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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Fausto Fawcett e Falange Moulin Rouge - Bar Opinião - Porto Alegre (1993)



foto de show em Baurú, em 1993 
créditos: canal DJ Teruo (You tube)
Quando foi anunciado que Fausto Fawcett faria um show em Porto Alegre acompanhado, além de músicos, por um grupo de belas louras, me pareceu que se tratava de uma grande forçação. Eu curtia Fausto Fawcett, mais do que a maioria das pessoas que só lembram dele pela calcinha da Kátia Flávia, mas aquilo me soava como uma apelação de um artista em baixa tentando, de maneira um tanto vulgar, reconquistar uma certa popularidade. Por outro lado, não era possível que se prestasse a reunir um belo time de músicos para aquela turnê, como Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana, na guitarra, Dé, ex-Barão Vermelho no baixo, João Barone, dos Paralamas, na bateria, só para representar um teatrinho musical numa grande putaria caça-níqueis. Fiquei curioso pela parte musical da coisa, mas não a ponto de me prestar a ir ao show e deste modo, pelo menos dei uma chance para a proposta de Fausto Fawcett ouvindo o concerto musical performático pela rádio Ipanema FM, numa iniciativa que eles costumavam ter de transmitir shows ao vivo, sempre que possível, de auditórios, bares, teatros ou qualquer tipo de casa de espetáculo da cidade.

E fui eu então ouvir o show no rádio... e para minha surpresa o negócio era bom! Bem bom!!! Uma mistura suingada de rock, soul, funk carioca, samba, incrementado por scatches, samples e uma percussão sempre bem oportuna, tudo com aquele vocal característico, quase narrado, e refrões improváveis e pegajosos de Fausto Fawcett. Quanto mais escutava, mais eu tinha vontade de estar lá vendo aquele show que além de passar, mesmo pelas ondas do rádio, uma vibração de entusiasmo e energia, era constantemente elogiado durante a trasnmissão pela comunicadora Katia Suman.

"Por que que eu não estou lá? Por que que eu não estou lá?"... Bom, eu não estaria lá naquela noite mas poderia estar na noite seguinte. Sim!!! Estavam previstas duas apresentações na cidade e diante daquela agradável surpresa sonora que o show me proporcionara pelo rádio, eu tinha oportunidade de presenciá-lo, in loco, no dia seguinte .

Aí então, eu e irmão Daniel, que também havia escutado o show pelo rádio e tivera a mesma sensação de boa surpresa, nos tocamos para o Bar Opinião, casa de espetáculos no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre e fomos ver o tal do show. Não vou negar que procurei um lugar interessante de onde pudesse apreciar os atributos físicos das louras pois, afinal de contas, por mais que tivesse posto em julgamento as verdadeiros propósitos daquele projeto, uma vez estando lá, queria, além de curtir a parte musical que havia me impressionado na noite anterior, me deliciar visualmente com o que o rádio não teve como me mostrar.

Inegavelmente o espetáculo tinha um apelo sensual, uma provocação dos instintos masculinos, uma vulgaridade medida, mas mesmo as apresentações das meninas não se limitavam a um bundalelê gratuito. Além das referências a clássicos mestres-de-cerimônia brasileiros como Chacrinha e Sargentelli, que utilizaram a figura da mulher bonita e sensual como suporte e alavanca para suas performances, algumas das garotas eram verdadeiramente talentosas e davam boa contribuição ao espetáculo, como é o caso da loura Luzia, que se destacava sobremaneira no tocante à dança, e da cacheadinha Kátia, sem dúvida a melhor cantora dentre todas elas. Outras como Regininha Poltergeist, claramente uma péssima cantora, davam sua contribuição, além de física e estética, é claro, pelo seu carisma e presença de palco; ou como a badalada Marinara, ex-esposa do jornalista e apresentador esportivo Fernando Vanucci, que havia ficado famosa por seu uma policial que havia posado nua para a revista Playboy, e que emprestava ao show a possibilidade de ter uma espécie de superstar brasileira do momento.

Além de criar versões para antigas composições suas, como para "Drops de Istambul", uma música menor do primeiro disco que, com inserções e recortes arábicos do DJ, que ficou bem mais interessante, Fausto, teve a perspicácia de criar um tema musical para cada garota explorando o melhor do personagem de cada uma delas. Regininha, cujo tema trazia algo de sincrético, místico, sobrenatural, e que carrega até hoje o apelido Poltergeist por conta da canção "Santa Clara Poltergeist", do próprio Fausto, do segundo disco, recriada para quela turnê, entrava no palco vestindo um hábito de freira e, com o desenvolvimento do número, se libertava do mesmo para deixar-se levar pelas forças que a tornavam aquela mulher sensual e irresistível que tomava conta do palco para a louvação daquele macharedo babão que, a reverenciando, repetia o refrão, "Amém, Regininha, amém!" (e, sim, eu participei da louvação). Gisele, descrita na letra como " a loura luz do fogo da inspiração", foi a mais "impressionante" fisicamente entre elas (entendedores entenderão) ganhando para si um sambinha gostoso, sem dúvida o tema individual e a performance mais sensuais da noite. Luzia, ilustrava um rock funkeado cheio de swing com menção a felinas selvagens; um soul bem embalado fazia Kátia, não a famosa Flávia, mas a apelidada "Talismã", mostrar porque era a melhor cantora do grupo; e a música de Marinara, como o compositor não poderia deixar passar, fazia menção à função de policial, sendo definida por ele como a "loira Majestade do lado da lei", num tema musical que aludia a escolas de samba cariocas e sambas de enredo, especialmente ao clássico "Peguei um Ita no Norte", do Salgueiro, associando seu famoso verso ao nome da loira e criando mais um de seu refrões inesquecíveis: "É Marinara, explode coração".

Mas não foram só as homenagens individuais para cada loira: Fausto Fawcett ainda usaria time inteiro em duas ótimas músicas, "Básico Instinto", um funk pesado com ótimas performances dos guitarristas, sample de Ennio Morricone e que fazia referência direta ao filme "Instinto Selvagem" trazendo à luz o excelente refrão "Sharon Stone, stone Me"; e a que fechou o show "KLGR"*, uma pedrada com um riffzaço poderoso, samples de Public Enemy, e que exaltava no refrão as quatro louras originais, uma vez que Marinara, além de ser a "estrela convidada", juntara-se à equipe durante a turnê. "Kátia, Luzia, Gisele, Regininha"*, cantava Fausto Fawcett encarnando o papel do "cafetão" e definindo aquele espetáculo todo de forma precisa como um grande "teatro de revista samba funk" para encerrar o show e fechar as cortinas.

Para quem achava que seria só um monte de bundas rebolando, o show de Fausto Fawcett com sua Falange Moulin Rouge acabou sendo uma agradabilíssima surpresa artística e musical. Uma ótima banda, qualidade musical, muito ritmo, provocações inteligentes sobre cultura e comportamento e,... bom, teve também um monte de bundas rebolando. E estaria mentindo se dissesse que não gostei.


* Ainda durante aquela turnê, Luzia foi substituída pela cantora e dançarina Luciana e Marinara foi efetivada como integrante fixa do grupo.  Assim, esta música que naquela ocasião ainda contava com as iniciais das quatro integrantes originais, passou a se chamar "KGLRM" (Kátia, Luciana, Gisele, Regininha e Marinara), que foi a versão definitiva que entrou para o álbum "Básico Instinto".

