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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Propriedade", de Daniel Bandeira (2022)

 

Não é coincidência que, numa das sessões da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbana, a chamada CPMI “da Terra”, em 2023, tenha-se recorrido a Karl Marx para evidenciar a incongruência daquela comissão. Constituída “com o objetivo de realizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores, assim como os movimentos de proprietários de terras”, a tal CPMI não apenas sucumbiu por falta de autossustentação como, no final do dia, não olhou para a prioridade: ser uma ferramenta para resolução da questão do campo no Brasil. Em depoimento, o presidente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, valeu-se dos conceitos do filósofo alemão para uma explicação bem didática sobre a estrutura sociopolítica contemporânea pautada pelos valores capitalistas. E isso por um simples, mas profundo fator: o de que o ideário marxista inclui, ineditamente na história da Sociologia, a classe trabalhadora no contexto desta reflexão. Depois de Marx, foi impossível dissociar o trabalhador das relações de poder e, consequentemente, relativizar o conceito de “propriedade”.

A própria investigação da CMPI em si, em pleno 2023, denota o quanto a questão fundiária no Brasil permanece mal resolvida. Está relacionada diretamente a chagas da sociedade provocadas pela histórica mentalidade escravista e potencializada pelas relações de poder capitalistas. Pois que a exploração de mão de obra, o monopólio da elite, as péssimas condições de trabalho e a alienação ao acesso à saúde e à educação, tudo isso está hibridizado num fundamental filme cujo título traz o cerne dessa questão: "Propriedade". A obra, do jovem cineasta pernambucano Daniel Bandeira, é, ao mesmo tempo, de uma enorme riqueza narrativa quanto, principalmente, de um realismo crível e tragicamente plausível. Em forma thriller à brasileira, o filme expõe situações prementes da sociedade brasileira atual, desde a escravidão moderna, a especulação imobiliária e o velho coronelismo, incrustado como uma doença secular na sociedade nordestina.

Na trama, a reclusa estilista Tereza (Malu Galli), esposa de um rico empresário e proprietário de terras (Tavinho Teixeira, como Roberto), deixa a cidade para refugiar-se com o marido em uma fazenda da família na tentativa de se recuperar. Mas, quando os explorados trabalhadores do local sabem da intenção do patrão de vender as terras e dispensá-los sem nenhum direito e indenização, um levante acontece. Para se proteger da violenta revolta dos trabalhadores, Tereza se enclausura em seu carro blindado. Mesmo separados por uma camada impenetrável de vidro, o conflito é inevitável e escalável, pois balizado por um elemento muito menos material e, sim, simbólico: a luta de classes.

Malu Galli como Tereza em cena tensa de "Propriedade": terror à brasileira

Segundo longa de Bandeira, "Propriedade" – provavelmente o melhor filme nacional de 2023 – tem o poder de consolidar uma época. Assim como outras escolas ou movimentos cinematográficos ao longo da história, o filme junta-se a obras irmãs, formando um panorama ideológico e produtivo robusto representativo do seu tempo/espaço. A exemplo do neorrealismo italiano, do novo cinema iraniano ou do Dogma 95 dinamarquês, cujos filmes dialogam entre si dentro de seus próprios círculos, "Propriedade" responde a temas muito caros a outros filmes da cinematografia contemporânea de Pernambuco, que se consolida como um dos mais frutíferos polos de produção de cinema no Brasil neste século. É fácil notar semelhanças com elementos da crítica social recorrentemente trazida pelos autores desta cena. "Piedade", de Cláudio Assis (especulação imobiliária), "Carro Rei", de Renata Pinheiro (repressão do Estado) e "Fim de Festa", de Hilton Lacerda (violência urbana), são alguns deles.

Porém, "Propriedade" traz ainda mais para próximo de si os filmes de Kleber Mendonça Filho, com quem Bandeira trabalhara desde 2002 no curta "A Menina do Algodão", o qual roteirizou e atuou. A referência temática e fotográfica a "Bacurau" (2019), de Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é notória, assim como soluções narrativas de desfecho, que interligam ainda mais ambos. Igualmente, "Aquarius" (2016), outro de Mendonça Filho, que também avança sobre a questão do oportunismo do setor imobiliário e da luta pela preservação cultural diante da modernização desenfreada do liberalismo. Contudo, "Propriedade" principalmente retraz a discussão basal de "O Som ao Redor" (2012), primeiro longa de Mendonça Filho, uma contundente crítica ao antagonismo entre público e privado, entre pobreza e riqueza, entre velho e novo, entre impotência e poder, entre humanidade e barbárie.

"Propriedade" e "Bacurau": semelhança temática, cenográfica e fotográfica
entre os filmes de Bandeira e Mendonça Filho

O que "Propriedade" expõe é o choque entre elite e proletariado, uma vez que o sistema vigorante favorece as desigualdades. Não apenas isso: baseia-se nelas. O capital supõe mediar um equilíbrio, mas só faz provocar revolta nos que o geram, mas não o detém, e medo nos que o detém, mas não o geram. A tensão é permanente e dos dois lados. Veja-se a frase que liga o automóvel de Roberto por meio de IA: o verso inicial da música "Dê um Rolê". Cantado por Gal Costa no clássico disco "Fa-Tal", de 1971, marco da resistência aos anos de chumbo no Brasil, o verso diz: “Não se assuste, pessoa”. Mostra da obviedade sem criatividade da elite, que se apropria do discurso dissonante da esquerda para vestir seus modos ideológicos distorcidos, a música é usada por ele como se esta condissesse com seu comportamento imperialista, distorcendo a essência da obra e, por consequência, transformando-a num mero produto de consumo.

Mas os vieses, claro, não são absorvidos por quem raciocina apenas a favor do (seu) capital. O fato de este pequeno enunciado servir como chave para acionar o veículo também funciona, noutro patamar, como uma chave muito mais simbólica, pois capaz de ativar de forma verbal o medo e a neura de uma fatia da sociedade hedonista, que se vitimiza, mas não questiona o quanto seu comportamento sustenta desigualdades que remontam à escravatura. Como Caetano Veloso escreveu certa vez para a voz da mesma Gal Costa: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo, mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”.

