Curta no Facebook

quinta-feira, 23 de março de 2017

cotidianas #503 - Pílula Surrealista #15


O monstro do armário havia chegado. Eram 22h44 e Júnior já havia sido posto na cama para dormir a uns 15 minutos, mas não pregava o olho. De frente para o móvel, cujos trincos simetricamente equidistantes, um em cada porta, davam-lhe a impressão de serem dois olhos a lhe mirar, o menino mirava-o com apenas os seus para fora do fofo edredom. Ouviu uma batida abafada. Vinha lá de dentro, com certeza. Seu coração disparara; a respiração, ofegava a ponto de escutar. E outra batida. E mais outra. Seguiu-se um ruído de algo arrastando no chão. Só podia ser a cauda do monstro, que, volumoso, precisava girar o corpanzil escamoso e úmido entre as roupas penduradas no cabide. Àquela altura, seus brinquedos, guardados numa caixa lá dentro, já deviam estar melecados pela gosma que besuntava toda a pele do visitante noturno.
Júnior tomou coragem: percebendo os pais atentos à tevê, cujo som provindo da sala chegava a murmúrios a seu quarto mas suficiente para saber que suplantaria qualquer ruído que tanto ele quanto o monstro fizessem, descobriu-se e foi pé por pé em direção ao armário. Descalço mesmo, somente o pijama a cobri-lo naquela fria noite de inverno. De frente para a porta entreaberta, enfiou temeroso os dedos pela fresta escura. Seu coração quase saía pela boca quando seus cinco dedos se encontraram com os três da afetuosa mão do monstro, o qual, sem precisar trocar-lhe palavras, o convidou a entrar.
Naquela semana inteira não pode sair para brincar com os amigos. Os pais, brabos, perguntavam retoricamente: “Onde já se viu passar a noite dormindo sentado e sem coberta dentro do armário!?”. Claro que não foram além da indignação e da reprimenda típica da limitação humana. A Júnior, sim, aquilo fez muito sentido. Tanto que ele, no seu íntimo, nunca mais fora o mesmo após aquela noite, mesmo hoje, tantas décadas depois.

Daniel Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário