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segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Wayne Shorter - "JuJu" (1965)



“Quando escrevi a música 'JuJu', 
estava pensando na África. 
Sua estrutura é um pouco reminiscente da simplicidade de um canto africano”. 
Wayne Shorter


A cultuada banda formada pelo pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e contrabaixista Jimmy Garrison ficou conhecida como o trio que acompanhou John Coltrane no seu período áureo por quase cinco anos. Mas, na prática, embora o êxito desse encontro e o longo período de parceria com o saxofonista autor de “A Love Supreme”, as coisas não eram assim tão exclusivas. Se e a afinidade musical fazia com que ganhassem essa marca junto a Coltrane, a mesma qualidade lhes garantia sucesso em outros projetos. Afinal, o período, primeira metade dos anos 60, era o de maior fertilidade do jazz pós-bop e, além do mais, os músicos da época conviviam e se trocavam sadiamente. Tanto que, praticamente a mesma banda, com ocasionais substituições, é responsável por discos como “Matador”, do guitarrista Grant Green (1964), “McCoy Tyner Plays Ellington”, de Tyner (1963), e outro magnífico álbum da época: “JuJu”, em que o grupo apoia outro mestre do sax alto: Wayne Shorter.

Com o mesmo vigor e brilhantismo que os faz ostentar a aura de melhor quarteto de todos os tempos do jazz, Tyner e Jones, desta feita acompanhados por outra fera do baixo, Reggie Workman, montam o palco ideal para a exibição de Shorter em “JuJu”. Numa estrutura parecida com seu disco imediatamente anterior, a obra-prima “Night Dreamer” (1964), que contava com esse mesmo time de músicos, “JuJu” inicia, assim como na abertura do outro disco, com uma intensa faixa-título. Trata-se de um bop modal em que ninguém fica para trás, nem band leader nem seus acompanhantes. O trio da “cozinha” não poupa, esbanjando inventividade nas variações sobre a escala. Tyner solta ataques abertos nas teclas brancas; Jones, polirrítmico, engendra um compasso 3/6 cheio de variantes; Workman, por sua vez, desliza os dedos em impulsos constantes sobre as cordas. Mas tudo, claro, a serviço do sopro de Shorter. Majestoso. Altivo. Carregado. Inspirado nos ritos religiosos da África ancestral (o ritual “voodoo” é a versão para “juju” no Haiti), é ele quem – com exceção do solo de Jones no meio do número – preenche do início ao fim a faixa unindo lirismo e ferocidade, disciplina e instinto.

O toque fugidio e aparentemente impreciso da abertura de “Deluge”, o tema seguinte, revela, assim que a melodia se define, que aqueles acordes eram, sim, sua assinatura. Jazz elegante e bluesy, tem um dos mais bonitos riffs criados por Shorter, exímio melodista autor de boa parte de seu próprio repertório e cujas músicas foram gravadas por vários outros artistas, de Miles Davis a Chick Corea. Assim como "Oriental Folk Song", também uma segunda faixa, no caso, no referencial “Night...”, “Deluge” guarda certo exotismo e mistério. Por contar apenas com o sax de Shorter como metal, assim como ocorre em todo o disco, a canção traz a marca forte do seu autor, que tem liberdade para desenvolver os improvisos sem “dividir” o tempo/espaço com outro solista (como em “Night...”, onde o trompete de Lee Morgan faz o segundo sopro). É Shorter brilhando livre com o rico amparo da estelar banda.

Caso da romântica “House of Jade", daquelas baladas dilacerantes de Shorter tal qual “Virgo”, igualmente terceiro número do disco anterior e cujo sentimentalismo é tão arrebatador quanto. Tyner está especialmente clássico, mostrando o quanto ele e outro genial pianista contemporâneo seu, Herbie Hancock, dialogavam. Nota-se Gershwin e Rachmaninoff no seu dedilhar onírico e inteligente, sabendo preencher o espectro sonoro com delicada precisão. Jones, capaz de oscilar da intempestividade à doçura, arrasta e bate a escovinha de leve, quando não solta a baqueta com mais intensidade nos pratos e na caixa. Workman, por sua vez, impecável ao extrair um blues triste do baixo, quase choroso. E Shorter, então?! Quanta beleza! Sopradas lânguidas, macias mas bem pronunciadas, variando das mais inventivas formas o tema central. A 3min30’, uma ligeira guinada para um blues mais embalado, quando se acelera levemente o compasso. Não o suficiente, contudo, para tirar-lhe o caráter lírico. Tyner, a pouco menos de 5min, ensaia um breve solo para, então, Shorter retornar e fechar com a mesma carga sentimental que rege “House of Jade".