Trabalhadores rurais e os
limites das relações de poder
Quando trata da base da pirâmide, o filme traz à discussão um tema essencial e controverso, que é o direito à terra. O principal motivo que faz os campesinos se manterem na fazenda a qual já se sabiam dispensados é a presunção de que, por terem dedicado suas forças de trabalho de maneira tão intensa e indigna há tantos anos e gerações, mereciam tornarem-se eles os donos dela. Uma reparação a si e a todo um povo massacrado há séculos pelos poderosos. Reivindicação justa ou não, legal ou não, mas que encontra na ação presente do MST um fundo de verdade, uma vez que o movimento, muitas vezes acusado de fora-da-lei, é, por exemplo, o grupo que mais produz arroz orgânico no Brasil, correspondendo a 70% do grão produzido nacionalmente, segundo dados do Instituto Riograndense do Arroz (Irga).

Renovando a discussão sobre a reforma agrária, tão presente no cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 em filmes como "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Vidas Secas", "Maioria Absoluta" e "O País de São Saruê", Propriedade traz para o contexto do Brasil atual em que o liberalismo exerce forte influência no mercado e na sociedade. Não é de se estranhar que um filme tão agudo e necessário seja do mesmo ano em que se revelou, no Rio Grande do Sul, na rica e conceituada região da Serra, casos análogos à escravidão com trabalhadores rurais, mesmo quase 135 anos após a Abolição. E não para com conterrâneos gaúchos, mas justamente com imigrantes nordestinos sujeitos a condições desumanas longe de sua terra.

Em "Propriedade", o que se sugere é um momento de fratura. Rompidas as grades da “senzala” e da “casa grande”, ora representadas pela porteira da fazenda do interior e pelas torres residenciais da cidade, o que resta é a colisão entre estes dois opostos sociais, até que um enterre o outro. Nem vidros blindados ou camuflados são capazes de conter. A CPMI “da Terra”, por óbvio, inconclusiva, haja vista que originalmente mal sustentada, denota o quanto os ensinamentos de Marx prevalecem e que não cabe (como nunca coube ou deveria ter cabido) mais espaço para a iniquidade em tempos atuais. A feroz e coerente reação dos personagens revoltosos de "Propriedade", bem como a consequente escalada de violência da trama, serve como um aviso de que a questão da terra deve ser encarada de frente e sem filtros. Um “basta” para um problema basal da sociedade brasileira de difícil resolução, mas de necessária atenção. E a quem quiser prosseguir mantendo a desigualdade e o desrespeito aos direitos humanos, um alerta: assustem-se, pessoas. Não acreditem em Gal quando ela diz que a vida, assim, é boa.

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trailer de "Propriedade", de Daniel Bandeiras


Daniel Rodrigues

Artigo originalmente publicado no Blog Roger Lerina/ Matina Jornalismo

terça-feira, 28 de novembro de 2023

“A Guerra dos Botões”, de Yves Robert (1962)


Botões, bolitas e bytes ou A mesma guerra*

“Nunca vamos nos transformar 
em bobocas como os adultos.” 

Não é de se estranhar que crianças ou adolescentes, ao perceberem a divisa que se lhes impõe entre infância/adolescência e a desencantada fase adulta, pensem assim. Um dos filhos da psicanálise, o cinema, invariavelmente, toma-lhe emprestado conceitos teóricos para, a seu modo, evidenciar a condição humana e as mudanças sociais. Pois mesmo que nem sempre dita da boca pra fora, esta frase ecoa através das últimas décadas através de filmes que, historicamente pontuais, revelam sentimentos em comum no comportamento juvenil da idade contemporânea. Terreno onde se encontram e dialogam “A Guerra dos Botões” de Yves Robert (“La Guierre des Boutons”, França, 1962), “Os Meninos da Rua Paulo” e “A Rede Social”.

Se a tal frase é proferida em apenas um dos filmes, o fato de não aparecer nos dois outros é quase detalhe. Aliás, nem precisaria, de tão implícita que está. Afinal, todos os três se compõe do mesmo barro: a construção do sujeito e seus limites de razão e moral.

"A Guerra...": equilíbrio entre realidade e sonho

”A Guerra dos Botões” equilibra realidade e sonho, empunhando aspectos sociais universais através de um olhar sincero e lúdico, mas não menos satírico e crítico. Ao estilo dos realistas fantásticos (além de Vigo, lembra bastante Renoir na sua suave complexidade humanística), conta a história de um grupo de estudantes da interiorana e pobre Longeverne, que, liderados pelo rebelde Lebrac, declaram guerra aos da vizinha e igualmente carente Velrans. A ideia é arrancar todos os botões e confiscar os cintos dos “presos”, para que, mais do que serem castigados pelos pais ao voltarem para casa, percam sua honra ao deixar à mostra as cuecas. Revoltado contra a tirania dos adultos, Lebrac - um símbolo inconsciente da criança que quer ter o direito de ser criança - foge para não ser internado no orfanato. Através de uma temperada fotografia p&b e do clima fantástico proporcionado pela ambientação silvestre Robert mostra como o ser humano, a partir de sua tomada de consciência da realidade, elabora as questões de afeto, orgulho, rejeição e socialização.

Peanuts e Ozu

Não à toa, a ”A Guerra dos Botões” foi premiado com o Jean Vigo de Melhor Filme infanto-juvenil, pois presta uma justa homenagem ao diretor de “Zero de Conduta” (1933) a ponto de parecer-lhe uma obra póstuma. Robert, assim como Vigo, joga sua perspicaz lente sobre as questões da criança numa pequeno universo, ajustando o foco sobre os desajustes sociais, o abismo entre as gerações e os valores decaídos. Seu enquadramento lembra o plano rebaixado das tirinhas Peanuts de Charles Schultz e dos filmes do japonês Yasujiro Ozu, tal é a sintonia que estabelece com a vida das crianças. Os adultos aparecem aos poucos, como “fantasmas”, como uma triste materialização do erro a que aquelas crianças se tornarão no futuro. 

A turma de Charlie Brown e "Filho Único", de Ozu: Ocidente e Oriente na visão das crianças

Feito sete anos depois, sob uma textura de cores oníricas que valoriza a tonalidade natural (como o amarronzado da terra, da madeira e das peles coradas da meninice), o húngaro “Os Meninos da Rua Paulo” (“A pál-utcai fiúk”, dirigido por Zoltán Fábri e inspirado no clássico do escritor Ferenc Molnár) se assemelha bastante a “A Guerra dos Botões” estrutural e formalmente falando. A narrativa, os elementos simbólicos, as atribuições de valores, a dinâmica e a variedade dos enquadramentos, etc. Porém, diferente do primeiro, onde o personagem Lebrec revolta-se contra o opressor sistema da família e da escola, neste, é o pequeno Nemecsek quem paga pela bravura ao desafiar os rivais, acamando-se com pneumonia por causa de um banho gelado e, consequentemente, morrendo.. 

