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sábado, 18 de novembro de 2017

Os 10 melhores filmes de Martin Scorsese



Um dos maiores realizadores vivos do cinema mundial chega aos 75 anos. Não seria necessariamente motivo de comemoração, afinal, não são poucos cineastas que, longevos, atingiram idades semelhantes nos últimos tempos. Porém, está se falando de Martin Scorsese, o mestre do cinema norte-americano, ao mesmo tempo um de seus principais renovadores e um autor de estilo muito próprio e cativante, que une a cultura pop, visíveis influências escolas de grandes diretores do cinema (Kazan, Kurosawa, Kubrick, Ford, Leone) e apuro técnico muitas vezes inigualável.

Pra comemorar os 75 anos de Scorsese, completos no último dia 17, nosso blogger Paulo Moreira escolheu seus 10 filmes preferidos do mestre, cada um com com pequenos comentários:


por Paulo Moreira

1 – OS BONS COMPANHEIROS ("Goodfellas", 1990)

The fucking best!! Perfeição a cada fotograma. TUDO é bom até a mini-participação do Michael Imperoli dos Sopranos como o cara que servia os drinks dos mafiosos e é morto pelo Joe Pesci na mesa de jogo. Trilha-sonora de luxo!

Scorsese com o elenco de 'Goodfellas'

Como ator em 'Taxi Driver'
2 – TAXI DRIVER (1976)


A paranoia americana e novaiorquina em seu apogeu. Jodie Foster nunca foi melhor do que aqui, assim como De Niro.


3 – CAMINHOS PERIGOSOS ("Mean Streets", 1973)

Onde o cinema do Scorsese começa a se mostrar. Outra trilha maravilhosa.

4 – DEPOIS DE HORAS ("After Hours", 1985)

Kafka em NYC. Precisa dizer mais?? E ainda tem uma cena que tira sarro da minha ídola suprema, Joni Mitchell. Griffin Dunne no maior papel de sua diminuta carreira.

5 – TOURO INDOMÁVEL ("Raging Bull, 1980)

Fotografia em P&B pra não chocar com tanto sangue - mal sabia ele que os Sexta-Feiras 13 iriam dar um banho de sangue sem pudor no público. De Niro engorda, emagrece, engorda, emagrece e dá um show. Cathy Moriarty fazendo seu próprio papel de loura platinada entediada. Gostossíssima!!

Com De Niro no ringue-cenário

Outra ponta como ator
6 - O REI DA COMÉDIA ("The King Comedy", 1983)


Rupert Pupkin é o fã maluco do Jerry Lewis. De Niro sensacional e a Sandra Bernhardt incrível. Porque esta mulher não deu certo?

7 – CASSINO ("Casino", 1995)

"Goodfellas" parte DOIS com a atuação estelar da Sharon Stone fazendo a mais louca das mulheres loucas. De Niro & Pesci se amando e se odiando.


Com DiCaprio e Margot no set
8 – O LOBO DE WALL STREET ("The Wolf of Wall Street", 2013)


Uma das cenas mais engraçadas e trágicas do cinema ao mesmo tempo: Leonardo DiCaprio chapadaço tentando chegar em seu carro e não consegue descer a escada.

9 – OS INFILTRADOS ("The Departed", 2006)

Duelo de titãs: DiCaprio & Nicholson mais Martin Sheen, Matt Damon e Mark Wahlberg de troco.

10 – CABO DO MEDO ("Cape Fear", 1991)

Lembro quando saiu este filme o Pedro Ernesto - ele mesmo, o "Demóis" - dizia que tinha de trocar o nome pra ME CAGO DE MEDO!! HAHAHAHAH O casting é outra obra: o loucaço Nick Nolte fazendo o papel de bundão; a grande Jessica Lange da esposa mala, a chatinha Juliette Lewis da adolescente putinha e o De Niro, aqui sim como o Diabo, muito melhor do que no chatérrimo "Coração Satânico".


Conversando com De Niro nos bastidores de 'Cabo do Medo'

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

domingo, 9 de agosto de 2020

Claquete Especial Dia dos Pais - 9 filmes sobre paternidade


Aproveitando a data comemorativa do Dia dos Pais, lembramos aqui de filmes que, sob enfoques distintos entre si, abordam o tema da paternidade. Produções de diferentes nacionalidades e épocas que, a seu modo, trazem, por conta das peculiaridades culturais e históricas, também diferentes formas de expressão daquilo que é ser pai. Porém, uma coisa fica evidente em todos estes títulos: o amor. Seja incondicional, conflituoso, arrependido, culpado ou manifesto, está lá sentimento que norteia a relação entre eles, pais, e seus filhos. 

Fazendo uma panorâmica, vê-se que há menos filmes significativos sobre pais do que de mães. Pelo menos, aqueles em que o pai é protagonista e não simplesmente uma figura acessória. Até por isso, torna-se interessante levantar uma listagem como esta no dia dedicado a eles. Escolhemos 9 títulos, afinal, estamos no dia 9. E detalhe: selecionamos apenas filmes premiados, desde Oscar até premiações estrangeiras ou nacionais. Indicações imperdíveis aos que ainda não viram, lembrança bem vinda aos que, como eu, terão a felicidade de revê-los - de preferência, com seus pais.


PAI PATRÃO, irmãos Taviani (Itália, 1977)

Baseado no romance autobiográfico de Gavino Ledda, conta a história da dura infância e adolescência do escritor quando, aos seis anos, é obrigado pelo pai a abandonar os estudos para trabalhar no campo. Todas as suas tentativas de mudar de vida são abortadas pela ignorância e violência do patriarca. Aos 20 anos, ainda analfabeto, Gavino acaba entrando para o exército, onde adquire, enfim, algum conhecimento. Renunciando à carreira militar, ele volta à sua terra para seguir estudando. No entanto, o choque com o pai é inevitável.

Explorando a linda paisagem e luz naturais da região da Sardenha, “Pai Patrão” é um tocante e contundente drama que põe a nu extremos da relação entre pais e filhos, fazendo-se psicanalítico mesmo naqueles confins da Itália. O pai (muito bem interpretado por Omero Antonutti) é uma representação do quanto os instintos do bicho homem falam mais alto quando a ignorância impera. O amor, existente – e contraditoriamente motor disso tudo –, submerge diante do medo e da insegurança de uma pessoa despreparada para aspectos da paternidade. A abordagem dos Taviani é crítica ao ressaltar o comportamento de vários personagens muito próximo ao de animais. Também, surpreendem ao desviar em alguns momentos o foco dos protagonistas, mostrando ações e pensamentos de outros que os rodeiam, evidenciando sentimentos muito parecidos com os de Gavino e de seu pai.

Gavino, já adulto, encara seu pai: amor e ódio
Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Pai Patrão” foi a afirmação dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani como importantes cineastas da cinematografia moderna italiana a partir dos anos 70, uma vez que tinham como herança a responsabilidade de fazer jus à obra de gênios já consolidados como Fellini, Antonioni e Pasolini. Os Taviani, no entanto, cunharam um estilo mais próximo ao dos neo-realistas, principalmente De Sica, no engenhoso jogo de grandes e médios com primeiros planos, adicionando a isso um modo sempre muito peculiar de contar as histórias, este, próprio do cinema moderno.


A FONTE DA DONZELA, de Ingmar Bergman (Suécia, 1960)

Na Suécia do século XIV, um simples casal cristão dono de uma propriedade rural incumbe a filha Karin (Birgitta Pettersson), uma adolescente pura e virgem, de levar velas para a igreja da região. No caminho, ela é estuprada e assassinada por dois pastores de cabras. Quando a noite chega, ironicamente os dois vão pedir comida e abrigo para os pais de Karin, onde são recebidos cordialmente. Porém, ao descobrirem a tragédia, os pais são tomados pelo sentimento de ódio.

Temas recorrentes na obra do sueco, a morte, a religiosidade e a compaixão servem de tripé para essa história magistralmente dirigida por Bergman. O contraste entre luz e sombra da fotografia em preto-e-branco do mestre Sven Nykvist realça, principalmente a partir da segunda metade da fita, a polaridade emocional da trama: bem e mal, Deus e Diabo, brutalidade e candura, vingança e perdão, vida e morte. O dilema recai sobre o pai, interpretado pelo lendário Max Von Sydow (recentemente morto, no último mês de março), que, com o coração dilacerado e pressionado pela mulher a matar os criminosos, perde a cabeça. E sua religiosidade? E a culpa em sujar-se de sangue? E a dor sua e da esposa? Isso aplacará a perda? Como administrar tudo isso?

filme "A Fonte da Donzela"

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Globo de Ouro na mesma categoria, esta obra-prima de Bergman valoriza, como em “Pai Patrão”, os elementos da natureza (água, pedra, sol, terra) como representação dos desafios essenciais da vida, mas difere do filme dos Taviani no tratamento da relação pai-filho. Se no outro a questão centra-se na distância emocional entre os personagens, aqui, é a morte que se impõe como separação. Por este ângulo, mesmo num filme transcorrido na Idade Média, “A Fonte da Donzela” é atualíssimo, pois traz um dilema muito comum na sociedade urbana atual: o de como os pais se posicionam diante da perda de um filho vitimado pela violência. Afinal, trata-se de uma obra incrível e significativa a qualquer época.


STALKER, de Andrei Tarkowski (Rússia, 1979)

Em um país não nomeado, a suposta queda de um meteorito criou uma área com propriedades estranhas, onde as leis da física e da geografia não se aplicam, chamada de Zona. Dentro dela, segundo reza uma lenda local, existe um quarto onde todos os desejos são realizados por quem pisa seu chão. Com medo de uma invasão da população em busca do tal quarto, autoridades vigiam o local e proíbem a entrada de pessoas. Apenas alguns têm a habilidade de entrar e conseguir sobreviver lá dentro: os chamados "stalkers". É aí que um escritor, um cientista querem entrar e contratam um stalker para guiá-los lá dentro. No caminho até o quarto, vão passar por rotas misteriosas e muitas vezes, mutáveis, que simbolizam uma ida ao subconsciente e a verdades de suas próprias naturezas nem sempre afáveis. Acontece que este stalker (Alexandre Kaidanovski) quer salvar a sua filha mutante e desenganada alcançando o misterioso quarto.

Talvez o melhor filme de Tarkowski, “Stalker” é uma ficção-científica hermética e reflexiva sobre o homem e a sua existência, sendo a questão da paternidade a chave para tal reflexão. Trazendo a atmosfera onírica comum aos filmes do russo, vale-se do fantástico de “Solaris” (1971), porém burilando-lhe o cerebralismo existencial. A narrativa, transcorrida num clima de suspensão do tempo/espaço, tem como motor o amor de um pai desesperado em salvar sua filha. Ou seja: assim como em “Solaris”, a percepção difusa da realidade é totalmente explicável pelo estado de angústia vivido pelo protagonista. É como se, participante de sua busca, o espectador também adentre naquele mundo surreal. A sempre brilhante fotografia sombreada, o cenário apocalíptico e o recorrente uso de elementos sonoro-visual-narrativos como a água (símbolo da vida) unem-se ao ritmo muito peculiar, pois contemplativo e poético, de Tarkowski.

Os três homens adentram a Zona, mas é o pai que carrega a motivação mais genuína
Vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes de 1980, este filme ímpar na história do cinema alinha-se, em verdade, com outros filmes de arte do gênero ficção científica produto do período de Guerra Fria, em que a noção temporal é imprecisa, a humanidade jaz desenganada, o estado comprometeu-se e os avanços tecnológicos, promessas de avanço no passado, não deram tão certo assim no presente. Haja vista “Alphaville” (Godard, 1965), “Laranja Mecânica” (Kubrick, 1972) e “Fahrenheit 451” (Truffaut, 1966).  Esse compromisso de crítica recai ainda mais sobre Tarkowski como cidadão da Rússia, um dos pilares da tensão planetária junto com os Estados Unidos.


KRAMER VS. KRAMER, de Robert Benton (EUA, 1979)

Se já falamos da questão paterna nos confins da Itália rural, na Idade Média e num lugar imaginário, aqui o tema é colocado na modernidade urbana norte-americana. No enredo, Ted Kramer (Dustin Hoffman), leva seu trabalho acima de tudo, tanto da família quanto de Joanna (Maryl Streep), sua mulher. Descontente com a situação, ela sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted, então, tem que se deparar com a necessidade de cuidar de uma vida que não apenas a dele, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com o filho e as tarefas domésticas. Quando consegue ajustar a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted porém se recusa e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy.

“Kramer vs. Kramer” é arrebatador. Começando pelas interpretações dos magníficos Hoffman e Maryl. No entanto, mesmo com o talento que os é inerente, não estariam tão bem não fosse o roteiro contundente, que aprofunda o drama familiar e social aos olhos do espectador. Os diálogos são tão reais e bem escritos, que naturalmente transportam o espectador para situações conflituosas da vida cotidiana, gerando identificação com os personagens. Quantos pais já não foram despedidos do emprego justo no momento em que estava tentando se erguer. E qual pai não ficaria desesperado e sentindo-se culpado por um acidente com seu filho, principalmente quando o acontecido pode ser usado pela mãe para justificar a perda da guarda?

Ted aprendendo e gostando de ser pai
Tamanho êxito como obra não passou despercebido. O filme foi o principal vencedor do Oscar de 1980, abocanhou os de Melhor Filme, Diretor, Ator, Atriz Coadjuvante e Roteiro Adaptado, além de vários Globo de Ouro e outros festivais. Exemplo de drama da cinematografia norte-americana, uma vez que o filme de Robert Benton consegue unir atuações muito bem dirigidas, um roteiro “europeizado”, visto que forte e realista – feito raro em Hollywood – e um enredo tocante, mas que facilmente poderia escorregar para o piegas ou uma enfadonha DR. Filmado no mesmo ano de “Stalker”, traz a figura do pai em um momento de autorreconhecimento desta condição, ao passo de que o filme russo, esta condição já foi compreendida. No entanto, em ambas as produções, a distância entre as culturas são movidas pela mesma busca de um pai pela sobrevivência do filho.


A BUSCA, de Luciano Moura (Brasil, 2012) 

Filme brasileiro relativamente recente, renova o olhar para o problema da distância entre pais e filhos (estado inicial e propulsor da narrativa de “Kramer...”) por questões sentimentais não resolvidas ou dialogadas. Theo Gadelha (Wagner Moura) e Branca (Mariana Lima) são casados e trabalham como médicos. O casal tem um filho, Pedro (Brás Antunes), que desaparece quando está perto de completar 15 anos. Para piorar a situação, Theo fica sabendo que Branca quer se separar dele e que seu mentor (Germano Haiut) está à beira da morte. Theo sai em busca do filho sumido, viagem que o impele a se redescobrir e a ressignificar a relação com o filho.

Road-movie muito bem realizado, “A Busca” tem na atuação de Moura, principalmente, a grande força da obra. Ele transmite ao espectador desde a irascibilidade e insensibilidade de um homem controlador e fechado em si próprio até, conforme o trama se desenrola nos lugares que percorre em busca do filho, passar pelo desespero, a frustração, a esperança e o encontro consigo mesmo. Todos estes momentos perfeitos por uma grande solidão emocional, estado ao qual o caminho lhe dá condições de repensar e transformar.

Wagner Moura em etapa do trajeto em busca de seu filho e de si mesmo
Vencedor do Prêmio do Público no Festival do Rio 2012, “A Busca” lembra o recorrente mote narrativo de filmes iranianos, a se citarem “Vida e Nada Mais”, “Gosto de Cereja”, “O Círculo” e “O Balão Branco”. Sempre há algo a se buscar, seja alguém ou algo que não se sabe exatamente ao certo. Metáfora da vida, essa busca simboliza a passagem do tempo e a (mesmo que não acontece durante o filme) inevitável morte, que um dia alcançará a todos independentemente da rota. Essa simbologia ganha ainda mais realce pelo fato de se tratar da genealogia sanguínea, ou seja: a única possibilidade de não-morte. O longa de Luciano Moura reafirma o entendimento de que, mais do que o final, o importante mesmo é o que se faz na jornada.


IRONWEED, de Hector Babenco (EUA, 1987)

Francis Phelan (Jack Nicholson) e Helen Archer (Maryl Streep, olha ela aí de novo!) são dois alcoólatras que vivem mendigando nas ruas tentando sobreviver às lembranças do passado: Ela, deprimida por ter sido uma cantora e pianista cheia de glórias e hoje estar na sarjeta. Já o caso dele é o que tem a ver com o tema em questão: o motivo por viver como um vagabundo é a não superação do trauma de ter sido o responsável pela morte do filho, ao deixá-lo cair no chão ainda bebê 22 anos antes. Ao mesmo tempo, Francis precisa voltar à realidade, e conseguir um emprego para dar um pouco de conforto à companheira Helen, já muito doente e enfraquecida. E o sentimento de pai do protagonista é, ao mesmo tempo, pena e salvação, uma vez que se configura como a única força capaz de tirá-lo da condição de mendicância.

Ainda mais do que “Kramer...”, “Ironweed” é um filme sui generis na cinematografia dos Estados Unidos, e isso se deve, certamente, ao olhar sensível do platino-brasileiro Hector Babenco. Com o aval dos estúdios para fazer uma produção própria em terras yankees após o grande sucesso do oscarizado “O Beijo da Mulher Aranha”, produção financiada com dinheiro norte-americano mas bastante brasileira em conteúdo e abordagem, o cineasta transpõe para as telas – com a habilidade de quem havia extraído poesia do abandono infantil – o romance de William Kennedy e dá de presente para dois dos maiores atores da história do cinema um roteiro redondo. Isso, ajudado pela fotografia perfeita do craque Lauro Escorel e edição de outra perita, Anne Goursaud, responsável pela montagem de filmes com “Drácula de Bram Stocker” e “O Fundo do Coração”, ambos de Francis Ford Coppola.

cenas de "Ironweed"

“Ironweed” levou o prêmio da New York Film Critics Circle Awards de Melhor Ator para Nicholson, embora tenha concorrido tanto a Oscar quanto Globo de Ouro. Babenco foi um cineasta tão diferenciado que, conforme contou certa vez, Nicholson, bastante sensibilizado com o filme que acabara de realizar, procurou-o um dia antes da estreia e pediu para ir à sua casa para o reverem juntos e que, durante aquela sessão particular, segurou bem firme na mão de Babenco e não a soltou até terminar.


À PROCURA DA FELICIDADE, de Gabriele Muccino (EUA, 2007)

Chris (Will Smith) enfrenta sérios problemas financeiros e Linda, sua esposa, decide partir e deixá-lo. Ele agora é pai solteiro e precisa cuidar de Christopher (Jaden Smith), seu filho de 5 anos. Chris tenta usar sua habilidade como vendedor de aparelhos de exames médicos para conseguir um emprego melhor, mas só consegue um estágio não remunerado numa grande empresa. Seus problemas financeiros, inadiáveis, não podem esperar uma promoção nesta empresa e eles acabam despejados. Chris e Christopher passam, então, a dormir em abrigos ou onde quer que consigam um refúgio, como o banheiro da estação de trem. Mas, apesar de todos os problemas, Chris continua a ser um pai afetuoso e dedicado, encarando o amor do filho como a força necessária para ultrapassar todos os obstáculos.

Se é difícil a vida de um pai solteiro na América urbana, como em “Kramer...”, imaginem um jovem-adulto negro e pobre 30 anos atrás? Baseado na história real do empresário Chris Gardner, este comovente filme tem alguns trunfos em sua realização. Primeiramente, o de trazer à luz a superação individual de um negro na sociedade norte-americana e no meio corporativo capitalista, ainda hoje majoritariamente dominado por brancos. Segundo, por revelar Jaden, filho de Will na vida real que, além de uma criança graciosa, é talentoso, vindo a lograr uma carreira de sucesso a partir de então a exemplo do pai, também um talento mirim no passado. Por fim, o êxito de consolidar Will como um dos mais importantes nomes de sua geração, daqueles Midas de Hollywood capazes de fazer brilhar onde quer que ponham a mão.

Will e Jaden: pai e filho no cinema e na vida real
Além de indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro, “À Procura da Felicidade” faturou o NAACP Image Award de Melhor Filme mas, principalmente, premiou pai e filho por suas maravilhosas atuações. Will, o Phoenix Film Critics Society Awards. Já o pequeno Jaden levou não só este como o MTV Movie Award de Melhor Revelação. A sintonia entre pai e filho na frente e atrás das câmeras é captada com delicadeza pelo cineasta italiano Gabriele Muccino, que se valeu desta química para transpor para o cinema esta história inspiradora para qualquer pessoa, quanto mais, para um pai. 


UP: ALTAS AVENTURAS, de Pete Docter (EUA, 2009)

Carl Fredricksen é um solitário idoso vendedor de balões que está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie. Após um incidente, Carl é considerado uma ameaça pública e forçado a ser internado. Para evitar que isto aconteça, ele põe balões em sua casa, fazendo com que ela levante voo e vá em direção a Paradise Falls, na América do Sul, onde ele e Ellie sempre desejaram morar. Porém, Carl descobre que um “problema” embarcou junto: Russell, um menino de 8 anos.

A divertida e tocante animação, dirigida pelo assertivo Pete Docter (dos dois primeiros “Toy Story” e “Wall-E”), é das mais felizes realizações da Disney/Pixar. Acertos técnicos inquestionáveis como é de costume ao megaestúdio, mas principalmente, no enredo e nas metáforas que suscita. A simbologia do voo como elevação espiritual, da velhice e a proximidade com a morte é uma delas, bem como a casa como representação do corpo e daquilo que há no interior de cada um. Mas a trama toca também na questão da amizade, da lealdade e da paternidade, mas não necessariamente sanguínea. O ranzinza Carl, contrariado de princípio com a presença de Russell, vai se afeiçoando ao menino e compreendendo a importância do papel e da figura para este de um pai, o qual, ocupado com sua vida, pouco lhe dá atenção. As altas aventuras vividas por eles provam o quanto o pai também pode ser o que adota. Não no papel, mas no sentido mais emocional da palavra. Com o coração. O garoto, por sua vez, traz para o melancólico cotidiano de Carl, além de confusões – afinal, criança dá trabalho também – vida. Ah, e nisso inclui também a tiracolo um cãozinho, o simpático (e falante!) Dug.

O trio impagável de "Up": paternidade de quem adota com o coração
“Up” ganhou Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme de Animação e Melhor Trilha Sonora (Michael Giacchino), e chegou a concorrer a Oscar de Filme com títulos como “Guerra ao Terror” (vencedor), “Bastardos Inglórios”, “Avatar” e “Preciosa”, um feito para uma animação que seria igualado apenas por “Toy Story 3”, um ano depois. Uma qualidade do filme é que, devido à sua abordagem fantástica e resolução da trama, dificilmente terá uma continuidade, que, assim como acontece com várias outras animações, seguidamente entregam a primeira realização pela inconsistência e pela mera repetição caça-níquel. Vale muito também a pena assistir a versão brasileira dublada, que tem Chico Anysio impagável como Carl Fredricksen em um dos últimos trabalhos do humorista antes de morrer.


RAN, de Akira Kurosawa (Japão/França, 1985)

Adaptação de “Rei Lear”, de William Shakespeare, retrata de forma épica e brilhante o Japão feudal do século XVI, onde um velho senhor da guerra Hidetora, patriarca do clã Ichimonji (Tatsuya Nakadai), renuncia ao poder, entregando o seu império e conquistas aos três filhos: Taro, Jiro e Saburo. Tarô, o mais velho, seguindo a tradição do patriarcado japonês, torna-se o líder do clã e recebe o Primeiro Castelo, centro do poder, ficando Jiro e Saburo, respectivamente, com o Segundo e o Terceiro Castelo. Hidetora retém para si o título de “Grande Senhor” para permanecer com os privilégios Contudo, ele subestima como o poder recém-descoberto dos filhos irá corrompê-los e levá-los a virarem-se uns contra os outros. 

Obra-prima, “Ran” é mais uma adaptação de Shakspeare que Akira Kurosawa promoveu de forma pioneira no cinema japonês – assim como para com outros autores não-orientais como Dostoiévski, Gorky e Arsenyev. Porém, desta vez em cores, diferentemente do que fizera em 1957 adaptando “Macbeth” em “Trono Manchado de Sangue”, o que amplia a magnífica fotografia em grandes planos, o desenho de cena primoroso, os figurinos em que os tons simbolizam estados psicológicos e cenografia que remete ao milenar teatro japonês.

trailer de "Ran"

“Ran” levou o Oscar de Melhor Figurino e concorreu a Melhor Direção de Arte, Fotografia e Diretor, sendo a primeira e última vez que Kurosawa seria nomeado pela Academia. A tragédia teatral ganha uma dimensão ainda mais bela na tela grande, mais do que adaptações anteriores da mesma peça, ao retratar os desacertos internos dos Ichimonji, evidenciando um problema recorrente em famílias poderosas, que é a briga pelo poder e o desafio à autoridade e figura do pai. Numa produção digna do anseio de seu realizador, "Ran" revela conflitos e sentimentos muito genuínos como inveja, cobiça e orgulho e questionando a ancestralidade como formas de manutenção (ou não) do sangue.


Daniel Rodrigues
com colaborações de Leocádia Costa e Cly Reis


sábado, 2 de junho de 2018

"Esculpir o Tempo", de Andrei Tarkovski - ed. Martins Fontes (1990)



"Qual é a essência do trabalho de um diretor?
 Poderíamos defini-la como 'esculpir o tempo'.
 Assim como o escultor toma um bloco de mármore e,
guiado pela visão interior de sua futura obra,
 elimina tudo que não faz parte dela
- do mesmo modo, o cineasta, a partir de um 'bloco de tempo'
constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos,
corta e rejeita tudo aquilo que não necessita,
 deixando apenas o que deverá ser elemento do futuro filme,
o que mostrará ser um componente essencial
da imagem cinematográfica."
Andrei Tarkovski




Grande admirador que sou da obra de Andrei Tarkovski, fiquei imediatamente interessado no livro "Esculpir o Tempo", de autoria do próprio cineasta, assim que o descobri. Escrito no período em que as atividades profissionais do cineasta russo estavam suspensas e entre intervalos de filmagens, "Esculpir o Tempo" repassa praticamente toda a produção cinematográfica do diretor trazendo curiosidades, informações, reflexões e revelações acerca de toda sua obra, fotos de filmes, trechos de roteiros, análises de obras de outros cineastas como Bresson, Bergman e Kurosawa, além de belíssimos poemas de seu pai, Arseni Tarkovski.
Além da expectativa por ver revelados pormenores e particularidades de uma filmografia tão rica, tinha especial curiosidade pelos símbolos recorrentes em seus filmes como água, cavalos, vento, no que acabei, de certa forma, vendo frustradas minhas intenções de saciá-la mas ao mesmo tempo me sentindo valorizado na condição de espectador, por conta da naturalidade com que o diretor trata tais elementos, não atribuindo-lhes senão, na maior parte das vezes, nenhuma característica que não suas próprias belezas e fascínios naturais ("A chuva, o fogo, a água, a neve, o orvalho, o vento forte - tudo isso faz parte do cenário material em que vivemos; eu diria mesmo da verdade de nossas vidas (...) Não estou tentando me esquivar à minha plateia, ou tentando ocultar do espectador alguma intenção secreta particular: estou recriando meu mundo com detalhes que me parecem expressar com mais exatidão e plenitude o sentido indefinível da nossa existência."). Mas ainda assim, dando margem a possíveis interpretações, Tarkovski mostra-se extremamente generoso e respeitoso com compreensões diversas que seus espectadores curiosos e interessados possam vir a ter em relação não só destes elementos como de seus filmes em si ("O autor não pode esperar que sua obra seja entendida de uma forma específica e de acordo com a percepção que tem dela. Tudo o que pode fazer é apresentar sua própria imagem do mundo, para que as pessoas possam olhar esse mundo através dos seus olhos e se deixem impregnar por seus sentimentos, dúvidas e ideias."); e ao contrário, severo em relação àqueles pretensiosos, levianos ou preguiçosos que não buscam significados e conteúdo dentro de sua obra. Tal postura tão aberta em relação à interpretação, que poderia sinalizar para alguém mais precipitado uma forma de defesa de um artista perdido que na verdade não tivesse, nem ele próprio, uma ideia clara sobre o que colocara na tela, é facilmente rebatida pela clareza com que suas concepções artísticas e conceituais são descritas no livro e a coerência entre estes conceitos e sua produção.
A maneira como Tarkovski vê cinema, vê a arte, como encara seus compromissos enquanto cineasta, enquanto homem e o que pretende transmitir, é algo fascinante e só valoriza ainda mais sua obra ("Um artista que não tenta buscar a verdade absoluta, que ignora os objetivos universais em nome de coisas secundárias, não passa de um oportunista."; "O poeta pensa por imagens, com as quais, ao contrário do público ele pode expressar sua visão do mundo. É óbvio que a arte não pode ensinar nada a ninguém, uma vez que em quatro mil anos, a humanidade não aprendeu nada."). Suas concepções, suas pretensões artísticas, seu perfeccionismo, seu amor à arte são tão verdadeiros e admiráveis que chegam a deixar um cinéfilo, fã de seu trabalho, envergonhado por assistir a tanta porcaria que ainda temos coragem de chamar de filmes. Mas... a gente não tem vergonha na cara mesmo e acaba indo ver "Vingadores: Guerra Infinita" e ainda sai achando tudo muito bom. Perdão, Tarkovski, perdão.