Caso também de "Mahjong". Nesta, é a bateria que dá o tom, abrindo a faixa com variações de tan-tan e prato num ritmo sincopado, exótico. Tyner entra com um 3/2 modal como é sua especialidade. Aí, novamente, aparece a lindeza do riff de Shorter, em que as sonoridades orientais, tanto da Índia quanto do Extremo Oriente, se revelam mais presentes, igual o fez em "Charcoal Blues" de “Night...”. Após a abertura, Tyner, num dos momentos mais célebres do disco, engendra um solo de mão direita intrincado, enquanto sustenta com a esquerda a base. Parecem dois pianistas tocando – mas não é. Para responder a tal maravilha no mesmo nível, Shorter volta à carga para hipnotizar o ouvinte. Encadeamentos sobre uma escala de apenas 5 notas se dão em profusão, os quais vão se intensificando em figuras ora dissonantes, ora espirais. Totalmente a ver com a inspiração do tema, uma vez que o “mahjong”, um jogo de mesa de origem chinesa, tem peças que envolvem, justamente, imagens circulares.

A embalada “Yes or Not” já diz a que veio quando o sax Shorter larga soltando o riff. Depois, são quase 6min só de improviso, em que ele explora com agilidade escalas de tons inteiros formando relações diversas. No embalo, Tyner improvisa com igual desenvoltura valendo-se das mesmas premissas construtivas.

A talvez menos “espelhada” em relação a “Night...” seja, justamente, a música que encerra o álbum. Enquanto "Armageddon" finaliza aquele disco carregando na atmosfera avant-garde com dissonâncias e arroubos, a charmosa "Twelve More Bars to Go" é, como o próprio título diz, um passeio fagueiro pelas ruas de Nova York atrás de (mais 12) bares para se tomar um bourbon e ouvir um jazz. Bonito detalhe são os lances em que Shorter, na empolgação do improviso, acaba afastando o bocal do sax do microfone, gerando redução no volume da captação. O engenheiro de som, Rudy Van Gelder, com a habilidade e sensibilidade incomum que tinha, sabiamente não “corrige” a diferença nem durante a execução e nem depois. O que para muitos seria uma falha, nas mãos de Van Gelder vira um acerto divino.

Até mesmo a sonoridade límpida e equalizada dada por Van Gelder e a mais uma vez impecável arte de Reid Miles se repetem de “Night...” para “JuJu”, mostrando o quanto Shorter acertara neste conceito de obra, sua primeira pelo renomado selo Blue Note, o qual carrega toda a bagagem do hard-bop e que serviria de modelo para outros trabalhos igualmente inesquecíveis do artista logo em seguida, como “Speak no Evil”, “Etcetera” (ambos de 1965) e “Schizophrenia” (1967). No entanto, “JuJu”, tão mítico quanto estes, é, acima de tudo, um álbum único, haja vista todas essas suas qualidades, que o fazem chegar, bem dizer, à perfeição.

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FAIXAS:
1. "JuJu" - 8:28
2. "Deluge" - 6:49
3. "House Of Jade" - 6:49
4. "Mahjong" - 7:40
5. "Yes Or No" - 6:35
6. "Twelve More Bars To Go" - 5:26
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 12 de março de 2015

John McLaughlin & The One Truth Band - “Electric Dreams” (1979)



John McLaughlin,
este é único, é um matador.”
Miles Davis



Pessoal que acompanha meus textos andava reclamando que eu só falava de discos de música pop e deixava o jazz – em tese, minha especialidade – de lado. Hoje, resolvi resgatar um disco dos meus 19 tenros anos. Mas, pra começar, uma historinha. A década de 70 no jazz foi pródiga em manifestações das mais variadas. O selo ECM surgiu e floresceu, o jazz alemão se desenvolveu e o fusion tomou conta das paradas e das mentes do novo público que veio do rock querendo algo mais do que três acordes. A culpa toda é de Miles Davis que, em 1969, lançou os discos "In a Silent Way" e o seminal “Bitches Brew”. Em suas bandas, circulavam nomes que iriam montar seus próprios trabalhos durante a década. Entre eles, Chick Corea, com seu “Return to Forever”, Joe Zawinul e Wayne Shorter, com o Weather Report, e o guitarrista inglês John McLaughlin com a Mahavishnu Orchestra. À exceção de Zawinul, que fez dos teclados e do som elétrico a base de seus trabalhos, todos os outros mesclaram as sonoridades acústicas com as elétricas em suas criações.

No final dos anos 70, McLaughlin montou mais um de seus grupos, a One Truth Band, trazendo o violinista L.Shankar da Índia, o percussionista brasileiro Alyrio Lima e mais os americanos Stu Goldberg nos teclados, Fernando Saunders no baixo elétrico e Tony Smith na bateria. Com esta turma, gravou o disco “Electric Dreams”, com o qual excursionou pelo mundo e, por incrível que pareça aos mais jovens, esteve em Porto Alegre, no Gigantinho, dividindo o palco com Egberto Gismonti & Academia de Danças. Nesta ocasião, eu estava mergulhado totalmente no fusion e não perdi a oportunidade de ver este espetáculo. Além de mim, cinco mil testemunhas adoraram o que viram. Numa nota pessoal, em 2010, estive em Bremen, na Alemanha, para ver um festival de jazz, a convite do Instituto Goethe, e a abertura era feita por McLaughlin e seu grupo. No final, fui conversar com ele no backstage e o guitarrista acabou me confessando que foi “o pior som que jamais teve em um palco”. Que currículo, hein? Mas o que interessa é o disco “Electric Dreams”, de John McLaughlin & The One Truth Band.