A paisagem inocente de “A Guerra...” é substituída por uma capital Budapeste do final do século XIX de ares bucólicos, uma cidade grande ainda por se tornar grande como aquelas crianças. Os “botões morais”, aqui, se trocam por bolitas de gude – e tão importantes moralmente quanto botões. Se o orfanato antes representava a pena por virar adulo, aqui, passa pela perda do amigo e pelo progresso social que avança ao ser construído sobre o terreno da rua Paulo, palco das divertidas guerrinhas, um moderno e imponente prédio.

Rua Paulo

Pois ambas as obras se unem por um ponto: a necessidade de se inventar convenções de interatividade social. A psicologia infantil julga natural que a criança imite o adulto como um “ensaio para o futuro”. Hoje, no entanto, na era da Internet, jogar gude ou fazer guerrinha na floresta já não é tão interessante às crianças como prática de interação social, e a esta etapa fundamental do que se chama de Psicologia do Desenvolvimento se põe um imenso vazio. A mídia, ditadora de padrões e proto-verdades, ocupa o lugar dos pais em aspectos relevantes da criação, como a elaboração dos valores e a orientação cognitiva. Isso faz com que as crianças/adolescentes pulem etapas, agindo não só cada vez mais igual aos adultos como, também, “amadurecendo” precocemente. 

"Os Meninos...": os conflitos reais entre realidade e sonho

É o caso do jovem Mark Zuckerberg, do bom “A Rede Social” (“The Social Network”, 2010). No filme do talentoso David Fincher, a não-assimilação das frustrações da vida adulta, como o fora da namorada e a rejeição pela “fraternidade” a qual dava tanto valor, inflamaram a necessidade de pertencimento do protagonista, levando este “herói pós-moderno” a criar, em resposta, a sua própria “fraternidade”. Mas não sem pena: cunhar o bilionário Facebook (hoje Meta, agrupando aí o Instagram) rendeu-lhe fama e divisas (ou seria “admiração dos coleguinhas” e “muitas bolitas”?), mas também algo mais grave, típico dos dias atuais: o isolamento –  tal qual num orfanato ou uma cama de enfermo. Mas se os personagens de “A Guerra...” e “Os Meninos...” lograram reconhecimento, por conta de suas condutas pautadas em símbolos comuns ao grupo, a amoralidade despreocupada de Mark, característica da Geração Y, abre espaço para uma nova ética. A razão, nos dias atuais, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli, dá lugar à lógica da “hedonização”, à fragmentação dos sentimentos e emoções no coletivo, e não mais no âmbito pessoal. 

Assim, os três filmes, mesmo produzidos em épocas tão distintas, se conectam por esta necessidade de criação de significados que justifiquem a existência. Junto ao “rito de passagem” que marca a fase inicial da vida para aquilo que se será até a morte brota a insegurança do esvaziamento de sentidos, da perda de algo genuíno, de si mesmo. “Serei, a partir de agora, só mais um ‘boboca’”? “O quão inevitável é esse ciclo”? Como em “Zero de Conduta”, onde as impostas verdades da escola interna oprimiam principalmente as crianças que se opunham àqueles cambaleantes valores do mundo entre-Guerras, a vida moderna coloca, hoje, situações que, embora diferentes em forma, implicam no questionamento de signos semelhantes.

Zero de conduta

Poster do clássico de Vigo
“A Rede Social”, mesmo não se tratando de um conto de crianças, não só traz o tema da necessidade comum de interação afetiva como também se centra na dificuldade de se transpor a barreira infância/fase adulta. A esquizofrênica busca de valores da pós-modernidade ofusca o que o psicólogo infantil Lev Vygotsky chamaria de processo de “mediação” no desenvolvimento do ser humano. Para ele, ao contrário do que pensava Piaget, o desenvolvimento cognitivo dependia das interações com as pessoas e com os instrumentos reais do mundo da criança, como o brinquedo, o computador ou o lápis. Mas se os signos culturais já vêm distorcidos, como os instrumentos (mesmo tão avançados como o computador) serão capazes de desenvolver o indivíduo a um estágio mais elevado de consciência?

Entretanto, mais do que isso, outro fator une ideologicamente essas obras: os limites entre as razões moderna e pós-moderna. Se nos dois filmes mais antigos ainda se preservava uma crença na razão, esta passa, agora, a não ter peso. N’”A Guerra dos Botões” há uma cena que, no meio da batalha na floresta, os dois exércitos se unem para socorrer um coelho com a pata machucada. Naquele momento, todos pararam de guerrear, e se estabeleceu uma fronteira entre real e imaginário. Igualmente, ao perceberem que cometeram um erro ao roubar à força as bolas de gude do pequeno Nemecsek, de “Os meninos...”, os grandalhões e valentões do grupo rival reveem sua conduta e devolveram-nas a seu dono. Em “A Rede Social” tudo isso cai por terra. Mark rouba ideias descaradamente e “puxa o tapete” de amigos sem culpa. E isso, na sua “crença”, é normal. Afinal, para que lhe servem valores de lealdade ou justiça com tanta fortuna e 500 milhões amigos (virtuais)?

Mark, Lebrac, Nemecsek

Mark é astuto como Lebrac e Nemecsek, mas moralmente alheio. Algo dentro de pessoas da sua geração, desta geração, se perdeu, e não é de se estranhar que justo a palavra “amizade” soe ao mesmo tempo tão poderosa e irônica nas redes sociais. Já não se acodem mais coelhos machucados nem se arde em febre até a morte para se preservar dignidade. Para aquele jovem Zuckenberg, não é isso que tem valor. O negócio é se proteger. Encarar as emoções de frente dá margem a se demonstrar fraco. É mais fácil fechar-se num tubo de mensagens curtas e de distâncias físicas seguras; pois, se não, a guarda se abre para que se lhe arranquem os botões e lhe caiam as calças. 

Zuckenberg: astúcia sem tempos de hedonização

Pensando bem, parece, sim, estar se falando de dignidade; só que de outra forma, assim como de reconhecimento, proteção, laços, amor... e talvez “A Rede Social” também seja um filme sobre crianças... e sejamos todos meio bobocas.

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trailer de "A Guerra dos Botões"


Daniel Rodrigues
* texto atualizado, originalmente escrito em 2011 para o blog O Estado das Coisas

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Aum - "Belorizonte" (1983)

 

"Dedicado a Belo Horizonte"
Dedicatória da contracapa do disco

Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...

Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.

A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.  

Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.

Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”. 

Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).

Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges.  Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.

O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.

“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.

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FAIXAS:
01. "Tema pra Malu" (Taquinho) - 5:12
02. "Serra do Curral" Marcio) - 2:55
03. "Belo Horizonte" (Aum) - 9:36
04. "Nas Nuvens" (Betinho) - 3:58
05. "4:15" (Marcio) - 4:15
06. "Tice" (Betinho) - 7:20

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Legião Urbana - “Que País é Este?” (1987)

 

“E depois do começo o que vier vai começar ser o fim...”

Nos últimos dias do mês de novembro, fez 35 anos do lançamento do terceiro disco da banda brasiliense Legião Urbana, “Que País é Este?”. Eu já morava em Aracaju, vindo de Brasília, quando o disco chegou às lojas e as canções começaram a tocar nas rádios. Particularmente, gosto das nove faixas: “Que País é Este?”, “Conexão Amazônica”, “Tédio (com T bem grande pra você)”, “Depois do Começo”, “Química”, “Eu Sei”, “Faroeste Caboclo”, “Angra Dos Reis” e “Mais do Mesmo”. 

“Das favelas, do senado, sujeira para todo lado...”

Este LP foi composto por canções escritas entre os anos de 1978 e mil 1987, da época que o Renato Russo e os irmãos Fê e Flávio Lemos (Capital Inicial) formavam a banda Aborto Elétrico. Excetuando-se “Mais do Mesmo” e “Angra dos Reis”, que foram compostas após o disco “Dois”, da Legião Urbana, de 1986. 

“... A noite acabou talvez tenhamos que fugir sem você...”

Aqui abro parêntese para uma curiosidade pessoal: de 1978 até 1987, foi justamente o tempo em que morei em Brasília, vindo de Fortaleza com quatro para cinco anos e depois indo para Sergipe com 13 para 14 anos. O mais frustrante disso, é que mesmo morando na cidade na época em que a banda surgiu, e sendo muito fã, eu nunca consegui assistir ao show ao vivo deles. Lembro de um que teve, antes daquele de junho de 1988, que nunca acabou, acho que foi em 1986, pouco depois do lançamento do “Dois”, que minha mãe cortou meu barato e não me deixou ir com a galera lá da quadra. E em Aracaju eles nunca vieram tocar... 

“... Andar a pé na chuva às vezes eu me amarro, não tenho gasolina, também não tenho carro...”

Neste disco, a banda retorna ao som mais furioso e punk que a impulsionou no primeiro álbum, já que o disco “Dois”, outro grande sucesso, tinha uma linha mais melodiosa. A banda também consegue captar exatamente os anseios da juventude da época. Política, problemas sociais, solidão e rebeldia dão o tom das letras de Renato Russo, sempre poéticas e melancólicas. 

“... Intrigas intelectuais rolando em mesa de bar...” 

O álbum foi um grande sucesso de vendas e foi contemplado com disco de diamante. Este LP também marcou por ser a última participação do baixo contundente de Renato Rocha na banda. 

“Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel...” 

No ano de 2010, numa enquete realizada pela revista Veja, o LP ganhou como melhor disco de rock brasileiro dos anos 80, seguido de “Cabeça Dinossauro”, do Titãs, e “Vamos Invadir sua Praia”, do Ultraje a Rigor

“Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão, você tem quer passar no vestibular..." 

Sem dúvida alguma, duas canções marcaram bastante este disco. A representativa “Que país é este?”, que virou um hino de protesto e a é épica e bobdyliana “Faroeste Caboclo”. Quem nunca cantou esta última, a plenos pulmões, ao lado dos amigos, todo exibido por saber de cor a extensa letra, não viveu completamente aquela época. 

“Ele queria sair para ver o mar e as coisas que ele via na televisão...”.

Ouça no volume máximo!

“Se fosse só sentir saudade, mas tem sempre algo mais...”.

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FAIXAS:
1. "Que País É Este" - 2:57
2. "Conexão Amazônica" (Renato Russo/ Fê Lemos) - 4:37
3. "Tédio (Com Um T Bem Grande Pra Você)" - 2:32
4. "Depois do Começo" - 3:13
5. "Química" - 2:19
6. "Eu Sei" - 3:10
7. "Faroeste Caboclo" - 9:04
8. "Angra dos Reis" (Renato Russo/ Renato Rocha/ Marcelo Bonfá) - 5:00
9. "Mais do Mesmo" (Dado Villa-Lobos/ Renato Russo/ Renato Rocha/ Marcelo Bonfá) - 3:18
Todas as composições de autoria de Renato Russo, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO

por Jowilton Amaral da Costa


quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Meu Babaca Favorito


Em tempos de idolatrias tão efêmeras, edificadas sobre méritos mínimos, e cancelamentos quase automáticos motivados pelo primeiro deslize, posicionamento ou frase mal colocada de um ídolo que, não muito tempo atrás, era elevado à condição de semideus, pessoas com um pouco mais de critério, de apego a suas influências e referências, têm uma certa resistência em, simplesmente, adotar o tão usual procedimento vigente de CANCELAR uma personalidade que, de alguma forma sempre admirou e que fora seu referencial, por mais que este faça por merecer um belo "block" por conta de procedimentos, atitudes, declarações, que revelam uma pessoa diferente daquela que se imaginava ou que demonstrava ser.
Os caras se esforçam pra fazer merda, cagar pela boca, demonstrar o quanto são desprezíveis, pessoas que a gente não aceitaria no nosso meio social, mas aí a gente pensa no que já fizeram de fantástico na sua arte, o quanto foram (e são) importantes pr'a gente, o quanto os admiramos, e não conseguimos, meramente, virar as costas e dizer que não os admiramos mais. E aí que com muito esforço, colocamos seu trabalho, sua figura, suas músicas, suas letras, acima de tudo e, separamos o ser-humano de sua obra. Só assim mesmo pra aguentar uns, ó, que, vou te contar...
Muitos desses, os mais recentes, já tinham seu espaço para dizer o que pensavam, tiveram microfone, seus próprios álbuns, palco, livros, espaço na imprensa, mas com a ascensão das mídias sociais, uma verdadeira terra-de-ninguém, onde todo mundo tem opinião formada sobre tudo mesmo, muitas vezes, sem qualquer embasamento ou informação, pareceram encorajados a assumir posições, que não são decepcionantes por serem divergentes da minha ou de determinado segmento, mas sim por serem lamentáveis do ponto de vista humano.
Listamos, aqui, alguns dessas criaturas que a gente só não "cancela" porque não dá pra deixar de lado o que já fizeram e, cá entre nós, porque a gente adora esses caras mesmo. Mas que estão pedindo, estão...
Uns são de hoje, outros tem histórias que vem de muito tempo, uns se revelaram por conta da pandemia, outros revelaram preferências políticas bem preocupantes, enfim, tem um monte nessa barca, mas aqui vamos pegar apenas alguns desses "caraterzinhos" duvidosos, que a gente sabe que são uns idiotas, uns babacas, mas que odiamos amar.