Cly Reis

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Ryuichi Sakamoto - "Beauty" (1989)

 

"O mundo dá adeus comovido a um dos seus maiores músicos."
Caetano Veloso

“O que eu quero fazer agora é música livre das restrições do tempo.”
Ryuichi Sakamoto

Como pode a gente se apegar a alguém que nunca se viu pessoalmente – nem sequer através da distância plateia/palco como se dá a artistas a que se assiste – e que está a quilômetros de ti, noutro país? Neste caso, não somente noutro país, mas ainda mais longe, noutro continente, no outro lado do mundo. No Japão. Ryuichi Sakamoto era, é, como um parente sanguíneo na minha casa. Ele é seguidamente convidado a entrar, sentar-se ao sofá, estender-se na cama, a cozinhar ouvindo música. Sempre aceitou os convites com a gratidão e a sapiência calma dos orientais. Embora toda esta intimidade, obviamente, o parentesco não existe. Nem sequer, como abri dizendo, conheci-o pessoalmente quando em vida - quanto menos conhecemo-nos, de ele e eu reconhecerem-se mutuamente como fazem os próximos. Eu, brasileiro fruto da África e da Europa. Ele, japonês, filho de dinastias orientais longevas.

Então, como se explica tamanha familiaridade, tamanha cumplicidade? Bastam poucas audições de sua grandiosa e universal música para se entender. Afora a proximidade dele com a música daqui do Brasil, a qual não apenas admirava como atuava a se ver pelas parcerias com Caetano Veloso, Arto Lindsay, Marisa Monte, Jacques Morelembaum e outros, a obra de Sakamoto, mesmo as mais identificavelmente orientais, pertencem ao Planeta. Até mesmo quando diversas vezes usou os elementos folclóricos típicos do Japão em sua música, Sakamoto o fez à sua maneira: abarcante, cosmopolita, conectada, democrática, inclusiva. Soava japonês, mas africano, americano, indígena, nórdico. Soava a todos os povos. 

Sakamoto, de fato, são muitos. O Sakamoto do final dos anos 70, que ajudou a cunhar o synth pop e a new wave com a precursora Yellow Magic Orchestra e que tanto inspirou grupos do Ocidente como Cabaret Voltaire, Human Leaugue, New Order, Depeche Mode. O Sakamoto maestro, que regeu a Filarmônica de Tóquio. O Sakamoto dono de uma das discografias mais ecléticas e diversas da música pop, com trabalhos que vão desde o experimental à bossa nova, passando pela eletrônica, o erudito e a trilhas sonoras. O Sakamoto instrumentista, colaborador de obras marcantes do pop-rock, como da Public Image Ltd., David Sylvian, Thomas Dolby e Towa Tei. O Sakamoto que engendrava trabalhos multiplataformas, que cruzavam música, artes visuais e performance. 

"Beauty", seu oitavo disco solo, de 1989, é, afora a própria nomenclatura, um resumo de uma concepção de mundo múltipla, pois humanista e libertária. Gente de todas as nacionalidades tocam em suas 11 faixas. Suíça, Senegal, Brasil, Inglaterra, Japão, Espanha, Jamaica, Índia, Estados Unidos, Burkina Faso, Canadá, Coréia... Sakamoto realizou, com a naturalidade de um mestre sensei, a conjunção difícil da world music, aventada por alguns, mas nem sempre acessível e palatável. "Beauty" aprofunda a experiência lançada em “Neo Geo”, seu álbum anterior, convidando para este passeio sonoro músicos da mais alta qualidade e diferentes vertentes, como o icônico beach boy Brian Wilson, o veterano “The Band” Robbie Robbertson, a poesia ancestral de Youssou N'Dour, os percussionistas africanos Paco Yé, Seidou "Baba" Outtara e Sibiri Outtara, os jazzistas Mark Johnson e Eddie Martinez e mais uma turba de conterrâneos arraigados na música tradicional oriental. 

Do Brasil, especialmente, Arto toca guitarra, canta e coassina com ele cinco faixas, entre elas as tocantes “A Pile Of Time”, com o som característico do gayageum coreano; “Rose”, com percussões de ninguém menos que Naná Vasconcelos, e a linda “Amore”, que além da sonoridade arábica do shekere e da batida especial do talking drum, tem contracantos de N'Dour sobre os simples versos cantados pelo próprio Sakamoto: “Good morning/ Good evening/ Where are you?” De arrepiar.

Os encantos não param por aí. O craque Robert Wyatt empresta sua dolorida voz para Sakamoto versar Rolling Stones em "We Love You", que tem ainda as contribuições do congolês Dally Kimoko na guitarra, do britânico Pino Palladino no baixo, do porto-riquenho Milton Cardona no shekere e de coro multiétnico encabeçado por Wilson, Kazumi Tamaki, Misako Koja, Yoriko Ganeko e o próprio Sakamoto. Tem ainda “Calling From Tokyo”, a faixa de abertura, um art-pop com a bateria jamaicana de Sly Dunbas e a tabla indiana de Pandit Dinesh; a espetacular “Diabaram”, com a voz penetrante de N'Dour, que faz remeter a uma humanidade pacífica da Ática-Mãe quiçá perdida; a contemplativa “Chinsagu No Hana”, adaptação de canção tradicional do folclore de Okinawa, assim como “Chin Nuku Juushii”, de “Neo Geo”; “Asadoya Yunta”, cujo inconfundível som do samisém tocado pela japonesa Yoriko Ganeko lhe confere séculos de conhecimento, e “Romance”, totalmente oriental, mas totalmente planetária.