Fausto Fawcett e Falange Moulin Rouge - Bar Opinião - Porto Alegre (1993)
áudio do show

Cly Reis

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

"Os Matadores Mais Cruéis que Conheci", volume II - Promoção OMMCQC





"Está aberto o reino da morte!"
Chegou às nossas mãos, autores participantes, e em breve deve estar pintando nas livrarias, a antologia "OMMCQC II" (Os Matadores Mais Cruéis que Conheci, vol. II) que traz 37 contos que exploram exatamente esse lado tão misterioso, sórdido, selvagem, primitivo e inutilmente reprimido do homem: seu lado assassino.
Pois se você quer ter o mórbido prazer de folhear essas páginas empapadas de sangue antes que elas sujem as prateleiras das livrarias, compartilhe a nossa promoção na página do clyblog no Facebook e fique esperando a morte chegar, ou melhor... o livro chegar... na sua casa.
O sangue é da melhor qualidade e quem garante isso, somos nós, os 'matadores' que criaram esse universo de instinto selvagem. Tem matadores jovens, maduros, mulheres, homens, há as que matam com um salto-alto, há os que matam com machados, os que matam em porões imundos, há os que matam em motéis, há os sofisticados, há os afoitos, há os que mataram por acidente e os que matam por vocação... Variedade é o que não falta, e estes, abaixo são os criadores desse universo tão provocante e assustador, com suas histórias sangrentas:

HOJE EU VOU COMER SUA BUNDA -  Cly Reis

A ESCRITORA - William Schmahl Barros

A FACE DO EXTREMO - Eliane Verica

A LENDA DE MIGUEL JUAREZ - Edinaldo Garcia

“A ÚLTIMA CEIA” Juliana Pitta

A ÚLTIMA OFERTA - Valdison S. Barbosa

A VINGANÇA DO LOBO - Eduardo Colucci de Castro

AMOR DE MÃE - Graziela Fusco Ramos

AS MÃOS QUE CONTROLAM A MARIONETE - Maristela Abreu

BÁRBARA - Bruna Leôncio

CARONTE - Ricardo Esteves

A TESTEMUNHA - César Costa

DE JOVEM PROMISSOR, À SERIAL KILLER - Gustavo Demarchi

A ENFERMEIRA - Thiago Vilard

ACEITA UMA BEBIDA? - Gui Barreto

O PASSEIO - Heliton Queiroz

CORAÇÕES FRIOS - W.G. Souza

IGOR - Fábio Baptista

MELISSA - Davi M. Gonzales

MENINA ASSASSINA - Michele Mourão

MENTES INSANAS - Debora Gimenes

O ASSASSINO DO BOTIJÃO - Márcio Lobo

O COLECIONADOR DE ÓRGÃOS - Marcio Milton de Souza

O DONO DO ANTIQUÁRIO - Zulmênia Pereira do Vale

O VARAL - Luciana Rodrigues

O FOSSO - César Bravo

LOUCO OU CRUEL? - Ana Angélica Ferrazi

PACIÊNCIA - Henrique Seben

PAI NOSSO - Guilherme Matos

PRATO FRIO - Jowilton Amaral da Costa

RESPEITEM A MINHA NATUREZA - André Albuquerque

TRÊS PORQUINHOS - Narjara Oliveira

UM FURO DE REPORTAGEM - Leônidas Grego

SANGUE FEDE - Fábio Gonçalves

UMA NOITE COMO OUTRA QUALQUER - Ramon Bacelar

VERDADES - Beto Canales

WILLY PANCAS - Afobório



Compartilhe. Boa sorte, luz e sangue, sempre.


Cly Reis

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

"O Vingador do Futuro", de Paul Verhoeven (1990) vs. "O Vingador do Futuro", de Len Wiseman (2012)



Paul Verhoeven pode não ser dos diretores mais elegantes no que diz respeito à sua obra, com algumas coisas bem toscas e sua tradicional violência exacerbada, mas não há como negar que, entre erros e acertos, o diretor holandês já colocou alguns de seus filmes na galeria de clássicos do cinema como é o caso do icônico "Robocop", do polêmico "Instinto Selvagem" e do frenético "O Vingador do Futuro", eletrizante ficção científica de ação que, encorajada por sua dinâmica e potencial, ganhou há alguns anos atrás uma nova versão cinematográfica. O problema principal do remake de "O Vingador do Futuro", de 2012, é que ele tenta se levar a sério demais. Quer tomar um viés político, social, até ecológico. O instigante argumento, baseado no conto de Philip K. Dick ("Blade Runner" e "Minority Report"), é mais bem aproveitado na versão original que é muito mais descontraída que a última, sem chegar a cair exatamente na comédia. A leveza, mesmo entre tiros, explosões e naquele momento o recorde de mortos em filmes de ação, se deve em grande parte à figura do carismático Arnold Shwarzenegger que, mesmo com suas inegáveis limitações de atuação, mesclava como poucos, especialmente naquele momento da cerreira, a capacidade de encarnar o brutamontes durão ao mesmo tempo que fazia o bobão cômico. Já no novo, a estrela principal é Colin Farrell, de quem já não gosto muito mas que, independentemente da minha opinião pessoal, não há como negar que não chega perto do carisma de Shwarzenegger. Ele até se esforça, faz lá uma gracinha que outra mas, notoriamente, está concentrado em sua missão, está compenetrado, está preocupado e isso torna seu personagem chato e distante.
Douglas Quaid (Shwarzie no original e Farrel no remake) é um operário de mineração que, cansado de sua vidinha rotineira é seduzido por um anúncio da empresa Rekall que promete implantes de memória que serão como férias realmente vividas em sua vida com a opção de incrementar a aventura e assumir outra identidade, outra atividade. Quaid escolhe ser agente secreto mas no momento do implante de memória algo dá errado (ou parece dar) e nos é revelado que aquele cliente já tinha um implante anterior e que não seria quem achava que era. Com a diferença que o primeiro Quaid queria férias em Marte e o segundo na União da Bretanha, o centro urbano e administrativo de um planeta Terra semidestruído por uma guerra química, a ação se desenrola em ambos, desenfreadamente, a partir do momento que Quaid sai da Recall. Tudo é muito parecido mas no de 1990 tudo é mais charmoso e cativante, até mesmo os defeitos como, por exemplo, os cenários de Venusville, a zona do meretrício de Marte, bem primários mas... o que seria de "O Vingador do Futuro" sem eles?
A refilmagem tem a vantagem do avanço dos recursos tecnológicos mas os efeitos visuais do original não ficam devendo em nada mantendo-se até hoje como referência no quesito. A cabeça-bomba da "mulher das duas semanas" e o raio-X no terminal de passageiros, os rostos inchando até os olhos quase saltarem das órbitas quando Quaid e Melina ficam expostos à atmosfera de Marte, a própria reprodução da superfície do planeta baseada em imagens obtidas pelas sondas da NASA são impactos visuais que não serão esquecidos facilmente.