Tá certo é esse cachorro!
Eric Clapton - "Clapton é Deus". A inscrição frequentemente vista em muros de Londres nos anos 60, quando o guitarrista inglês hipnotizava os fãs com sua técnica e habilidade, está longe de ser verdade. Ao contrário, hoje, muitos fãs preferem ver o diabo do que o gênio da guitarra.
Recentes declarações de Eric Clapton, acerca da situação da Covid-19 e do isolamento, comparando os protocolos de segurança à escravidão, reforçadas pela gravação de uma canção anti-lockdown, "Stand and Deliver", de Van Morrison, por sinal, outro que tem se revelado um grandíssimo feladaputa, provocaram indignação entre seus admiradores e de quebra ainda tiraram alguns velhos esqueletos do armário. Os atuais posicionamentos de Clapton fizeram com que pessoas lembrassem de um episódio em 1976 em que ele, durante um show em Birmingham, "convocou" os estrangeiros e imigrantes a se retirarem do país. Na ocasião, Clapton disse, se dirigindo ao público, “Vamos impedir o Reino Unido de virar uma colônia negra. Expulsem os estrangeiros, mantenham a Inglaterra branca. Os negros, árabes e jamaicanos não pertencem a este país e nós não os queremos aqui (...) “Precisamos deixar claro que eles não são bem-vindos. A Inglaterra é um país para brancos, o que está acontecendo conosco?” . Pois é... Clapton pode até ser um deus na guitarra, mas passa longe de ser um santo.
Ao que parece, até seus amigos músicos perderam a paciência e não aguentam mais tanta baboseira, uma vez que o lendário guitarrista tem reclamado de se sentir abandonado pelos colegas do meio musical.
Toma!
Mas não adianta: tem como odiar o cara que fez "Layla", "Cocaine", "Crossroads" e outras tantas maravilhas? Não, né?


Roberto sendo homenageado
pelos militares, nos anos 70
.
Roberto Carlos - Sabe aquele cara que sempre que se fala dele tem aquele asterisco ao lado do nome? Sim, esse cara é ele. As coisas que depõe contra o Rei não são de hoje e não são relacionadas com pandemia, isolamento, redes sociais nem nada tão atual, mas acompanham sua figura pública já de bastante tempo e, de certa forma, embora seja inegável sua contribuição para a música brasileira e seu talento para composições, nunca conseguimos perdoá-lo totalmente.
O problema de Roberto Carlos, na verdade, foi mais seu silêncio do que o que teria dito. Enquanto seus colegas do meio cultural, musical, das artes bradavam contra a ditadura militar no Brasil, sofrendo suas consequências de censura, prisões e exílios, Roberto, confortável e convenientemente não só não se manifestava em relação ao regime e as reprimendas sofridas pelos colegas e continuava, simplesmente, gravando suas canções alienadas com temas românticos ou de "curtição", como ainda não se esforçava em esconder uma proximidade com os generais e até mesmo era agraciado com comendas e homenagens pelos tiranos governantes brasileiros daquele nefasto período da nossa história.
Como se não bastasse, Roberto é conhecido no meio artístico por seu comportamento egoísta, mesquinho e antiético, sabotando outros artistas, reivindicando vantagens e benefícios junto a produtoras, gravadores, emissoras, etc., e, como se diz popularmente, "puxando o tapete" de colegas de profissão. Tim Maia foi um exemplo de um que, depois de ter sido parceiro de banda, ter convivido junto, foi ignorado e menosprezado por Roberto, assim que o Rei começou a estourar nas paradas de sucesso e tornar-se o fenômeno que veio a ser. O anglo-brasileiro Ritchie, sucesso nos anos 80, é outro que teria sofrido pelas mãos de Roberto que, segundo se sabe, e é confirmado por outros artistas, teria "mandado" a gravadora boicotar o sucesso de Ritchie, dificultando a distribuição do material do músico, sua participação em eventos e programas e negligenciando a divulgação em rádios do material do próprio contratado.
Mas não dá pra ignorar o tamanho desse cara na música brasileira, a qualidade de suas composições e a quantidade de grandes e inesquecíveis canções com que ele nos brindou. Se sua atividade no microfone, no estúdio, nos palcos é incontestável e proporcionou a todos nós momentos mágicos em músicas como "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos", "Emoções", os DETALHES das suas atuações nos bastidores, de alguma forma sempre mancharão um pouco seu nome, pois, como diz aquela canção, são coisas muito grandes pra esquecer.


Não se orgulhar mais de ter usado
camiseta do MST, tudo bem, mas Bolsonaro?
Lobão - O cara foi, simplesmente, uma espécie de símbolo da democracia da geração rock dos anos 80. Tinha a Plebe Rude que era contundente, tinha a Legião que se posicionava com ênfase e inteligência, o Capital Inicial correndo por fora mas ainda assim engajado, mas o Lobão era o cara que gritava. Ele participava de comício, ele fazia música que avacalhava o Sarney, chamava a galera pra votar consciente, tocava o hino nacional na guitarra, ao melhor estilo Hendrix, em pleno Globo de Ouro, na maior emissora de TV do país... e tudo isso pra quê? Pra acabar apoiando o Bolsonaro. Putaquiuparil
Ele alega ter se decepcionado com a esquerda, se arrependido de ter votado no PT, ter perdido a confiança em quem governou o país e acabou em tribunais respondendo por corrupção... Ok, Lobão. Mas daí a apoiar a eleição de uma criatura, visivelmente, incapaz, limitada e mal-intencionada como o atual presidente brasileiro, é muita ignorância, ingenuidade ou burrice. Um cara que tinha tudo pra dar errado, não apresentou nenhuma proposta durante a campanha se apoiando somente em um montão de bravatas e, por isso mesmo fugiu dos debates como o diabo da cruz; baseou sua campanha em notícias falsas; destilou ódio e preconceitos contra negros, indígenas, homossexuais, além de manifestar contumaz desprezo pela classe artística, da qual, exatamente o senhor João Luiz Woerdenbag, mais conhecido como Lobão, faz parte, não podia dar outra coisa senão o que deu.
Faz parte do meio artístico mas, a bem da verdade, por outro lado, também faz parte de uma classe-média alta elitista, mimada que, nos anos 80, recém saída da ditadura, via seus filhos, rebeldes sem causa, lutarem sem saber bem pelo quê, por causas como diretas, igualdade social, contra a fome, muito mais pelo embalo e pela modinha, do que por qualquer convicção. Tudo uns filhinho de papai que, na hora que perceberam que estavam perdendo privilégios, deixaram cair a máscara.
Lobão até se arrependeu - pelo menos é o que ele diz. Mas agora, depois de ajudar a eleger aquele ser ignóbil que ocupa a cadeira da presidência, aí já é tarde e já condenou o país a um retrocesso vai ser duro de reverter. Quando criaturas como Lobão, Roger, do Ultraje, Paula Toller, Rodolpho do Raimundos, mostram esse tipo de atitude, de posicionamento de caráter, eu tenho que dar razão para a aquela música que um cara muito legal do rock nacional dos anos '80 compôs: O rock errou.


