruindades de saúde. Mas agora era pior,
visível que era. Judiaria.
Dentro da palhoça, terço gasto na mão áspera, muita ladainha.
E choro. Lá fora, sentado, com o queixo apoiado sobre as duas mãos cruzadas no
cabo da enxada, Tiririco. Olhando o vazio, acabrunhado. Burro, como sempre se
foi desde que apareceu ali um dia, com fome, há uns 12 anos, e foi ficando,
ficando, sem jamais, ‘té hoje, dizer uma palavra. Bom de roçado, opera tudo que
precisar. Reza religiosamente a cada prato que lhe é posto na frente, e isso desde
que chegou, já naqueles idos. Educado nas rezas como um seminarista, bonito de
se ver. Agradecido como de não muitos, quase nenhuns. E se dá bem com os bichos
mateiros que, decerto por identificação, gostam dele de pronto, seja anta,
cachorro-vinagre, bugio, jaratataca, jia, maria-faceira, araçari, chora-chuva.
Coração bom tem dentro. Mas abestalhado da cabeça por demais. Essas coisas de
doença, enfermidade como a de Justino, jamais teve atino pra essas coisas;
muito jumentoso pra isso. Trabalha bem a lida forte, mas be-a-bá, valei-me
Nossa Senhora!, é-lhe muito. Explicar o porquê da doença era perda de tempo. Fazia
cara de bobice, como se não tivesse entendendo aquilo que realmente não tinha;
um ouvido só servia pra dar passagem ao som que vinha do outro, e lá se ia a
explicação embora sem serventia. Com Justino assim, adoentado, era proibido de
entrar na casa porque, se Nhô Chico vacilasse, Tiririco ia se chegando de
mansinho, sem piar, escondido, até que, de repente, ‘regalava os olhos e desatava
a chorar. Berreiro longo, assoviado, esganiço nem pela boca nem pelo nariz que
dava pra ouvir na cercania de Nhô Matias, meia légua, 600 braças dali. E não
só: ainda borrava-se nas calças, emporcalhava-se todo, empestava. Isso se
assucedeu umas duas vezes, até que Nhô Chico deu-lhe um basta. É que Tiririco gostava
muito do Justino, era isso. Como um irmão a quem escolheu pra ser. Justino
desde pequeno também se afeiçoara no maninho emprestado. Foi ele, inclusive,
que atribuíra essa graça esquisita: Tiririco. Nome que não quer dizer nada, como
o próprio, que nada diz. Deu-se cabimento, assim, o tal nome. É que Justino,
‘inda piá, abraçava o irmão bem forte e embestava em repetir-lhe: “Tiririco,
Tiririco, Tiririco”. Aí, ficou. Mas aquela não era hora de abranjo nem de fala.
Então, pra modo de não estorvar Justino e de Nhô Chico não ter de desenhar-lhe
um galo na cabeça, o certo era Tiririco ficar lá fora no curral enquanto
cuidavam do acamado. Lá fora: ele e o cabrito.
O pano branco de Nhá Doca, emplastrado daquelas ervas e
embebido de água fresca recém-tirada do poço por seu Chico, já não dava mais
conta. Esquentava sobre a testa de Justino, que fervia. Dava para enxergar o
vaporzinho subindo, serpentinando uma dança mundana e ligeira. A mão calosa e
encarquilhada da curandeira virava e desvirava o tecido, repetindo o sinal da
cruz e murmurando na boca sumida pela velhice orações que ninguém entendia. Às
vezes, parecia até que Justino queria repetir as palavras, gesticulando a boca
com dificuldade. Mas não era reza, não. Decerto, devaneio da cabeça febril,
frenesim (certo que era). Nhá Doca ainda tentava a cura com sua famosa
beberagem, cuja receita continha garapa-amarela, melado, palavras místicas, cauda-de-cavalo e guaco socado. Dava a ele pela
ligeira fenda entre os beiços num chumaço de algodão empapado, pingando ali gota
a gota. Brincadeira da vida: logo Nhá Doca, parteira do pequeno Justino, era
quem, agora, com as mesmas mãos que lhe trouxeram pra imensidão da vida, lhe
via despedir-se dela a cada minuto que passava. Era no já-já, questão de
esperar apenas. Estava-se indo o Tininho.