A viagem inicia com “Guardian Angel”, praticamente uma vinheta de McLaughin no violão, Goldberg ao piano e Shankar no violino. Tão breve que dá vontade de ouvir novamente. Depois, vem “Miles Davis”, a homenagem de McLaughlin ao trompetista que havia lhe dado de presente uma das músicas de “Bitches Brew”. Uma faixa balançada com os teclados de Goldberg, a bateria de Smith e a percussão de Alyrio fazendo o pano de fundo para os arroubos virtuosísticos de Saunders e da guitarra de McLaughlin. Depois de uma improvisação coletiva ao estilo dos discos elétricos de MD, a música vira uma funkeira no clima dos trabalhos posteriores do trompetista. Isso que estávamos em 1979. McLaughlin já esteve prevendo o que viria na volta de Miles aos gramados.

“Electric Dreams, Electric Sighs” começa com a guitarra improvisando sob uma cama de teclados. O clima de balada se instala com o tema da canção, sob o qual Shankar faz seu solo, o tecladista usa o Fender Rhodes para as harmonias e o mini-moog para o solo e o guitarrista larga seu instrumento e faz uma tentativa no banjo, muito bem sucedida, aliás. Pena que ele não seguiu em frente com seus experimentos “banjísticos”. Depois, ele retoma a guitarra para encerrar a música.

A faixa que fecha o lado 1 do LP é a preferida da casa: “Desire and the Conforter”, que inicia com o triângulo de Alyrio junto ao Rhodes de Goldberg, aos quais se juntam os pratos de Smith e o solo de baixo elétrico fretless de Saunders. Aos quase dois minutos, a música dá uma guinada e a guitarra de McLaughlin e o violino de Shankar introduzem uma batida funkeada que dá segmento a um rodízio de solos do mini-moog de Goldberg, da guitarra do líder e do violino de Shankar. E quando todo mundo achava que a composição terminaria aí, uma levada jazzística de Smith surge quase do nada para carregar mais um solo de Mac com Alyrio pontuando com seus caxixis, chocalhos, guiros e outros bichos mais. Até a funkeira recomeçar para o final da música no qual o percussionista brasileiro vai regulando dizendo: “segura, rapaziada, segura, não deixa cair...”.

O Lado 2 abre com “Love and Understanding”, uma viagem mística de McLaughlin com o violão fazendo uma base para um lindo solo de violino. Aos poucos, os teclados tomam conta, juntamente com a guitarra. E aí, a surpresa: o baterista Tony Smith começa a cantar: “Love and Understanding / Understanding love”, seguido pelo baixista Saunders entoando: “Love is hard to stand it... You can hear the secret sound / to be found / so let’s see, let’s see, let’s see..”. Pura doideira cósmica, recheada com solos em uníssono de McLaughlin e Shankar. Até o clima místico voltar. E Smith e Saunders continuarem cantando que “o amor é compreensão”. Nem todo mundo concorda...

“Singing Earth” é mais uma vinheta, agora a cargo dos teclados de Goldberg. Quando prestamos a atenção, ela terminou. Mas a pauleira jazz-rock vem com força total com “The Dark Prince”, faixa que poderia estar nos dois primeiros discos da Mahavishnu Orchestra, “The Inner Mounting Flame” ou “Birds of Fire”, sem dúvida alguma. Depois da apresentação do tema, os solos tomam conta, com McLaughlin mostrando aquelas notas rapidíssimas, bem ao seu estilo. Na sequência, Stu Goldberg faz um solo de Fender Rhodes e depois de mini-moog. Quebradeira fusion pra ninguém botar defeito.

Pra fechar o disco, uma balada com andamento de valsa chamada “The Unknown Dissident”, que começa com os policiais do governo circulando e procurando o dissidente desconhecido. Logo, McLaughlin mostra a melodia na guitarra, seguido pelo convidado David Sanborn no sax alto, que passa a solar. Quando o guitarrista voltar a tocar, faz uma variação do tema principal. Assim como Sanborn, que reaparece dividindo o espaço dos solos com o líder. No final, os dois apresentam o tema. E os efeitos especiais retornam com uma porta sendo aberta, o dissidente sendo levado pelos guardas, ouvindo-se os passos até o tiro final.

Qualquer um que vier contestar, dizendo que este não é dos melhores discos de John McLaughlin, vou devolver a contestação. Esse é um dos meus discos favoritos, ponto final. Ninguém tem de gostar. Só eu. E eu gosto muito. Você também pode gostar.

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Uma nota da época: Alyrio, entendiado no quarto de hotel, foi dar um passeio no centro de Porto Alegre. Ao chegar na atual Esquina Democrática, deparou-se com a loja Scarpini, “o joalheiro da metrópole”, como dizia a propaganda. Não teve dúvidas: entrou e pediu para ver os diamantes. Os atendentes ficaram cabreiros e botaram o olho no rapaz. Este não pensou duas vezes e engoliu um dos diamantes. Vigiado, Alyrio foi denunciado e a polícia foi chamada para resolver o caso. Que teve sua solução na delegacia com um laxante... Para quem não acredita, a saudosa Folha da Tarde publicou esta história inclusive com foto do malfadado percussionista.
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FAIXAS:
1. Guardian Angels – 0:51
2. Miles Davis – 4:54
3. Electric Dreams, Electric Sighs – 6:57
4. Desire and the Comforter – 7:34
5. Love and Understanding – 6:36
6. Singing Earth (Stu Goldberg) – 0:37
7. The Dark Prince – 5:15
8. The Unknown Dissident – 6:16
Todas as composições de McLaughlin, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:





sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Aum - "Belorizonte" (1983)

 

"Dedicado a Belo Horizonte"
Dedicatória da contracapa do disco

Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...

Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.

A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.  

Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.

Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”. 

Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).

Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges.  Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.

O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.

“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.

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FAIXAS:
01. "Tema pra Malu" (Taquinho) - 5:12
02. "Serra do Curral" Marcio) - 2:55
03. "Belo Horizonte" (Aum) - 9:36
04. "Nas Nuvens" (Betinho) - 3:58
05. "4:15" (Marcio) - 4:15
06. "Tice" (Betinho) - 7:20

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

4ª Feira de Vinil Gira Música - Casa da Polônia - Rio de Janeiro/RJ (1º/09/2019)



O dias em que passamos Leocádia e eu no Rio de Janeiro foram invariavelmente lotados. Só coisa boa, mas lotados. Mas sempre se tem espaço para encaixar mais uma programação, ainda mais quando esta trata de música. Ou melhor: quando esta trata de música E discos, o que para um colecionador é um prato cheio. Minha mãe, sabendo de nosso gosto, havia avisado dias antes que ocorreria, no domingo, a Feira de Vinil Gira Música, na Casa da Polônia, no próprio bairro e avenida onde estávamos instalados, Laranjeiras. Pois que, voltando de um passeio no bairro Jardim Botânico neste dia, eis que cruzamos em frente à feira. Obviamente que descemos e fomos dar uma conferida, o que não só valeu a pena a título de passeio como, claro, de compras.

A feira trazia food trucks, bancas com artesanato e bijuterias e uma exposição sobre o célebre músico, arranjador e produtor Lincoln Olivetti, morto há  4 anos, infelizmente muito primária e amadora e que não dimensionava nem de perto a relevância do homenageado. Mas isso não era o mais importante e, sim, aquilo que nos levou até lá: os discos. Com expositores cariocas mas também vindos de Minas Gerais e São Paulo, a feira estava muito boa em termos de quantidade e variedade. Todos os gêneros musicais contemplados, mas principalmente rock, MPB e jazz. O nível dos expositores chamou atenção, uma vez que todos sabem muito bem o acervo que oferecem. Ou seja: os discos raros tinham preços que justificavam suas particularidades. Títulos como "A Bad Donato", de João Donato, "Stand", da Sly & Family Stone, o primeiro disco de Arthur Verocai, "Spirit of the Times", de Dom Um Romão, "Blue Train", de John Coltrane, ou o disco do próprio Lincoln em parceria com Robson Jorge, clássico da AOR brasileira, não saíam por menos que 500, 400, 350, 200, 180 Reais ou valores parecidos.

Galera percorrendo as prateleiras em busca "daquele" vinil
Clima descontraído e musical da Feira de Vinil na Laranjeiras
Não só vinil tinha na feira
Eu vasculhando as preciosidades da banda do Sonzera, um dos expositores
Pedaço da miniexposição sobre Lincoln Olivetti: deixou a desejar

Em compensação, vários balaios. E bons! Com muita variedade e, às vezes, até discos raros, era possível encontrar unidades a 10, 20 ou 30 Reais. E foi aí que me esbaldei, passando algumas horas na feira percorrendo as caixas com promoções enquanto Leocádia aproveitava outras atividades ou simplesmente me aguardava. Uma das atrações da feira seria a presença do cantor e compositor Hyldon, lenda da soul brasileira, que estaria à tarde autografando seu disco relançado, mas não ficamos para isso. Afinal, já estávamos muito bem alimentados com o que encontramos de variedade e qualidade de bolachões, inclusive esses, os que levamos para casa:



“Limite das Águas” – Edu Lobo (1976)
Edu tem vários discos solo cultuados, como “Missa Breve”, “Camaleão” e “Jogos de Dança”, mas não raro este aparece como o preferido do autor de “Ponteio”. Afinal, não tem como não adorar as parcerias como Capinan, Cacaso e Guarnieri, além do primor dos arranjos do próprio Edu e as participações de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Cristóvão Bastos, Joyce, Toninho Horta, Danilo Caymmi e o grupo vocal Os 3 Morais. Coisa fina da MPB.


“Libertango” – Astor Piazzola (1974)
Um dos gênios da música do século XX em seu disco mais icônico. Gravado em Milão, é a representação máxima do tango argentino moderno, tanto que as próprias faixas, assim como a que o intitula, trazem o termo “tango” no nome: Meditango, Violentango, Undertango, entre outras. De ouvir ajoelhado - ou tangueando.