Por essa riqueza toda que a obra de Sakamoto carrega que fico chateado (mas não surpreso) com as manchetes de anúncio de sua morte, ocorrida no último dia 28, aos 71 anos. As notícias de veículos referenciais da imprensa dão conta, em sua maioria, de que: "Morre Ryuichi Sakamoto, célebre compositor que levou o Oscar por 'O Último Imperador'". Ora, Oscar é importante, sim, mas ESSE é o destaque para se falar em Sakamoto?! Pegando-se apenas o cinema, não precisa ser um fã ou profundo conhecedor de Sakamoto para apenas atentar-se a outras trilhas sonoras assinadas por ele e perceber o quanto sua obra se entrelaça com as nossas vidas há décadas, a exemplo de “De Salto Alto”, "Femme Fatale", "O Regresso" e "Black Mirror".

Sakamoto, como Akira Kurosawa, me mostrou há muitos anos que essa dicotomia Orient-Occident, tal o yin-yang taoísta, serve para a geografia ou a estadistas divisionistas. Se Kurosawa quebrou as barreiras ao levar para o cinema do Oriente Shakespeare, Dostoiévski e Gorki, intercambiando, igualmente, a cultura japonesa com o Ocidente, Sakamoto fez, a seu curso, semelhante trajeto. Ao atravessar o Greenwich com sua música, provou que não existem divisões na humanidade. Difícil ensinamento para um mundo tão desigual e superficial... E mais: mostrou que lhe existe, sim, o belo. Sakamoto, esse meu ente que se foi. Mas só de corpo físico. As outras matérias ele generosamente deixou para nós mundanos através dos sons. Por isso, estará sempre presente aqui em casa, pois sabe que a porta está permanentemente aberta para ele entrar com sua beleza e ficar quanto tempo quiser. 


RYUICHI SAKAMOTO 
(1952-2023)



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FAIXAS:
1. "Calling from Tokyo" (Arto Lindsay, Roger Trilling, Ryuichi Sakamoto) - 4:26
2. "Rose" (Lindsay, Sakamoto) - 5:12
3. "Asadoya Yunta" (Katsu Hoshi, Choho Miyara) - 4:35
4. "Futique" (Lindsay, Sakamoto) - 4:09
5. "Amore" (Lindsay, Sakamoto) - 4:55
6. "We Love You" (Mick Jagger, Keith Richards) - 5:16
7. "Diabaram” (Sakamoto, Youssou N'Dour) - 4:13
8. "A Pile of Time" (Lindsay, Sakamoto) - 5:34
9. "Romance" (Kazumi Tamaki, Misako Koja, Yoriko Ganeko, Stephen Foster) - 5:29
10. " Chinsagu no Hana" (Folclore japonês) - 7:26
Faixa Extra da versão CD americana*
11. "Adagio" (Samuel Barber) - 7:47 


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Duelo - com José Eugenio Guimarães






Nosso primeiro colaborador da série Duelo, de entrevistas sobre cinema western e clássicos da sétima arte, é o capixaba e morador de Niterói, José Eugenio Guimarães. Zootecnista, Cientista Social e professor universitário de profissão. Cinéfilo de coração, o cara é dono do ótimo Blog Eugenio em filmes. Além de escrever em sua page diversos textos sobre várias fases do cinema, ele é um assíduo colaborador de muitas páginas culturais e sobre o tema na internet. Eugenio, que veio de uma família de cinéfilos, assistiu seu primeiro filme bem precocemente, aos dois anos de idade e que depois não parou mais. Ele mantém aquele costume voraz dos aficionados por cinema de rever uma grande produção muitas e muitas vezes. Conta que assistiu “No Tempo das Diligências”, mais de 200! O western é só mais uma de suas grandes paixões. Nosso entrevistado é também um profundo conhecedor de cinema independente e um fã declarado do cineasta brasileiro Glauber Rocha. É com ele que vou ter o imenso prazer de bater um papo cinéfilo nestas linhas cheias de intensidade e paixão real pelo cinema.



BINO: José Eugenio, não posso deixar de fugir de uma pergunta meio clichê: qual foi o primeiro grande filme que te impactou, aquele que vem à tua memória sempre num flash rápido?
John Ford
JOSÉ EUGENIO: Impacto, mesmo, senti ao ver “No Tempo das Diligências” (“Stagecoach”, 1939), em 1963, aos sete anos. Meu pai, cinéfilo, era assumidamente fordiano. E, certamente, herdei dele essa paixão pelo cinema de John Ford. Muito antes eu já o ouvia, enquanto fazia a barba ou tomava banho, rememorar diálogos inteiros de “Como era verde o meu vale” (“How green was my valley”, 1941), o filme que ele mais preferia do diretor. Mas a experiência de ver “No tempo das diligências” em tela de cinema, ainda menino, foi algo que jamais esquecerei. Antes de irmos ao Cine Odeon de Viçosa/MG, no qual foi exibido, o velho, como bom pai, começou a preparar o meu espírito para o que eu iria ver. E tudo correspondeu às expectativas. Pareceu que eu estava sonhando. Durante muito tempo “No tempo das diligências” foi o meu filme preferido de John Ford. Só fui revê-lo no cinema, pela última vez, em Belo Horizonte, em 1977, quando entrei na sessão das 14h e só saí ao fim da sessão das 22h, quase à meia-noite. Então, também o vi nas sessões das 16, 18 e 20h. Cinco sessões ao todo, enfileiradas. Saí do cinema meio tonto, mas totalmente em paz comigo mesmo. Já vi “No tempo das diligências” mais de 200 vezes. Também já ultrapassei esse número com “Rastros de ódio” (“The searchers”, 1956) e “O homem que matou o facínora” (“The man who shot Liberty Valance”, 1962), ambos também de Ford. São filmes que sempre revejo, nos quais sempre descubro coisas novas.

B: O primeiro filme que a gente assiste no cinema é como a primeira transa, algo marcante. Que lembranças tens dessa época?
JE: Comigo até que não dá para fazer essa relação. Pois o primeiro filme que vi no cinema foi em 1958. Estava com dois anos. Minha mãe queria ver “Marcelino Pão e Vinho” (“Marcelino Pan y Vino”, 1955), de Ladislao Vajda, e não tinha com quem me deixar. Levou-me junto. Segundo ela, fiquei o tempo todo com os olhos arregalados colados na tela, do começo ao fim. Evidentemente, não guardo lembranças desse meu batismo no cinema. O que ficou dessa ocasião foram as canções do filme, usadas por minha mãe para embalar o meu sono enquanto fui criança de colo. “Marcelino Pão e Vinho” só fui rever em BH, em um relançamento, quando estava com 21 ou 22 anos. Valeu como experiência afetiva, afinal estava tendo a oportunidade de ver o filme que inaugurou a minha cinefilia e que me fez fazer incontáveis birras para voltar ao cinema. Mas o filme mesmo é decepcionante, muito carola e moralista, uma produção típica da Espanha franquista afundada num catolicismo tão retrógrado como medieval.