O cara que bradava contra o sistema...  
John Lydon - O Rei dos Punks, o cara que gritava por anarquia, que bradava contra o poder, contra a caquética monarquia britânica, quem diria..., apoia Donald Trump. Pois é. Preferências políticas à parte, de direita, esquerda, democratas, republicanos, liberais, socialistas, já estar cansado das "bobagens intelectuais" da esquerda, como o próprio Lydon afirma, tudo bem, a gente entende, mas, agora, um cara que já simbolizou a atitude contra o poder, contra o opressor, daí a se manifestar, veementemente, a favor de uma pessoa elitista, odiosa, arrogante, egoísta, megalomaníaca, racista, xenófoba, um negacionista que, por conta de sua ignorância, falta de humanismo e empatia, ignorou a presente pandemia e, por conta de seu discurso, sua falta de ações efetivas, condenou milhares de seus compatriotas (e, por tabela, outros tantos milhões, indiretamente, pelo mundo afora) à morte, é inaceitável.
Como se não bastasse apoiar abertamente um maluco egocêntrico e considerá-lo a "última esperança e o verdadeiro representante da classe operária (???), o ex-líder dos Sex Pistols, vêm dando indesculpáveis demonstrações de intolerância e racismo. Além de "passar pano" no episódio de George Floyd, dizendo que existem policiais brancos ruins mas que aquilo teria sido apenas um episódio isolado, e ter ofendido com injúrias racistas o integrante da banda Block Party, Kele Okereke, durante um festival, diante de pessoas que confirmam o incidente, Joãozinho Podre ainda vem afirmando e reafirmando que os jovens ingleses que participam de manifestações contra o racismo são uns "mimadinhos" que, segundo ele, "têm merda na cabeça". Tá certo que a simpatia nunca foi mesmo uma marca forte na vida de John Lydon, mas agora com essas ele não se ajuda a que continuemos tendo algum respeito por ele ou pelo que já representou.
"Eu posso estar certo, eu posso estar errado", era o que ele mesmo cantava, já nos tempos de PIL, e creio que, diante das últimas atitudes não é muito difícil constatar qual das alternativas prevaleceu.


Morrissey exibindo, sem pudor,
 seu apoio à direita britânica.
Morrissey - O que mais me dói ver o lixo humano que se tornou. Morrissey era uma espécie de amigo, o cara que a gente ouvia porque parecia que sentia como a gente e exprimia suas dores, seus problemas, suas angústias, da maneira como gostaríamos de manifestar, com sinceridade, sem medo de se expôr, como um ser humano que só quer ser amado. Pois bem..., como é que essa pessoa se tornou esse ser deplorável que temos acompanhado ultimamente é algo misterioso para mim. Talvez nem tanto. Se formos prestar atenção alguns sinais já vinham sendo dados mas, nós fãs, nem levávamos em consideração, tipo, "Morrissey não é assim", ou passávamos um pano, bem bonito, justificando por alguma descontextualização ou má interpretação. Achávamos graça das declarações mal-educadas do ídolo, classificando como uma acidez típica dos gênios, quando efetivamente, deveríamos estar preocupados com o que aquilo representava.
Na verdade, aquele "England is mine...", de "Still Ill", ainda da época do The Smiths, já era um indicativo e eu é que não entendia totalmente... As coisas começaram a ficar mais claras em "National Front of Disco", canção de 1998, uma evidente alusão à Frente Nacional, partido de extrema direita inglês, contestada por alguns mas que, naquele momento, muita gente (inclusive eu) preferiu interpretar como uma "figura" compositiva dentro do contexto poético da música. Só que de uns tempos pra cá, Moz resolveu confirmar publicamente o que insistíamos em negar: tornara-se (se é que em algum momento não fora) um fascista de direita, racista, xenófobo e desprezível. Depois de usar, durante a turnê de seu álbum "Low in the High School", um broche do partido For Britain (foto), de perfil excludente e xenófobo, o cantor reafirmou em um programa de TV norte americano seu apoio às plataformas do partido e ainda, durante a entrevista, minimizou, e até ridicularizou o racismo, afirmando que, atualmente, a expressão é sem sentido e que uma pessoa será acusada de racista, nos dias de hoje, simplesmente, por discordar da opinião dos outros. No balaio de disparates, Morrissey ainda comparou a suposta perseguição que a imprensa impõe a ele, e o boicote que alega sofrer de gravadoras e da mídia ao nazismo e, a propósito de Terceiro Reich, de quebra, afirmou que Hitler seria de esquerda. 
Ah, e tem a que chineses são uma "subespécie", que fronteiras são coisas maravilhosas e foram feitas para serem respeitadas" (sobre imigrantes), que Obama, na verdade, era "branco por dentro", tem a de expulsar fãs do próprio show acusando-os de terem sido mandados pela imprensa, a de sugerir que a criança assediada por Kevin Spacey sabia o que estava fazendo ao ir para o quarto com um homem adulto... Olha..., eu não sei como eu ainda ouço as músicas dê-se cara! Pra falar a verdade, hoje, sempre que eu tenho vontade de ouvir alguma coisa dos Smiths ou de sua carreira solo, eu penso, "Eu vou ouvir esse merda?". Aí eu, a muito custo, separo o homem do artista e lembro do que ele mesmo falou em uma de suas letras: "Não se esqueça das canções que lhe fizeram chorar/ e das canções que salvaram sua vida"
Aí ele me convence e eu o ouço mais uma vez.
(Por enquanto...).