“Brazilian Romance – Sarah Vaughn with Milton Nascimento” ou “Love and Passion”  Sarah Vaughn (1987)
A grande cantora norte-americana Sarah Vaughn, amante da MPB, recorrentemente voltava ao gênero. Depois de gravar discos como “Exclusivamente Brasil” e “O Som Brasileiro de Sarah Vaughn”, nos ano 70, em 1987 ela torna à sonoridade do Brasil por meio de um de seus mais admirados compositores: Milton Nascimento. E o faz isso com alto grau de requinte, haja vista a produção de Sérgio Mendes, os arranjos de Dori Caymmi e participações de gente como George Duke e Hubert Laws. Ela quase levou um Grammy de melhor performance feminina por este álbum.

“Merry Christmas, Mr. Lawrence (Music From The Original Motion Picture Soundtrack)”  Ryuichi Sakamoto (1983)
Tenho adoração por este filme intitulado no Brasil como “Furyo - em Nome da Honra”, e tanto quanto pela trilha sonora, escrita pelo genial Ryuichi Sakamoto. Que, aliás, atua neste filme de Segunda Guerra do mestre Nagisa Oshima, o qual conta no elenco (e só no elenco, o que acho legal também em nível de desprendimento) e como ator principal David Bowie em espetacular atuação. A faixa-título é não só linda como um marco das trilhas sonoras feitas para cinema.


“Stories to Tell” – Flora Purim (1974)
Terceiro disco solo de Flora e segundo dela em terras norte-americanas. Ou seja, vindo um ano após o seu debut “Butterfly Dreams”, no mesmo ano de“Hot Sand”, do então marido Airto Moreira, e dois da estreia com Chick Corea na Return to Forever, “Stories...” a consolida como a musa do jazz brasileiro. Ainda por cima tem Carlos Santana, George Duke, Ron Carter e o próprio Airto compondo a “bandinha”. E que voz é essa a dela?! 




“Amor de Índio” – Beto Guedes (1978)
Dos discos mais célebres da chamada “segunda fase” do Clube da Esquina. A galera tá toda lá: Milton, Brant, Toninho, Tiso, Venturini, Tavinho, Caetano e, claro, Ronaldo Bastos, produtor, compositor com Beto da faixa-título e autor da icônica foto dele enrolado no cobertor usada por Cafi na arte da capa.



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa e fanpage Gira Brazil - Gira Música

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Winston McAnuff & Fixi – Festival MIMO – Praça Tiradentes – Ouro Preto/MG (30/08/2014)




Os três mandando ver
na histórica Praça Tiradentes
Sabe aquelas lances da vida que te surpreendem porque tu não tinhas prestado atenção na mensagem que o destino já tinha te dado? Pois a cenográfica Ouro Preto foi-me cenário para uma ocasião dessas. Afinal, só o destino explica porque Leocádia e eu cruzamos com aquela figura horas antes de iniciar o show que nos inebriaria e não o tenhamos reconhecido. Sim: topamos a centímetros com Winston McAnuff na histórica Praça Tiradentes durante uma de nossas caminhadas vespertinas pelas ruas da cidade. E mais: ele ficou nos mirando debruçado sobre uma mureta, com seus óculos escuros azuis e cabelos dread, como se nos convidasse para uma conversa, e... não o identificamos. Nem sequer puxamos a máquina fotográfica, que estava conosco!

Pois a nossa falta de oportunidade – e de informação –, talvez, não tenha sido à toa. Não sabíamos que aquela entidade negra que nos olhara tão de perto no local onde a plateia fica – e que, horas depois, seria por nós olhado daquele mesmo ângulo sobre o palco –, tratava-se de uma das lendas do reggae jamaicano, com passagem pela banda Inner Circle e de carreira solo consistente desde o final dos anos 70. Soma-se a isso o fato de que o jazzista Chick Corea, principal atração do Festival MIMO e motivo maior de termos ido até lá naqueles dias, cancelara seu show por não ter conseguido sair da Argentina em virtude da greve geral naquele país. Ou seja: não havíamos nos preparado para nenhuma outra programação. Mas, em contrapartida, se já soubéssemos o que presenciaríamos naquela noite não seria uma gratíssima surpresa assistir ao “Electric Dread”, como é apelidado, juntamente com outros dois (apenas dois!) músicos: o multi-instrumentista francês Fixi e o percussionista Marc Ruchmann. Somando, apenas três no palco. Mas tinham muitos ali, com certeza. Apoiado pelo espírito de Jah, a quem McAnuff invocou no começo da apresentação, eles deram um show memorável.
Fixi comandando a banda 
com seu acordeom

O show é baseado no álbum “A New Day”, projeto de McAnuff em colaboração com Fixi, de 2013. Aí começa a operar a benfeitoria do destino, pois tivemos a chance de ouvir as músicas do repertório primeiramente ao vivo, visto que, no estúdio, se não chegam a ser decepcionante, é bem menos impactante. Isso porque, ao vivo, o que se viu foi um trio totalmente tomado pelos sons, cada um a seu estilo, cada um com suas preciosidades.