B: Sobre tuas preferências no cinema em geral, quais escolas tu mais admiras? Fale um pouco delas.
JE: Há muitas "escolas". Prefiro chamar de movimentos. Mas as que fizeram a minha cabeça ou ampliaram os meus horizontes na cinefilia são, principalmente, o Cinema Revolucionário Russo, a Avant Gard Francesa, o Realismo Poético Francês, o Free Cinema Inglês, o Expressionismo Alemão, o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague Francesa e o Cinema Novo Brasileiro.
Falar um pouco delas... Vamos lá. Tentarei ser breve.
O Cinema Revolucionário Russo, por ter sido uma experiência que, ao menos por curtíssimo tempo, uniu o cinema a um projeto de mudança política e social. Era o cinema no compasso da revolução, inserido na construção de novos homem e tempo. Infelizmente, Stálin acabou com tudo isso.
A famosa cena do olho de "Um Cão Andaluz",
de Buñuel e Dalí
A Avant Gard Francesa, por trazer a abstração, o universo da subjetividade para o cinema, contaminando-o de poesia, aproximando-o das outras esferas da criação. Poucas vezes o cinema esteve tão perto do sublime e da ousadia, do rompimento de convenções, como neste breve período circunscrito aos anos 20.
O Realismo Poético Francês por investir no lirismo, transitando do otimismo à tragédia em tão pouco tempo. Praticamente foi um movimento que antecipou a tragédia europeia instalada com o Nazismo, incorporando, principalmente em seu momento de auge, a desesperança e o fatalismo.
O Neorrealismo Italiano por mostrar o melhor do humanismo num momento cravado na destruição provocada pela Segunda Grande Guerra. Câmeras nas ruas e becos, sob a realidade do sol ou da noite, acompanhando gente praticamente real, vivenciando problemas comuns, cotidianos, principalmente os que dizem respeito à sobrevivência. Então, é um cinema aliado ao exercício da objetividade, mas sem se esquecer de expressar o que passa em cada particularidade dos seres em cena.
Já o Expressionismo Alemão apreende a realidade num momento de incerteza e dissolução. A Alemanha derrotada na Primeira Guerra entrou numa crise profunda, não apenas econômica como moral, política e social. A mistura de tudo isso gerou perplexidade. O fantástico, inclusive o terror, dominaram a cena. Personagens dementes ou próximas disso davam o tom às narrativas e ações. Não havia explicações plausíveis para os atos. Quase tudo encontrava motivação numa ordem transcendental, inatingível, etérea, inexplicável. A poesia, a psicanálise, a escultura, a pintura eram fortes aliadas da composição cênica. É como se o cinema se tornasse total, ao englobar todos os demais meios de expressão e sem esquecer os rumos incertos que a sociedade vinha tomando. Mas tudo prenunciava o pior, como sabemos.
A Nouvelle Vague, por sua vez, foi o cinema do NÃO. Não a qualquer convenção, a qualquer dependência do cinema à literatura e aos estúdios. A liberdade criativa, a juventude, o espírito de rebeldia dominaram o movimento, que falava principalmente ao ser e às questões da contemporaneidade. Havia uma autonomia autoral sem precedentes. As produções eram baratas, filmava-se onde era possível, o glamour pouco importava. Um espírito de espontaneidade dava a tônica, algo que Jean-Luc Godard ainda hoje preserva em seus ensaios fílmicos.

cena de "Acossado" de Jean-luc Godard

O Free Cinema Inglês é praticamente paralelo e parecido à Nouvelle Vague, mas era menos etéreo, mais centrado nas questões concretas e prementes da existência. Dava para sentir os personagens pulsando de forma mais vigorosa e intensa.
No Brasil, o Cinema Novo, tão radical, com tantos nomes importantes e a vontade de revelar o país além dos grandes centros, também de maneira independente dos esquemas industriais, sem muitas preocupações às fórmulas, mas criando outras. Glauber, maior nome do movimento, era praticamente um cineasta que se reinventava de filme para filme, até chegar na desconstrução plena da narrativa em seu esforço tão pouco compreendido de emancipar o olhar. É um provocador que faz falta à mesmice de agora.

B: Em relação ao western, qual foi a grande contribuição desse gênero para o cinema mundial?
Antônio das Mortes, personagem de Glauber
inspirado em Ford
JE: Ao cinema mundial, não sei. Mundial é muita coisa. O que se sabe de concreto é: o western, por mais que muitos lhe torçam o nariz, foi o gênero que apresentou um tipo de homem que podem ser caracterizado como o indivíduo em sua forma mais bem acabada, sociologicamente falando. O cowboy ou seus similares estavam apoiados única e exclusivamente em suas determinações, desejos e vontades. É algo específico de uma determinada cultura. Historicamente, não há precedentes ao tipo em nenhum outro local do mundo. Geralmente as pessoas estavam vinculadas a alguma estrutura, a uma ordem. O cowboy, não. Goza de uma margem de autonomia sem precedentes. Isso encantou principalmente as plateias fincadas em organizações sociais mais tradicionais. Nisso, de certa forma, o modelo inspirou cineastas japoneses, principalmente Kurosawa. No Brasil, Glauber Rocha, principalmente em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", tem no personagem Antonio das Mortes uma extensão. Aliás, sabe-se claramente que o desenho do personagem está inspirado em Ethan Edwards (John Wayne), de “Rastros de ódio”. Esses filmes de Glauber buscam inspiração nos westerns de Ford, mas sob a capa de um Eisenstein. E há a Itália, país que sempre valorizou o gênero, tanto que inventou uma variante. Outras formas de narrativa heroicas contaminadas pelo western pode ser encontradas no cinema popular chinês, por exemplo. No Brasil, também há os filmes de cangaço, há muito tempo em baixa, com suas estruturas narrativas também herdadas dos westerns, principalmente pelo uso do cavalo pelos cangaceiros, algo que não resiste à menor análise junto à realidade, pois cangaceiro se locomovia a pé. Mas o cowboy, mesmo, é uma experiência única, ímpar, puramente estadunidense. É o indivíduo moldado naquilo que Weber chamou de ética protestante – do puritanismo: alguém que apenas presta contas às suas determinações e vontades.

B: "O Portal do Paraíso" é considerado o filme que matou o western americano, tudo por seu grande desastre comercial. O western spaghetti também passou por seu período turbulento e, após os anos 70, também não teve mais o brilho da era do ouro dos Sergio's e companhia. Com todo esse hiato, raras produções western tiveram destaque no cinema. Um exemplo é “Dança Com Lobos” e "Os Imperdoáveis", que ganharam muitos Oscar e foram muito bem recebidos pela crítica. Poucos estúdios e diretores apostam nesse tipo de produção. Porque você acha que este gênero está tão em baixa nos últimos tempos?
JE: O western é vítima de vários fatores. Há primeiro a televisão, que o banalizou com um punhado de séries familiares e telefilmes de consumo imediato. Também há o politicamente correto. Além do fato de que os estadunidenses em geral têm certa dificuldade de confrontar um passado de conquista que não se afigura tão glorioso para a História, dados os custos humanos do empreendimento. Ainda é muito complicado, para eles, discutir o genocídio dos índios. É um tema praticamente encoberto de tabu. É uma pena, pois se há um gênero que pode ser chamado de genuinamente nacional em se tratando de Estados Unidos, é o western. Quer queira quer não, mostra como o país foi conquistado e unificado. À medida que os EUA foram se urbanizando e se industrializando, ficado mais cosmopolitas, o western foi se tornado um gênero ultrapassado, uma narrativa que não combina mais com a realidade, principalmente por revelar uma etapa que se quer esquecer.