"O Vingador do Futuro" (1990)
cena do disfarce no terminal de passageiros em Marte 

"O Vingador do Futuro' (2012)
cena do disfarce no terminal de passageiros da UFB
(referência à cena do original)

Além disso tem os personagens periféricos, muito mais cativantes, cada um a seu modo na versão primeira: Lori, a esposa, está muito melhor na pele de Sharon Stone do que da "soldadona" Kate Beckinsale, embora a disputa seja acirrada no quesito beleza; Melina, a agente do original (Rachel Ticotin) é muito mais simpática do que a do remake, Jessica Biel, feminina e carinhosa quando é pra ser mas durona na medida certa, e até por isso, mais carismática; Cohaagen na nova versão é quase um ninja, enfrentando no braço, de igual para igual o agente Houser (Quaid) numa das cenas decisivas do novo filme, ao passo que no anterior era somente, e muito apropriadamente, só mais um empresário bundinha bem filha-da-puta.
E tinha o Benny do táxi que tinha sete filhos pra criar; tinha o capanga, o cara que explode a cabeça de outro no "Scanners" do Cronenberg (Michael Ironside), e que sempre fazia bons vilões; e tinha o Kuato que ficava na barriga de um cara nos subterrâneos de Marte... e na refilmagem sequer tem um Kuato! Onde já se viu? O remake até faz algumas referências ao velho como à gorda na estação de embarque, à mutante de três seios, mas soam tão jocosas que, se foram homenagem, soaram mais como um injustificável escárnio.
"O Vingador do Futuro" 1990, de Paul Verhoeven ganha com facilidade. Não goleia, mas faz aquele 2x0 clássico, sem esforço. Tem melhores jogadores, melhor técnico e mais conjunto. O filme de Len Wiseman até é esforçado, tem suas qualidades, joga alguma bola, é verdade, mas, me desculpe..., Clássico é Clássico!

O momento em que as memórias são implantadas em Quaid, na Recall, em cada uma das versões.
Ambas os filmes deixam a dúvida se tudo o que acontece a partir dali foi real ou não.

Num jogo corrido, Paul Verhoeven confirma que no mata-mata, ele é o cara e não tem pra ninguém.



domingo, 21 de fevereiro de 2010

"O Último Grande Herói", de John McTiernan (1993)


Acabo de assitir pela enésima vez um filme que curto de montão e que considero injustiçado pelo fato de não ter recebido a devida atenção, elogios nem reconhecimento que é "O Último Grande Herói", de John McTiernan. Pode-se subestimar inicialmente esta película pelo fato de ser estrelada pelo grandalhão monossilábico (mas carismático) Arnold Shwarzenegger mas no fundo, o filme cheio de ação e de "mentiras" típicas de cinema, é uma grande declaração de amor à Sétima Arte com todas as suas referências a clássicos, homenagens, ridicularizações de clichês, brincadeiras com a própria indústria cinematográfica, e participações especiais.
Além de manter um bom ritmo de ação e interesse, pelas mãos do diretor que já havia nos tirado o fôlego em "Duro de Matar 2", "O Último Grande Herói" ainda nos  põe frente-a-frente com a tela e faz questão de nos lembrar que vida real é uma coisa e cinema é outra, reforçando seus argumentos pelos exageros do mundo da ficção (durante o tempo em que o filme se passa lá) e pela impotência dos personagens ficcionais no mundo real, onde, aliás, respinga até uma crítica à nossa sociedade quando se sugere que aqui, na realidade, os vilões podem vencer.
O negócio todo deste trânsito entre real e irreal é que um garoto, aficcionado por filmes, ganha de um velho porteiro e projetista do cinema que freqüenta, um suposto ingresso mágico, e por incrível que pareça o tal bilhete funciona e dá passagem da relaidade para um mundo paralelo. O lance é que o guri está dentro do cinema e acaba caindo exatamente no filme do seu grande ídolo, Jack Slater, interpretado por Shwarzenegger. Lá, do outro lado da tela, o garoto, Danny, tenta argumentar de todas as formas com o herói que tudo aquilo é um filme e por isso as coisdas sempre dão certo, carros explodem com um tiro, vidros são quebrados com socos sem que se sinta dor, e as mulheres são todas perfeitas; além do fato, é claro, de tentar convencê-lo que é apenas um personagem interpretado pelo astro Arnold Shwarzenegger que o herói, é claro, nunca ouvira falar.
As homenagens ao mundo do cinema vão desde uma passadinha rápida por Catherine Trammel de "Instinto Selvagem"entrando na delegacia, uma visita à locadora à procura de "O Exterminador do Futuro II" (ali estrelado por Stallone), passando pela menção a "Amadeus" de Milos Forman no qual o personagem de F. Murray Abraham é lembrado por ter matado Mozart; mas é mais bacana ainda principalmente quando A Morte de "O Sétimo Selo", clássico de Ingmar Bergmann, sai da tela e diz a Danny que Jack Slater não está na sua lista pois não trata com ficção.
Outro barato é na festa de lançamento do filme dentro do filme, "Jack Slater IV", as pontas de Jean-Claude Van Damme, MC Hammer, James Belushi e Little Richard no tapete vermelho da premiére.
Não é um clássico absoluto, não é um cult-movie - com boa vontade, na minha concepção um candidato a cult - mas com certeza figura, ali, junto com filmes como "Ed Wood", "Cinema Paradiso" e mais recentemente "Bastardos Inglórios, como um destes filmes de ode ao cinema. Filme de apaixonados pela arte.


Cly Reis

domingo, 7 de setembro de 2008

"A Espiã", de Paul Verhoeven (2006)




Perdi no cinema, mas locamos ontem para ver "A Espiã" do holandês Paul Verhoeven, que havia sido muito elogiado quando do seu lançamento.

Muito bom filme. Muito bom, mesmo.

Envolvente, tenso, mantém o clima, mantém a a tensão e o interesse.

Me parece a reabilitação do diretor depois de uma jornada americana de altos e baixos, com filmes interessantes como Robocop e Vingador do Futuro e o ótimo Instinto Selvagem e horríveis como Tropas Estrelares e o lixo-cult Showgirls.

Trata da história de uma judia que depois de perder a família numa emboscada dos nazistas, trabalha para a resistência holandesa infiltrada no escritório alemão após seduzir e se envolver com um dos oficiais.

Tem todos os elementos de Verhoeven americano mas com o toque de Verhoeven europeu: violência, sensualidade, ação e um roteiro envolvente. O curioso é que tem uma surpresa que se espera que aconteça, mas que não acontece como se poderia prever, o que valoriza o suspense.

Bem legal. Ótima sessão do meu sábado à noite.


Cly Reis

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

PJ Harvey - "To Bring You my Love" (1995)

 

“Aquela garota dos olhos azuis/ Ela disse ‘nunca mais’/ Aquela garota dos olhos azuis/ Virou uma puta de olhos azuis/ Por debaixo d'água”.
da letra de “Down by the Water” 

Pode-se dizer que os anos 90 foram os anos das "minas do rock", principalmente o alternativo. Sinal de alguma evolução comportamental na indústria cultural, o século que viu o gênero nascer obscurecendo Sister Rosetta Tharpe para evidenciar apenas roqueiros homens guardou para a sua última década um bom bocado de talentosas cantoras e compositoras senhoras de seus narizes. Afora as band girls The Breeders, Baby's in Toyland e L7 ou as líderes de bandas Dolores O'Riordan (The Cranberries), Shirley Manson (Garbage) e Courtney Love (Hole), pelo menos três dessas vozes transformaram a cena rock injetando-lhe um novo sopro de fúria e beleza, mas claro, carregado de feminilidade: Liz Phair, Björk e Fiona Apple. Ninguém, no entanto, foi tão a fundo neste empoderamento feito de riffs e vociferações como a britânica Polly Jean Harvey.