Começando por Ruchmann, que mais parecia um monge tocador. Sentado ao fundo do palco de pernas cruzadas, ele combinava beat-box vocal com dois aparatos de bateria eletrônica e um prato em sua volta. Apenas. O suficiente para dar a impressão de que tinha todo o Olodum ali. Sua precisão e capacidade rítmica conseguiam imprimir com desenvoltura os mais variados climas e ritmos, indo do reggae ao dub, do punk rock ao trance. Já Fixi, arranjador e centro harmônico da banda, alternava piano, teclado e acordeom. Mas que acordeom! Parecia sair dali uns 20 instrumentos diferentes, de tão bem explorados o fole, o teclado e o diapasão. Além disso, o cara vibrava, dançava, girava alucinadamente a cabeça. Era contagiante sua entrega. E melhor: mantinha a base e não saía do tom jamais.

E o que falar de Winston McAnuff, então? Nossa: que cantor. Daqueles que cantam com a alma negra, como um Ray Charles ou Ibrahim Ferrer, mas que, acima de tudo, conhece a projeção da voz no ambiente ao vivo, sabendo usar as reverberações e extensões da própria emissão como poucos. Performático, lembrava, inevitavelmente, Bob Marley, haja vista a força espiritual e a influência que o “pai do reggae” tem na Jamaica. Mas não fica só nisso. Múltiplo e aberto a todos os ritmos do mundo, fez, com Fixi, o skank de Mandeville e o folk francês de Paris se aproximarem da tecno de Londres, do blues de St. Louis, do jazz de Chicago, do soul de Detroit, da polca Tcheca e até do baião nordestino!

McAnuff no palco do MIMO
sob a luz de Jah
A cada execução, íamos nos surpreendendo cada vez mais. Era uma melhor atrás da outra! Em “Garden of Love”, música de trabalho do disco, McAnuff remete ao fraseado de Bob e Tosh enquanto Fixi imprime-lhe um ar de folclore escandinavo, o mesmo com “1, 2, 3”, cujo riff de gaita é tão perfeitamente mantido que parece eletrônico, tal como a batida da percussão. “You and I”, funk com seu riff curto e repetitivo, é um James Brown afrobeat com ares de Jamiroquai e PIL. “Wha Dem Say”, outra espetacular, cadenciada e lírica, permitiu a McAnuff soltar o gogó sobre uma performance quase jazzística da dupla de instrumentistas. Já “Johnny” (personagem recorrente nas canções regueiras) é um misto de reggae e blues que, mais uma vez, deu a McAnuff a oportunidade de pôr o groove pelos pulmões, o que conquistou de vez a parcela do público que ainda se intimidara com o frio da noite de Ouro Preto.

A partir dali, com o público definitivamente cativado, foi só manter a mesma qualidade e alma. Exatamente o que aconteceu com “Heart of Gold”, de construção esquisita mas altamente pop; “A New Day”, linda, sustentada só no piano; e “Let Him Go”, com a qual o vocalista chamou a plateia para acompanhar no canto e nas palmas. Ainda “Things Happen”, drum’n’bass bem jazzy e minimalista e, para cair ainda mais nosso queixo, “Don’t Give Up” na qual Fixi simplesmente mandou no piano, na abertura, os acordes de “O Guarani”, do compositor brasileiro erudito Carlos Gomes!

No bis, mais surpresas. Depois de uma balada emocionante, tocaram, com ciência do que estavam fazendo, “If You Look”, um lindo baião-Gonzaga, que cresce no seu decorrer para se transformar em um trance atmosférico e sideral. Que musicalidade, que energia, que multiplicidade de ritmos. Se existe a world music, é aquilo que vimos. Momento realmente especial ter vivido aquilo sob a neblina cinematográfica da noite de Ouro Preto, atmosfera que nos impele, inevitavelmente, a certa sensação de ilusão. Chegamos a nos perguntar: “foi verdade?”. “O que o destino, Deus, Jah, quis nos dizer com o cancelamento do show de Corea, com aquela identificação de olhares que tivemos com McAnuff à tarde, e para coroar, com o maravilhoso show que assistimos?” Talvez as respostas nos faltem. Mas que foi verdade, foi. E foi demais.



terça-feira, 27 de setembro de 2016

Robert Wyatt - “Shleep” (1997)



Pela primeira vez, eu revi meu passado
e parecia tão inacessível,
e tudo o que eu tinha feito
- mesmo tendo gravado
 neste meio tempo – 
parecia tão distante do que eu era agora,
 que era a primeira experiência
que eu já tive na minha vida de nostalgia.”
Robert Wyatt,
sobre Shleep



Os Jogos Paralímpicos, ocorridos recentemente no Rio de Janeiro, trouxeram à tona o velho questionamento – muitas vezes, retórico e demagogo – das dificuldades e enfrentamentos que deficientes físicos têm de passar em suas vidas. Na arte, mesmo em tempos modernos como os de hoje, as barreiras são semelhantes. Quando se pensa sobre artistas famosos com deficiência logo vem à mente Stevie Wonder e Ray Charles, dois cegos que passaram por cima de seu problema físico por mérito, perseverança e, claro, talento. Mas outra cabeça genial também se enquadra nessa lista de artistas deficientes que souberam suplantar esse aspecto tanto pela superação quanto, igualmente, pela capacidade criativa. Está se falando do inglês Robert Wyatt, fundador e integrante da Soft Machine e um dos principais representantes da chamada cena de Canterbury, grupo de bandas e músicos do final dos anos 60/início dos 70 que misturavam com muita propriedade rock progressivo, psicodelia e jazz. Mas não só isso quando se fala de um criador de alta estirpe como Wyatt.