B: Tarantino e os irmãos Ethan e Joel Coen parecem ter apostado no western, cada um a seu estilo. Como você vê a estética e os filmes destes diretores?
Francamente, em termos estéticos não saberia como responder. Sei que são recicladores, cada qual à sua moda. São cineastas que têm um modo próprio de expressão mas sem abrir mão das dívidas a pagar com a tradição. Tanto que seus filmes podem ser sérias releituras ou, dependendo do momento, também podem ser meros pastiches. O que me irrita, hoje, é o extremo valor que se dá a esses nomes. Não tanto os Irmãos Coen, que são brilhantes. Mas faço reservas a Tarantino, não tanto a ele, que é bom cineasta, mas por ser visto, principalmente pelos setores mais jovens, como um valor totalmente original. Não é, mesmo. Pode ser mais barulhento, mas estiloso, mais midiático, mas é também um manipulador em causa própria, um bom marqueteiro de si mesmo. Em todo caso, vamos ver. Não estou dizendo que o abomino, muito ao contrário. Apenas revelo o que para mim desponta como limitações.

B: Se tu tivesses que fazer uma lista de 10 grandes e definitivos westerns de todos os tempos, quais seriam?
Esse negócio de listar "grandes e definitivos" é problemático. Mas, vamos lá, com todo o meu perdão às injustiças que certamente cometerei:
1 - No tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford (1939)

2 - Paixão dos fortes (My Darling Clementine), de John Ford (1946)
3 - Rio Vermelho (Red River), de Howard Hawks (1948)
4 - O preço de um homem (The Naked Spur), de Anthony Mann (1953)
5 - Os brutos também amam (Shane), de George Stevens (1953)
6 - Rastros de ódio (The Searchers), de John Ford (1956)
O Duke, John Wayne,
em cena de "Rastros de Ódio"










7 - Galante e sanguinário (3:10 to Yuma), de Delmer Daves (1957)
8 - Onde começa o inferno (Rio Bravo), de Howard Hawks (1959)
9 - O homem que matou o facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), de John Ford (1962)
10 - Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch), de Sam Peckinpah (1969)
Puxa, apenas 10 títulos! Acabei de excluir cerca de 16 outros, que considero essenciais, da lista. Parece que acabo de cometer pecado mortal.

B: Agora mudando o rumo da conversa. Quando Redford quando criou Sundance queria dar oportunidade ao cinema independente. Muitos diretores e produtores beberam nessa fonte que Cassavetes catapultou anos antes. Que tu acha desse tipo de cinema não tão mainstream? Algum filme ou diretor te chamou atenção nestes últimos anos?
JE: Esse tipo de cinema, à margem, é essencial. E aí que vamos encontrar os germes de renovação, as criatividades. Cinema é indústria e indústria é algo formatado, que pode ser reproduzido em grande escala. O cinema independente está à margem disso, pode se afastar das convenções, investir em pesquisas estéticas, formais, autorais; pode correr riscos com mais facilidade. Pode ousar. Pena que todo sopro de independência, de rebeldia, acaba, com o tempo — e são raras as exceções —se incorporando ao mainstream, ainda mais no cinema americano. Gosto de citar um caso extremo: John Waters, com seu cinema de guerrilha. Já significou mau gosto. Vide “Pink Flamingos”. Hoje, é encenado na Broadway. Seus exercícios autorais, fétidos, imorais e amorais já foram incorporados à industria e refilmados segundo os grandes esquemas. Vivemos tempos cada vez mais perigosos ao autoral e ao independente. O capitalismo incorpora tudo, até o que lhe é contrário. Basta ser domesticado, esquematizado e, claro, dar lucro.
Sobre quem está chamando a minha atenção nos últimos anos: Sophie Deraspe, Martin Laroche, XAvier Dolan, Stéphane Lafleur, Robert Morin, Denis Villeneuve, Alexandro Avranas, Rosario Garcia-Montero, Petra Costa, Peter Webber... deve ter mais alguém.

B: E sobre as produções Brasileiras e Latino-Americanas o que você tem a dizer?
JE: Bom... O cinema brasileiro sempre me interessou, desde que me habituei a vê-lo já na fase final das comédias da Atlântida. Nós temos um cinema muito bom, diferente, com valorosos cineastas. No tempo do Cinema Novo éramos uma das cinematografias mais desafiadores. O cinema brasileiro foi recordista mundial de prêmios em mostras e festivais internacionais nos anos 70. Penas que os contextos políticos não ajudaram.
Já vi muitos filmes mexicanos. Eram exibidos facilmente no Brasil até o começo dos anos 70. Havia aqui uma representação da PelMex – Películas Mexicanas –, que fazia a distribuição do que veio a ser conhecido como Cinema de Lágrimas. O cinema cubano também teve melhores dias entre nós, principalmente o Novo Cinema Cubano (já velho), dos anos imediatamente posteriores à Revolução.
Pouco conhecemos das produção dos nossos vizinhos, excluída, atualmente, a Argentina, que vive um contagiante momento de euforia. Quanto a nós, agora, parece que estamos prisioneiros do formato ditado pela Globo Filmes. Mesmo assim, não podemos reclamar, pois temos Jorge Furtado, Fernando Coimbra, Karim Aïnouz, Cláudio Assis e gente mais velha que ainda está na ativa apesar de todas as dificuldades.

B: O que tu achas do cinema como ferramenta de inclusão social?
As contribuições seriam exatamente a de levar o cinema à população. Tentativa que não é nova e era praticada em tempos mais generosos e mais fartos de filmes com temáticas populares e de acesso mais facilitado ao público em geral, principalmente ao carente de cinema. Nos anos 60 e 70 os cineclubes faziam essa ponte, levando o cinema à população que nunca o teve. Inclusive estimulando-o a tomar a câmera como exercício de criação própria. Cheguei a participar um pouco dessa fase, em meus dias de cineclubismo.

B: Para finalizar, se você se definisse como pessoa em um filme, qual seria ele, e por quê?
JE: Ah! Não sei. Certamente seria alguém semelhante aos personagens interpretados pelo Wilson Grey, pelo Hank Worden, pelo Henry Calvin. Nunca me preocupei com isso. Mas alguém heroico é que não seria. Estou mais perto do perfil dos perdedores. Se tivesse que ser um cowboy, encontraria afinidades com o Monte Walsh vivido pelo Lee Marvin em “Um homem difícil de matar” (Monte Walsh, 1970), de William Fraker.