Cly Reis

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

"Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar - L&PM Editores (1977)


"Queres saber da ema fugaz?
Queres? 
Então é muito pouco. 
Queres saber dos bois empalhados? Da tia de Pelotas? 
Da Carta de Punta Del Este? Da queda do cruzeiro? 
Do Banco da Província? 
Do Simca Chambord? Das Cestas de Natal Amaral? 
Do considerável número de populares bradando viva Jânio? 
Queres saber de tudo? 
Queres? 
Então paga."
parágrafo inicial de 
"Mês de Cães Danados"




"Viajante chega a Porto Alegre procedente de São Paulo. Procura na Rua da Ladeira um homem que conta histórias (falarias em mendigo, paulista? Eu não falaria). Mediante (atenção!) pagamento, viajante paulista terá visão, sucinta e não desprovida de interesse, do agosto de 1961 - mês, na expressão do narrador, de cães danados. Paralelamente narrador contará algo de sua vida - interessante infância, batalhas na cidade de Pelotas, aventuras na capital. Mediante pagamento adicional poderá descrever cenas de sexo (sublinha esta palavra, paulista, no original; se for impresso, quero-a em itálico. Ah, ris. Teu nome é Sátiro?). Narrador mencionará ema fugaz, Simca Chambord, Cestas de Natal Amaral, considerável número de populares bradando viva Jânio, muro de Berlim, machine-gun, Bois Empalhados, Letras da Legalidade, Fayacal Khautz (...)"
Este resumo que o próprio narrador do livro repassa com seu interlocutor, já alguns dias após a primeira visita, é exatamente o que precisamos para introduzir o excelente "Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar., livro em que os eventos que antecederam e culminaram na renúncia de Jânio Quadros e na posse de João Goulart, naquele agosto de 1961,  eu que são narrados, mediante uma substancial contribuição em sua lata de doce de Pelotas, por um mendigo tagarela, instalado na ladeira da Rua General Câmara, em Porto Alegre.
Numa confusão de informações, entre lembranças de infância, personagens reais e fantásticos, relatos dispensáveis, slogans publicitários, manchetes de jornais da época, o tresloucado morador de rua vai contando a um curioso, provavelmente paulista pelo sotaque, que chega todos os dias para ouvir dele toda a história de como saiu da condição de um promissor estudante de direito, filho de um latifundiário do Sul do Estado, à situação de miséria, abandonado e esquecido, com uma perna deformada, numa calçada no Centro da cidade, ali pertinho do Palácio do governo do Estado.
Num espaço de duas semanas, desde o início das visitas do paulista, todos os dias, em sua narração atropelada, confusa, o miserável, que se identifica como Mário Picucha, intercalando fatos de sua história pessoal com o contexto político e social daquele momento, vai revelando um pouco mais sobre aqueles dias de 1961, até chegar à data em que, com muito esforço do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, foi garantida a posse de seu genro, o então vice-presidente da República, João Goulart, mesmo diante de uma enorme resistência das elites, de empresários e latifundiários, que temiam por uma ameaça 'comunista'.
Aparentemente a história toda do indigente soa sem pé nem cabeça mas, em meio a todo aquele desvario em que menciona ema fugaz, tordilho doido, machine-gun, bois empalhados, Cavaleiro Rolando, talvez haja algo mais. A cada dia surge um elemento novo, algo mais relevante e, parece que seu assíduo visitante espera exatamente por algo mais consistente na história. Por isso continua indo, por isso vai todos os dias, por isso coloca um dinheiro na lata. O que aquele mendigo tem a contar de tão importante daquele agosto de 1961?
Moacyr Scliar, um dos maiores escritores gaúchos e um dos grandes nomes da literatura nacional, num formato muito livre e despojado, conduz a história com total domínio e precisão mesmo quando, eventualmente, achamos que aquela conversa de maluco não está levando a lugar nenhum ou que há muita informação inútil no que sai da boca de seu personagem narrador. "Mês de Cães Danados" é uma leitura agradabilíssima, contagiante, atraente. O relato do protagonista em primeira pessoa, é ágil, inquietante, e a disposição dos capítulos, em formato diário, no período das idas do misterioso visitante à Rua da Ladeira, garantem uma dinâmica estimulante e um constante interesse do leitor. Um relato de um histórico agosto em uma leitura que dá gosto.



Cly Reis

segunda-feira, 16 de abril de 2018

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 10 ANOS DO CLYBLOG - Nei Lisboa - "Hein?!" (1988)




Causou espanto e surpresa quando, em meados dos anos 80, Nei Lisboa se declarou fã dos Engenheiros do Hawaii! “Carecas da Jamaica”, o disco, tinha até uma parceria dele com Humberto Gessinger (ainda que Nei ressalve hoje: “Peraí! Só metade do refrão de ‘Deixa o Bicho’ é dele!”). Além disso, dividia com o Gessinger os vocais da faixa-título. E havia ainda uma versão cool de “Toda Forma de Poder”, hit do primeiro LP dos Engenheiros.

Mas não seria só isso que teriam em comum. Logo Humberto e Carlos Maltz, com a saída do baixista Marcelo Pitz da banda, convidam Augustinho Licks pra vaga. Surpreendentemente, Augusto topa. E Nei se sente bastante traído – fato agravado por alguns incidentes desagradáveis em shows dos Engenheiros para os quais fora convidado a dar uma canja. 

Nei se via sem seu maior parceiro, num momento bem importante de sua carreira, de definições.

É quando, em julho de 1988, ainda contratado da EMI, Nei começa a gravar disco novo. O LP se chamaria “Hein?!” e, acreditavam todos, finalmente o projetaria nacionalmente. Ao menos era a aposta de quem acompanhava seu repertório daquele momento e o cruzava com o cenário de entressafra da MPB e do rock. No ano anterior, Vitor Ramil e Bebeto Alves haviam lançado seus discos mais populares até então,” Tango” e “Pegadas”, respectivamente. Mas faltava ainda um cara que transcendesse esse sucesso local pra pegar o Brasil pelo rabo.

As fichas locais estavam todas nele.

Só que, num intervalo das sessões, Nei volta ao Rio Grande do Sul e resolve passear na serra gaúcha com a namorada e uns amigos. E o imponderável age: um acidente de carro, perto da cidade de Nova Petrópolis. Leila, a namorada, morre.