Terço na mão, Dona Arminda agora só chorava sobre o lenço algodoado
e surrado. A pele flácida e calcinada estremecia a cada lacrimejo. Tentava não
fazer barulho, suplicando baixinho à Nossa Senhora das Sete Dores. Mas o quarto
minúsculo, cuja maca onde o filho pesteado se estendia, tomando-lhe quase toda
área, prendia o som choroso ali mesmo, que dali não saía. A maca não era da
família, não. Era de seu João Troncoso, homem granjola dali das bandas
favorecido dos faz-me-rir que a emprestou para seu Chico não sem exigir que este
o entregasse de volta a maca mais 3 contos de réis. Nhô Chico, fazedor de tudo
para ver o filho são, assumiu mesmo sem saber como ia cumprir. Valia. Até
porque, do seu jeito torto, João se apiedara do caso de Justino, a quem ele
vira crescer à mesma época que seu mais novo, Salustiano, que hoje está no Rio
de Janeiro fazendo o colegial. Foi Salustiano que, anos atrás, acometido de
espinhela caída, ficou dois meses deitado sobre aquela maca tomando remédio e
aquietando as costelas. E sarou. Maca boa, comprada nas estranjas. “Vai que
acontece o mesmo com o Justino!”, pensou João, e a emprestou com a benevolência
descontada dos apatacados de até deixar-se pagar depois.
No quarto, as velas bentas alumiavam com cor de fogo febril
o chão batido de terra vermelhusca, acendendo também, ao canto, a imagem da
Santa, que padre Lino, por consideração, cedera do altar da igrejinha. “Muit’agradicida”,
disse-lhe dona Arminda, beijando-lhe a mão e correndo logo em seguida de volta
pra casa com a Virgem debaixo do braço. Noutro canto, o feixe fazia descobrir a
carteira dos estudos. Justino, sabido nas letras e nas contas, queria ser
doutor. Daria esse gosto pra seu Chico, certamente. Mas, ironia d’O-de-Lá-de-Cima,
a saúde nunca acompanhou o sonho dele e do pai. O organismo frágil desde a
infância, se por um lado lhe limitavam dos afazeres mais pesados da roça, por
outro, pareciam que emprestavam mais inteligência àquele corpo desmilinguido
que mal parava em pé nos dias em que Deus soprava o vento mais forte. E era
querido em toda redondeza. Brigão? Nunca. Os rapazolas valentões viviam de
sopapo pra cá e pra lá, fosse de verdade ou só de borga. Ele: não. E era
respeitado, sabe? Ninguém lhe pegava pra inticar. Era admirado. Eu mesmo,
sempre o gostei. Cabeça sempre pros estudos, desde caboclinho. Queria, um dia,
mostrar pra Nhô Chico e Nhá Arminda o anel do doutoramento.
Pois o tempo avançava e a ventania assoprava lá fora da
casinha, sacudindo as palhas do telhado, que apitavam. As cigarras já de tanto
cantar aquele canto desgracento desistiram de esperar melhora e morreram.
Justino piorava. Nada daquilo tudo adiantava. Nhá Doca tinha que tomar rumo,
não podia mais ficar ali. Tinha outra família pra atender, e, fora isso, morava
noutras paragens, longe, lá no arraial das Taquaras. Mas, de bom grado, pois
consternada com o jovem, deixou ali uma caneca daquela beberagem, o emplastro e
a bacia com as ervas que colhia na mata da Caratiga, “santas”, diziam todos por
lá. Dona Arminda, resignada, agradeceu, e seu Chico mal o fez com a cabeça,
assentindo (nem palavra tinha mais). A benzedeira pôs o surrão nas costas e
saiu a passo miúdo mas rápido pra sua idade. Na saída, cruzou com Tiririco, que
ainda obedecia a regra de se manter debaixo do sereno. Sentado num toco, ele e
o cabrito faziam-se companhia, consolando um ao outro, como amigos. Essa
parceria só podia ser por conta dessa parecença que Tiririco tem com os bichos.
Certa feita, um velho sertanejo, de passagem por ali, pediu água à Nhá Arminda.