A inventividade harmonia e rítmica que Wyatt tirava da bateria na Soft Machine já denotava algo que seria determinante em sua obra solo a partir de 1º de julho de 1973. Pois neste fatídico dia, numa festa regada a muita droga, Wyatt, numa crise depressiva, se atira do terceiro andar de um prédio. Resultado: fica paraplégico. O que seria trágico para quem tem de usar as pernas para operar seu instrumento por completo foi transformado por Wyatt. Com dor e sacrifício, ele se reinventa como pessoa e como músico. Se sua figura hoje lembra a de um mago – barba branca e espessa, sobrancelhas angulosas e olhar firme –, não é coincidência. A expressão guarda as marcas de alguém que, talvez inconscientemente, tenha tido que buscar nas profundezas mais místicas de si próprio uma forma de fazer nascer um novo homem e artista diante da condição limitadora que a cadeira de rodas impõe. Impossibilitado de tocar bateria, ele, em contrapartida, especializa-se em vários outros aparatos musicais, tornando-se multi-instrumentista. Sua musicalidade provou, assim, ir além do instrumento em si, pois é de sua natureza, independente do timbre que produza ou da técnica que precise usar. Dentro de uma extensa e profícua discografia (tanto solo quanto em outros projetos), “Shleep”, de 1997, é uma joia que condensa seus melhores predicados.

O brilhante afro-pop “Heaps Of Sheeps” abre o disco em alto nível. Uma levada de guitarra soul, um baixo bem marcado e uma base de teclados norteiam esta embalada melodia, repleta de percussões e efeitos de sintetizador. Ademais, “Shleep” conta com a produção do mais habilidoso profissional das mesas de estúdio do rock internacional: Brian Eno. Artista de formação plural, alia sua sensibilidade e conhecimento musical e artístico a serviço do conceito dos trabalhos que produz, tornando-se, não raro, um coautor não creditado como tal – assim como ocorrera em “Zooropa”, do U2, ou “Dream Theory in Malaya”, de John Hassell. Mesmo também não coassinando este, é visível sua interferência na estrutura do repertório, na arquitetura sonora e nas marcantes participações, seja de seus teclados e sintetizadores, vocais ou arranjos. Ouvindo “Heaps...”, por exemplo, é impossível não lembrar-se de outras faixas de abertura de projetos de Eno, como “Home” (em “Everything That Happens Will Happen Today”, com David Byrne), “Lay my Love” (de "Wrong Way Up", com John Cale) ou “No One Receiving” (“Before and After Science”, solo). E como não perceber no refrão o toque de Eno no coro com aquele ar étnico? O vocal de Wyatt, entretanto, é um elemento único. Sua quase sufocada voz transmite ao mesmo tempo sapiência e sofreguidão.

“Shleep” segue com a engenhosidade harmônica das duas linhas de piano de “The Duchess” – uma em tempo 1 x 2 e outra 3 x 3, mas meticulosamente dessincronizadas –, que dão-lhe um caráter quase atonal. Lembra bastante a obscuridade da The Residents – banda, aliás, bastante influenciada por Wyatt. As frases do sax de Evan Parker, combinadas com uma flauta e o violino polonês de Wyatt, ao mesmo tempo emprestam dissonância e cores a esta canção de ninar macabra, que podia tranquilamente integrar a trilha de um filme de terror com criança. A atmosfera muda totalmente em “Maryan”, quando o trompete de Wyatt, sobre o dedilhar de um violão, começa a canção serpenteando acordes hispano-árabes. O djembê africano de Gary Azukx e o violino oriental de Chikako Sato adicionam-se. World music in natura. É quando entra a intrincada melodia de voz de Wyatt, a qual inclui a da esposa e parceira musical Alfreda Benge, formando a provavelmente mais complexa e bela canção do disco. Isso sem mencionar o solo de guitarra de outro fera que participa das gravações: o mestre Phil Manzanera. Tudo, claro, orquestrado pela maestria de Wyatt.

De fato, a inteligência musical de Wyatt sempre foi além do óbvio. Ligado às artes plásticas (é de sua autoria as pinturas e desenhos que ilustram todas as capas de seus discos), sua visão de arte vai além apenas dos sons. Por isso, sua música é tão completa e complexa. Do rock progressivo ele faz suscitar o dodecafonismo e a eletroacústica; sua leitura do jazz engloba a avant-garde e projeta o pós-jazz; a psicodelia não fica somente nos clichês, mas vai em busca de texturas próximas do concretismo, do minimalismo e do microtonalismo; as referências exóticas não se restringem apenas à música indiana ou oriental, mas bebem nos timbres e ritmos da Espanha muçulmana e da África negra e egípcia. “Was A Friend”, nessa proposta politonal e polirrítimica, é um jazz dissonante que quebra novamente o ritmo da sequência de faixas, o que, em termos de conceito de obra, é um expediente empregado por Eno na construção temática dos álbuns que produz afetuosamente aos amigos (“Everything...”, com Byrne, e “Outside”, com David Bowie, por exemplo, respeitam essa ordem).