Nada mais fez sentido. Termina o disco, é verdade. Que é, segundo muitos, seu melhor trabalho. Mas o astral era radicalmente oposto ao que tinha sido pensado. Era pra ser um LP debochado e irônico. Saiu amargo e doído.

Até a banda era das melhores e mais enxutas que ele já reuniu, com Pedro Tagliani – da banda instrumental Raiz de Pedra - no posto que fora de Augustinho, mais a cozinha de Renato Mujeiko e Fernando Paiva. Paiva logo depois se radicaria em Viena, onde se firmaria como grande instrumentista, e Pedro iria pra Munique com seu grupo. Os três juntos dão uma dinâmica e um senso de equilíbrio que resulta num disco com um raro colorido de vazios e espaços recortados por frases instrumentais inesperadas.

Alem dos três, gravados ao vivo no estúdio, pouco mais: Glauco Sagebin tocando piano e órgão numas poucas faixas, o violão de Nei em outras. Tudo mínimo, tudo cru e tudo muito sofisticado. Bem diferente dos trabalhos anteriores. Tanto que, ao contrário deles, é absolutamente atemporal. Você ouvia em 1988 e era atual. Você ouve hoje e segue contemporâneo.

Parte dos méritos disso são do produtor Mayrton Bahia, famoso pelos discos da Legião Urbana – outros que também resistem bem ao tempo (ao contrário de Reinaldo Barriga, o preferido pelo rock gaúcho de então, cujos trabalhos soam hoje retratos de época).

Além disso, estava ali a faixa-título, uma espécie de continuação de “Verão em Calcutá”, glosando o mesmo mote em versos ainda mais cínicos com relação ao circo do showbizz. E cutucando diretamente Titãs, Raul Seixas, e, também, os Engenheiros:

"Comprei uma guitarra usada, alguma namorada me passou batom.
Durou um tempo, até foi bom.
Mas quando eu disse que era o Rei, tirou o copo da minha mão e disse:
Hey! Hein?!?! Meu amigo, não se desfaça nessa fama, todo esse mundo do rock´n´roll é ruim de cama! Eles querem diversão e bolo, eles querem tudo e mais um pouco, eles querem krig-há-bandolo e champanhe. Eles querem frases nos jornais, eles querem parecer sinceros demais. (...) Eles querem te fazer de tolo, e eu também!"

 Mas o disco não é só isso. Era também um trabalho de amor. Só que, quando aconteceu o acidente, nem todas as letras estavam terminadas. Era preciso, por exemplo, escrever a última estrofe de “Baladas”. Que saiu assim: 


"Só, muito além do jardim, viajo atrás de sombras.
Não sei a quem chamar.
Mas sei que ela diria ao acordar:
Tudo bem. Você me arrasou, meu bem, e qualquer dia desses eu como as tuas bolas. Mas agora esqueça o drama na sacola... Não puxe o cobertor! Não tape o sol que resta nessa dor! Foi bom: não durou.
Oh, mama! Não vale a pena pagar um centavo, um retalho de prazer...
Oh, mama! Eu quero morrer... bem velhinho, assim, sozinho, ali, bebendo vinho  e olhando a bunda de alguém."  

Evidentemente não houve nem alma nem ânimo pra trabalhar a divulgação. Uma terrível entrevista no programa de Jô Soares é a pá de cal nas suas relações já estremecidas com a gravadora: “No momento em que aconteceu o acidente, perdeu completamente o sentido aquele jogo que ao natural já se pode considerar medíocre: dono de gravadora, rádios FMs, essa rede que compõe o mercado, a indústria cultural. E que tu és obrigado a participar, te interessar, te preocupar e agir dentro disso se tu queres ‘tar no páreo da Música Popular Brasileira. Tudo isso, ao natural, já pode parecer medíocre. E naquele instante pra mim não valia um ovo. Eu queria era chutar o balde. E foi o que eu fiz em muitos instantes. No Jô foi um.”, disse Nei posteriormente.

A lápide foi sua recusa em gravar a versão de “Hey Jude”, dos Beatles, a tábua de salvação oferecida pela gravadora. Nei disse que até topava*, desde que ele escrevesse a sua versão da letra, em português. Bateram pé na versão dos anos 60, de Rossini Pinto. Não houve acordo.

Comprovando a tese dos caras, a canção virou um big hit na voz da segunda opção de artista pra gravá-la, Kiko Zambianchi. Durante muito tempo, o pessoal romantizou o lance. Mas atualmente Nei fala disso com crua sinceridade: “Meu público básico era todo daqui. Dez, 20 mil pessoas. Universitários, classe média. Que não aceitariam de jeito nenhum me ouvir cantar uma bosta daquelas. Ia jogar minha carreira pelo ralo. Não foi um gesto de ‘Isso é ruim, eu não quero cantar’, mas sim um gesto de ‘Isso é ruim e vai fuder com a minha carreira’. Cantar, em si, não ia me doer tanto.” 

Nei também estava certo. Assim como virou um sucesso, “Hey Jude” parou ali a carreira de Kiko, que só voltou a ser comentado 15 anos depois, tocando com o Capital Inicial.

trecho do livro inédito de Arthur de Faria

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FAIXAS:

1. Zen - 00:30
2. No Fundo - 3:30
3. Nem Por Força - 4:12
4. A Fábula (Dos Três Poréns) - 3:50
5. Faxineira - 2:30
6. Baladas - 4:28
7. Rima Rica / Frase Feita - 4:07
9. Fim Do Dia - 3:40
9. Telhados De Paris - 5:20
10. Teletransporte Nº 4 - 3:03

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OUÇA O DISCO:
Nei Lisboa - Hein?!




Arthur de Faria é músico, compositor e arranjador. Produziu 27 discos, escreveu 35 trilhas para cinema e teatro, integra o Duo Deno, a Surdomundo Imposible Orchestra, o espetáculo Música de Cena e Música Menor – duo com o argentino Omar Giammarco. Por 20 anos liderou o Arthur de Faria & Seu Conjunto, com quem lançou cinco de seus oito discos e tocou em meia dúzia de países. Jornalista e mestre em Literatura Brasileira, ministra cursos sobre música popular brasileira no Brasil, Argentina e Uruguay, trabalha há 20 anos em rádio, publicou dezenas de ensaios, artigos, livros e fascículos sobre música popular e dedica-se há três décadas a pesquisa sobre a história da música de Porto Alegre.