Sentou-se a convite uns minutos no mesmo toco esse, cansado, com um cajado na
mão. Até que mirou Tiririco longe, na capina. O velho parou o gole no meio e
disse:
- Esse menino é ribeirinho, nasceu no regato do São
Francisco, logo se vê. Posso até dizer onde foi: foi nas Pedras de Cima, na
margem do rio Chico, bem lá.
Nhô Chico estranhou. Olhou pra mulher e depois pra Tiririco
espantado, pois nunca lhe passou pela cabeça que Tiririco tivesse vindo de
algum lugar.
- Vósmecê me adescurpe, mas não lhe dê caso: isso aí não
veio de lugar nenhum nem tem grande aproveitamento. Isso aí é burrico, só sabe
de enxada e lavramento - disse Nhô Chico rindo, apontando desdenhoso na direção
de Tiririco com o queixo.
- Bonito de ver mesmo é meu filho, Justino. Tá nus´istudo
agora essa hora. Vai estudar na cidade ano que vem. Esse, sim, tem precisão pra
vida - relatou, orgulhoso.
Mas o velho, sem dar ouvido, concluiu, encantado:
- Logo se vê que esse caboclinho é filho do santinho dos
animais...
Tomou o resto d’água, agradeceu e foi-se. Sumiu na caatinga
pra nunca mais.
O frio e o escuro da noite fechada e bonita agora pareciam
não dar mais nenhuma esperança. A morte já se acomodara, calma e agourenta,
esperando o minuto certo, que se anunciava pra dali a não muito. Nhá Arminda,
desacorçoada, suplicava à Consoladora um milagre. No fundo, culpada por ter
botado no mundo uma cria tão sem vigor, tão quebradiça, gravetinho. Nhô Chico,
de oposto, não admitia. Revoltava-se. Embestado e indignado, não entrava no seu
miolo porque Deus não se apiedava dele; porque Deus fazia isso com Justino,
menino tão bom; porque Deus fazia essa judiação, essa maldade tão maldade com
ele, Chico. Pecado? Tinha, claro; mas então que aquilo não fosse com Justino!
Fosse então com... com... (sabia o que queria pensar, mas abafava.) O que fez
pra merecer, indagava, olhando furioso pra palha do teto tentando enxergar o
que tinha por detrás dela, acima, lá em cima, no céu preto. Pensava que jamais
alguém dos Da Luz seria alguém nessa vida; ia tudo continuar naquela miséria
dos infernos. Todo o dinheiro juntado por anos pra custear os estudos do menino
na cidade grande, pra quê? Tudo aquilo, pra quê?
Justino lutava pra não ir, mas carecia mais luta não. Era.
Até que se alevantara. Alisou com gosto no corpo a roupa de chita de xadrez
colorido, aquela que de quando em quanto abria a gaveta e admirava, usada só
nos dias de festa de São João. Vestia uma calça branca adornada de botões, bem
solta, cuja bainha dava no meio das canelas. Calçava aquela sandália
franciscana de couro endedada. Justino caminhou em direção à comodazinha, onde
pegou com delicadeza a concertina, lustrosa de tão limpa. Reluzia o
instrumento. Enganchou as alças sobre os ombros, posicionou os dedos sobre as sétimas
e olhou para os pais com um sorriso iluminado de tanto encanto.
- Ói, mãe, que bonito! Que nem Tiririco falou ‘quele dia, se
alembra? Ói, pai, ói!
Na rua, Tiririco teve um estalo. Olhou pro céu estrelado e,
naquele escuro infinito, enxergou uma rolinha pararu alçar de repente. Uma luz
parecia cobrir somente a sua penagem azulada dentro da escuridão do em volta. Luz
só nele, branca. Cois’estranha um pararu-azul àquela hora, noitinha, ‘inda mais
apontado naquela luz tão de não-sei-onde! A ave sibilou seu canto cheio: “u-út...
u-út”, e Tiririco, pra modo de não bulir com Nhô Chico e Nhá Arminda, respeitando
a dor dos pais lá dentro da casinha jururu de tão triste, abriu pra si um
sorriso silencioso, enquanto uma lágrima entendedora caía de seu rosto.