Nascida na mesma Dorset da King Crimson, região sudoeste da Inglaterra, PJ Harvey surgiu como um furacão em 1992 com o corrosivo “Dry”. Como os ícones que carregam em si todos os atributos de sua arte e seu tempo, PJ provava de pronto ser dessas figuras, fosse na forma quanto no conteúdo: postura feminista, ótima cantora, compositora ímpar, domínio de vários instrumentos e dona de uma imagem sensual e dasafiadora ao mesmo tempo. A cara da nova mulher do rock.

“Rido of Me”, de 1993, avança nesta proposta, mas o desaguar vem completo, como um orgasmo desinibido, em “To Bring You my Love”, de dois anos depois. Questões feministas são trazidas com graça e força, seja nas letras como nas sonoridades. A capa, assim como no clipe da música de trabalho, "Down by the Water", sintetiza este conceito: uma sereia moderna, trajando um decotado vestido de uma lascivo vermelho-sangue sob águas revoltas e bastante simbólicas. Uterina e genital. O som, sobre um riff grave e intenso, o canto carregado e por vezes sensualmente cochichado, as frases pontuais das cordas, a letra confessional: tudo respira sexo e dor. “Oh ajude-me, Jesus/ Venha por entre essa tempestade/ Eu tive de perdê-la/ Para machucá-la/ Eu a ouvi gritar/ Eu a ouvi gemer/ Minha linda filha/ Eu a levei pra casa”, diz referindo-se à menina inocente que deixou de ser.

Construído narrativamente, “To Bring...” explora com perfeição os detalhes de sons e os andamentos, como no repertório sabiamente encadeado. Cada faixa é um universo, mas PJ faz, no todo, que não destoem uma da outra. O tema-título começa o álbum numa lentidão quase fúnebre. A música é forjada sobre um riff de guitarra contínuo, marcado, repetido, marcial, incompleto, num blues dissonante e circunspecto. A voz rasga os alto-falantes em exasperação, assim como a pronúncia dramática, que abre os fonemas e altera pronúncias. "To bring you my 'lova'" (“Para trazer-te meu amor”), suplica. Coisa genial – e quem ouvir aqui Lady Gaga cantando não está errado.

Sobe o ritmo: rockasso tribal, “Meet Ze Monsta” exagera propositalmente na distorção da guitarra, mas mais para sujar o arranjo do que fazer barulho. PJ, selvagem, surge da mata do inconsciente feminino e puxa do instinto primário a voz para dizer que não tem essa de "sexo frágil": “Veja-o vir/ em minha cabeça/ Não estou correndo/ Não estou com medo [...] Eu não estou tremendo/ Eu não vou me esconder/ Sim, estou pronta [...] Que monstro/ Que noite/ Que amante/ Que briga”.

De um modo ou de outro, tudo fala sobre a mulher, emancipada e questionadora de sua existência. “Working for the Man”, retraz a temática sobre uma arquitetura sonora de garage band estilizada: som abafado e em volume reduzido, predominância dos graves e protagonismo da bateria e do baixo – este último, aliás, quase estourando o woofer das caixas de som. A voz de PJ, em overdub, é invariavelmente sussurrada, o que contrabalanceia o clima selvagem imediatamente anterior.

Pausa na crueza, mas não na dramaticidade. Balada sangrenta, “C’mon Billy” convida o homem a voltar para casa para viver com ela e o filho. “Venha Billy/ Vem para mim/ Você sabe que eu estou te esperando/ Eu te amo infinitamente”. Poxa, Billy, vai amarelar com essa baita mulher?! Canto fenomenal, carregado, cheio de sentimento, o qual é intensificado pela linda linha de cordas arranjada por Pete Thomas. Perfect pop como poucos sabem fazer, dos mais perfeitas (sic) dos anos 90. “Teclo” , por sua vez, volta à aparente simplicidade na reelaboração do núcleo blueser num tema misto de Nico e Captain Beefheart. Mas simplicidade, que nada: síntese e atonalismo. PJ, então, não faz concessões e manda de novo um rock intenso: “Long Snake Moon”, a seu melhor estilo, com sua pegada pós-punk. Sem, contudo, perder o drama e a ira. Já  "I Think I'm a Mother", tribal como “Meet...”, convoca a tribo para um alucinado pogo no meio da aldeia.

Tudo em “To Bring...” é detalhadamente pensado, o que faz com que os arranjos nunca sejam simples mesmo no mais aparentemente seminal rock 'n' roll. Uma das principais qualidades do álbum, aliás, tem a ver com isso: a produção, assinada pela própria PJ junto com o parceiro Joe Parish e Flood, este último, um dos grandes produtores da música pop. A expertise de Flood com o manejo das texturas sonoras, o qual ele empregara com maestria junto a bandas como Depeche Mode, Nine Inch Nails, Nitzer Ebb e Smashing Pumpkins, são somadas à concepção harmônico-melódica criativa de PJ, resultando nesta sonoridade peculiar. Impossível dissociar a melodia de seu invólucro, tamanha a unidade de ideias. 

Surpreendente mais uma vez, Miss PJ traz outra de suas obras-primas para encaminhar o final: puxada num violão de nylon de toque amplo e dedilhado, numa toada flamenca, "Send His Love to Me", andaluza, é não menos dramática do que todo o restante. Outro show dela aos vocais, outra vez a orquestração intensa, outra vez a produção irretocável. Poderia acabar aqui tranquilamente, mas como é comum ao roteiro de grandes álbuns, ainda há um gran finale. “The Dancer”, arrastada, melancólica, sofrida. E o que são aqueles gritinhos ao final, meu Deus?! Gemidos de prazer repetidos, seis deles, que parecem que vão levá-la ao êxtase, mas que, quando quase chegam ao clímax, resolvem-se em forma de canto. Dona Polly Jean, assim você mata seus ouvintes! Um êxtase tanto quanto.

O que faz uma mulher mignon, magra e de rosto assimétrico se transformar num mulherão radiante e cheio de sex appeal? PJ Harvey é a mais bem acabada resposta. Símbolo da mulher moderna, ele é a união da “pre-millenium tension” com a consciência da emancipação feminina que passaria a vigorar com maior afirmação a partir de então no showbiz e na sociedade ocidental. Em “To Bring...” ela mostra que é possível ser dama e puta, santa e profana, fada e bruxa, carnal e existencial, sensível e intensa, feminina e masculina. Desvencilhada das amarras que por séculos prenderam as mulheres no mundo da arte, PJ, parafraseando uma de suas próprias letras, foi abandonada pelo paraíso, amaldiçoou Deus e dormiu com o diabo para cunhar uma obra rock tão autoral e verdadeira. Respeita a mina.

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A versão de luxo traz B Sides tão bons que renderiam um outro disco.

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FAIXAS:
1. "To Bring You My Love" - 5:32
2. "Meet Ze Monsta" - 3:29
3. "Working for the Man" - 4:45
4. "C'mon Billy" - 2:47
5. "Teclo" - 4:57
6. "Long Snake Moan" - 5:17
7. "Down by the Water" - 3:14
8. "I Think I'm a Mother" - 4:00
9. "Send His Love to Me" - 4:20
10. “The Dancer" - 4:06


Faixas B-Sides da versão limitada em CD:
1. "Reeling" (demo version) - 3:00
2. "Daddy" - 3:16
3. "Lying In The Sun" - 4:30
4. "Somebody's Down, Somebody's Name" - 3:40
5. "Darling Be There" - 3:46
6. "Maniac" - 4:01
7. "One Time Too Many" - 2:52
8. "Harder” - 2:05
9. "Goodnight" - 4:17
Todas as músicas de autoria de PJ Harvey

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 2 de maio de 2022

As 30 melhores aberturas de filmes

 

Não sei quanto a quem não é cinéfilo de carteirinha, mas mais de uma vez me surpreendi tanto com a abertura de um filme, que a sensação imediata era a de quem nem precisava mais continuar assistindo. Foi assim quando, em 1995, na companhia de vários amigos – em sua maioria absoluta amantes de cinema mas não necessariamente cinéfilos – reunimo-nos para ver o VHS locado de “Pulp Fiction: Tempo de Violência”, do Quentin Tarantino. Eu não havia visto “Cães de Aluguel” ainda, seu primeiro e anterior longa, embora já ouvisse todo o debate em torno do nome do cineasta que dizia-se estar revolucionando o cinema. Mas o que me despertava maior interesse era, principalmente, porque o filme em questão havia ganhado a Palma de Ouro em Cannes. Isso, mais do que toda a celeuma sobre Tarantino significar ou não um novo capítulo na história da 7ª Arte (o que poderia ser, escaldado que sou, um exagero proposital, comum na mídia), de fato me surpreendia. Cannes desde cedo em minha vida cinéfila fez muito sentido, pois cresci assistindo seus premiados e indicados, que não raro eram (ainda são) alguns dos melhores filmes que já assisti, como “A Balada de Narayama”, “Coração Selvagem” e “Mephisto”. No caso de “Pulp Fiction”, ainda mais por saber tratar-se de um filme “comercial” norte-americano e não algum cult europeu ou asiático, isso, sim, chamava-me mais a atenção e despertava a curiosidade de vê-lo.

Pusemos a fita no videocassete. A grande maioria sabe o que acontece nos primeiros minutos de “Pulp Fiction”, né? A sequência do diálogo entre Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer) antes de assaltarem o restaurante e a entrada triunfal dos letreiros iniciais com “Miserlou” de Dick Dale arrasando com um surf-rock na trilha e, ainda pelo meio dos créditos, a mudança de música, como se alguém tivesse mudado uma estação de rádio para o funkão “Julgle Boogie”, da Kool & The Gang. Tudo aquilo, o estilo; a atmosfera pop; a inteligência da montagem; o bom gosto musical; o tom de tele-seriado B; a referência a Godard no nome da produtora A Band Apart: toda essa sequência minimamente bem pensada de como iniciar um filme me fez ficar absolutamente estarrecido. Somava-se a isso a engenhosidade da montagem no momento em que Pumpkin e Honey Bunny levantam-se sobre o banco do restaurante (e Roth diz: “I love, Honey Bunny”, e eles se beijam em close antes de apontarem as armas) e anunciam o roubo, a imagem congela e mantém-se o áudio das falas – estas, aliás, extremamente musicais, tanto que se tornam inseparáveis da música de Dale que vem na sequência no próprio disco da trilha sonora. Apaixonei-me pelo filme que mal havia começado.

"Pulp Fiction", Quentin Tarantino (1994)


Excitado, eu olhava para meus amigos na sala enquanto aquela série de genialidades iam surgindo da tela para observar suas reações, mas todos, embora estivessem, sim, gostando, nem de perto se exaltavam como eu. Aquele sentimento de arrebatamento era única e exclusivamente meu. Cheguei a perguntar, incrédulo: “Gente, vocês estão vendo a MESMA coisa que eu?!”. A resposta? Com desdém adolescente: “Sim, Dani, o que é que tem? O filme tá recém começando”. Sim, o filme estava recém começando, mas não de um jeito normal. Para mim (e para muito cinéfilo e estudiosos do cinema) confirmava-se ali a tal revolução cinematográfica atribuída a Tarantino. Não precisava nem ver o filme por completo: era certo que o cinema, então a 4 anos de completar seu primeiro século de existência, mudava a partir dali, e isso era o máximo de eu estar presenciando. Aprendi, naquela situação, que não era uma pena meus amigos não estarem vendo o mesmo que eu: era, sim, o que me diferenciava do senso comum na forma de ver e sentir cinema.

Não foi a primeira abertura de filme que me surpreendeu a de “Pulp Fiction”, claro, mas é certo que esta sensação de entusiasmo se me repetiu várias vezes. Seja em casa ou numa sala de cinema, de vez em quando sou pego de surpresa com algum começo de filme que, como um bom disco de música, sabe dar o start certo e cativar de cara quem o está apreciando, mesmo que a obra em si não corresponda tanto a seu bom início – embora seja geralmente um bom indicativo. Pois essa lista se propõe a elencar justamente isso: não os filmes inteiros, mas seus primeiros minutos. A rigor, por “openning scene” entendemos não somente o design de créditos, mas o suficiente para apresentar o filme, embora não seja necessariamente uma regra.

A junção de fatores, a inventividade na disposição dos letterings, a edição, o prólogo, o design, o impacto da cena, o significado simbólico para com a história que será contada: tudo conta para impressionar e construir uma introdução digna de memória. As maneiras de fazer, assim como de se contar uma história em imagens, são infinitas, e não há um jeito melhor que outro. O critério para a escolha destes 30 exemplos sem ordem de preferência – e que pode tranquilamente ser ampliada por novos filmes ou por títulos aos quais não me ocorreram – é apenas o da sentir-se conquistado já na largada por uma obra cinematográfica. Aqueles filmes que, contrariando a lógica, recomendo que não sejam necessariamente vistos até o final. Os primeiros minutos já bastam.

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“Era uma Vez no Oeste”, Sergio Leone (1968)

São pouco mais de 7 min de puro deleite daquela que é provavelmente a melhor abertura de um filme de todos os tempos. O filme de Leone, aliás, por si merece essa alcunha, mas se se destacar apenas o seu começo já está mais do que bem representado. O design, o cenário, os enquadramentos, a disposição criativa dos letterings, o tempo da montagem, a arte e o figurino, a fotografia. Tudo em perfeita sintonia e, mais que isso, conceitual, visto que apresenta, sem precisar valer-se da poderosa música de Ennio Morricone e quase sem nenhuma palavra dita, tal westerns do cinema mudo, as ideias centrais do filme: o embate ideológico entre passado e futuro, entre vida e morte, entre instinto e consciência..


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“Cassino”, Martin Scorsese (1996)

Lembro também de, no cinema, sentir a reação da sala ao surpreender-se com a explosão do carro do personagem Sam Rothstein, vivido por Robert DeNiro, em “Cassino”, nos idos de 1996. Uma reação espontânea do público, que, assim como eu, era abduzido para dentro da história em poucos minutos de fita transcorridos. Scorsese, justificadamente fã de Saul Bass, conseguira em vida trabalhar com o mestre do design de créditos cinematográficos ainda em dois filmes: “Cabo do Medo”, de 1991, e neste, do ano em que ele morreu.


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“Fahrenheit 451”, François Truffaut (1966)

A nouvelle vague foi o movimento que melhor soube subverter os padrões da linguagem cinematográfica. Esta ficção científica de forte crítica filosófica baseada na novela e Ray Bradbury, além de ser um dos melhores filmes de Truffaut e do cinema, inova desde o seu primeiro minuto. E de forma simples. Aliás: simples em formato, haja vista que se engendra apenas por uma sequência de imagens estáticas e monocromáticas em zoom in e uma locução que descreve aquilo que geralmente apareceria escrito. Porém, a simplicidade da sequência de "Fahrenheit 451" é de uma criatividade tamanha, visto que traduz conceitualmente o principal elemento da história, que é a proibição de qualquer material escrito num futuro distópico. Genial e simples.


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“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2002)

A experiência com "Cidade de Deus" também foi inesquecível. Fui assisti-lo pouco depois de seu lançamento já tomado pela fama em torno do filme. Na sala de cinema, pude comprovar estar diante da obra que demarca o antes e depois do cinema brasileiro, o filme que deu fim à dolorosa era da Retomada. E sua sequência introdutória (“Pega a galinha, pega a galinha!”), com a faca cintilante simbolizando o perigo, os fragmentos de imagens intercaladas por legendas, a foto em cores pulsantes, o som da lâmina sendo afiada misturado ao do samba para devorar a ave fujona. Uma cena de tensão que se cria em poucos minutos e que já diz a que o filme viera: para revolucionar o cinema nacional e mundial.


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“Um Corpo que Cai”, Alfred Hitchcock (1956)

Saul Bass foi, inegavelmente, o gênio do design de créditos em cinema. E quando a genialidade dele se encontrava com a de outros, como, no caso, Alfred Hitchcock, com quem colaborou mais de uma vez, aí era gol certo. Altamente conceitual, como os videoclipes musicais que passariam a existir apenas décadas depois, a entrada de "Vertigo", com o casamento perfeito com a trilha de Bernard Hermann e os efeitos especiais bastante ousados e criativos para sua época, ainda surpreendem. Se hoje fosse feito por computadores já seria louvável, imagina em 1956.


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“Psicose”, Alfred Hitchcock (1960)

Outro da colaboração Bass/Hitchcock, "Psicose" vale-se dos tradicionais grafismos que eram comuns ao trabalho de Bass, dono de um traço magnifico. A assustadora trilha de Hermann, sinônimo de thriller de suspense, é traduzida por linhas retas paralelas em p&b que se deslocam horizontal e verticalmente em conjunção com as letras, geram uma sensação de instabilidade e não-linearidade, ideia a qual, por sua vez, simboliza a perturbadora história do assassino psicótico Norman Bates. Junto com "Vertigo", aquele que é considerado o grande filme de Hitch. Não à toa.


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“O Segundo Rosto”, John Frankenheimer (1966)

Mais uma de Bass, esta perturbadora abertura de "O Segundo Rosto" é um verdadeiro exercício artístico. Valendo-se de potente trilha de Jerry Goldsmith e da trama de suspense psicológico do filme de Frankenheimer, Bass explora distorções como as do expressionismo alemão e carrega nas sombras e imagens projetadas em espelhos para, já de início, entrar na mente do espectador, que, a se confirmar pelo excelente longa, será conduzido a um mundo de medos e aflições internas. Poucas vezes uma introdução casou tão bem com a ideia central de uma obra. 


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“O Jogador”, Robert Altman (1992)

Esta cena já esteve destacada aqui no Clyblog por outro motivo: o plano-sequência. Pois Altman consegue com este engenhoso desenho de cena não apenas criar uma das melhoras sequências sem corte da história do cinema (afinal, o próprio filme trata sobre os bastidores da sua indústria) como, por conta exatamente disso, causar um incrível impacto já no início do filme, visto que o plano-sequência é justamente o que o abre. Altman, dos melhores do cinema autoral dos Estados Unidos, sabia como ninguém abrir suas obras, haja vista "Nashville", "M*A*S*H*" ou "Três Irmãs", mas nada bate a de "O Jogador".

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“Magnólia”, Paul Thomas Anderson (1999)

Outro dos que fui assistir no cinema é fui totalmente arrebatado. Também pudera: que forma criativa de se começar um filme! P.T.Anderson põe pra baixo o queixo do espectador num prólogo ao mesmo tempo divertido e instigante, que relaciona fortuitos momentos da história, para, ao final, triunfantemente, soltar a imagem da flor "Magnólia" abrindo-se em velocidade acelerada sobre a projeção de diversos vídeos. Além disso, tem a apaixonante música de Aimee Mann, a quem nem conhecia e passei a adorar por causa da trilha do filme. Inteligentemente, a aparente dissociação dos acontecimentos do prólogo antecipa a trama coral proposta pelo roteiro e a nada casual relação entre aquelas histórias paralelas. “Isto não foi uma coincidência”.

 

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“O Homem do Braço de Ouro”, Otto Preminger (1955)

Bass de novo, aqui na sua forma mais naturalmente criativa e genial: grafismos e desenhos com seu traço característico sobre um fundo preto e legendas sendo dispostas em conjunto com a música de Elmer Bernstein. A primeira parceria do designer com Otto Preminger, com quem trabalharia em vários outros projetos, também explora os meandros obscuros da mente humana, no caso, de um baterista de jazz viciado em heroína vivido incrivelmente pelo jovem (mas já ídolo) Frank Sinatra. Só o desenho do braço distorcido já é uma das mais felizes contribuições de Bass para a história do cinema e do design.


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“A Marca da Maldade”, Orson Welles (1958)

Outro que, assim como "O Jogador", também tem um dos grandes plano-sequências da história cinematográfica para começar o filme. Porém, havemos de dar ainda mais mérito para o sempre inquieto e criativo Orson Welles em ousar abrir um filme deste jeito nos anos 50, quando o cinema e os espectadores tinham como padrão o formato convencional de créditos iniciais. Nunca se havia visto uma cena de abertura tão complexa, com vários atores e figurantes em cena, câmara em travelling, mudança de enquadramento de primeiríssimo plano para planos médios e grande, num espaço físico extenso e com direito até à explosão. E tudo isso SEM corte. Caramba! Como se não bastasse, o longa confirma todas as expectativas de seus de minutos iniciais naquele que é, talvez, o grande de Welles.


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“Uma Mulher É uma Mulher”, Jean-Luc Godard (1961)

Godard, assim como Truffaut e seus companheiros de nouvelle vague, nunca deixaram de inovar a maneira de começar a contar suas histórias. O suíço, aliás, comumente radical, já fez muito filme que, a rigor, não começa nunca – e nem “termina”, consequentemente, como “Je Vous Salue, Marie” ou “FilmSocialisme”. Mas uma das marcas que Godard nunca abandonou é o trato formal da tipografia dos letterings, os quais se utiliza geralmente com fontes não serifadas tipo Futura ou Arial (e nas cores da bandeira da França) sobre fundo escuro, encurtando os limites entre poesia concreta, cinema, vídeoarte e literatura. Caso de “Uma Mulher é Uma Mulher”, que ele faz a proeza de apresentar genialmente em menos de 2 min.


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“Fellini 8 1/2”, Federico Fellini (1963)

Fellini não cria suspense nenhum em relação ao nome do filme, o qual aparece já no segundo frame sobre fundo escuro na forma da conhecida logo. Mas a partir dali o que se vê até os 3 min que se transcorrem é a mais absoluta genialidade felliniana. A história do cineasta pressionado pela crise de criatividade é expressa numa espécie de prólogo onírico minuciosamente bem construído. O claustrofóbico engarrafamento, cuja mudez é ensurdecedora, e os olhares condenatórios à sua volta, sufocam aquele homem sem rosto dentro de seu carro a ponto de fazê-lo... sair voando! A lindeza do sonho se encerra numa praia, sobrevoando o mar e sendo puxado por uma corda da areia por ele próprio, que tem a companhia de um homem de capa sobre um cavalo negro. E o melhor: o oitavo filme (mais um média) de Fellini mantém esse nível até o fim.



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“2001: Uma Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick (1969)

 A ficção científica que estabeleceu o padrão do gênero para sempre é uma aula de narrativa para realizadores até hoje, o que inclui sua marcante abertura. Copiado e referenciado centenas de vezes, o início de "2001", de apenas 1 min30’, é, contudo, dos mais originais da história da 7ª Arte. Traduzindo em imagens siderais grandiosas a impactante abertura da sinfonia "Also Sprach Zarathustra", de Richard Strauss, Kubrick mostra o raro alinhamento do planeta com Sol com a Lua valendo-se, para isso, de poucos mas precisos elementos: tela escura que vai aos poucos revelando a imagem e apenas três letreiros em tipografia Futura: “Metro-Goldwyn-Mayer Presents”, “A Stanley Kubrick Production” e o nome do filme em tamanho maior (com o detalhe do Copyright abaixo bem pequeno). Separadamente do filme, só esse trecho já pode ser considerado uma obra-prima.


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“O Poderoso Chefão, Francis Ford Coppola (1972)

Este é um caso de uma forma própria de apresentar a história. O nome, através da bela logo com a mão divina comandando a marionete com o letreiro “Mario Puzo’s The Godfather” e os acordes da clássica música tema de Nino Rota, já está garantido no segundo frame. Porém, os 6 minutos seguintes apenas de diálogos traduzem diversos níveis narrativos e simbólicos que serão trazidos nas quase 3 horas de fita subsequentes. As relações de poder, a inteligência manipuladora do Padrinho, os valores familiares, os papeis sociais, os meandros dos poderosos... muita coisa é dita ou subentendida até o momento em que Vito Corleone (Marlon Brando, espetacular) cheira a rosa de sua lapela e dá-se continuidade à “festa”. 


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“A Terceira Geração, Reiner Werner Fassbinder (1979)

Um dos maiores estetas do cinema, o alemão Fassbinder deve muito de suas criativas aberturas de filmes a um contemporâneo e conterrâneo seu ligado à arte moderna a quem muito se inspirava para isso: Joseph Beuys. Não raro, as introduções de seus filmes referenciam o estilo de Beuys, com tipografias monocromáticas dispostas sobre imagens em movimento ou estáticas, criando peças dignas de galerias expositivas. O começo de “A Terceira Geração” é um deles, com os créditos pulsando no ritmo de uma batida cardíaca enquanto vão sendo apresentados sobre um zoom out que vai descortinando um apartamento com telas, móveis e pessoas.


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“Assassinos por Natureza, Oliver Stone (1994)

Cineasta pautado pelo experimentalismo, Oliver Stone desde seu primeiro longa, “Platoon”, de 1986, sempre soube começar bem um filme. Porém, 8 anos depois, ao invés de tornar-se mais conservador, Stone mostra-se saudável e surpreendentemente ainda mais ousado com o altamente pop e sarcástico “Assassinos por Natureza”. O começo do filme é visivelmente influenciado pela linguagem dos videoclipes da MTV, emissora à época em alta, seja pelos enquadramentos distorcidos, pelo movimento de câmera frenético, pela alteração brusca de ISO ou pela montagem de ritmo musical. Tão musical, que, na cena, o violento casal espanca e mata pessoas em um restaurante com absoluto prazer ao som do punk-rock da L7. 


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“Persona, Ingmar Bergman (1960)

Um dos maiores cineastas de todos os tempos, Bergman tinha total domínio da narrativa. Porém, a introdução de seus filmes invariavelmente traziam a fonte Times sem serifa sobre fundo escuro. Mas Bergman sabia quando contrariar o próprio estilo, e o profundo “Persona” incitou-lhe a isso. Num conceito de vídeoarte – já existente nas galerias contemporâneas mas pouco exploradas no cinema de arte –, o cineasta funde imagens em alta profusão, usa fotos reais e ousa em enquadramentos e fotografia p&b. Tudo de forma a criar uma atmosfera de sonho e fluidez do tempo/espaço o qual Bergman tão bem constrói naquele que é considerado“o filme mais difícil de todos os tempos”.


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“Cidadão Kane, Orson Welles (1940)

Em seu primeiro longa, o então jovem Welles, com apenas 25 anos, inovava consideravelmente o modo de abrir uma história filmada. Aliás, não somente essa parte, mas em diversos aspectos da linguagem cinematográfica daquele que é ainda hoje para muitos o melhor filme de todos os tempos. Quanto à introdução, mesmo com o título revelado imediatamente ao começo (seria muita transgressão não informar pelo menos isso ao público da época), nunca havia se visto um prólogo in média rés (com o qual se começa uma narrativa no auge da ação antes de começar de novo para explicar como se chegou lá), tão comum hoje. Enigmática (o que será aquele "Rosebud" dito antes do cara morrer?!), a primeira imagem que aparece traz uma placa com a mensagem “No Trapessing” (“Não Ultrapasse”). Era Welles, o mesmo que anos antes havia apavorado multidões com a transmissão em rádio d'"A Guerra dos Mundos", manipulando o subconsciente do espectador.


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“Manhattan, Woody Allen (1979)

Assim como Bergman, Allen tem um estilo geralmente muito próprio de iniciar seus filmes, quase que invariavelmente com legendas em fonte tipo Windsor Light Condensed e uma música inteligentemente bem selecionada para sonorizar. Porém, como o mestre sueco em "Persona", Allen também sabe transgredir a si próprio. Em "Manhattan", ao invés do fundo preto com letterings, ele monta uma pequena sinfonia urbana com uma sequência de imagens documentais e poéticas de sua Nova York num cristalino p&b. A sutileza da forma como anuncia o título (e nada mais que isso), num letreiro luminoso de uma rua qualquer do bairro, prevê a abordagem que será dada aos personagens do filme: todos meras continuações do próprio corpo da cidade. Poesia.


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“Laranja Mecânica, Stanley Kubrick (1971)

Com total domínio do fluxo narrativo, Kubrick é um craque das aberturas. "O Grande Golpe", "O Iluminado" e o já citado "2001: Uma Odisseia no Espaço" são exemplos, mas outro diferenciado neste sentido é "Laranja Mecânica". Uma música feita em sintetizador começa sobre uma tela vermelha até quase 30 segundos, quando finalmente surgem os primeiros letterings numa tipografia Arial negritada. Percebe-se, então, que a tal música é uma versão eletrônica da peça “Music for the Funeral of Queen Mary”, de Henry Purcell, do século XVII. O fundo vermelho se transforma em azul e, de novo, em vermelho para anunciar o nome do filme. Até que, num corte brusco, muda para o close da figura andrógena de Alex (Malcom McDowell), personagem principal da história de Anthony Burgess. Dessa imagem, Kubrick não corta novamente e, sim, a faz prosseguir num travelling frontal-out sob o off do brilhante texto que reproduz o fluxo de pensamento de Alex, o qual situa o espectador do universo de distopia que se verá a partir dali.


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“Arizona Nunca Mais”, Joel e Ethan Coen (1987)

A abertura do segundo e cativante filme dos irmãos Coen, quando eles ainda eram uma revelação, no final dos anos 80, é tão criativa, engraçada, pop e publicitária (no bom sentido), que serve como trailer. A história do assaltante pé-rapado H.I. McDonnough (Nicholas Cage) contada em off por ele mesmo enquanto as imagens vão sendo exibidas com a trilha magistral de Carter Burwell – suas idas e vindas pra cadeia, os personagens bizarros que conhece no caminho – denotam, pelo brilhante texto, principalmente, seu coração bom. O mesmo que o faz conhecer o amor de sua vida, a policial Ed (Holly Hunter). Depois, eles resolvem sequestrar um dos sete bebês da ricaça família Arizona, mas aí é que a história mesmo começa...

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“Alien: O 8º Passageiro”, Ridley Scott (1979)

Lembrando a abertura de "2001", filme ao qual Scott bastante homenageia neste revolucionário terror espacial, tem, assim como na obra de Kubrick, um desenho de cena simples mas muito eficiente. Uma câmera se desloca no espaço da esquerda para a direita em uma panorâmica enquanto veem-se manchas brancas surgirem, as quais vão formando numa uniformidade não-sequencial o nome “Alien” em uma fonte pesada e sem serifa. Não há nos créditos, mas diz que também é obra de Saul Bass.


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“Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, Terry Gilliam e Terry Jones (1975)

Como avacalhar os créditos iniciais de um filme? O grupo Monty Python tem a resposta. Em “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, usando praticamente só tipografia e tela preta, eles conseguem subverter tudo que se imagina de uma opening scene. Sob uma trilha austera, os subtítulos são exibidos, até que, bem abaixo, algumas palavras com caracteres escandinavos começam a aparecer. Frases totalmente desconexas como “Não vai ter feriado na Suécia este ano?” ou uma história esquisita de um alce que mordeu a irmã de alguém. Eis, então, que surge um crédito para explicar o erro nos créditos: “Nos desculpamos pela falta de subtítulos. Os responsáveis foram despedidos”. Muda a música, mas as intromissões continuam, e um novo aviso, agora de que os responsáveis por demitir os demitidos também foram demitidos. Já com uma absurda trilha mexicana, a confusão segue até o fim e, com muito “esforço”, conseguem dar o nome dos diretores: Terry Gilliam e Terry Jones, principais responsáveis por essa bagunça toda.



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“007: O Espião que me Amava”, Lewis Gilbert (1977)

Poderia citar vários tanto anteriores ou posteriores a este filme, mas esta de "O Espião que me Amava" se tornou uma referência dentro da própria franquia. A começar que a abertura com créditos nunca está dissociada do prólogo, que sempre começa com a famosa “gun barrel sequence”, em que um vilão qualquer está olhando por uma mira e vê 007 entrar em cena e atirar contra ele. Depois, os minutos de ação, neste caso, mostrando o agente em duas de suas situações comuns: namorando e se aventurando. Já a abertura em si, assinada pelo mestre Maurice Binder, designer gráfico que estabeleceu o estilo das clássicas aberturas dos filmes de James Bond, consolidaria os elementos que caracterizariam para sempre as chamadas iniciais da série: arte figurativa com efeitos de elementos da história, uso da figura/silhueta de figuras e pessoas - como a do próprio ator que faz JB (Roger Moore à época) -, a fonte Arial fina e branca, o disparo de pistola e, claro, uma trilha especial feita para aquele filme, no caso "Nobody Does it Are Bether", com a Carly Simon – das melhores.


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“Crepúsculo dos Deuses, Billy Wilder (1945)

O sucesso de consagradas comédias como “Se Meu Apartamento Falasse” e “Quanto Mais Quente Melhor” fez com que Wilder ficasse pouco lembrado por outros gêneros como o suspense e o drama aos quais, contudo, ajudou a solidificar um novo padrão de qualidade na Hollywood dos anos 40 e 50. Este clássico do cinema é uma prova de sua versatilidade, o que deve bastante de seu impacto pela forma como inicia. O modo aparentemente fortuito como o título aparece, numa placa indicando o mítico endereço “Sunset Boulevard”, é precedido por uma câmera em travelling filmando o asfalto cinza na direção de algum lugar específico. É onde está o corpo desfalecido do narrador. Sim! Como em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em "Crepúsculo dos Deuses" é o morto, afogado numa piscina, quem está narrando pleno de consciência de seu estado moribundo. Impossível não ter curiosidade de assistir até o fim.



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“Apocalypse Now”, Francis Ford Coppola (1979)

Não há nenhuma palavra escrita dizendo que filme é. Mas nem precisa. O grande plano de uma floresta é aos poucos invadido por helicópteros que cruzam a tela e uma fumaça começa a levantar. Percebe-se, porém, que a fumaça não é de areia, mas, sim, o venenoso napalm. Até que várias bombas caem sobre a mata, provocando gigantescas explosões. A música que toca não podia ser outra: “The End”, da The Doors. É um presságio. É a guerra. É o Vietnã. É “o horror”. Diversas imagens apocalípticas se fundem ao rosto de um homem em close, o personagem principal do filme, o perturbado Capitão Benjamin Willard (Martin Sheen). A sensação de quebra no tempo perfaz todo o longo filme, que perscruta os mais terríveis meandros psicológicos da guerra.


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“Cléo das 5 às 7”, Agnés Varda (1962)

Outra grande esteta do cinema moderno, Varda pautou toda sua filmografia pela inventividade narrativa e estética, a qual passava por um filtro muito pessoal. Em "Cléo das 5 às 7", seu primeiro longa, fica clara esta criatividade seja na forma como no conteúdo. A mesa de uma cartomante é filmada em plongê mostrando somente o baralho e as mãos dela e da cliente. Os subtítulos em branco são gerados conforme a disposição das cartas sob um silêncio que provoca tensão. Que mensagem as cartas vão dizer? E dizem: a jovem Cléo tem apenas 2 horas de vida, o tempo que o filme transcorrerá: das 5 da tarde às 7 da noite. Varda dá um show em montagem e no jogo simbólico entre cor, que aparece somente quando as cartas são lidas (supostamente, enquanto ainda há vida), e p&b, que domina o filme, marcado pela agourenta previsão que atormentará a personagem.



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“A Pantera Cor-de-Rosa”, Blake Edwards (1963)

Um modo interessante de se abrir filmes – e que fecha muito bem para comédias – é a animação. No entanto, como as da série Pink Panther, não tem igual, principalmente a do primeiro da franquia. A atrapalhada mas elegante pantera de cor exótica criada pelo próprio Blake Edwards virou desenho animado para a TV depois do filme tamanho o sucesso que fez exatamente na abertura do filme, assinada pelos designers e animadores David H. DePatie e Fritz Freleng. Aliás, este é o único momento em que ela, fugindo do ainda mais atrapalhado inspetor Jacques Clouseau, aparece, visto que o nome Pantera Cor-de-Rosa é o de uma pedra preciosa na trama. Além da simpatia da Pantera, ainda tem a infalível trilha do genial Henri Mancini, uma música altamente charmosa e de fácil assimilação, tanto que virou o tema de jazz mais conhecido de todos os tempos.




Daniel Rodrigues