Noutro destaque, a emocionante “Free Will And Testament” (“Livre vontade e testamento”), dá para captar na voz sentida e em registro agudo de Wyatt (de difícil afinação) o sofrimento pela condição da paraplegia, bem como a culpa pelo ato suicida que ainda o rondava mesmo quase 25 anos depois do acidente. “Vou ter a minha liberdade, mas dentro de certos limites/ Eu não posso desejar para mim ilimitadas mutações/ Eu não posso saber o que eu seria se não fosse ele/ Posso apenas imaginar a mim mesmo”. Um lamento do fundo da alma que gerou uma canção excepcional. Mudando de sintonia de novo, o pós-jazz “September The Ninth” remonta a Chick Corea de "Mad Hatter", a Carla Bley de “Escalator Over the Hill” e até ao microtonalismo de Harry Partch na ópera-lóki “Revelation in the Courthouse Park”.

“Alien”, composição de Wyatt e Alfreda, tem claramente o dedo de Eno no arranjo. Basta notar os característicos teclados espaciais ao fundo, os mesmos que se ouvem lá em "Low", de Bowie, e em outros vários trabalhos de Eno, principalmente os de ambient music. Aos belos vocais longilíneos de Wyatt somam-se percussões africanas bastante rítmicas e um baixo alto e bem marcado, revelando aos poucos outra grande faixa do álbum – a qual retraz, agora, a pegada world music experimentada por Eno com os Talking Heads em "Remain In Light", de 1979.

“Out Of Season”, intensa, também interliga vários pontos díspares: música de teatro, atonalismo, Debussy, jazz modal. E como se tudo estivesse propositadamente disperso, fora da estação. Porém, na montanha-russa proposta pelo autor, logo há uma nova tentativa de encontro de um centro tonal (e emocional) mais acolhedor, o que se nota na colorida – mas não menos dispersa –  “A Sunday in Madrid”. Aqui, Wyatt narra uma onírica e viagem à capital espanhola, numa letra de grande teor literário: “Pa chega à cidade das portas fechadas/ É recebido por mineiros das Astúrias/ Sua limusine estriada guarda as últimas brilhantes gavetas-caixas gigantes/ Amontoados para o calor/ Ele é depositado em sua câmara interna/ Mais tarde, Pa encontra o urso representando uma árvore/ Para confundir sentido de cheiro dos cães dos portões do inferno...”

Mais uma ótima é “Blues In Bob Minor”, um blues embalado que é levado numa base de órgão. O canto ininterrupto de Wyatt conta outra longa história, esta da existência sem sentido dos personagens Roger e Martha em meio à célere e burocrática vida urbana. Nessa, a guitarra carregada do ex-Roxy Music Manzanera faz um duo de improviso com a jazzística de Philip Catherine, noutro momento especial do disco. “The Whole Point Of No Return”, composição do amigo Paul Weller (Jam e Style Council), é uma pequena vinheta altamente lírica que encerra o disco numa versão tão personalizada que em nada lembra a original, de 1982. A base se sustenta num coro ao estilo do canto medieval, soturno e litúrgico, assinado pelo próprio Weller. O piano de Wyatt solta notas esparsas, dando a liberdade perfeita para seu trompete solar, que desfecha “Shleep” com a mesma complexidade e beleza que o perfazem desde o início.

Da discografia de Wyatt, muitos destacariam “Rock Bottom”, de 1973, como o pesquisador musical italiano Piero Scaruffi, que o coloca como o 2º maior álbum de rock de todos os tempos e entre dos 15 trabalhos mais importantes da música mundial na segunda metade do século XX. Não é para menos: gravado imediatamente após o acidente, é um registro fiel e pungente do então novo Robert Wyatt que o destino reservara (o título, pertinentemente quer dizer “fundo do poço”). Entretanto, o também celebrado “Shleep”, além de contar com a mão mágica de Eno na produção, é resultado de um artista, então aos 52 anos, maduro, tanto no que se refere à sua música e arte quanto a ele próprio enquanto pessoa e cadeirante. “Levei muito tempo para me recuperar do acidente”, confessou em entrevista na época do lançamento de “Shleep”. As questões da depressão estão igualmente presentes, bem como a reflexão de quem se é a busca de significados maiores. Se Wyatt chegou às respostas, só ele pode confirmar. O disco, no entanto, dá pistas desse olhar autocurador que ele lançou para dentro de si. Terapêutico para ele e um deleite para quem escuta.
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FAIXAS:
1. Heaps Of Sheeps (Alfreda Benge/Robert Wyatt) - 4:56
2. The Duchess - 4:18
3. Maryan (Philip Catherine/Wyatt) - 6:11
4. Was A Friend (Hugh Hoppe/Wyatt) - 6:09
5. Free Will And Testament - 4:13
6. September The Ninth (Benge/Wyatt) - 6:41
7. Alien (Benge/Wyatt) - 6:47
8. Out Of Season (Benge/Wyatt) - 2:32
9. A Sunday In Madrid - 4:41
10. Blues In Bob Minor - 5:46
11. The Whole Point Of No Return (Paul Weller) - 1:25

todas as composições de Robert Wyatt, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO: